Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4830/2007-1
Relator: MARIA JOSÉ SIMÕES
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. Os créditos que tiverem sido verificados ou reconhecidos no processo de execução não têm de ser reclamados novamente na fase de falência e, se o forem não podem ser desatendidos, pois a sentença de verificação e reconhecimento proferida na fase executiva constitui caso julgado em todo o processo, excepto quanto à graduação. Esta fica sem efeito, devendo ser substituída por outra a fazer oportunamente na falência, sendo o que resulta do disposto nos artºs 188º/4 e 196º/4, ambos do CPEREF.
II. Se, anteriormente o credor/reclamante não reclamou expressamente os juros de mora e, adoptou em sede de recurso uma posição completamente contraditória com o comportamento por si anteriormente assumido, actua claramente num “venire contra factum proprium”, o que constitui uma das vertentes do abuso de direito e, portanto, inadmissível.
MJS
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
Nos presentes autos de reclamação de créditos, foi proferida sentença de graduação de créditos em 26/05/2006, na qual foram graduados os créditos reclamados, da forma como segue:
1º Custas e despesas destes autos e apensos.
2º Até ao montante de 10.100.000$00, crédito reclamado pelo B.
3º Os demais créditos e a parte que excede do crédito do B, todos créditos comuns, serão rateadamente pagos pelos valores depositados nos autos.
A data da falência foi fixada em 01/07/1991.

Inconformado, veio apelar o recorrente V, tendo apresentado as suas alegações que finalizou com as seguintes conclusões:
1. Iniciada a instância falimentar, por douto despacho de 23.09.1994 foi ordenada a citação dos credores indicados pela C, SA., nos termos e para os efeitos do disposto no art° 20° n°s 2 e 3 do Dec-Lei n° 132/93 de 23/4 (CPEREF).
2. Na sequência desta citação o B veio, em 28.10.1994, apresentar o requerimento de fls. 2 e seguintes que a douta sentença ora apelada considera e valora como reclamação do crédito em termos relevantes e adequados para a respectiva verificação e graduação na instância falimentar, e consequente obtenção de pagamento.
3. Sucede é que, no caso de vir a ser decretada a falência, como in casu sucedeu, a reclamação do crédito nos termos do n° 2 do art° 20° do CPEREF não é suficiente, impendendo sobre os credores o ónus de reclamar os seus créditos no prazo para o efeito fixado na sentença declaratória da falência, sob pena de não poderem obter pagamento - art° 188° do mesmo diploma.
4. Por douta sentença proferida na sequência da conclusão de 07.03.1997, foi decretado o estado de falência da Requerida “C”, e fixado "em 60 dias o prazo para a reclamação de créditos nos termos do n° 1 alínea e) do artº 128° do C.P. Recuperação E. e Falência."(sic)
5. Tal sentença foi notificada ao B que foi na mesma nomeado Presidente da Comissão de Credores, e foi publicada, nos termos prescritos no n°2 do referido art° 128°.
6. O B não veio reclamar o seu crédito.
7. O despacho de fls. 19 nunca teria o efeito de dispensar a reclamação do crédito nos termos legalmente impostos pela norma do artº 188º do CPEREF, e como tal nunca seria apto a evitar a consequência do não cumprimento desse ónus, que e a da não obtenção do pagamento no processo.
8. Tal despacho não tem qualquer cabimento naquela fase da tramitação do processo regulado no CPEREF, como resulta do disposto nos respectivos art°s 24° e 25°, que estabelecem que na fase em que foi proferido, o Mmº Juiz apenas deve decidir sobre a verificação dos pressupostos legais do prosseguimento da acção como de falência ou de recuperação de empresa, sendo absolutamente prematuro então admitir ou aprovar créditos.
9. Por despacho de 10.12.1999, foi o próprio Tribunal a quo que deu sem efeito o despacho de fls. 19, ao expressamente considerar que o mesmo "se deveu a um lapso manifesto em virtude de o processo de falência se ter iniciado como processo executivo." (sic)
10. Pelo exposto, o B, actualmente Banco Comercial Português, não reclamou o seu crédito, nos termos e prazo do art° 188° do CPEREF, e logo em condições adequadas de ser relevantemente atendido.
11. Ainda avisado pelo Senhor Liquidatário, nos termos do n° 2 do art° 191° do C, o B, uma vez mais, não apresentou no prazo legal qualquer reclamação do crédito.
12. A não reclamação em termos adequados, é impeditiva para a Requerida e para os demais credores, designadamente o ora Recorrente, de exercerem o direito que lhes assiste nos termos do artº 192º do CPEREF de contestarem a existência e/ou o montante do crédito.
13. 0 crédito do B ficou assim, e bem, ausente da Relação dos Credores Reclamantes, e figura na Relação dos Créditos Não Reclamados a que se refere o art° 191°, tendo a sua verificação e graduação merecido parecer negativo do Senhor Liquidatário.
14. A Comissão de Credores, presidida pelo próprio B, absteve-se de apresentar o Parecer a que se refere o art° 195°.
15. A douta sentença apelada, ao considerar verificado o crédito do B no valor de Esc. 61.100.297$00, e ao graduar em 2° lugar tal crédito até ao montante de Esc. 10.100.000$00, incorreu na violação do art° 188° do Dec-Lei n° 132/93 de 23/4 (CPEREF).
16. 0 crédito de juros do ora Recorrente, por emergir directamente da lei, designadamente da norma do art° 806° do Código Civil, e ter sido expressamente reclamado, deveria ter sido apreciado e decidido na douta sentença recorrida.
17. Não obstante, o Tribunal a quo deixou de o fazer, ao considerar apenas verificado o crédito no valor da condenação e das custas, incorrendo em violação da referida norma do art° 806° do CC, e tornando nula, nessa parte, a sentença, nos termos da primeira parte da alínea d) do n° 1 do art° 668° do Código de Processo Civil.

