Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2366/09.8TMLSB-B.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DIFERENDO ENTRE OS PAIS RELATIVO A QUESTÃO DE PARTICULAR IMPORTÂNCIA
BAPTISMO
RELIGIÃO
LIBERDADE DE RELIGIÃO
INTERESSE DA CRIANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2012
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - O batizado de uma criança constitui questão de particular relevância, sobre a qual deve haver o acordo dos progenitores a quem caiba o exercício conjunto das responsabilidades parentais.
II – Na falta de acordo entre os progenitores, sendo ambos católicos e não opondo o pai/requerido razões outras para além da existência de um clima de desarmonia entre as famílias, o tribunal deve autorizar a mãe/requerente a diligenciar pela realização do batismo da menor, de dois anos de idade, sem necessidade do consentimento do pai.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

Em 22.11.2010 “A” intentou no Tribunal de Família e de Menores de Lisboa, por apenso a processo de regulação do exercício de responsabilidades parentais, contra “B”, incidente de resolução de diferendo entre os pais relativo a questão de particular importância atinente à filha de ambos, “C”.
A requerente alegou que é católica e pretende batizar a filha do casal, de dois anos de idade. Inicialmente o requerido, de quem a requerente está separada, deu o seu acordo, mas depois mudou de opinião, alegando que primeiro era necessário que terminasse o clima de hostilidade existente entre as duas famílias, nomeadamente com o fim dos processos pendentes. Ora, a requerente tem a intenção de batizar a menor quanto antes, sobretudo devido ao estado de saúde da avó da requerente, a qual quase diariamente manifesta à requerente o seu desgosto pelo facto de a bisneta ainda não se encontrar batizada.
A requerente terminou pedindo que o tribunal interviesse, pois, na resolução do aludido diferendo, que considerou respeitar a uma questão de particular importância.
Realizou-se conferência de pais, no qual não foi possível obter um acordo, tendo a requerente reiterado o afirmado no requerimento inicial e o requerido afirmado que não está contra o batismo e que também é católico, mas existe uma hostilidade entre as famílias materna e paterna e acha que se devem resolver todos os processos existentes e batizar a filha só quando todos os processos terminarem.
A requerente apresentou alegações nas quais reiterou o alegado no requerimento inicial.
O requerido apresentou alegações nas quais reiterou a posição afirmada na conferência de pais e acrescentou entender que não é essencial para a educação e desenvolvimento da menor enquanto cidadã e ente religioso ser batizada agora e que as questões religiosas não são do foro jurídico, mas tão só do foro moral e, atentos, até, os princípios constitucionais, da liberdade, da igualdade, da integridade moral, da liberdade de consciência, religião e culto, não podem ser impostas a ninguém e, muito menos a um menor, que não pode expressar livre e conscientemente a sua vontade.
O requerido concluiu pelo indeferimento da pretensão da requerente.
Foi ouvida uma testemunha (padre “D”).
Em 09.5.2011 foi proferida sentença na qual se julgou procedente o presente incidente e em consequência autorizou-se a requerente a realizar o batismo, pela Igreja Católica, da menor “C”, sem o consentimento paterno.
O requerido apelou desta decisão, tendo apresentado motivação na qual formulou as seguintes conclusões:
I - As responsabilidades parentais relativas à menor “C” estão atribuídas conjuntamente a ambos os progenitores.
II - O pai da menor “C”, opõe-se ao batismo da filha pela Igreja Católica, pretendido pela mãe.
III - A mãe pretende batizar a filha apenas por razões pessoais, nomeadamente de tradição familiar.
IV - Não foi invocado qualquer facto ou justificação para o batismo com base no interesse da menor.
V - Igualmente a douta sentença recorrida não apresenta , invoca ou justifica qual o superior interesse da menor que é concretizado com o batismo pela Igreja Católica.
VI - O batismo é o ritual ou, sacramento, iniciático que implica a aceitação e pertença à Igreja Católica e implica a aceitação e prática da doutrina e religião católicas, essencialmente no seu relacionamento com Deus, na pessoa e através de Jesus Cristo que está bem expresso na profissão de fé, designada por “Credo”.
