Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5705/2007-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: NULIDADE DA DECISÃO
FUNDAMENTAÇÃO
AUDIÊNCIA PRELIMINAR
PODER DISCRICIONÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: 1. A fundamentação das decisões judiciais visa assegurar o seu controlo externo;
2. O grau de exigência da sua concretização é directamente proporcional ao grau de litigiosidade ou de controvérsia, não lhe sendo alheia a representação dos destinatários;
3. Não é ilegal a remessa dos autos para serem despachados por juízes nomeados ao abrigo do artº 3º da Lei 3/2000;
4. As decisões judiciais têm de ser expressas;
5. A decisão de dispensar a audiência preliminar é irrecorrível porque proferida no uso de um poder discricionário, mas já é recorrível com fundamento na não verificação dos pressupostos do exercício daquele poder (legalidade do uso);
6. O conceito de simplicidade é de geometria variável dependendo o seu preenchimento sobremaneira do juízo subjectivo daquele a quem compete desempenhar a tarefa;
7. Já assim não será quando a lei exija que a simplicidade seja manifesta, pois que aí não basta a formulação de tal juízo por aquele que desempenhará a tarefa, devendo antes que tal se afigure como notório para a generalidade das pessoas qualificadas.
R.F.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
I – Relatório
A… intentou acção declarativa com processo ordinário contra R … pedindo a anulação da sentença arbitral que a condenou a pagar à Ré uma indemnização por ilícita resolução do contrato de agência entre ambas celebrado, com fundamento em insusceptibilidade de resolução do litígio por via arbitral, irregularidade da constituição do tribunal, violação do princípio do tratamento igualitário das partes e terem sido apreciadas questões que não podiam ser conhecidas.
A Ré contestou excepcionando a legitimidade e a irregularidade do mandato e por impugnação.
Em 15MAI2005 o Mmº juiz da 3ª secção da 9ª Vara Cível de Lisboa proferiu o seguinte despacho: “Em conformidade com o ofício 9218 do Conselho Superior da Magistratura, remeta os autos às instalações do Ministério da Justiça, sitas na Rua Augusta, a fim de serem conclusos aos Exmos Senhores Juízes que aí exercem funções”.
Efectuada a ordenada remessa, veio a ser proferida a seguinte decisão:

“Uma vez que os autos foram remetidos para estes serviços sem que se tenha realizado audiência preliminar, entendemos que se terá prescindido tacitamente desta.
+++
[…]

Tribunal competente;
processo válido;
partes capazes e legítimas (improcede a excepção de ilegitimidade activa deduzida pela R., face aos documentos apresentados);
não se verifica vício de patrocínio da A.
+++
Vejamos agora as questões suscitadas pela A.:

a)
insusceptibilidade de resolução do litígio por via arbitral (artº 27-1-a) da Lei 31/86 de 29-8).

Alega a A. que a cláusula compromissória inserta no contrato de agência não elenca entre os litígios a submeter a arbitragem os resultantes de rescisão ou resolução do contrato de agência.
O litígio submetido ao tribunal arbitral baseou-se na cláusula 17ª do contrato de agência.
Na petição pediu a ora R. indemnização à antecessora da ora A. invocando resolução do contrato sem justa causa (ver fls. 149).
Na dita cláusula 17ª pode ler-se (fls. 42):
‘Toda e qualquer questão ou discrepância que possa surgir a partir desta data entre as partes do presente Contrato, em relação com as cláusulas no mesmo incluídas, com o seu objecto, ou delas emergente ou com elas relacionada ou acerca da sua interpretação ou por qualquer outro motivo, deverá ser dirimida mediante arbitragem…’.
Na cláusula 16ª (fl. 41) prevêem-se as hipóteses em que as partes poderão rescindir unilateralmente o contrato.

Em nosso entender a A. não tem razão.
O litígio submetido ao Tribunal Arbitral cabia perfeitamente no âmbito da cláusula 17ª.
Rejeita-se, por arbitrária e desrazoável, a interpretação restritiva por ela defendida.
As sequelas de uma resolução sem justa causa (e aqui haveria sempre que proceder à interpretação das cláusulas do contrato) cabem perfeitamente na dita cláusula 17ª.

b)
Irregularidade de constituição do Tribunal Arbitral (alín. B) do artº 27º da Lei 31/86).

