Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1050/2002-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: DESPORTO
VIOLÊNCIA
FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/12/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA.
Sumário: Ao abrigo do Dec. Lei nº 270/89, de 18-8, a entidade organizadora de desafios de futebol tem o dever de dever de garantir a segurança dos espectadores através de meios preventivos e repressivos.
Tal dever não se considera cumprido se, deixando entrar no recinto desportivo adepto ou adeptos com dispositivos “very light” e depois ter sido efectuado um primeiro disparo de um desses dispositivos, foi omitida pela entidade organizadora - a Federação Portuguesa de Futebol - a reacção necessária a neutralizar esse perigo, de modo a impedir um outro disparo.
A circunstância de a Ré, enquanto organizadora, ter requisitado o policiamento do evento desportivo não a libertava do dever de previsão e de manutenção dos meios adequados, nem a impedia de actuar.
Ocorrendo um segundo disparo de “very light” que foi causa da morte de um espectador, a FPF incorre em responsabilidade civil culposa.
É ajustada a indemnização de 5.000.000$00 pela perda do direito à vida, de 5.000.000$00 pela dores sofridas antes de morrer. A título de danos morais, ajusta-se a indemnização de 7.000.000$00 a favor da viúva e 5.000.000$00 a favor de cada um dos dois filhos menores.
A título de lucros cessantes, tendo em conta a perda dos alimentos que o falecido lhes prestaria, é ajustada a quantia de 20.000.000$00, repartidos por 10.000.000$00 para a viúva e 5.000.000$00 para cada um dos menores.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :

1. Relatório :
P. M., por si e em representação de seus filhos menores, L. M. e D. M. Mendes, intentou no Tribunal Judicial de Oeiras, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra
H. I. e
Federação Portuguesa de Futebol,
pedindo a condenação solidária dos réus no pagamento da indemnização de 70.030.000$00, acrescidos de juros legais desde a citação, sendo 50.000.000$00 a título de danos não patrimoniais e 20.030.000$00 a título de danos patrimoniais.
Alegaram, em síntese, que são, respectivamente, viúva e filhos de R. M., falecido no dia 18 de Maio de 1996 por ter sido mortalmente atingido por um “very ligth” disparado pelo réu H. I. quando ambos assistiam no Estádio Nacional, em Oeiras, à final da Taça de Portugal a disputar entre o Sporting Clube de Portugal e o Sport Lisboa e Benfica, espectáculo organizado pela ré Federação Portuguesa de Futebol, que emitiu os respectivos bilhetes de ingresso.
Os autores deduziram ainda pedido de concessão de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento prévio de preparos e custas.
Citados os réus, apenas a Federação Portuguesa de Futebol contestou, excepcionando a sua ilegitimidade e alegando, em suma, que classificou o jogo referido como de “alto risco” e, por esse motivo, requisitou ao Comando da PSP/GNR o policiamento considerado necessário para o efeito, em cumprimento do disposto no artigo 2º nº 1 do DL nº 238/92, de 29 de Outubro, pelo que nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada. Impugnou ainda a factualidade alegada na petição inicial, concluindo pela procedência da excepção e consequente absolvição da instância ou pela improcedência da acção com a necessária absolvição do pedido.
Requereu também o benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa total de preparo e do prévio pagamento de custas.
Replicaram os autores, respondendo à matéria da excepção.

Foi concedido aos autores e à ré Federação Portuguesa de Futebol o apoio judiciário, na modalidade pedida.
Efectuado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou os réus a pagarem, solidariamente, aos autores a indemnização de 30.030.000$00, sendo 30.000$00 por danos patrimoniais e 30.000.000$00 por danos não patrimoniais, valor este a repartir em partes iguais por cada um dos autores -10.000.000$00 para cada autor -. Mais foram os réus condenados a pagarem aos autores juros de mora à taxa legal sobre o montante global da indemnização desde a citação até pagamento.

Inconformada, apelou a ré Federação Portuguesa de Futebol, formulando na alegação oportunamente apresentada, em resumo, as seguintes conclusões :
1ª Ao contrário do decidido, nenhuma lei, norma jurídica ou regulamento impunham, na altura, que os recintos desportivos portugueses dispusessem de sistemas vídeos de vigilância e de torniquetes nas suas entradas, como formas típicas de assegurar o controlo dos espectadores, prevenir a entrada de objectos perigosos e evitar a violência.