VII - Independentemente da questão da fé e do seu seguimento, o quadro atual do relaciomanento dos pais e famílias, o aspeto social, não são propícios à celebração do batismo.
VIII - A fé é uma questão de convição pessoal, um ato de vontade, que uma criança não tem capacidade para entender e decidir.
IX - O suprimento dessa incapacidade por parte dos pais, atenta até a discórdia existente, é abusivo.
X - O desenvolvimento equilibrado da menor, a sua educação e sociabilização, mesmo de acordo com os princípios e regras da moral e da religião católicas, não implicam o seu batismo.
XI - Mesmo nas escolas públicas os alunos podem frequentar as aulas de moral e religião católicas sem serem batizados.
XII - Ao decidir impor o batismo à menor, e, por essa via a sua inclusão na Igreja Católica e a prática da religião católica, a douta sentença recorrida está a imiscuir-se em questão do foro pessoal, o que constitucionalmente não lhe é permitido.
XIII - Não existem nos autos elementos donde se possa retirar que ambos os pais professam a religião católica,
XIV - Mesmo que assim fosse, não era por tal situação que se poderia impor a profissão da religião católica à filha, tanto mais que existe oposição do pai.
XV - São conceitos distintos a educação religiosa e a profissão de uma religião.
XVI - Tendo as responsabilidades parentais sido atribuídas a ambos os pais, em conjunto, não pode qualquer deles decidir sobre questões de educação, de educação religiosa e, muito menos de profissão de religião.
XVII - O Juiz apenas pode intervir e compor litígios existentes no tocante à educação religiosa mas não relativamente à profissão de uma religião.
XVIII - Não há razão conveniência, de interesse ou de oportunidade que impliquem o batismo da menor neste momento.
XIX - A própria Igreja Católica determina que o batismo de crianças se faça nas primeiras semanas de vida e a pedido dos pais, o que no caso não se verifica.
XX - O Estado deve ser neutral e não pode impor qualquer forma de concepção do homem, do mundo ou da vida, como resultaria da pertença da menor à Igreja Católica, através da celebração do batismo.
XXI - Nessa medida a douta sentença recorrida ao determinar o batismo da menor pela Igreja Católica, viola os princípios constitucionais da liberdade de religião e da separação entre as Igrejas e o Estado.
XXII - Ao não atender ao interesse e vontade da menor e ao valorar a posição da mãe em detrimento da do pai, a douta sentença recorrida viola o principio constitucional da igualdade.
XXIII - Os pais têm direitos e deveres iguais quanto à educação dos filhos.
XXIV - A interpretação e aplicação do Artº.1886º do Código Civil, como é feita na douta sentença, no sentido de que os pais podem determinar a religião a professar pelos filhos e que isso faz parte da sua educação religiosa e, em suprimento do diferendo o Juiz pode decidir essa questão, traduz não só uma ilegalidade mas uma inconstitucionalidade, atento o referido nas conclusões XXI, XXII e XXIII.
XXIV [numeração repetida, como no original] -A inexistência do batismo não impede a educação religiosa da menor.
XXV - A douta sentença recorrida viola o disposto nos Artºs 70º, 124º, 1878º-1, 1881º, 1886º, 1906º do Código Civil e nos Artºs 13º, 18º, 36º, 41º e 69º da Constituição da República Portuguesa.
O apelante terminou pedindo que fosse dado provimento ao recurso e consequentemente a decisão recorrida fosse anulada.
A requerente/apelada contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
O recurso tem como objeto duas questões: alteração da matéria de facto dada como provada; autorização para o batismo da menor.
Primeira questão (alteração da matéria de facto)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto
1. A menor “C”, nasceu a ... de ... de 2008 e é filha da requerente e requerido.
2. No dia 11 de Março de 2010 os progenitores acordaram no exercício das responsabilidades parentais, homologado por sentença, constando, na parte que interessa: 1. As responsabilidades parentais relativamente à menor “C” serão exercidas conjuntamente por ambos os pais. 2. A menor ficará a residir habitualmente com a mãe (…) – fls. 40 e 41 dos autos principais (Proc. 2366/09.8TMLSB).
