Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
36/09.6PBSRQ.L1-3
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: AMEAÇA
CRIME PÚBLICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: O crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal tem natureza de crime público.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 3ª SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I. Relatório

Nos autos a que corresponde o NUIPC 36/09.6PBSRQ, em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, o MP junto da comarca de São Roque do Pico acusou A…, imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de ofensa à integridade física simples e de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 143º nº 1, 153º nº 1 e 155º nº 1 al. a) do CP, com base em factos ocorridos em 4/3/09 e em data posterior não apurada, de que foi ofendido B….
Não tendo sido requerida a abertura de instrução, os autos foram distribuídos para julgamento à Secção única do Tribunal Judicial de São Roque do Pico, após o que foi proferido despacho judicial que recebeu a acusação e designou datas para a realização da audiência de julgamento.
Em 26/3/10, antes da data prevista para o início da audiência de julgamento, B… fez juntar aos autos o requerimento constante de fls. 106, no qual declara «desistir da queixa oportunamente apresentada, contra o arguido A…, nada mais pretendendo do mesmo por força daqueles factos, pelo que requer a homologação da presente desistência (artigo 51º, nº 2 do C.P. Penal), com o consequente arquivamento dos autos na parte em que a mesma aproveita».
Chamado a pronunciar-se sobre a desistência da queixa, o MP promoveu que, caso o arguido se não opusesse, se homologasse a mesma, na parte relativa ao crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143º nº 1 do CP, atenta a sua natureza semi-pública.
O arguido foi notificado para vir aos autos dizer se se opunha à desistência da queixa, nada tendo respondido.
Pela Exmª Juiz do Tribunal da Comarca de São Jorge do Pico foi proferido, em 29/4/10, um despacho com o seguinte teor:
«Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular, vem o arguido A…, acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física simples e de um crime de ameaça, p. e p. respectivamente pelos artigos 143°, n.°1 e 153°, n.°1, ambos do Código Penal.
A fls. 106, B…, queixoso nos autos, vem declarar que pretende desistir da queixa por si apresentada contra o arguido, sendo que este último declarou, não se manifestou.
Nos termos do disposto pelos artigos 143°, n.°2 e 153°, n.°3, ambos do Código Penal, o procedimento criminal depende de queixa.
Face ao exposto, considerando que o queixoso está em tempo, tem legitimidade para desistir da queixa e que a mesma é legalmente admissível, atenta a natureza semi-pública dos crimes em causa, nos termos dos artigos 113°, 116°, n.° 2, 143°, n.°2 e 153°, n.°3, todos do Código Penal e dos artigos 51.°, n.° 2 in fine e n.° 3, do Código de Processo Penal, julgo válida a desistência de queixa, homologando a mesma.
Declaro extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido A… e ordeno o oportuno arquivamento dos autos.
Sem custas atento o disposto pelos artigos 513° e 514°, a contrario, ambos do Código de Processo Penal».
Do despacho transcrito o MP veio interpor recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:
1. O Ministério Público deduziu acusação contra A… pela prática, em autoria material e concurso efectivo, na forma consumada, de um crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143, n.° 1, do Código Penal, e um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153°, n.° 1, e 155°, n.° 1, alínea a), do mesmo diploma, por, no que ora releva:
2. "No dia 4 de Março de 2009, cerca das 19h00, na Rua ..., freguesia e concelho da M... do P..., o arguido, na sequência de um desentendimento, empurrou B…, melhor id. nos autos, atirando-o ao chão e deu-lhe vários pontapés, que o atingiram no tronco, na cabeça e na cara." (...) e por
3. "Em data não concretamente apurada, mas posterior a 4 de Março de 2009, o arguido, dirigindo-se a B…, disse-lhe que o ia matar e meter entre as faias para ninguém ver."
4. Designada data para audiência de discussão e julgamento, o queixoso, B…, veio aos autos desistir da queixa apresentada, requerendo a respectiva homologação e arquivamento dos autos "...na parte em que a mesma (desistência) aproveita".