2ª Só com a Lei 38/98, de 4 de Agosto - mais de dois anos depois dos acontecimentos -é que vieram a ser exigidos tais mecanismos nos recintos desportivos, como meios preventivos dos actos de violência em tais locais. É o que resulta dos seus artigos 11º e 8º nº.1.
Mesmo assim, a exigência dos sistemas vídeo de vigilância foi relegada para 3 ou 6 anos depois, como sobressai do artigo 37º nºs. 1 e 2, dirigindo-se a exigência dos torniquetes, sobretudo, para o controlo dos bilhetes de entradas e o normal fluxo dos espectadores, É o que advém do n°. 1 do artigo 8º da citada lei.
3ª O controlo dos espectadores podia, e pode ainda hoje, fazer-se através do recurso a outros sistemas, como os adoptados no caso, através da implantação de barreiras metálicas e barreiras policiais.
4ª Daí que a conduta e comportamento da ora recorrente, consistente na permissão da realização do jogo da final da Taça de Portugal no Estádio Nacional, sem a existência de um sistema vídeo de vigilância no recinto e sem torniquetes à sua entrada, não possa considerar-se ilícita.
5ª Por outro lado a recorrente entregou aos elementos policiais a tarefa do controlo obrigatório dos espectadores à entrada para o Estádio, na certeza de que nenhuma outra forma existia que melhores resultados obtivesse na prevenção da introdução de objectos proibidos ou susceptíveis de possibilitarem actos de violência, como o impõe a al. e) do artigo 12º do DL nº 270/89, de 18 de Agosto.
Também aqui inexiste qualquer conduta ilícita da ora recorrente.
6ª Aliás, não se provou nem a douta sentença o afirma de qualquer forma, que o 1°. réu, Hugo Inácio, não tenha sido sujeito a controlo policial na entrada para o Estádio, sendo da exclusiva responsabilidade das forças de segurança a eventual forma aligeirada como terão feito esse controlo, permitindo-lhe o transporte dos "very lights" que lançou dentro do recinto.
7ª A sentença sob recurso, ao considerar ilícita a conduta da ora recorrente, violou, por erro de interpretação e aplicação, os artigos 483º e 486º do Código Civil, os artigos 8º e 11º da Lei 38/98, al. e) do artigo 12º do DL nº 270/98 e nº 2 do artigo 2º do DL nº 238/92 de 29/10.
8ª Por outro lado, inexiste no contexto da matéria de facto provada qualquer vestígio ou resquício de culpa em todo o comportamento da ora recorrente, culpa essa determinada segundo os parâmetros que o artigo 487º nº 2 do C. Civil traça e estabelece, como juízo de censurabilidade no comportamento adoptado, reprovação jurídica essa apreciada segundo aquilo que faria ou omitiria um homem médio, normal, face ao condicionalismo próprio do caso concreto.
Na verdade,
9ª Desenvolveu todas as acções que se deixarem descritas nas diversas alíneas do artigo 38º destas alegações, como sendo as mais aptas à boa realização do jogo que organizou e as mais correctas e apropriadas para impedir e obstar à verificação de actos de violência durante o espectáculo.
10ª Não lhe era exigido, pois, nas circunstâncias concretas, comportamento diverso, tanto positivo como negativo, não lhe podendo ser censurado, ética e juridicamente, o comportamento adoptado. É que.
11ª A eventual falta de revista em alguns dos espectadores à entrada do Estádio não lhe pode ser imputada a qualquer título, uma vez que o controlo dos espectadores no acesso ao recinto ficou a cargo dos elementos da PSP, cuja forma de actuação e maneira como organizaram a segurança dos recintos desportivos é de sua inteira e única responsabilidade, não podendo o organizador do espectáculo intrometer-se nessas formas de actuação, atento que tais forças policiais só podem receber ordens da hierarquia.
12ª O controlo dos espectadores, como medida preventiva de actos de violência, não tem necessariamente de ser levada a efeito por meio de revista, como sobressai do artigo 17º da Lei 38/98. A execução da revista dos espectadores só pode ser determinada pelas forças policiais e nunca pela ora recorrente, ficando a cargo daquelas o juízo de valor da sua necessidade, nos precisos termos do artigo 17º da Lei 38/98 e dos artigos 174º e 251º do CPPenal.