3. Ambos os progenitores professam a religião católica.
O Direito
A modificabilidade da decisão de facto pela Relação está regulada no art.º 712.º do Código de Processo Civil. Nos termos desse artigo, a Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Nos termos do art.º 685.º-B do Código de Processo Civil, quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. E, tratando-se de meios probatórios que tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição (n.º 2 do art.º 685.º-B).
No caso sub judice o apelante questiona o n.º 3 da matéria de facto, onde se diz que “ambos os progenitores professam a religião católica”.
Segundo o apelante, professar uma religião significa a relação formal de pertença a uma determinada igreja que conforma os princípios e crenças dessa religião e ainda a vivência desses mesmos princípios e crenças. Nessa medida o tribunal apenas poderia dar essa matéria como provada se estivessem nos autos os assentos dos batismos da requerente e do requerido, assim como os da 1.ª comunhão e crisma e, materialmente, só através do depoimento de testemunhas se poderia aquilatar se os progenitores professam ou não a religião católica.
Vejamos.
O tribunal deu como provada a matéria de facto invocando os “documentos e declarações da testemunha inquirida”.
É certo que nos autos não constam quaisquer documentos, nomeadamente emitidos pela Igreja Católica, comprovativos de que a requerente e os requeridos estão batizados, ou fizeram a 1.ª comunhão ou o crisma. Mas também é verdade que no requerimento inicial a requerente afirmou ser católica e ter sido criada e educada num ambiente religioso de católicos praticantes (nº 5 do requerimento). Nas alegações apresentadas antes da sentença o requerido não negou tal afirmação. Por outro lado, na conferência de pais o requerido declarou, segundo consta na respetiva ata, não estar contra o batismo e ser também católico. Na ata de inquirição do Padre “D”, testemunha arrolada pelo requerido, consta que aquela disse que “o baptismo das crianças é realizado com a vontade dos pais, não podendo a igreja decidir por eles.” Dessa transcrição não resulta que os pais da menor não professam a religião católica, sendo certo que se ignora o que mais disse a testemunha a esse respeito. Note-se que o depoimento não foi gravado.
A asserção de que os pais da menor professam a religião católica não está sujeita a nenhum meio de prova em particular, pelo que o juiz a este respeito limitar-se-á a apreciar livremente as provas, decidindo segundo a sua convicção (art.º 655.º do CPC).
Ora, o declarado pelos pais da menor nos autos e ainda o depoimento testemunhal invocado pelo tribunal a quo, cuja apreciação esta Relação não pode fiscalizar, por não ter sido registado, bastam, a nosso ver, para sustentar o aludido número 3 da matéria de facto. Além disso o catolicismo da requerente e do requerido não se apresentou, na primeira instância, como questão controvertida.
Nesta parte, pois, o recurso improcede.
Segunda questão (autorização para o batismo da menor)
O anteriormente designado “poder paternal” (actualmente substituído pelo conceito de “responsabilidades parentais”, introduzido no nosso ordenamento jurídico pela Lei n.º 61/2008, de 31.10) é um poder-dever, um poder funcional. Carateriza-se como um conjunto de faculdades que devem ser exercidas altruisticamente, no interesse do filho, com vista ao seu harmonioso desenvolvimento físico, intelectual e moral. Neste sentido o consagra a Constituição da República Portuguesa, em cujo artigo 36.º, n.º 5, se enuncia que “os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos”. O artigo 1878.º n.º 1 do Código Civil explicita que “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens.” Até atingirem a maioridade ou emancipação os filhos devem obediência aos pais (artigos 1877.º e 1878.º n.º 2 do Código Civil). Porém, os pais deverão, de acordo com a maturidade dos filhos, “ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida” (n.º 2 do art.º 1878.º).
Na vertente concernente à pessoa dos filhos, estabelece o Código Civil que “cabe aos pais, de acordo com as suas possibilidades, promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos” (n.º 1 do art.º 1885.º). Sendo certo que, no que concerne à religião, “compete aos pais decidir sobre a educação religiosa dos filhos menores de dezasseis anos” (art.º 1886.º).
