Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4873/2006-7
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: SERVIDÃO
SERVIDÃO NÃO APARENTE
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – As servidões são encargos que têm por objecto utilidades susceptíveis de serem usadas por intermédio do prédio dominante, cujas necessidades ou vantagens devem ser definidas tendo em atenção, não só o seu estado natural, mas também a afectação especial a que se encontra adstrito.
II – O direito de aparcar veículos pode ser uma servidão predial se for estabelecido em favor de um prédio onde esteja instalada uma garagem, servindo então para carros relacionados com a actividade aí exercida, mas não sucede o mesmo quanto a um prédio de habitação, caso em que a possibilidade de aparcamento tem a ver com utilidades pessoais dos residentes, mas não com a idoneidade do prédio para a habitação desses residentes.
III – A aquisição por usucapião não vale para servidões não aparentes, que são as que se não revelam por sinais visíveis e permanentes.
IV – Uma entrada de serviço destinada a pessoas, e não a automóveis, pode ser considerada um sinal visível e permanente quanto a uma eventual servidão de passagem para aquelas, mas em nada tem a virtualidade de revelar uma servidão predial de “estacionamento” de veículos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
7ª SECÇÃO CÍVEL

I – Maria […] intentou contra António […] Lda., a presente acção declarativa com processo ordinário, pedindo que:

1 – Se reconheça o seu direito real ao estacionamento da sua viatura no parqueamento situado à retaguarda dos nº 15 e 17 da Av. […] Lisboa, como direito inerente à fracção autónoma correspondente ao 6º andar direito desse nº 15 da dita Avenida, de que é dona e legítima proprietária e de, através dessa área, utilizar a entrada de serviço, ao nível do logradouro, participando nas despesas de manutenção e guarda, como os restantes titulares de igual direito;

2 – Se condene a ré a permitir à autora o exercício do mencionado direito ao estacionamento nas mesmas condições dos restantes condóminos, nos termos peticionados;

3 – Se condene a ré no pagamento da indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais já sofridos pela autora, no montante já liquidado de € 1.000,00 e ainda no montante que ulterior e oportunamente se vier a liquidar.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

- Comprou em 25.7.2003 a fracção H, correspondente ao 6º andar direito, do prédio com o nº 15 da Av. […] em Lisboa, cujo condomínio se rege por regulamento aprovado em 7.10.1971 pela assembleia de condóminos da qual faziam parte António […]  e Edgar […], proprietários das fracções autónomas A e B e únicos sócios da ré, que era proprietária da área destinada ao estacionamento;

- Nesse regulamento diz-se que é coisa comum o direito ao estacionamento no parque situado à retaguarda do mesmo imóvel e do prédio com o nº 17, o qual faz parte da propriedade com os nº 2 e 2-A da Rua […] e que

- No referido parque os condóminos têm direito a aparcar carro, suportando os respectivos encargos, e acesso, com natureza de direito real, à entrada de serviço pela fachada tardoz;

- A ré sempre tem recebido dos condóminos o pagamento dos encargos inerentes a esse direito, que foi exercido pela anterior proprietária da fracção H, usando a entrada de serviço, aparcando veículos e pagando encargos;

- A ré recusa reconhecer à autora o direito ao estacionamento inerente à sua fracção, defendendo que os direitos dos diversos condóminos têm natureza contratual, desligada do direito real que têm sobre as suas fracções;

- Se outro título não houvesse, sempre os condóminos teriam adquirido o direito ao estacionamento por usucapião, dado o tempo decorrido;

- A impossibilidade de aparcar o seu veículo no referido parque causa à autora despesas e incómodos pelos quais tem de ser indemnizada

A ré contestou, pugnando pela sua absolvição da instância ou do pedido.

Houve réplica onde a autora, além do mais, deduziu o incidente de intervenção principal provocada de António […] e de Edgard […], para intervirem nos autos como réus, o que foi admitido; citados, declararam fazer sua a contestação da ré.

Realizou-se a audiência de julgamento, no final da qual se proferiu despacho respondendo aos pontos de facto oportunamente levados à base instrutória e, após alegações de direito oferecidas pelas partes, seguiu-se a prolação de sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido.