13ª Acresce que o controlo dos espectadores só é da responsabilidade da entidade organizadora se não tiver havido requisição das forças policiais.
14 Finalmente, não se provou existirem outros estádios desportivos que oferecessem melhores condições de controlo dos espectadores do que o Estádio Nacional para os quais a ora recorrente pudesse transferir a realização daquela final da Taça de Portugal de 1996.
15ª A douta sentença sob recurso ao qualificar como culposa a actuação da ora recorrente ofendeu, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 483º e 487º n°. 2 do Código Civil, o n°. 2 do artigo 2º do DL nº 238/92, de 29/10, o artigo 17º da Lei 38/98 e os artigos 174 e 251º do CPPenal.
16ª Por outro lado, a douta sentença sob recurso, ao dar como verificado o nexo causal entre o comportamento da ora recorrente e o evento mortal ocasionado por facto criminoso do 1°. réu Hugo Inácio, seguiu a inaceitável e caduca tese da equivalência das condições, também conhecida por conditio sine qua non.
17ª A nossa lei, contudo, acolhe, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, a teoria da causalidade adequada, segundo a qual o facto é causal do dano se for apto ou idóneo para a sua produção; se a ocorrência do dano era de esperar na esfera do curso normal dos acontecimentos.
Tal aptidão causal deixa de o ser, sob o prisma do direito, quando com ela concorre, para a produção desse dano, uma circunstância anómala ou extraordinária sem a qual não haveria o risco, mais do que comum, de o prejuízo se verificar. Circunstância anómala ou extraordinária que o agente (F.P.F.) ignorava ou não tinha de conhecer.
18ª No caso presente, a inexistência de um vídeo de vigilância no Estádio Nacional (aliás, lícita) ou a inexistência de torniquetes no acesso a esse mesmo recinto desportivo (igualmente lícita) não podem considerar-se aptas, idóneas e adequadas à falta de controlo dos espectadores e, muito menos, à verificação do resultado mortal da vítima, Sr. Rui Mendes.
19ª Acresce não se ter provado, sequer, que o 1°. réu, Hugo Inácio, não tenha sido controlado no acesso ao recinto desportivo pelas forças policiais.
20ª Por outro lado, só o acontecimento anormal, atípico, totalmente imprevisível como o foi o cometimento de um crime de homicídio com culpa grosseira, levado a efeito pelo 1°. réu Hugo Inácio, foi causa adequada do acontecimento letal verificado.
21ª Daí a falta de causalidade adequada, na fórmula da sua adequação, entre a conduta da F.P.F., ora recorrente, e o resultado e prejuízo verificados.
22ª A douta sentença sob recurso, decidindo em sentido oposto, ao ter como causa do evento letal ocorrido o comportamento e os factos atribuídos à ora recorrente, violou o artigo 483º do Código Civil.
23ª A não verificação de qualquer dos pressupostos da i1icitude do comportamento, da culpa do agente ou do nexo da causalidade, na sua formulação adequada, entre o facto e o resultado danoso, impõe, qualquer deles, a inexistência de responsabilidade civil extracontratual e, por consequência, a falta do dever de indemnizar.
Decidindo-se pela inexistência de responsabilidade civil extracontratual da recorrente, resultante da inexistência de ilicitude, culpa e nexo causal que lhe foram imputados, deverá revogar-se a sentença recorrida e absolver-se do pedido a Federação Portuguesa de Futebol.

Contra-alegaram os autores, pugnando pela improcedência do recurso interposto pela ré Federação Portuguesa de Futebol.