Alega a A.:
Nos termos do artº 12º-4 da Lei 31/86, compete ao Tribunal Judicial decidir sobre o objecto do litígio quando as partes não cheguem a acordo sobre tal questão.
A M… (antecessora da A.), R. no processo arbitral, não expressou o seu consentimento sobre o seu consentimento sobre o objecto proposto pela então A.
A então A. (agora R.) deveria ter proposto o processo previsto no artº 1508º e seg. do CPC, o que não fez.
O Tribunal Arbitral não podia fixar ele o objecto do litígio, como fez.
Consequentemente, o Tribunal Arbitral não foi devidamente constituído.
Esse Tribunal interpretou esse artº 12º-4 de forma violadora da Constituição.

Regula o artº 12º a nomeação de árbitros e determinação do objecto do litígio.
Refere o nº 2 que a nomeação pelo presidente do Tribunal da Relação pode ser requerida passado um mês sobre a notificação prevista…
No nº 4 lê-se que se no prazo referido no nº 2 as partes não chegarem a acordo sobre a determinação do objecto do litígio caberá ao tribunal decidir.

Tudo está em saber se o silêncio da M… deve valer como aceitação do objecto do litígio.
Entende a A. que não.

Vejamos:
Regula o artº 11º a constituição do tribunal.
A parte que pretenda instaurar o litígio deve notificar desse facto a parte contrária – nº 1 do artigo.
A notificação deve precisar o objecto do litígio – nº 3.
Deve ainda indicar desde logo o seu árbitro e convidar a outra parte a indicar o seu – nº 4.
A A. não respondeu a essa notificação.
Se pretendia impugnar o objecto do litígio, devia tê-lo feito desde logo.
Só este entendimento se compagina com a celeridade que está na lógica pretendida pelo processo arbitral.

Improcede por isso esta questão suscitada pela A.

c)
Violação do princípio do tratamento igualitário das partes (27º-1-c) e artº 16º-a).

Alega a A. ter oferecido 5 testemunhas de nacionalidade espanhola e ter pedido a nomeação de intérprete, ‘caso o tribunal o entendesse necessário’.
Que o tribunal não considerou necessária essa nomeação, sendo certo que o interrogatório foi efectuado em língua portuguesa.
Que este facto teve influência na produção da prova.

O processo arbitral não tem forçosamente de seguir os trâmites do CPC, precisamente porque se pretende mais rápido e menos formal.
Os árbitros, para uma eficaz e pragmática gestão do processo, dispõem portanto de maiores poderes na direcção dos actos processuais.
Mesmo no CPC o juiz dispõe de poder discricionário quando se trata de decidir da necessidade ou desnecessidade de se nomear intérprete – artº 139º-2.
Como é sabido, a nomeação de intérprete não contribui para a celeridade processual, bem pelo contrário.
Normalmente, portugueses e espanhóis entendem-se.
Melhor se entendem ainda quando se trata de pessoas qualificadas, como foi certamente o caso dos autos – juízes, advogados, testemunhas que seriam provavelmente pessoas de boa instrução.
Discutiam-se por outro lado assuntos técnicos, o que facilita a compreensão.

Improcede esta questão.

d)
Apreciação pelo Tribunal de questões de que não podia conhecer (27º-1-e).

Alega a A. que a ora R. se furtou indevidamente a apresentar um pedido líquido, quando o podia ter feito.
Que foi por isso violado o artº 471º do CPC.

Também neste segmento a A. não tem razão.
O artº 569º do C. Civil permite deduzir pedido genérico com grande largueza.
Na linha da interpretação daquele preceito em conjugação com o artº 471º do CPC defendida por Vaz Serra, foi alterado o artº 471º-1-b) em termos que tornam ociosa a discussão aqui trazida pela A.

Não merece censura o acórdão aqui impugnado ao admitir o pedido genérico.

e)
Do articulado superveniente.

Impugna aqui a A. o facto de o Tribunal ter admitido o articulado superveniente em que a ora R. veio invocar a caducidade da possibilidade de a M… ter resolvido o contrato de agência.

Que esse articulado foi extemporâneo e que devia ter sido rejeitado, nos termos do artº 506º do CPC.