Contra ela apelou a autora, tendo apresentado alegações onde pede a sua revogação e substituição por outra que reconheça o seu direito real ao estacionamento da sua viatura, formulando as seguintes conclusões:

I – A douta sentença recorrida patenteia gravíssimos erros de facto e de direito, redundando numa decisão que se mostra, a vários títulos, chocante;

II – Da prova produzida nos autos decorre, iniludivelmente, que qualquer adquirente de uma fracção autónoma do prédio sito no n.° 15 da Av. […] em Lisboa, gera a convicção, plenamente fundada e justificada, de que, ao celebrar a compra e venda, adquire, não apenas o direito de usar e fruir a respectiva fracção autónoma, como também o direito de aparcar a sua viatura no parque situado à retaguarda, que, afinal, constitui o único «logradouro» a que dá acesso a porta situada a tardoz;

III – No âmbito da presente acção, os ora Apelados vieram defender o contrário do que sempre propugnaram e do que, por acção reiterada, sempre revelaram a quem se relacionou com o referido prédio, incorrendo, desse modo, num inadmissível venire contra factum proprium e numa grosseira violação do princípio da confiança;

IV – Ao decidir como decidiu, a douta sentença recorrida vem precisamente acolher essa inaceitável e ilícita pretensão dos Réus, conformando-se, tacitamente, com um suposto e ardiloso estratagema que estes teriam montado para iludir os adquirentes das fracções do prédio sito no n.° 15 da Av. […] em Lisboa;

V – O direito ao estacionamento, previsto no regulamento da Propriedade Horizontal, aprovado em 7 de Outubro de 1971, sobre o prédio com os n.°s 2 e 2-A da Rua […] e em benefício dos condóminos dos prédios com os números 15 e 17 da Avenida […], deve ser qualificado como uma servidão predial atípica – e não como encargo de natureza meramente obrigacional;

VI – Tal encargo, com efeito, foi estabelecido em benefício dos condóminos dos dois prédios e não em benefício de pessoas individualmente determinadas: quem adquirir a qualidade de condómino dos referidos imóveis tem automaticamente direito ao estacionamento; e quem deixar de ser condómino perde, também automaticamente, esse direito;

VII – Ao invés do que a douta sentença recorrida entendeu, o direito ao estacionamento não é enquadrável num contrato de prestação de serviço, porque cada condómino é que recolhe, estaciona, movimenta e retira o seu automóvel, limitando-se os Apelados a assegurar a manutenção e a guarda do parque de estacionamento;

VIII – Carece também de todo o fundamento a afirmação, feita na sentença, de que a cada condómino assistiria um direito potestativo de celebrar com os proprietários do parque um contrato que lhes proporcionasse o estacionamento;

IX – O direito ao estacionamento decorre do Regulamento da Propriedade Horizontal, sem necessidade de qualquer estipulação contratual, excepto quanto à determinação da comparticipação de cada condómino nas despesas de manutenção e guarda do parque;

X – O direito atribuído aos condóminos dos prédios com os n.°s 15 e 17 da Avenida […], de estacionarem as suas viaturas no prédio com os n.°s 2 e 2-A da Rua da […], devia ter sido formalizado em escritura pública, por se tratar de um encargo sobre um imóvel (art. 80.°, n.° 1 do Cód. do Notariado);

XI – Mas os condóminos, pelo menos desde a data em que o Regulamento da propriedade Horizontal foi aprovado (7 de Outubro de 1971), passaram a agir como efectivos titulares de uma servidão predial, isto é, passaram a ter o "corpus" da posse de uma servidão e a exercê-la com "animus possidendi"; fizeram-no de boa fé, de modo público, pacífico e contínuo, pelo que já se consumou o prazo da usucapião;

XII – Enquanto não se consumou o prazo da usucapião, existia, entre os condóminos, uma situação de composse;

XIII – Para efeitos de usucapião, não interessa apurar se o "corpus" e o "animus possidendi" se verificam em relação a todos os compossuidores, porque, nos termos do art. 1291.° do Código Civil, «a usucapião por um compossuidor relativamente ao objecto da posse aproveita igualmente aos demais compossuidores»;

XIV – Ao decidir como decidiu, a douta sentença aplicou mal o direito aos factos provados, violando, entre outros, o disposto nos arts. 334.°, 1543.° e 1291.° do Código Civil e o Regulamento de Propriedade Horizontal instituído em 7.10.1971;

XV – Desrespeitou também o direito de propriedade da Autora sobre partes comuns do prédio, pelo que violou o art. 1420.°, n.° 1, do Código Civil, o art. 17.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e os arts. 8.°, 16.° e 62.° da Constituição da República Portuguesa;

XVI – Assim sendo, tal sentença está ferida, não apenas de ilegalidade, mas também de inconstitucionalidade.