5. O Ministério Público, em obediência ao princípio do contraditório, pronunciou-se no sentido de ser o arguido notificado, para os efeitos previstos no artigo 51°, n.° 3, do Código de Processo Penal, e, não havendo oposição à desistência de queixa por parte daquele, ser a mesma devidamente homologada quanto ao crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143°, n.° 1, do Código Penal, atenta a natureza semi-pública deste crime.
6. O crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153°, n.° 1, e 155°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, tem natureza pública.
7. De facto o crime de ameaça agravada constitui um tipo autónomo relativamente ao crime de ameaça simples, por implicar uma maior perturbação da paz individual e da liberdade de determinação do ofendido, constituindo uma verdadeira ameaça qualificada.
8. Pelos motivos aduzidos e porque a natureza do ilícito típico se apura face ao que na norma se dispõe a tal respeito – sendo público quando nada se diz – e, uma vez que o artigo 155° é omisso a tal respeito, dúvidas não restam quanto à natureza pública do crime de ameaça agravada.
9. Sendo crime público, logo não dependendo de queixa, a desistência da mesma é irrelevante porque inoperante.
10. Mais, sendo crime público, a legitimidade para o procedimento criminal cabe ao Ministério Público, conforme consagrado nos artigos 48° a 50° do Código de Processo Penal.
11. Assim, não tem o ofendido B…, queixoso nos autos, legitimidade para desistir da queixa relativamente ao crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153°, n.° 1, e 155°, n.° 1, alínea a), do Código Penal.
12. Não tendo o queixoso legitimidade para desistir da queixa quanto ao crime público, não poderia aquela ter sido homologada e declarado extinto o procedimento criminal quanto àquele crime.
13. Assim, a decisão que homologou a desistência de queixa apresentada por B…, declarou extinto o procedimento criminal e ordenou o arquivamento dos autos, violou, na parte em que se refere ao crime de ameaça agravada, o disposto nos artigos 113°, n.° 1, 116°, n.° 2, 153°, n.° 1 e 155°, n.° 1, alínea a), todos do Código Penal, e nos artigos 48°, 49°, 51°, n.° 2, todos do Código de Processo Penal.
Face ao supra descrito, deverá o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência revogar-se a decisão que homologou a desistência de queixa, declarou extinto o procedimento criminal e ordenou o arquivamento dos autos, na parte em que respeita ao crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153°, n.° 1 e 155°, n.° 1, alínea a), todos do Código Penal, substituindo-a por outra que designe nova data para audiência de discussão e julgamento.
Após notificados para o efeito, o assistente e o arguido não responderam à motivação da Digna Recorrente.
Sobre o recurso interposto recaiu despacho da Exmª Juiz do Tribunal «a quo», que o admitiu, fixando-lhe regime de subida imediata nos próprios autos e efeito devolutivo.
O Digno Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação emitiu sobre o presente recurso, pugnando pela sua procedência.
O parecer emitido foi notificado aos restantes sujeitos processuais, a fim de se pronunciarem, nada tendo respondido.
Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação

Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.
A questão que importa dirimir no sentido de decidir da concessão de provimento ao recurso resume-se a saber se o crime de ameaça agravada p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 153º nº e 155º nº 1 al. a) do CP reveste natureza procedimental pública ou semi-pública, em ordem a ajuizar da atribuição ou não de eficácia extintiva do procedimento criminal dos autos à desistência de queixa formulada pelo assistente B…, na parte relativa a esse ilícito criminal.
A promoção da acção penal rege-se pelo princípio geral da oficialidade ou publicidade, consagrado pelo art. 48º do CPP, nos seguintes termos:
O Ministério Público tem legitimidade para promover ao processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49º a 52º.