Também a Lei da Liberdade Religiosa (Lei n.º 16/2001, de 22.6) enuncia que “os pais têm o direito de educação dos filhos em coerência com as próprias convicções em matéria religiosa, no respeito pela integridade moral e física dos filhos e sem prejuízo da saúde destes.” Sendo certo que “os menores, a partir dos dezasseis anos de idade, têm o direito de realizar por si as escolhas relativas a liberdade de consciência, de religião e de culto” (n.º 2 do art.º 11.º da Lei n.º 16/2001). O direito de os pais educarem os filhos em coerência com as suas próprias convicções em matéria religiosa interliga-se com as várias manifestações possíveis da liberdade de consciência, religião e de culto, como “ter, não ter e deixar de ter religião” (art.º 8.º alínea a) da Lei n.º 16/2001), “escolher livremente, mudar ou abandonar a própria crença religiosa” (art.º 8.º alínea b)), “praticar ou não praticar os actos do culto, particular ou público, próprios da religião professada” (art.º 8.º alínea c)).
Liberdade de consciência, de religião e de culto que, no dizer do art.º 41.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, “é inviolável”.
No direito internacional, nomeadamente, relevam:
- O art.º 18.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos”;
- O art.º 26.º n.º 3 da mesma Declaração Universal: “Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos”;
O art.º 2.º do Protocolo n.º 1 adicional à Convenção de Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (vide Lei n.º 65/78 de 13.10): “A ninguém pode ser negado o direito à instrução. O Estado, no exercício das funções que tem de assumir no campo da educação e do ensino respeitará o direito dos pais a assegurar aquela educação e ensino consoante as suas convicções religiosas e filosóficas”;
O art.º 18.º n.º 4 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (Lei n.º 29/79, de 12.6): “Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, em caso disso, dos tutores legais a fazerem assegurar a educação religiosa e moral dos seus filhos e pupilos, em conformidade com as suas próprias convicções”;
O art.º 14.º da Convenção sobre os Direitos da Criança (Decreto de Ratificação pelo Presidente da República n.º 49/90, de 12.9):
1. Os Estados Partes respeitam o direito da criança à liberdade de pensamento, de consciência e de religião.
2. Os Estados Partes respeitam os direitos e deveres dos pais e, sendo caso disso, dos representantes legais, de orientar a criança no exercício deste direito, de forma compatível com o desenvolvimento das suas capacidades.
3. A liberdade de manifestar a sua religião ou as suas convicções só pode ser objecto de restrições previstas na lei e que se mostrem necessárias à protecção da segurança, da ordem e da saúde públicas, ou da moral e das liberdades e direitos fundamentais de outrem.”
A criança tem o direito a ser educada, nomeadamente na vertente religiosa, de acordo com as convicções dos seus pais. Tal inclui a possibilidade de participar nos correspondentes atos de culto, como os sacramentos, na medida em que não seja posta em causa a sua integridade física e moral.
Assim, a decisão dos pais católicos em batizar os seus filhos não fere qualquer regra ou princípio legal ou constitucional.
Questão diversa será o Estado impor a prática de um ato religioso, nomeadamente o batizado de uma criança.
Mas não é disso que se trata nestes autos.
Em regra, o exercício das responsabilidades parentais pertence a ambos os pais (artigos 1901.º, n.º 1 e 1911.º n.º 1 do Código Civil).
Em casos como os de divórcio ou de separação de facto ou de cessação de convivência dos progenitores o exercício das responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente do filho cabe ao progenitor com quem ele reside habitualmente, ou ao progenitor com quem ele se encontra temporariamente, embora este último não deva contrariar “as orientações educativas mais relevantes, tal como são definidas pelo progenitor com quem o filho reside habitualmente” (n.º 3 do art.º 1906.º, 1909.º e 1911.º n.º 2 do Código Civil, com a redação introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31.10).
Já quanto às responsabilidades parentais relativas “às questões de particular importância” para a vida do filho, em regra serão exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância da comunhão de vida (n.º 1 do art.º 1906.º do Código Civil).