A ora R. podia em princípio invocar a todo o tempo a caducidade – 333º-2 e 303º do C. Civil.
Em sede de articulado superveniente estabelece porém o CPC restrições que têm a ver com a disciplina rígida do processado e garantias das partes.
Nesse processo são prescritas preclusões, tendo em vista defender os aludidos interesses, em prejuízo da verdade material e quiçá da justiça.
Já vimos, porém, que no processo arbitral os juízes gozam de maior liberdade no afeiçoamento do andamento processual à justiça do caso.
Não nos parece por isso passível de censura o decidido pelo tribunal arbitral sobre este ponto.

Em face do exposto, julgo improcedente a acção, condenando a A. nas custas.”

Notificada de tal decisão veio a A. arguir a nulidade do despacho que presumiu a dispensa tácita de audiência preliminar, dada a inadmissibilidade legal de acto judicial tácito e violação do artº 205º, nº 1, da Constituição da República.
Igualmente arguiu a nulidade do despacho que ordenou a remessa dos autos ‘às instalações do Ministério da Justiça, sitas na Rua Augusta, a fim de serem conclusos aos Exmos Senhores Juízes que aí exercem funções’, por violação do princípio legal e constitucional do juiz natural.
Tais arguições vieram a ser indeferidas, tendo a A. agravado dos correspondentes despachos, concluindo pela verificação das aludidas nulidades.
Outro sim apelou do saneador-sentença concluindo, em síntese, pela nulidade por omissão de fundamentação de facto, inadmissibilidade do conhecimento do mérito da causa no saneador e erro de julgamento quanto às questões apreciadas.
Houve contra-alegação em que se suscitou a questão da admissibilidade do recurso.

II – Questões a Resolver

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio - Cf. artº 684º, nº 3, e 690º CPC, bem como os acórdãos do STJ de 21OUT93 (CJ-STJ, 3/93, 81) e 23MAI96 (CJ-STJ, 2/96, 86)..
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo - Cf. acórdãos do STJ de 15ABR93 (CJ-STJ, 2/93, 62) e da RL de 2NOV95 (CJ, 5/95, 98). Cf., ainda, Amâncio Ferreira, Manual dos recursos em Processo Civil, 5ª ed., 2004, pg. 141..
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras - Cfr artigos 713º, nº 2,, 660º, nº 2, e 664º do CPC, acórdão do STJ de 11JAN2000 (BMJ, 493, 385) e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 247..
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
1. a nulidade do despacho que ordenou a remessa aos juízes que exercem funções na Rua Augusta (1º agravo);
2. a nulidade do despacho que considerou dispensada a audiência preliminar (2º agravo);
3. a admissibilidade do recurso de apelação;
4. a nulidade do saneador-sentença;
5. a inadmissibilidade do saneador-sentença;
6. a insusceptibilidade de resolução do litígio por via arbitral;
7. a irregularidade de constituição do tribunal arbitral;
8. a violação do tratamento igualitário;
9. a apreciação do que não podia conhecer.

III – Fundamentos de Facto

Para além do já referido no relatório deste acórdão, haverá, ainda, de considerar a seguinte factualidade relevante:

A R… intentou, em 14JUN2000, acção arbitral contra M… (antecessora da Autora) em que, alegando infundada resolução de contrato de agência exclusivo celebrado entre ambas provocadora de danos no valor indiciário de 814.210.000$00, pede a condenação da M… a “indemnizar a A. pelos danos resultantes do incumprimento do contrato de agência e pela sua resolução infundada, indemnização a ser determinada nos termos gerais de direito, sendo ainda a Ré condenada a liquidar todas as despesas, judiciais, extrajudiciais e de honorários, incluindo custas de parte, que a Autora despendeu e despenderá, acrescida de juros legais, a liquidar em execução de sentença”;
A M… contestou, em 11AGO2000, invocando, entre outras, as excepções de insusceptibilidade de resolução do litígio por via arbitral, de ilegal pedido genérico, de irregular constituição do tribunal, e impugnando a versão apresentada pela autora;
Bem como deduziu pedido reconvencional;
Arrolou testemunhas de nacionalidade espanhola, requerendo a nomeação de intérprete “caso o tribunal o entenda necessário ou conveniente”.
Houve réplica (4SET2000).
Em 26SET2000 foi proferido acórdão que, decidindo do valor da causa e da forma do processo, considerando que a resolução do contrato estava no âmbito da convenção de arbitragem, não ocorrer qualquer ilegalidade do pedido ou irregularidade na constituição do tribunal, ordenou o prosseguimento da causa.
Foram efectuadas diligências tendentes à elaboração da base instrutória e realização da audiência de julgamento.
Em31OUT2000 a R… apresentou requerimento em que, alegando ter tido conhecimento através de projecto de organização de matéria assente e base instrutória entregue em 27OUT2000 que a M… havia confessado ter conhecimento da existência de fundamento para a resolução muito antes da data em que procedeu à mesma, veio invocar a caducidade do direito de resolução.
A M… opôs-se à admissão de tal articulado e da possibilidade de invocação da caducidade.
Por acórdão de 13NOV2000 foi admitido o articulado superveniente.
A audiência de julgamento realizou-se nos dias 14 e 16NOV2000, não se fazendo referência nas respectivas actas à intervenção de qualquer intérprete.
Por acórdão de 21NOV2000 foi julgada procedente a acção com a condenação da M… a pagar à Autora indemnização a liquidar em execução de sentença.

IV – Fundamentos de Direito
1.
Segundo a recorrente o despacho que ordenou a remessa dos autos, finda a fase dos articulados, às instalações do Ministério da Justiça sitas na Rua Augusta para serem conclusos aos juízes que aí exerciam funções deveria ter sido declarado nulo, como peticionado, por falta de fundamentação, por não ter sido notificado às partes e por se tratar de um serviço não erigido em tribunal.
Em bom rigor, apenas o primeiro dos invocados motivos pode ser causa de nulidade do referido despacho; sendo que os outros poderão constituir nulidade processual autónoma.
A imposição de fundamentação das decisões judiciais (artigos 205º da Constituição e 158º do CPC) visa assegurar o controlo externo dessas decisões possibilitando aos seus destinatários, a terceiros (designadamente aos tribunais superiores) e ao público em geral o conhecimento dos fundamentos dessas decisões.
E porque o dever de fundamentação tem essa natureza teleológica, tem de, na sua realização, ser compaginado com outros valores, como sejam os de funcionalidade, de economia e rentabilização de meios (escassos). Daí que, como sobejamente tem sido explanado na doutrina e jurisprudência, os critérios da sua concretização sejam relativos. Desde logo o seu grau de exigência é directamente proporcional ao grau de litigiosidade ou de controvérsia existente no que concerne à questão objecto de decisão; por outro lado a fundamentação não necessita de uma enunciação exaustiva e especificada bastando-se com uma enunciação sintética que permita o alcance da sua finalidade, a apreensão da razão de decidir; e também a ela não é alheia a representação dos seus destinatários, designadamente a intensidade do seu interesse na decisão e o seu grau de conhecimentos e instrução.
Dessa relatividade do conceito de fundamentação, ou, utilizando uma expressão mais actualista, porque a fundamentação é um conceito de geometria variável, resulta que a mesma é susceptível de se considerar realizada em função das concretas circunstâncias do caso; e que tanto pode exigir uma extensa e minuciosa indicação das razões de decidir porque as circunstâncias evidenciam um elevado grau de complexidade e controvérsia, como bastar-se com a mera enunciação da decisão óbvia e insusceptível de qualquer controvérsia.
É essa compreensão relativizada do dever de fundamentação que leva a que o mesmo seja excluído das decisões de mero expediente (artº 205º da Constituição) ou que não suscitem qualquer dúvida ou controvérsia (artº 158º, nº1, a contrario, do CPC).
No caso concreto em apreço trata-se de um despacho destinado a prover ao regular andamento do processo sem interferir no conflito de interesses entre as partes, concernente à distribuição de serviço entre juízes. Trata-se, pois, de um despacho de mero expediente (na acepção do artº 156º, nº 4, do CPC), o qual não carece de fundamentação.
Mas ainda que assim se não entendesse, sendo que os destinatários imediatos dos despachos de cariz processual são os mandatários das partes que são de considerar pessoas especificamente qualificadas para o efeito, a simples referência a circular do Conselho Superior da Magistratura e aos juízes que exerciam funções nas instalações da Rua Augusta é suficiente para que os imediatos destinatários se apercebessem da razão de tal decisão, pois era do conhecimento generalizado dos profissionais forenses da existência e funcionamento naquele local de uma ‘equipa de recuperação de pendências acumuladas’, na sequência das medidas aprovadas pela Lei 3/2000, 20MAR.
O despacho em causa não é nulo por falta de fundamentação.

