Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | GRAÇA AMARAL | ||
| Descritores: | COMPETÊNCIA TERRITORIAL FORO CONVENCIONAL APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL NO TEMPO RETROACTIVIDADE PRINCÍPIO DA CONFIANÇA PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 01/16/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | AGRAVO | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
| Sumário: | I – Por força das alterações introduzidas pela Lei 14/2006, de 26/4, aos art.ºs 74 e 110, ambos do CPC, as causas previstas no citado art.º 74, n.º1, alínea a), do mesmo código, passaram a estar integradas nas situações de conhecimento oficioso da incompetência relativa, impedindo as partes de, nestes casos, afastarem, por convenção, a aplicação das regras de competência territorial. II – Tais alterações, de acordo com a interpretação a dar à norma transitória ínsita na referida lei (art.º 6), são de aplicação imediata relativamente a acções instauradas após a sua entrada em vigor, seja qual for o momento da celebração dos contratos em que se funda a pretensão do demandante. III - A interpretação da lei nos termos acima considerados não viola qualquer princípio constitucional, designadamente, os invocados princípios da proporcionalidade, da segurança jurídica, confiança e da não retroactividade. (GA) | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, I – Relatório 1. Nos autos de acção com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato que A propôs contra B, veio a Autora recorrer do despacho que declarou o tribunal da comarca de Lisboa territorialmente incompetente para conhecer e decidir do litígio, determinando a remessa dos autos para o tribunal judicial da comarca de C por ser o competente em razão do território para o efeito. 2. Inconformada, a Autora conclui nas suas alegações: (i) O despacho recorrido ao aplicar o disposto na alínea a), do nº 1 do artigo 110º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos, atento o que consta do contrato aos mesmos junto com a petição inicial, em que as partes escolheram um foro convencional nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 100º, nºs. 1, 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, violou o disposto nos artigos 5º e 12º, nºs. 1 e 2, do Código Civil. (ii) O despacho recorrido, ao interpretar e aplicar, como o fez, a alínea a) do nº 1 do artigo 110º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela dita Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos e, consequentemente, a não considerar válida e eficaz a escolha do foro convencional constante do contrato dos autos, atento a data da celebração do mesmo e o disposto no artigo 100º, nºs. 1, 2, 3 e 4, do Código de Processo Civil, do que então se dispunha no artigo 110º do mesmo normativo legal, maxime na alínea a) do respectivo nº 1, é inconstitucional por violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e da não retroactividade consignados no artigo 18º, nºs. 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do principio de um Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º da Constituição da Republica Portuguesa. (iii) Impõe-se, pois, como se requer, procedência do presente recurso, a revogação do despacho recorrido, e a sua substituição por outro que reconheça a competência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para conhecer dos autos onde o mesmo foi proferido, desta forma se fazendo JUSTIÇA 3. Não foram apresentadas contra alegações. 5. Foi proferido despacho de sustentação. II – Enquadramento fáctico Com relevância para a apreciação do recurso registam-se as seguintes ocorrências: § A propôs, nos termos do DL 269/98, de 1 de Setembro, acção com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato contra B pedindo que o Réu seja condenado a pagar-lhe a importância de €10.474,27, acrescida de €2.113,57 de juros vencidos até 28.07.2006, €84,54 de imposto de selo sobre os referidos juros, bem como juros vencidos a partir de 29.07.2006, à taxa anual de 25,31% e imposto de selo sobre tais juros à taxa de 4%. Fundamentou a acção no incumprimento por parte do Réu do contrato de mútuo, celebrado em 16.08.2005, nos termos do qual foi concedido ao mesmo, para aquisição de um veículo automóvel, o crédito de € 6.317,00, com juros à taxa nominal de 21,31% ao ano, montante (e respectivos juros, bem como prémios de seguro) que deveria ser pago em 60 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira a 10.09.06 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes. § A referida acção entrou em juízo no dia 28 de Julho de 2006. § Consta das condições específicas do contrato, sob a designação de “AUTORIZAÇÃO DE DÉBITO” que o mutuário “autoriza que, como forma de pagamento das prestações acima indicadas, bem como de quaisquer outras verbas decorrentes deste contrato, designadamente juros de mora e despesas de cobrança, a sua conta da agência de D do Banco E seja debitada, por contrapartida de uma conta que o A seja titular. Autoriza ainda o 1º Mutuário que o A exiba o presente contrato ao Banco, no qual o 1º Mutuário detém a conta que autoriza seja debitada, caso esse banco solicite ao A prova desta autorização de débito concedida pelo 1º Mutuário”. § O Réu reside em M B. § As partes convencionaram no ponto 15º das condições gerais do contrato que para todas as questões emergentes do mesmo seria competente o foro da comarca de Lisboa, com expressa renúncia a qualquer outro”. III – Enquadramento jurídico A questão a decidir no recurso é determinar qual o tribunal territorialmente competente para conhecer a presente acção. O despacho recorrido considerou o tribunal cível de Lisboa territorialmente incompetente para conhecer do litígio face ao disposto no art.