Se faltar o acordo dos pais relativamente a questões de particular importância inseridas no âmbito das responsabilidades parentais, qualquer deles pode recorrer ao tribunal, que tentará a conciliação e, não sendo esta possível, decidirá após ouvir o filho, audição essa que só não ocorrerá se circunstâncias ponderosas (como a sua tenra idade) o desaconselharem (n.ºs 2 e 3 do art.º 1901.º do Código Civil; art.º 184.º da OTM).
O legislador recorre a um conceito indeterminado, deixando aos tribunais o encargo de definir o que deve ser considerado como questão de particular importância.
Nos termos da Exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 509/X (que esteve na origem da Lei n.º 61/2008, de 31.10), Dá-se por assente que o exercício conjunto das responsabilidades parentais mantém os dois progenitores comprometidos com o crescimento do filho; afirma-se que está em causa um interesse público que cabe ao Estado promover, em vez de o deixar ao livre acordo dos pais; reduz-se o âmbito do exercício conjunto ao mínimo – aos assuntos de “particular importância”. Caberá à jurisprudência e à doutrina definir este âmbito; espera-se que, ao menos no princípio da aplicação do regime, os assuntos relevantes se resumam a questões existenciais graves e raras, que pertençam ao núcleo essencial dos direitos que são reconhecidos às crianças. Pretende-se que o regime seja praticável – como é em vários países europeus – e para que isso aconteça pode ser vantajoso não forçar contactos frequentes entre os progenitores. Assim se poderá superar o argumento tradicional de que os pais divorciados não conseguem exercer em conjunto as responsabilidades parentais.” (n.º 5 da parte II da exposição de motivos).
Na referida exposição de motivos defende-se que, ao menos na fase inicial de aplicação do regime, os assuntos de particular importância constituirão “questões existenciais graves e raras, que pertençam ao núcleo essencial dos direitos que são reconhecidos às crianças”. É propósito confesso do legislador reduzir o âmbito do exercício conjunto “ao mínimo”. Isto para que o regime seja “praticável”, o que implicará “não forçar contactos frequentes entre os progenitores.”
Assim, se um determinado assunto da vida do menor não for qualificável, no contexto supra referido, como sendo de “particular importância”, será tratado como atinente à “vida corrente do menor”, ou seja, o ato ou opção correspondentes serão tomados autonomamente pelo progenitor com quem o menor residir habitualmente, sem carecer do acordo do outro.
Se se considerar que a decisão de batizar a criança não é de particular importância, então o progenitor “residente” poderá tomar tal decisão sem necessidade de acordo do outro progenitor, ou seja, não carecerá de pedir ao tribunal autorização para esse efeito, no caso de discordância do outro progenitor.
No caso destes autos, ambos os pais estão de acordo que a questão em causa é de particular importância. Pelo menos ambos acham que o acordo do pai é indispensável para que se proceda ao batismo da menor “C”: a mãe, porque veio aos autos pedir ao tribunal que supra essa falta de consentimento por parte do pai; o pai, conforme resulta, nomeadamente, das suas alegações.
Afigura-se-nos que a educação religiosa de uma criança constitui, para o efeito supra referido, questão de particular importância. Esse é, aliás, o entendimento da doutrina (Helena Bolieiro e Paulo Guerra, “A Criança e a Família – uma Questão de Direito(s)”, Coimbra Editora, 2009, páginas 175 e 176, nota 24; Maria Clara Sottomayor, “Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio”, 2011, 5.ª edição, Almedina, páginas 271, 272, 279 e 280). E no âmbito da educação religiosa assume particular significado a participação nos atos de culto, maxime aqueles a que a religião em causa atribui maior importância, como o batismo.
Concorda-se, pois, com a requerente e o requerido, quando assumem que o batismo da pequena “C” é um ato de particular relevo, sobre o qual deverá haver acordo de ambos os progenitores.
Ou seja, pese embora a menor resida com a requerente, uma vez que nos termos do regime das responsabilidades parentais fixado estas deverão ser exercidas em conjunto pelos dois progenitores, a questão do batismo, que é de particular relevância, carece do acordo do requerido.
O que implica que, na falta de acordo dos progenitores, o tribunal deverá intervir.