O art. 49º do CPP tem por epígrafe «Legitimidade em procedimento dependente de queixa» e o seu nº 1 é do seguinte teor:
Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
O nº 2 do mesmo normativo considera feita ao MP a queixa apresentada a entidade que tenha obrigação legal de a transmitir àquele.
Dos preceitos legais agora citados pode extrair-se a regra segundo a qual a legitimidade do MP para a promoção da acção penal só depende de queixa do ofendido, ou de outra pessoa a quem a lei reconheça o direito de a apresentar, nos casos exista disposição legal expressa que exija o preenchimento de tal requisito.
Nos demais casos, e abstraindo agora das situações em que é exigida acusação particular, a promoção do procedimento criminal tem carácter estritamente público.
O nº 2 do art. 116º do CP dispõe:
O queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1ª instância. A desistência impede que a queixa seja renovada.
Contudo, a desistência de queixa, sem oposição do arguido, só tem por efeito extinguir o procedimento criminal nos casos em que lei condicione a promoção deste à apresentação daquela.
Relativamente aos crimes de natureza procedimental pública, a desistência de queixa é ineficaz.
É da existência de uma disposição legal, que condicione a promoção do procedimento pelo crime de ameaça agravada, por que o arguido vinha acusado, ao exercício do direito de queixa, que iremos averiguar.
O art. 153º do CP é do seguinte teor:
1 – Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 - O procedimento criminal depende de queixa.
Por seu turno, o art. 155º do CP reza:
1 - Quando os factos previstos nos artigos 153º e 154º forem realizados:
a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou
b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; ou
c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do nº 2 do art. 132º, no exercício das suas funções ou por causa delas;
d) Por funcionário com grave abuso de autoridade;
o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do nº 1 do art. 154º.
2 – As mesmas penas são aplicadas se, por força da ameaça ou da coacção, a vítima ou a pessoa sobre a qual o mal deve recair se suicidar ou tentar suicidar-se.
O art. 154º do CPP ocupa-se da tipificação do crime de coacção, dispondo o seu nº 4 que o procedimento criminal depende de queixa, quando a conduta tipificada e declarada punível tenha lugar entre «cônjuges, ascendentes e descendentes, adoptantes e adoptados, ou entre pessoas de outro ou mesmo sexo, que vivam em situação análoga à dos cônjuges».
Conforme se refere no Acórdão da Relação do Porto citado no douto parecer emitido pelo Digno PGA, são numerosos os casos em que a lei penal faz depender de queixa o procedimento criminal por determinados crimes, na sua variante simples (isto é não qualificada ou agravada), consagrando o carácter público do procedimento relativo aos crimes qualificados ou agravados.
Tal é o que sucede, por exemplo, desde a entrada em vigor da reforma do Código Penal introduzida pelo DL nº 48/95 de 15/3, com grande parte dos crimes contra propriedade e contra o património, como sejam os crimes de furto, abuso de confiança, dano, burla, burla relativa a seguros, burla informática, abuso de cartão de garantia ou de crédito e usura (vd. arts. 203º, 204º, 205º, 212º, 213º, 214º, 217º, 218º, 219º, 221º, 225º e 226º do CP).
No caso dos crimes de furto, dano e burla, a definição do tipo criminal básico e a cominação da pena aplicável à variante simples destes ilícitos constam de determinado artigo da lei, enquanto que em artigo ou artigos subsequentes se encontram descritas as circunstâncias qualificativas do crime e cominadas as molduras punitivas aplicáveis às respectivas variantes qualificadas.
Nestes casos, o artigo relativo ao crime simples contém a disposição «o procedimento criminal depende de queixa», sendo esta aplicável apenas às situações tipificadas nesses artigos e que não incluam qualquer das circunstâncias qualificativas previstas nos artigos subsequentes.