Por seu turno, a apelada B, SA, nas suas contra-alegações pugnou pela confirmação da sentença impugnada.

O Mmº Juiz a quo manteve a sentença proferida, por entender que improcede a nulidade invocada.

Foram colhidos os vistos legais.

II – QUESTÕES A RESOLVER
Como se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (artºs 684º nº 3 e 690º nº 1 do CPC), importando, assim, decidir as questões nelas colocadas – e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso -, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – artº 660º nº 2 também do CPC.
Assim, em face das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
1. Foi ou não bem verificado o crédito do B, no valor de Esc. 61.100.297$00 e graduado em 2º lugar até ao montante de Esc. 10.100.000$00.
2. O Tribunal a quo deveria ter verificado e graduado o crédito reclamado pelo recorrente, acrescido de juros de mora sobre as quantias em dívida.

III – FUNDAMENTOS DE FACTO
Os Créditos reclamados são os seguintes:
1. Reclamação junta a fls. 2 a 5, do B, no valor de 61.100.297$00, garantido por hipoteca, sobre o imóvel penhorado e vendido nos autos de execução apensos, pelo preço de 10.100.000$00.
2. Reclamação de V, pelo valor de 2.160.000$00 e custas do processo de execução no valor de 74.528$00.
3. Reclamação do Mº Pº em representação da Fazenda Nacional, respeitantes a Contribuições Prediais, no valor global de 213.884$00.

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Foi ou não bem verificado o crédito do B no valor de Esc. 61.100.297$00 e graduado em 2º lugar até ao montante de Esc. 10.100.000$00.