E deverá intervir em princípio optando por uma das soluções defendidas pelos progenitores (neste sentido, Helena Bolieiro e Paulo Guerra, obra citada, pág. 251, nota 163; Maria Clara Sottomayor, obra citada, páginas 287 e 288).
Sendo que nessa opção o juiz deverá atender em primeiro lugar ao interesse da criança (Clara Sottomayor, obra citada, pág. 288), tendo presente que o processo em causa é de jurisdição voluntária (art.º 150.º da OTM) e por conseguinte na decisão a tomar o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar a solução que julgue ser mais conveniente e oportuna para o caso concreto (art.º 1410.º do CPC).
O interesse da criança pode ser tido em consideração para impor a prática de um ato ou a sua proibição. Mas também é respeitado e relevante quando funda um juízo de neutralidade, ou seja, quando dele emana um mero juízo de indiferença em relação a um determinado ato, do qual se diz que nem beneficia nem prejudica a criança, de molde que a opção a tomar poderá depender de razões outras que não propriamente o interesse da criança, em relação ao qual há de todo o modo a certeza de que não será prejudicado.
Essa foi, por exemplo, a perspetiva do Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 11.3.1993 (Col. de Jur., ano XVIII, tomo II, pág. 97), no qual se ponderou que “em caso de desacordo dos pais quanto ao uso, pelo filho menor, do apelido do pai, não importa tanto ao tribunal exigir a prova positiva de factos demonstrativos de um interesse concreto, para o menor, nesse uso, mas antes indagar se existem circunstâncias que desaconselhem, do ponto de vista dos interesses do menor, o uso de tal apelido” (concluindo que, não existindo tais circunstâncias, o apelido deve ser incluído no nome do menor).
Ora, no caso concreto, não vislumbramos que o interesse da menor fique prejudicado com o seu batismo. De resto, nenhumas razões atinentes ao interesse da menor foram aventadas pelo pai aquando da sua oposição inicial. Só ulteriormente é que o ora apelante veio invocar razões atinentes à liberdade de consciência, de religião e de culto da menor. A invocação de tais razões contraria a restante argumentação do requerente, que alegou como obstáculo razões meramente conjunturais, ou seja, o atual clima de desarmonia na família. Quer isto dizer que na perspetiva do requerido, se tal desentendimento entre famílias não existisse, o apelante não se oporia à realização do batismo.
Pelo contrário, como se disse supra, os menores têm direito a serem educados em harmonia com as convicções religiosas dos seus progenitores. Tal reforça os laços filiais, a identificação entre pais e filhos e também em relação aos outros elementos da família que partilhem dos mesmos ideais.
No caso concreto, tanto o pai como a mãe são católicos. O batismo da menor é um ato que se insere nessa vivência, que é muito desejado pela requerente e a que também o requerido não opõe razões de fundo, mas meramente conjunturais.
Assim sendo, não vê esta Relação razões bastantes para obstar a que o batismo se realize, mesmo que sem o acordo do requerido.
Como é óbvio, tal decisão não assenta num juízo discriminatório do pai em detrimento da mãe, na medida em que seria a mesma se fosse o requerido a defender o batismo e a requerente a opor-se-lhe.
Contrariamente ao aventado pelo apelante nas suas conclusões, a decisão recorrida não impõe o batismo da menor. A decisão recorrida limita-se a autorizar que a requerente, querendo, diligencie pelo batizado da pequena “C”, sem necessitar para tal do consentimento do requerido. Mas a opção final caberá à requerente. E o tribunal também nada impõe à Igreja Católica. Caberá aos membros do clero decidir o que acharem por bem acerca da realização do batismo, nomeadamente no que concerne à posição do pai da menor.
Nestes termos, conclui-se que a decisão recorrida deve ser confirmada.

DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo do apelante.

Lisboa, 21.06.2012

Jorge Manuel Leitão Leal
Pedro Martins
Sérgio Almeida (vencido, conforme declaração de voto em anexo)

Discutem os pais se a menor deve ser (e brevemente) batizada.