º 110, do CPC, atentas as alterações introduzidas pela Lei 14/2006 de 26/04, tendo por subjacente a aplicação imediata da mesma, ainda que relativamente a acções instauradas em data anterior à sua entrada em vigor. Insurge-se a Autora contra tal decisão sustentando-se na seguinte ordem de argumentos: - ocorrer estipulação das partes elegendo foro convencional para dirimir o litígio; - constituir a aplicação imediata da Lei 14/2006 violação dos princípios constitucionais da adequação, da exigibilidade, da proporcionalidade, da não retroactividade, da segurança jurídica e da confiança. Atento o posicionamento assumido pela Agravante importa pois determinar se, no caso e face à lei processual vigente, se mantém válida e eficaz a estipulação contratual sobre a competência, sendo certo que, quando da celebração do contrato de mútuo, a mesma era permitida de acordo o que nesse sentido então prescreviam os artigos 74º nº 1 e 110º nº 1, al. a), do CPC, dado não estar em causa situação de conhecimento oficioso da competência do tribunal em razão do território. 1. A Lei 14/2006, de 26 de Abril procedeu à alteração de alguns preceitos do CPC, designadamente os referidos artigos 74 e 110. Assim o art.º 74, n.º1, passou a dispor que A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana. Por sua vez o art.º 110, ao introduzir as causas previstas no citado art.º 74, n.º1, alínea a), nas situações de conhecimento oficioso da incompetência relativa, veio impedir as partes de, nestes casos, afastarem, por convenção, a aplicação das regras de competência territorial. Na situação a apreciar as partes convencionaram o foro competente para resolução de eventuais conflitos relativos ao contrato firmado e dado que o mesmo foi celebrado em data anterior à referida alteração legislativa, importa determinar se esta é de aplicação imediata no caso concreto. Esta questão insere-se na problemática da aplicação das leis processuais no tempo, no que se refere ao caso particular da relação material sob litígio ter sido constituída na vigência de lei processual diferente da que se encontra em vigor quando a acção é proposta em juízo. A esse respeito não podemos deixar de subscrever o posicionamento de A. Varela, M. Bezerra e S. Nora que remetem a respectiva solução para o que se encontra prescrito na nova lei que, através das disposições transitórias especiais, circunscreve o campo temporal da sua aplicação” (1). Porém, sempre que a lei não contemple disposição transitória, especial ou sectorial, segundo os mesmos Autores, a solução geral das leis processuais, não poderá deixar de ser a do princípio da aplicação imediata que, pese embora não ter consagração expressa na lei, é inerente ao direito processual, quer porque é um ramo do direito público que se sobrepõe aos interesses particulares dos litigantes, quer porque é direito adjectivo e, nessa medida, regula tão só o modo como as partes podem exercer os direitos reconhecidos na lei substantiva. A Lei 14/2006, contém uma norma transitória especial no que se refere à sua aplicação no tempo, dispondo o artigo 6º, dispondo que A presente lei aplica-se apenas às acções e aos requerimentos de injunção instauradas ou apresentados depois da sua entrada em vigor”. Conforme se encontra salientado no Acórdão desta Relação (processo n.º 6740/2006, 6ª secção) o qual, aliás, seguimos de perto, tal norma significa que, não restando dúvida quanto à aplicação da lei nova aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, a mesma prevalecerá nos processos entrados após o início da sua vigência, seja qual for o momento da celebração dos contratos em que se funda a pretensão do demandante. Assim sendo e atenta a situação particular dos autos, de acordo com a norma de direito transitório, contrariamente ao defendido pela Agravante, há que afastar a convenção das partes quanto ao foro escolhido não obstante a mesma se reportar a contrato celebrado em data anterior à sua entrada em vigor. Consequentemente, dado que a presente acção foi instaurada após a entrada em vigor da Lei 14/2006, de 26 de Abril, importa fazer aplicar o disposto nos artigos 110, n.º1, alínea a) e 74, n.º 1, do CPC, na redacção que lhe foi conferida pela citada Lei 14/2006. 2. Tendo em linha de conta a argumentação tecida pela Agravante importa ainda salientar que a interpretação da lei nos termos acima considerados não viola qualquer princípio constitucional, designadamente, os invocados princípios da proporcionalidade, da segurança jurídica, confiança e da não retroactividade. A violação do princípio da proporcionalidade (consagrado em termos gerais no art.