Em 11/10/1982, o apelante instaurou contra C, SA, uma acção declarativa comum para obter desta o pagamento de determinada quantia, correspondente ao dobro do sinal que lhe entregara em contrato-promessa de compra e venda.
Obtida a sentença condenatória, o apelante, por apenso a esta acção declarativa, instaurou execução de sentença, tendo obtido condenação da sociedade C, SA, a pagar-lhe a quantia de Esc. 2.160.000$00 e na qual foi penhorado um prédio urbano, vendido pelo preço de Esc. 10.100.000$00.
Cumprido o disposto no artº 864º do CPC, foram citados os credores com garantia real, nos termos do artº 865º do mesmo Código, tendo o B reclamado o seu crédito hipotecário, no montante de Esc. 10.100.000$00.
Proferida sentença de graduação de créditos foram graduados os créditos do apelante e da apelada respectivamente em 3º e 2º lugar.
Posteriormente, face à insuficiência do património conhecido da devedora C, SA, para pagamento dos créditos verificados e graduados, veio o apelante requerer, nos termos do artº 870º do CPC, a falência da executada C, SA, o que veio a acontecer, tendo sido ordenada a alteração da distribuição dos autos para a espécie competente.
Alterada a distribuição, foi então ordenada em 23/09/1994, a citação dos credores para reclamarem créditos, nos termos do nº 2 do artº 20º do DL nº 132/93 de 23/04.
Nesta sequência, foram apresentadas três reclamações: uma, em 28/10/1994, pelo B, a fls. 2 a 5 no valor de Esc. 61.100.297$00, garantido por hipoteca sobre o imóvel penhorado, que foi vendido pelo preço de Esc. 10.100.000$00; outra, em 07/11/94, pelo apelante, pelo valor de Esc. 2.160.000$00 e custas do processo de execução no valor de Esc. 74.528$00 e por último uma pelo Mº Pº em representação da Fazenda Nacional, relativa a créditos respeitantes a contribuições prediais no valor global de Esc. 213.884$00.
Todavia, apesar de a sentença recorrida ter considerado encontrar-se reclamado o crédito do B em termos relevantes para a verificação e graduação na instância falimentar, o recorrente discorda de tal entendimento, porque entende que a reclamação de créditos, nos termos do nº 2 do artº 20º do CPEREF não é suficiente, impendendo sobre os credores o ónus de reclamar os seus créditos no prazo para o efeito fixado na sentença declaratória de falência (60 dias), sob pena de não poderem obter pagamento, de acordo com o artº 188º do mesmo diploma.
Ora, como consta dos autos, o liquidatário apresentou a relação dos créditos reclamados e a dos não reclamados (cfr. fls. 23 e 24).
Porém, como se observa da relação dos créditos reclamados não consta o crédito reclamado a fls. 2 a 5 pelo B, por o Sr. Liquidatário ter entendido que não foi reclamado tal crédito.
Mas, o Mmº Juiz a quo entendeu – e a nosso ver, bem – que tal crédito foi reclamado a fls. 2 a 5, tendo, aliás, sido admitido por despacho proferido a fls. 19 dos autos.
Desde logo, porque quando o ora apelante, em conformidade com o artº 870º do CPC, requereu que o processo fosse remetido ao tribunal competente para nele ser decretada a falência da executada, deve aproveitar-se tudo o que no foro executivo se tiver processado, com excepção da graduação de créditos.
E, por outro porque, no processo de execução – que se transformou e foi distribuído como processo de falência – já haviam sido apreendidos bens da falida.
Aliás, o prédio hipotecado já havia sido vendido judicialmente.
Assim e, desde logo, os créditos que tiverem sido verificados ou reconhecidos no processo de execução não têm de ser reclamados novamente na fase de falência e, se o forem não podem ser desatendidos, pois a sentença de verificação e reconhecimento proferida na fase executiva constitui caso julgado em todo o processo, excepto quanto à graduação. Esta fica sem efeito, devendo ser substituída por outra a fazer oportunamente na falência. (1)
Com efeito, resulta do disposto no nº 4 do artº 188º do CPEREF, o aproveitamento no processo de falência, dos créditos que nas acções executivas se tiverem processado, ao dizer que, “Consideram-se devidamente reclamados o crédito do requerente da falência bem como os créditos exigidos nos processos em que já tenha havido apreensão de bens do falido ou nos quais se debatam interesses relativos à massa, se esses processos forem mandados apensar aos autos da falência dentro do prazo fixado para a reclamação” (sublinhado nosso).
No caso sub judice, os autos de execução não foram mandados apensar, pela simples razão, como acima foi dito, de que o processo de execução se transformou no próprio processo falimentar.
O mesmo entendimento resulta também do nº 4 do artº 196º do CPEREF, pois considera reconhecidos os créditos que possam sê-lo, face aos elementos de prova contidos nos autos.
Donde temos de concluir que a sentença recorrida ao decidir verificar o crédito do B no valor de Esc. 61.100.297$00 e ao graduar em 2º lugar tal crédito até ao montante de Esc. 10.100.000$00, não incorreu na violação do artº 188º do CPERRF, antes actuou em conformidade com o que no mesmo está prescrito.
Improcedem, assim, nesta parte, as alegações do apelante.

2. O Tribunal a quo deveria ter verificado e graduado o crédito reclamado pelo recorrente, acrescido de juros de mora sobre as quantias em dívida.