Esgrimem designadamente que a bisavó, boa católica, anda perturbada com a omissão desse acto, tendo a criança já 3 anos (a mãe) e que as famílias estão desavindas, não sendo, pois, boa altura para o efeito (o pai).
São argumentos a nosso ver de todo em todo irrelevantes, já que não é o interesse dos familiares que está em causa.
A tese que fez vencimento, depois de fazer observações inatacáveis sobre o regime jurídico, nomeadamente da liberdade religiosa, entendeu que, sendo os pais católicos e discutindo meramente o momento do batismo, é razoável o suprimento da vontade do pai.
Lógica que cuidamos também perfeitamente acertada, levando a premissa à conclusão.
Pensamos, no entanto, que não é isso que está em causa.
Na verdade, embora de forma menos feliz (na conferência de pais o progenitor esgrimiu que “não está contra o batismo. É também católico, mas existe hostilidade entre as famílias”), o recorrente acaba por explicitar a sua posição afirmando que “a vontade [de batizar] para ser operante tem que ser livre e manifestada por quem tem não só capacidade mas maturidade e sentido de responsabilidade para aceitar e cumprir as normas de carácter ético-religioso” (art.º 19); “uma criança de dois anos e meio não pode saber se quer ser cristão, se quer ser batizada na fé católica” (20); o Tribunal decidirá questão pessoal: “ser crente e praticar (ou não) uma religião” (29).
Ou seja: o que o progenitor deixa no ar é que não decidiu pela sua parte qual a religião em que pretende inserir a filha até esta ter capacidade para escolher ou ratificar[1].
Como resulta dos citados art.º 1886.º Código Civil e art.º 8.º da Liberdade Religiosa, n.º 16/2001, os pais têm o poder-dever (a nosso ver) de instruir os filhos de acordo com a concepção religiosa que entendem adequada[2] (seja esta, aquela ou nenhuma), podendo criá-los (sem prejuízo do respeito pela sua intrínseca dignidade) no âmbito da religião que professam[3].
Coisa diversa, porém, é a imposição de uma determinada opção religiosa[4] quando um dos progenitores a tal se opõe.
Então a cada progenitor caberá legitimamente transmitir à criança os valores que reputa pertinentes, ministrar-lhe o ensino religioso que entende mais adequado, levá-la aos actos de culto pertinentes quando a criança estiver consigo, mas não inseri-la como membro/prosélito da sua religião[5], ou da ausência dela[6], a despeito da posição contrária do outro progenitor. 
Nesse caso, afigura-se-nos que não cabe ao Tribunal deferir o requerido, restando aguardar que o menor adquira capacidade para decidir, só assim se respeitando integralmente a dignidade da pessoa humana (art.º 1º, 25, n.º 1, da Constituição) e a inviolabilidade da liberdade religiosa que dela decorre (art.º 41/1).
Tem assim razão o recorrente quando chama a atenção para a radical divergência que existe entre ensinar e fazer professar uma religião.
Pelo que concederíamos provimento ao recurso.
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[1] Nas alegações de recurso diz mesmo: “o pai não lhe quer impor a religião católica” (fls 78).
[2] Poder que se mantém mesmo em casos de separação, como refere o acórdão.
[3] E que para eles será certamente a melhor, quando não a única verdadeira.
[4] E o batismo terá, cremos, este sentido.
[5] O que não é questão de somenos importância. A título de exemplo, há religiões não cristãs – o que não é, evidentemente, o caso dos autos – cujas doutrina e prática desconhecem e repudiam a liberdade religiosa e que punem com a morte (pelo pretenso “delito” de apostasia) o exercício da liberdade consistente no seu abandono.
[6] Saliente-se que a ausência de vinculação religiosa no caso de desacordo não significa que a criança deva crescer sem ensino dessa natureza ou sem frequentar culto algum, pois que isso, sob a capa da neutralidade axiológica, é na realidade já uma opção de cunho religioso. Significa, sim, que cada progenitor concorrerá para transmitir os valores que entenda correctos, sejam eles católicos, ortodoxos, judaicos, ateus ou outros, cabendo um dia ao menor – já que os pais não foram capazes de se entender -, munido dos ensinamentos e convicções que pai e mãe lhe propiciaram, decidir.