Contra-alegaram os apelados, sustentando a improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Na sentença vêm descritos como provados os seguintes factos:

1 – A Autora é dona e legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra “H” correspondente ao 6.º andar direito do prédio urbano sito na Avenida […] em Lisboa (1350-175);

2 – Prédio este descrito na 3.ª  […](certidão de fls. 38 a 45);

3 – A propriedade horizontal respectiva foi constituída por escritura pública de 6 de Fevereiro de 1970, lavrada no 2.º Cartório Notarial de Lisboa […]

4 – A Autora adquiriu a mencionada fracção autónoma à EDP  […] S.A., por escritura pública outorgada em 25 de Julho de 2003, conforme documento de fls. 22 a 36;

5 – O condomínio do mencionado prédio tem-se regido, ininterruptamente, pelo Regulamento da Propriedade Horizontal, conforme Acta n.º 4 (Quatro) da Assembleia de Condóminos de 7.10.71, então reunida no escritório dos Senhores António […] e Edgar […] à Rua […]Lisboa, conforme doc. de fls. 70 e segs cujo teor se dá por integralmente reproduzido;

6 – Sendo que os referidos António[…] e Edgar […] eram, à data, e ainda hoje são, os únicos sócios da sociedade Ré;

7 – Além de serem também, à data da aprovação de tal Regulamento, proprietários de duas fracções autónomas (A e B) do prédio n.º 15 da Avenida […] referido em A);

8 – No referido Regulamento declara-se que “é ainda coisa comum o direito ao estacionamento no parque situado à retaguarda destes imóveis (n.º 15 e 17), o qual faz parte da propriedade com os n.os 2 e 2 A da Rua […] ” e bem assim que “cada condómino tem o direito de aparcar dois automóveis por cada piso de que for proprietário ou a um automóvel por cada fracção autónoma” e ainda “que os encargos resultantes do parágrafo anterior são suportados directamente pelos interessados e na mesma proporção” e que “Ficou acordado por todos os signatários que nestes bens corresponde a cada condómino uma quota proporcional ao valor das respectivas fracções dos edifícios, ainda que lhe seja dado igual uso por cada um” (cfr. fls. 73);