Ao contrário do que refere o apelante, este veio justificar e reclamar o seu crédito no requerimento de fls. 6 e seg., datado de 07/11/94 - e não através do requerimento de 14/01/2005, a fls. 33 e seg., pois caso contrário seria claramente intempestivo – e, onde face à notificação que lhe foi feita do despacho de fls. 27, bem como do Parecer do liquidatário judicial de fls. 26, expõe o que entendeu pertinente.
Assim, no requerimento de reclamação de créditos, supra aludido, em manifesta confusão de contas e valores, o apelante reclama o crédito no valor de Esc. 2.234.528$00 referente à quantia exequenda, quando esta é de apenas Esc. 2.160.000$00, acrescida do montante de Esc. 74.528$00 referente às custas da acção da responsabilidade da executada, mas pagas pelo exequente, para concluir, mais uma vez erradamente que o valor desta reclamação é de Esc. 2.309.056$00.
Por isso importa, aqui, acertar estes valores, em conformidade com o que dos autos consta.
Assim, a quantia exequenda é de Esc. 2.160.000$00.
O valor referente às custas da acção é do montante de Esc. 74.528$00.
A soma destes valores é de Esc. 2.234.528$00.
O apelante, porém, refere que esta é que seria a quantia exequenda, o que como vimos não corresponde à verdade. Mais, volta a somar ao total dos valores da quantia exequenda e das custas, novamente este último valor, de modo a parecer que o valor da reclamação é mais elevado, o que mais uma vez não corresponde à verdade.
E, naquele requerimento de verificação e graduação de créditos, omite qualquer referência a juros de mora.
Só no requerimento de fls. 33/34 dos autos é que refere deverem ser verificados e graduados, os juros de mora que vierem a ser liquidados a final pela secretaria.
Sobre este requerimento, veio o liquidatário judicial apresentar parecer complementar em que entende dever apenas ser verificado o crédito do apelante pelo valor de Esc. 2.234.528$00 (cfr. fls. 38).
Acontece, porém, que o apelante em conjunto com J, na qualidade de Membros da Comissão de Credores da C, SARL, por requerimento enviado aos autos em 08/02/2006 (fls. 59/60) veio expressamente dizer que, “concordava com o parecer complementar apresentado na sequência do douto despacho de fls. 34 que decidiu verificar por 2.234.528$00, o crédito de V”.
Por isso, a sentença recorrida considerou reconhecido e verificado o crédito de V, pelo valor de Esc. 2.160.000$00 e custas do processo de execução no valor de Esc. 74.528$00, num total de Esc. 2.234.528$00, graduando-o em 3º lugar.
Em sede recursiva, o apelante pretende que os juros de mora sejam incluídos no montante do crédito a graduar, por entender que o crédito de juros emerge directamente da lei, designadamente do artº 806º do CC e ter sido expressamente reclamado.
A este propósito e em primeiro lugar, cabe aqui realçar que o apelante não reclamou expressamente os juros de mora, antes tendo adoptado, em sede de recurso, uma posição jurídica em completa contradição com o comportamento por si assumido anteriormente, nomeadamente a fls. 59/60, actuando claramente num “venire contra factum proprium” o que constitui uma das vertentes do abuso de direito e, por isso, inadmissível.
Na verdade, “a proibição da chamada conduta contraditória exige a conjugação de vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança. Esta variante do abuso do direito equivale a dar o dito por não dito, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois pressupõe duas atitudes espaçadas no tempo, sendo a primeira (factum proprium) contraditada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprovabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação dos limites impostos pela boa fé”. (2)
Em segundo lugar, no caso de em acção executiva, o exequente não pedir a condenação do executado em juros de mora, como aconteceu no caso concreto, já que apenas se conhece a quantia exequenda, caso o tribunal procedesse a tal condenação em juros, iria condenar além do pedido, incorrendo na nulidade prevista nos artigos 661º nº 1 e 668º nº 1, alínea e), do Código de Processo Civil.
Por isso, improcedem igualmente as conclusões de recurso, nesta parte.

V – DECISÃO
Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
(Processado por computador e integralmente revisto pela Relatora)
Lisboa, 12.7.2007
(Maria José Simões)
(Azadinho Loureiro)
(Folque de Magalhães)
_______________________________
1 Neste sentido, cfr. António Carvalho Martins, Reclamação, Verificação e Graduação de Créditos, pag. 52.
2 Cfr. Ac. TRL de 31/05/2007 (relatora Fernanda Isabel Pereira) consultável em www.dgsi.pt.