Independentemente de se discutir se o despacho em causa tinha ou não se ser notificado às partes, o certo é que a eventual omissão de tal notificação (se devida) só redundaria em nulidade processual, nos termos do artº 201º do CPC, se fosse susceptível de influir no exame ou decisão da causa, e não o é.
Com efeito, enquanto originária de desconhecimento pela parte do magistrado a quem está (ou vai ser) concluso o processo, a falta de notificação em nada influi no exame e decisão da causa na medida em que a parte sempre pode aceder a essa informação e sempre está em tempo de (como foi o caso) de suscitar as questões que a respeito considerar pertinentes, sem que haja qualquer afectação dos seus direitos. Por outro lado, do ponto de vista da eventualidade (alegada, aliás, pela recorrente) de o processo ser retirado ao ‘juiz natural’ isso não é uma consequência da omissão de notificação.
Daí que o facto de ter sido omitida a notificação do referido despacho não origina qualquer nulidade processual.

A administração da justiça é realizada pelos órgãos de soberania tribunais (artº 202º da Constituição), que se organizam conforme as categorias definidas no artº 209º, podendo na 1ª instância dos tribunais judiciais haver tribunais de competência específica e de competência especializada (artº 211º, nº 3), competindo ao Conselho Superior da Magistratura a nomeação e colocação dos respectivos juízes (artº 217º).
Por seu turno a LOFTJ determina a existência de tribunais de 1º instância de competência específica designados varas cíveis (artigos 64º e 96º); e no que diz respeito ao respectivo quadro de juízes e respectiva nomeação prevê a acumulação de funções em vários tribunais (artº 69º) e juízes auxiliares.
Por seu turno o artº 3º da Lei 3/2000 veio permitir a nomeação de magistrados judiciais jubilados para o exercício de funções.
E no decurso dessa habilitação legal, como é sobejamente conhecido, o Conselho Superior da Magistratura designou diversos juízes jubilados para o exercício de funções e no uso dos poderes conferidos pelas disposições legais citadas determinou que essas funções fossem exercidas em todos os tribunais com competência cível do distrito judicial de Lisboa.
Quando este processo, atribuído à 9ª Vara Cível de Lisboa, foi remetido às instalações da Rua Augusta para ser despachado pelos juízes aí em funções não houve, como defende a recorrente, uma mudança de tribunal, mas apenas a remessa do processo para um outro juiz do mesmo tribunal, pelo que não ocorre qualquer violação da proibição de desaforamento constante do artº 23º da LOFTJ.
Sendo irrelevante o concreto local onde esse juiz realiza os actos da sua função: se na sede do tribunal, se na sua residência pessoal, se em outro local posto à sua disposição pela administração, designadamente as instalações da Rua Augusta.
Não ocorreu, pois, qualquer ilegalidade no facto de após a fase dos articulados o processo ter sido despachado por juiz nomeado para o exercício de funções ao abrigo do disposto no artº 3º da Lei 3/2000 em instalações do Ministério da Justiça sitas na Rua Augusta.