9 – Na escritura da propriedade horizontal a que se alude em C) consta, designadamente que: “Este prédio tem como partes comuns, além de outras, o seguinte: (...) Entradas, duas principais, uma ao nível da Avenida, outra ao nível da Galeria e uma entrada de serviço pela fachada tardoz ao nível do logradouro” (Cfr. fls. 54);
10 – Após a aquisição da sua fracção autónoma, a Autora, por carta de 31 de Julho de 2003, comunicou o facto à ora Ré, referindo ser “inerente o direito de estacionamento no parque situado à retaguarda desse prédio” e bem assim que aguardava que lhe fosse “enviada de futuro, a nota relativa à importância fixada para a participação dos condóminos nas despesas correntes de manutenção”, conforme documento de fls. 94 cujo teor se dá por reproduzido;
11 – Como resposta, a ora Ré, por carta de 10 de Setembro de 2003, negou à ora Autora o direito ao estacionamento previsto no Regulamento da Propriedade Horizontal, propondo-lhe, para o fim visado, a celebração de acordo autónomo;
12 – A Autora solicitou-lhe, por carta de 25 de Setembro de 2003, uma melhor explicação do entendimento sobre o assunto, conforme documento de fls. 97 cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
13 – A resposta chegou em carta de 15 de Outubro de 2003, na qual a Ré propõe soluções alternativas, conforme documento de fls. 96 cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
14 – Em nova carta, de 23 de Outubro imediato, a Autora reafirmou a sua pretensão de aí estacionar uma viatura e de, através dessa área, utilizar a entrada de serviço, ao nível do logradouro, participando nas despesas de manutenção e guarda, como os restantes titulares de igual direito, tudo conforme documento fls. 97 cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
15 – Nova resposta é dada pela Ré, em carta datada de 23 de Dezembro de 2003, afirmando-se, designadamente, que o direito dos Condóminos utilizadores do parqueamento se baseia apenas numa relação contratual, independente de qualquer direito ligado à propriedade das unidades habitacionais, tudo conforme documento de fls. 99 cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
16 – Confrontando com o prédio referido em A) está um outro, que na mencionada escritura pública de constituição do regime de propriedade horizontal, de 6 de Fevereiro de 1970, é designado por “Prédio Norte”, com o nº de polícia 17 a 17G da Avª […] nesta cidade;
17 – Este prédio, que foi construído no prédio rústico a que correspondia a citada descrição predial nº 27911, foi, após a construção, desanexado dela, passando a constituir um prédio distinto, descrito na mesma Conservatória sob o nº 28222, passando aquela descrição (27911) a corresponder unicamente ao designado “Prédio Centro”;
18 – Tal como o “Prédio Centro”, o “Norte” foi submetido ao regime da propriedade horizontal, pela mesma escritura pública, de 6 de Fevereiro de 1970, exarada de fls. 76 vº a 84 vº do Lº 101–C, do 20º Cartório Notarial de Lisboa (doc. fls. 45 e segs);
19 – A constituição do regime da propriedade horizontal foi registada sob a inscrição nº 8789 da mencionada descrição nº 28222 (cfr. documento de fls. 142 a 157);
20 – Os donos e proprietários legítimos das fracções A e B, de cada um dos mencionados prédios nºs 27911 e 28222, são António […] e Edgard […] a favor de quem, em comum e partes iguais, se encontra registada a respectiva aquisição e que desde sempre, desde a construção, os têm usado e fruído, pacífica e publicamente, sem oposição de ninguém;
21 – Como, de resto, tinham usado e fruído o terreno onde vieram a ser construídos os mencionados prédios;
22 – Os mesmos António […] e Edgard […] são os donos e possuidores legítimos de um outro prédio urbano, que confronta, pelo Norte com o chamado “Prédio Centro” e que está descrito na mesma 3ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa […]
23 – Esse prédio compõe-se, além do mais, de uma cave e de um parque de estacionamento que utiliza a cobertura dessa mesma cave;
24 – Por escritura pública de 2 de Julho de 1969, outorgada […] António […] e Edgard […] deram de arrendamento à Ré (o rés-do-chão direito e a garagem e) o parque de estacionamento do prédio urbano sito na Rua […] nºs 2 e 2º-A, descrito Conservatória do Registo Predial de Lisboa […] , destinando esse local arrendado a “garagem”, arrendamento que ainda se mantém, conforme documento de fls. 176 a 181 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
25 – A anterior proprietária da fracção, a EDP SA, sempre utilizou a entrada de serviço, pela fachada tardoz, ao nível do logradouro e sempre aparcou os seus veículos no parque mediante o pagamento à sociedade Ré de uma contrapartida pecuniária mensal;
26 – É este o “parque de estacionamento” do prédio descrito sob o nº 28117 a que se alude no Regulamento do Condomínio referido em H);
27 – A Ré, como arrendatária, desde 2 de Junho de 1969, vem proporcionando, contra um pagamento mensal, o estacionamento dos veículos automóveis, no parque do prédio descrito sob o nº […], de que é inquilina, aos proprietários e arrendatários de fracções autónomas nos identificados prédios dos n.ºs 15 e 17 da Av.ª […] e do nº 2 da Rua […] nesta cidade, e a outras pessoas que trabalham em empresas que têm instalações nos mesmos prédios, sendo que os lugares no solo destinados ao estacionamento de veículos são semelhantes, não determinados, proporcionando as mesmas utilidades, não havendo distinção significativa entre uns e outros;
28 – Cobrando a esses utilizadores do parque de estacionamento a contrapartida ou a remuneração que a Ré e os mesmos utilizadores, entre eles, estabelecem;
29 – A Ré sempre passou e entregou a todos os utilizadores do parque de estacionamento, condóminos ou não, dos prédios dos n.ºs 15 e 17 da Av. […], os respectivos recibos, conforme os modelos juntos designadamente a fls. 163;
30 – Os utilizadores sempre receberam tais recibos, sem protesto;
31 – A contrapartida do serviço prestado é estabelecida e fixada pela Ré e pelos utilizadores, por acordo;
32 – Alguns condóminos pagam pela utilização do parque contrapartidas substancialmente inferiores às de outros utilizadores, condóminos ou não, o que resulta, nuns casos, da mera vontade e tolerância da Ré e noutros do acordo estabelecido entre ela e os utilizadores;
33 – As diferenças de preços estabelecidos para idênticos lugares de estacionamento, quanto às dimensões e às comodidades que proporcionam, procuram reflectir a diferente utilização que aos mesmos lugares é dada pelos diferentes utilizadores;
34 – Fixando-se preço inferior para aqueles que menos utilizam o parque, que são, normalmente, os que habitam nos mencionados prédios dos n.ºs 15 e 17 da […] e do n.º 2 da R. […] que, normalmente, utilizam o parque para o estacionamento nocturno, em que os lugares disponíveis são em maior número;