º 18, n.º2, da CRP, e apontado como limitação geral ao exercício do poder público) (2) só se verifica em conexão com qualquer outro direito fundamental. Conforme se faz salientar no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 88/2004, de 10.02.2004, (3) “…estando em causa actividade legislativa, é reconhecido ao legislador um considerável espaço de conformação, um largo âmbito de discricionariedade, pelo que a avaliação pelos tribunais da inconstitucionalidade de uma norma, por violação do princípio da proporcionalidade, depende de se poder assinalar uma manifesta inadequação da medida, uma opção manifestamente errada do legislador, um carácter manifestamente excessivo da medida ou inconvenientes manifestamente desproporcionados em relação às vantagens que apresenta.” Na situação sob apreciação não se evidencia que a interpretação do artigo 6º, da Lei 14/2006 (no sentido de prevalecer relativamente aos processos entrados após o início da sua vigência, independentemente do momento da celebração dos contratos em que se fundamenta a pretensão do demandante), tenha por subjacente a aplicação de uma medida legislativa desajustada ou excessiva, determinando desproporção entre aos inconvenientes que acarreta e as vantagens que dela podem advir. Na verdade, ainda que o legislador não tenha consagrado expressamente os motivos subjacentes à alteração legislativa neste domínio, evidencia-se que os mesmos assumem sentido em razões práticas de administração da justiça, contrariando a elevada concentração de pendência processual em certas circunscrições territoriais determinadas pela denominada litigiosidade de “massa”. No que se refere ao princípio da segurança jurídica e confiança ínsito no Estado de Direito, consagrado no art.º 2, da CRP, igualmente não é possível descortinar, no caso, a sua violação. Com efeito, embora a alteração legislativa operada pela Lei 14/2006, na interpretação que acolhemos como boa, determine uma modificação no equilíbrio contratual inicialmente estabelecido entre as partes (designadamente custos acrescidos decorrentes da alteração do foro estabelecido, tendo em especial linha de conta que a Autora possui sede em Lisboa, comarca convencionada para dirimir os litígios decorrentes da celebração do referido contrato), tal com o se encontra salientado no acórdão desta Relação acima citado, importa compatibilizar o interesse público imanente à organização dos meios judiciários (não se discute a bondade da solução encontrada) na procura da sua racionalização num quadro de litígios de “massa” em que o “queixoso” é uma entidade profissionalizada e o tipo de litígio se prende mais com a análise documental do que testemunhal ou pericial, com meios de comunicação à disposição dessas entidades que lhes permite a prática da generalidade dos actos processuais à distância. No que se refere ao princípio da não retroactividade da lei estabelecido no art.º 12, do Código Civil, desde já importa ter presente que o mesmo apenas assume expressa consagração constitucional em matéria penal (art.º 29) e no que se refere a direitos, liberdades e garantias (art.º 18 nº 3), o que, de todo, não se encontra em causa na situação dos autos. Por outro lado, neste âmbito, só se verificaria inconstitucionalidade se a retroactividade da norma gerasse, nas relações jurídicas anteriormente constituídas, uma alteração arbitrária e intolerável com a qual o cidadão não podia contar, infringindo assim a confiança no ordenamento jurídico, realidade que, atento o contexto das alterações em causa, não tem qualquer cabimento na situação sub judice. Improcedem, pois, na sua totalidade, as conclusões do recurso. Face aos exposto, dado que o Réu reside na área da Comarca D, de acordo com o que dispõe os art.ºs 74, nº 1 e 110º nº 1, alínea a), do CPC, na redacção dada pela Lei nº 14/2006, há que afastar o pacto de aforamento ínsito no contrato celebrado entre as partes e, nessa medida, considerar territorialmente competente para conhecer desta acção o Tribunal Judicial de D, conforme decidido no despacho recorrido. IV - Decisão: Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao agravo, mantendo o despacho recorrido. Custas pela Agravante. Lisboa, 16 de Janeiro de 2007 Graça Amaral Orlando Nascimento Ana Maria Resende ___________________________ 1.-Referem tais Autores que Ao lado das disposições especialmente insertas em determinados diplomas, há que considerar ainda as normas transitórias sectoriais ou parcelares, destinadas a definir, em termos relativamente genéricos, o domínio temporal das leis processuais reguladoras de certas matérias (prazos, forma dos actos, etc - Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 46. 2.-Este princípio consubstancia-se em três subprincípios - o da adequação, o da exigibilidade e o da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito. 3.-Publicado no DR – IIª Série de 16.04.2004. |