2.
Insurge-se a recorrente contra o despacho que indeferiu a arguição de nulidade do despacho “Uma vez que os autos foram remetidos para estes serviços sem que se tenha realizado audiência preliminar, entendemos que se terá prescindido tacitamente desta” com o fundamento em que o mesmo manifesta uma opinião expressa e que se verificavam os pressupostos da dispensa de audiência preliminar, invocando a absoluta ausência de decisão e que no caso se impunha a realização de audiência preliminar.
Dos artigos 508º-A e 508º-B do CPC resulta que nas acções com processo ordinário, como é a presente, após a fase dos articulados, há lugar à realização de uma audiência preliminar a qual, porém, verificando-se determinadas circunstâncias, pode ser dispensada pelo juiz.
Desse regime legal a primeira implicação a retirar é a de que a regra é a realização de audiência preliminar; e a segunda é que para que ela não venha a realizar-se é indispensável que haja uma decisão do juiz nesse sentido.
E as decisões judiciais, como resulta inelutavelmente da sua essência e dos seus condicionalismos (v.g., documentação, fundamentação, cognoscibilidade e impugnabilidade) têm de ser actos expressos; não sendo de admitir a categoria de decisões judiciais tácitas (o mais que se pode admitir é que do conteúdo e contexto de uma decisão expressa resulte implicada outra decisão, mas sempre sem prescindir de um mínimo de documentação material).
Ora no caso dos autos verifica-se que o juiz do processo, findos os articulados, ordenou que o mesmo fosse remetido a outro juiz, sem tecer qualquer consideração sobre a dispensa de realização de audiência preliminar.
Se pensou na questão e entendeu que era caso de dispensa ou se nem sequer nela atentou é coisa que se não sabe e, sobretudo, não ficou documentada no processo. O que objectivamente se verifica é a absoluta ausência de decisão sobre a questão da dispensa da audiência preliminar; e tal facto, como já se afirmou, não pode consubstanciar uma tácita dispensa da realização de tal acto.
Por outro lado o juiz que recebeu o processo, notando aquela omissão, exarou despacho em que afirma ter-se apercebido do facto e que dele retirava a ocorrência de uma tácita dispensa do mesmo; ou seja, que dava como tomada uma decisão de dispensa da audiência preliminar, dispensando-se ele de emitir decisão sobre a matéria.
Neste quadro circunstancial temos de concluir pela efectiva ausência de decisão judicial a dispensar a audiência preliminar pelo que a sua não realização consistiu na omissão de um acto prescrito pela lei, facto que constitui causa de nulidade processual se, conforme prescreve o artº 201º do CPC, for susceptível de influir no exame e decisão da causa.
Em nosso modo de ver a influência no exame e decisão da causa não se consubstancia apenas no caso de ser certo ou altamente provável que a decisão seria diferente se não tivesse ocorrido a irregularidade; pelo contrário, ela deve ter-se por verificada sempre que se vislumbre uma mera possibilidade de a decisão ter sido diferente no caso de não ter ocorrido aquela irregularidade.
Nesse modo de ver são de considerar susceptíveis de influenciar o exame e decisão da causa todas as situações em que foi inviabilizado às partes que se pronunciassem directamente sobre as questões a decidir pois que é sempre admissível que se o tivessem podido fazer a decisão pudesse ter sido outra (no caso particular destes autos é sempre de admitir que se tivesse sido possibilitado à recorrente pronunciar-se sobre a intenção de conhecer de imediato do fundo da causa teria invocado a impossibilidade de tal conhecimento – como invoca agora na apelação – determinando a elaboração de base instrutória).
Ao omitir-se a realização da audiência preliminar cometeu-se nulidade processual relevante.