35 – E preço superior para aqueles utilizadores que utilizam o parque, normalmente, as empresas, durante o dia em que a utilização é muito superior e são em muito menor número os lugares disponíveis;
36 – A EDP, que foi administradora dos prédios dos n.ºs 15 e 17 da Av.ª […] atrás referidos, cerca de 15 anos até 2000, nunca apresentou à Assembleia de Condóminos, orçamentos de despesas de manutenção e de funcionamento do parque de estacionamento, designadamente, para repartição dos respectivos custos pelos diversos condóminos, segundo o valor das respectivas fracções, nem a mesma Assembleia ou qualquer condómino o exigiu;
37 – Todas as despesas de manutenção e de funcionamento do parque são suportadas pela Ré;
38 – Na data em que os RR. Jorge venderam as fracções autónomas que integravam os prédios Centro e Norte e também quando foi instituída a respectiva propriedade horizontal, não dispunham tais imóveis de lugares ou espaços para aparcamento de viaturas;
39 – A firma que promoveu a venda das fracções, em finais dos anos 60, referiu aos compradores que havia estacionamento garantido;
40 – É através da área destinada ao estacionamento que os condóminos têm acesso à entrada de serviço pela fachada tardoz ao nível do logradouro.
Constando de fls. 95, e não de fls. 97, a carta aludida no facto nº 12 acima descrito, rectifica-se, em conformidade, o lapso cometido na sentença e que constava já da al. L) dos factos assentes, como se vê de fls. 239.

III – Abordemos então as questões suscitadas pela apelante nas conclusões formuladas, já que são estas, como é sabido, que delimitam o objecto do recurso.
A tese da apelante, no sentido de que o seu direito ao estacionamento no parque adjacente (prédio serviente) ao prédio do qual é condómina (prédio dominante) é uma servidão predial atípica, não merece ser acolhida.
De acordo com o disposto no art. 1544º do C. Civil – diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência -, as servidões são encargos que têm por objecto utilidades susceptíveis de serem usadas por intermédio do prédio dominante.
Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela – cfr. Código Civil Anotado, Vol. III, pág. 570 as utilidades proporcionadas pela servidão têm de ser gozadas através do prédio dominante, cujas necessidades ou vantagens devem ser definidas tendo em atenção, não só o seu estado natural, mas também a afectação especial a que se encontra adstrito.

É elucidativo o exemplo dado por estes autores Mesma obra, a págs. 571 quanto ao direito de passar em certo parque, que será, em princípio, um direito de crédito – se for estabelecido a favor do dono de uma habitação próxima -, mas poderá perfeitamente ter natureza de servidão predial  se for constituído em favor de uma casa de repouso ou de um estabelecimento de ensino.

O direito de aparcar veículos poderia ser uma servidão predial se fosse estabelecido em favor de um prédio onde estivesse instalada uma garagem, servindo então para carros relacionados com a actividade aí exercida, mas não sucede o mesmo quanto a um prédio de habitação, caso em que a possibilidade de aparcamento tem a ver com utilidades pessoais dos residentes, mas não com a idoneidade do prédio para a habitação desses residentes.

Mas outro obstáculo insuperável se levanta à tese da existência da servidão predial atípica.

As servidões voluntárias podem ser constituídas, em princípio, por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família – art. 1547º, nº 1.

Excluída está, desde logo, e em face dos factos apurados, a sua constituição por testamento ou destinação do pai de família.

E a sua válida constituição por contrato, passaria necessariamente pela celebração da correspondente escritura pública e pela sua inscrição no registo predial – o que, aliás, é reconhecido na conclusão X.

Daí que a apelante defenda a aquisição por usucapião.

Esta forma de constituição não vale, porém, para servidões não aparentes, que são as que se não revelam por sinais visíveis e permanentes – cfr. art. 1548º, nos seus nºs. 1 e 2.

Do elenco dos factos julgados como provados, apenas a entrada de serviço aludida no facto nº 40 poderia ser vista como susceptível de assumir alguma pertinência neste campo; só que tal entrada, porque se destina a pessoas e não a automóveis, poderia ser considerada um sinal visível e permanente quanto a uma eventual servidão de passagem para aquelas, mas em nada tem a virtualidade de revelar uma servidão predial de “estacionamento” de veículos.