Relativamente aos restantes ilícitos referenciados, as normas que descrevem o tipo criminal fundamental e cominam a pena aplicável ao crime simples e aquelas que prevêem as circunstâncias, que qualificam o crime, e as penalidades cominadas ao crime qualificado contam de um mesmo artigo da lei, encontrando-se intercaladas por uma disposição «o procedimento criminal depende de queixa», a qual, segundo é entendimento pacífico, vigora apenas para as situações previstas para as situações a que se referem os segmentos normativos que, no texto do artigo, a antecedem.
Nesta ordem de ideias, tudo parece indicar que o regime procedimental do crime de ameaça se inscreverá na mesma tendência, isto é de semi-publicidade, quanto ao crime simples, e de publicidade, relativamente ao crime qualificado ou agravado.
Importa dizer, ainda assim, que no art. 155º do CP, cuja redacção acima transcrita foi introduzida pela Lei nº 59/07 de 4/9, a lei penal utilizou uma técnica de qualificação pouco usual, ao definir num mesmo artigo os pressupostos de qualificação comuns a dois tipos de crime, definidos, por seu turno, nos dois artigos antecedentes.
Na redacção do CP imediatamente anterior à Lei nº 59/07 de 4/9, o único caso de agravação qualificativa do crime de ameaça correspondia à hipótese agora prevista na al. a) do nº 1 do art. 155 do CP da versão actual e vinha previsto no nº 2 do art. 153º do CP, cujo nº 1, tal como no texto vigente, opera a definição do tipo básico desse crime, figurando neste artigo um nº 3 cujo conteúdo corresponde ao do nº 2 actual.
Os pressupostos de qualificação do crime de ameaça e o respectivo regime procedimental, que vigoravam antes da Lei nº 59/07 de 4/9, tinham, por assim dizer, longa tradição, pois remontam à versão inicial do CP de 1982, aprovada pelo DL nº 400/82 de 23/9.
De todo o modo, importa verificar que o conteúdo normativo do art. 155º do CP, na redacção anterior à Lei nº 59/07 de 4/9, era idêntico ao da versão actual, com diferença de, na lei antiga, se reportar unicamente ao crime de coacção, tipificado, antes e agora, no art. 154 do CP.
Por seu turno, o texto do referido art. 154º passou da redacção anterior do CP para a actual, sem qualquer alteração, a não ser uma ampliação pontual do âmbito das excepções à natureza procedimental pública do crime de coacção («simples»), previstas no nº 4 desse normativo.
Confrontando o texto dos normativos legais em referência, na versão anterior à Lei nº 59/07 de 4/9 e na introduzida por este diploma, não possível extrair outra conclusão que não a de que o legislador desta Reforma do Código Penal pretendeu unificar os pressupostos da agravação qualificativa dos crimes de ameaças e de coacção, bem como a natureza procedimental da variante agravada desses crimes, mediante a generalização aos dois ilícitos do regime até então privativo do crime de coacção, mantendo inalterado o regime de procedimentalidade de cada um desses crimes, na sua modalidade simples, que é semi-público, no caso do crime de ameaças, e público com excepções, no que toca ao crime de coacção.
Como tal, terá constatar-se que é pública a natureza procedimental do crime de ameaça agravada p. e p. pelos arts. 153º nº 1 e 155º do CP.
Por essa razão, a desistência de queixa formulada pelo assistente B… não tem a eficácia extintiva do procedimento criminal, na parte relativa ao crime daquela natureza por que o arguido vinha acusado, que lhe foi atribuída pelo despacho recorrido.
Por conseguinte, e sem necessidade de ulteriores considerações, terá o presente recurso de proceder e de ser determinado o normal prosseguimento do processo, quanto ao crime em referência.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a) Conceder provimento ao recurso e revogar decisão recorrida;
b) Determinar o normal prosseguimento do procedimento criminal relativo ao crime de ameaça agravada p. e p. pelos arts. 153º nº 1 e 155º nº 1 al. a) do CP por que o arguido vinha acusado.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 13 de Outubro de 2010
(processado e revisto pelo relator)

Sérgio Bruno Povoas Corvacho
Maria José Costa Machado