E à mesma conclusão se chegaria se se considerasse, como no despacho recorrido, que ao afirmar entender tacitamente dispensada a audiência preliminar o juiz estava igualmente (e implicitamente) a afirmar que também ele entendia ser de dispensar aquela audiência pelo que, por esse modo, se encontrava uma decisão expressa sobre a dispensa de audiência preliminar. Cujo fundamento era, como só podia ser, a manifesta simplicidade das questões a resolver.
Efectivamente o artº 508º-B do CPC atribui ao juiz o poder discricionário (e, por isso, insindicável – artº 679º do CPC) de dispensar a audiência preliminar quando se verifiquem determinadas circunstâncias (sendo que o juízo sobre a verificação dessas circunstâncias é susceptível de impugnação através de recurso).
Tal dispensa pode ser decretada nos casos em que a audiência preliminar se destinasse à fixação da base instrutória, a facultar a discussão de excepções dilatórias já debatidas nos articulados ou do mérito da causa; no primeiro caso se a simplicidade da causa o justificar e no segundo se a apreciação se revestir de manifesta simplicidade.
Também o conceito de simplicidade (qualidade do que é fácil de resolver, do que não é complicado, do que é dasataviado) é um conceito de geometria variável na medida em que tal atributo pode resultar de diversas circunstâncias. Desde logo, e segundo o próprio critério legal (artº 705º do CPC), por haver uma solução jurisprudencial uniforme e reiterada; mas também porque pela sua própria natureza a questão não suscita a intervenção de significativo arsenal argumentativo ou de complexa ponderação para a generalidade das pessoas medianamente qualificadas; ou, ainda, dada a especial qualificação daqueles a quem é posta.
Daí que tal qualificação depende sobremaneira de um juízo subjectivo daquele a quem compete desempenhar a tarefa a qualificar, pois só ele estará em condições de avaliar o esforço que necessita aplicar em tal desempenho; o controlo que os tribunais superiores efectuam sobre esse juízo é pois necessariamente limitado aos casos excepcionais em que, face às circunstâncias evidenciadas, tal juízo se apresente como manifestamente infundado.
Por outro lado, na economia do preceito em análise existe uma não despicienda adjectivação da simplicidade no caso da al. b) do nº 1. Com efeito, enquanto que a respeito da elaboração da base instrutória apenas se refere à simplicidade da sua elaboração, já no que respeita ao conhecimento de excepções ou do mérito da causa exige-se que essa simplicidade seja manifesta.
Ou seja, e em nosso modo de ver, estabelece-se um reforço de exigência nos pressupostos da dispensa de audiência preliminar no caso do conhecimento de excepções ou do mérito da causa, na medida em que não basta que as questões a resolver sejam simples, antes se exigindo que tal simplicidade seja manifesta.
E com tal exigência aporta-se ao juízo de simplicidade uma maior carga objectiva; é que agora o critério legal não se basta com um juízo subjectivo daquele que vai desempenhar a tarefa, exigindo, em acréscimo, que o mesmo seja manifesto, ou seja, como patente, notório, altamente provável para a generalidade das pessoas medianamente qualificadas. Sendo que o controlo do tribunal de recurso sobre tal juízo é, obviamente, mais amplo do que no caso de mera simplicidade.
Ora no caso concreto dos autos face à extensão e qualidade da argumentação das partes e da própria sentença arbitral, às invocações doutrinais e jurisprudenciais efectuadas, à natureza das questões a resolver (em particular interpretação de declarações negociais e integração de conceitos gerais) e às circunstâncias conhecidas (não se evidencia especial qualificação sobre a matéria do tribunal ou do decisor) não se nos afigura que a resolução das questões colocadas seja passível de ser considerada de uma forma alargada e consensual pela generalidade das pessoas medianamente qualificadas como simples, em termos de poder fundamentar a dispensa de audiência preliminar.
Pelo que, também por aqui, se não poderia considerar legal a dispensa de audiência preliminar.

3.
E concluindo-se pela procedência do agravo fica prejudicada a apreciação da apelação.

V – Conclusões
Do exposto podem extrair-se as seguintes conclusões:
- a fundamentação das decisões judiciais visa assegurar o seu controlo externo;
- o grau de exigência da sua concretização é directamente proporcional ao grau de litigiosidade ou de controvérsia, não lhe sendo alheia a representação dos destinatários;
- não é ilegal a remessa dos autos para serem despachados por juízes nomeados ao abrigo do artº 3º da Lei 3/2000;
- as decisões judiciais têm de ser expressas;
- a decisão de dispensar a audiência preliminar é irrecorrível porque proferida no uso de um poder discricionário, mas já é recorrível com fundamento na não verificação dos pressupostos do exercício daquele poder (legalidade do uso);
- o conceito de simplicidade é de geometria variável dependendo o seu preenchimento sobremaneira do juízo subjectivo daquele a quem compete desempenhar a tarefa;
- já assim não será quando a lei exija que a simplicidade seja manifesta, pois que aí não basta a formulação de tal juízo por aquele que desempenhará a tarefa, devendo antes que tal se afigure como notório para a generalidade das pessoas qualificadas.

VI – Decisão
Termos em que:
a) se nega provimento ao primeiro agravo;
b) se dá provimento ao segundo agravo, revogando-se o despacho que considerou dispensada a audiência preliminar e anulando-se os actos subsequentes do processo;
c) se não conhece, por prejudicada, a apelação.

Custas do primeiro agravo pela agravante, do segundo agravo pela agravada e da apelação pelo vencido a final.

Lisboa, 2008JAN22
(Rijo Ferreira)
(Folque de Magalhães)
(Eurico Reis)