Do parque de estacionamento, tal como está caracterizado, nada se conhece que possa corresponder a tais sinais, visíveis e permanentes, que o poderiam ligar, funcionalmente, ao prédio de que a apelante é condómina.

Isto afasta a possibilidade de ter havido aquisição, por usucapião, de semelhante servidão predial – o que se afirma, relembre-se, sem esquecer o primeiro obstáculo acima apontado, ou seja, a inidoneidade da utilização do parque de estacionamento para integrar uma verdadeira servidão predial.

Impõe-se concluir, pois, pela inexistência da invocada servidão, quer por falta de conteúdo legalmente adequado, quer por falta de meio legítimo de aquisição.

Sendo apenas na usucapião que a apelante funda a tese por si desenvolvida nas suas alegações, poderíamos ficar por aqui na apreciação deste recurso.

Porém, algumas observações se justificam quanto a dois pontos que, embora instrumentalmente, por ela são focados.

Na conclusão VII põe em causa a qualificação de “contrato de prestação de serviço” feita na sentença impugnada, para tanto alegando que o aparcamento dos carros é feito pelos seus próprios utentes, e não pela ré ou pelos intervenientes, que se limitarão a assegurar a manutenção e a guarda do espaço em causa.

Vejamos.

Na sentença a qualificação do contrato como de prestação de serviço assentou no entendimento de que a ré procede à “recolha de veículos”, o que acarreta despesas, por ela suportadas, com a sua manutenção e funcionamento, designadamente a guarda e vigilância dos veículos.

Esta afirmação carece de apoio nos factos provados, já que se não provou que a ré exerça qualquer guarda ou vigilância dos veículos. A sua prestação resumir-se-á à cedência do espaço para o estacionamento, o que não acolhe aquela qualificação, antes ficando como configurável a existência de um contrato com natureza locatícia; esta diversa qualificação em nada altera, evidentemente, a posição adoptada quanto ao direito real invocado pela apelante.

Porém, a tese da apelante também não é confirmada por factos que revelem limitar-se a ré a manter e guardar o espaço em causa. Os factos descritos sob os nº 27 a 35 apontam, pelo contrário, para a existência de acordos, remunerados, que se centram de forma dominante na ideia de cessão de espaço para estacionar, variando o preço em função da intensidade dessa utilização. Note-se que os recibos referidos no facto nº  29 – como se vê de fls. 163 a 175 – aludem, precisamente, ao recebimento de uma quantia como contrapartida do estacionamento de veículos.

Defende também a apelante, nas suas conclusões III e IV, ter havido, da parte dos apelados, uma conduta integradora de abuso do direito.

Todavia, os factos apurados são insuficientes para que possa fazer-se, com segurança, tal afirmação.

Por um lado, e de acordo com o facto nº 39, aos compradores foi dito que o estacionamento estava garantido, o que é diferente de dizer que a propriedade das fracções envolvia direito a estacionar gratuitamente em espaço adjacente ao prédio.

Aliás, e como decorre dos factos nº 27 a 35, já referidos, os condóminos pagavam para estacionar.

O regulamento do prédio aludido nos factos nº 5, 7 e 8 está, pois, desconforme com a realidade jurídica, mas não se sabe se os intervenientes António […] e Edgard […] tiveram na sua elaboração qualquer actuação determinante, revelando os factos apurados apenas que facultaram uma sala onde a assembleia respectiva teve lugar e da acta não consta a posição por qualquer deles tomada a seu respeito; aliás, dessa acta, junta em cópia a fls. 70-86, resulta que o regulamento foi aprovado pelos condóminos presentes, cujas assinaturas foram apostas no final, não havendo identificação nem assinatura de quem terá intervindo na assembleia como presidente, nem aí se dizendo que o secretário que manuscreveu a acta – de cuja assinatura, por confronto com a constante da procuração de fls. 140, pode concluir-se ter sido o interveniente António Jorge – tenha também votado e aprovado o regulamento.

Tudo isto é, como se disse, pouco para sustentar a afirmação de abuso do direito, sendo ainda certo que, a ter havido a denunciada conduta enganadora, ela não poderia dar origem ao direito real que a apelante invoca.

Impõe-se, deste modo, a improcedência do recurso.

IV – Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a sentença impugnada.

Custas a cargo da apelante.

Lxa. 12.12.06

(Rosa Maria Ribeiro Coelho)
(Arnaldo Silva)
(Graça Amaral)



____________________________
1.-– cfr. Código Civil Anotado, Vol. III, pág. 570

2.-Mesma obra, a págs. 571