Apelaram os autores subordinadamente, sustentando as seguintes conclusões :
1ª O falecido R. M. tinha 36 anos à data da sua morte, aufe-rindo cerca de 1.000 contos por ano e sendo o suporte de sua família;
2ª Deixou viúva, que aufere o salário mínimo e dois fi1hos menores, estudantes, que não têm rendimentos;
3ª A morte do R. M. ocorreu em circunstâncias do maior dramatismo, quer para o próprio, que sobreviveu 25 minutos ao impacto quer para a família que revê o acontecimento através da TV em toda a sua brutalidade, o que periodicamente se renova;
4ª Auferindo o falecido 1.000 contos por ano, na previsão de mais trinta anos de vida útil, os 30.000 contos arbitrados apenas podem corresponder às perdas patrimoniais e não a danos de outra natureza;
5ª Na douta sentença não foram considerados os valores corres-pondentes a perda do direito à vida, sofrimento do falecido e danos não patrimoniais dos próprios A.A. ;
6ª Face ao circunstancialismo especialmente dramático do caso, deverá a perda do direito à vida ser valorada, segundo o critério actualista do STJ, em verba não inferior a 5.000.000$00;
7ª E o dano, transmissível para os A.A., sofrido pela vítima, que se apercebeu subitamente da morte, num cenário hostil e de pânico durante largos minutos, não deverá ser valorado em verba inferior a 5.000.000$00;
8ª Por seu turno, o sofrimento moral dos A.A., mu1her e filhos do falecido e com ele conviventes em estreita ligação afectiva e familiar, não poderá deixar de ser autonomamente quantificado em verba não inferior a 20.000.000$00, sendo 10.000.000$00 para a viúva e 5.000.000$00 para cada um dos filhos;
Finalizaram pedindo que seja concedido provimento ao recurso subordinado, fixando-se a indemnização global a arbitrar aos recorrentes na verba de 60.030.000$00 e inerentes juros.

Houve contra-alegação, na qual a ré sustentou a improcedência do recurso subordinado dos autores.
Colhidos os vistos,
cumpre decidir.

2. Fundamentos :
2.1. De facto :
Na 1ª instância julgaram-se provados os seguintes factos :
- Em 18.5.96 faleceu R. M., de 36 anos de idade, no estado de casado com a 1ª A. P. M.;
- Os 2ºs e 3s AA., L. M. e D. M., são filhos da 1ª A. e do falecido R. M., tendo nascido, respectivamente, a 14.6.81 e 11.12.87;
- Em 18.5.96, o R. M. deslocou-se ao Estádio Nacional, na Cruz Quebrada, em Oeiras, para assistir à final do jogo de futebol da Taça de Portugal, a disputar entre as equipas do Sporting Clube de Portugal e do Sport Lisboa e Benfica;
- Para tanto adquiriu o respectivo ingresso emitido pela 2ª ré e ocupou no estádio o lugar que lhe competia, situado no sector 17, do topo norte, entre os adeptos do Sporting Clube de Portugal;
- Por sua vez, o 1° réu deslocou-se, igualmente, ao Estádio Nacional para assistir ao referido jogo, ocupando um lugar nas primeiras filas do sector 17, topo sul, junto dos adeptos do Sport Lisboa e Benfica, mais precisamente junto da claque “No Name Boys”, ou seja, do lado oposto àquele em se encontrava o R. M.;
- Os referidos sectores encontram-se distanciados um do outro cerca de 200 metros;
- Antes do início do jogo, sensivelmente na ocasião em que alguns pára-quedistas largados de helicóptero faziam a sua aproximação ao relvado, o 1º réu disparou um “rocket”, tipo “very ligth”, que detinha em seu poder, na direcção da parte superior do sector 17, reservado aos adeptos sportinguistas e que já na altura se encontrava repleto de pessoas;
- Tal “rocket descreveu uma trajectória em arco, indo cair acima das bancadas, sobre umas árvores situadas a cerca de 230 metros de distância e junto das instalações sanitárias que se sobrepõem àquelas bancadas, provocando um incêndio nas referidas árvores, que foi bem visível a todos os ocupantes do estádio;
- Após o início do jogo, cerca de dez minutos decorridos sobre o mesmo, a equipa benfiquista marcou o seu primeiro golo;
- Nessa ocasião o 1º réu lançou do mesmo local onde se encontrava um segundo “rocket”, mas numa trajectória tensa e quase em linha recta, que sobrevoou o terreno de jogo e pistas, indo embater directamente no corpo do R. M., que se encontrava no local acima indicado;
- Face à violência do impacto e à explosão da carga propulsora do "rocket", que atingiu cerca de 600° centígrados dentro do corpo do R. M., sofreu este ferida perfuro-contundente na região para-external esquerda, situada 14 cm abaixo do plano horizontal que passa pelos ombros, tendo o orifício aberto um diâmetro de sete centímetros com eixo maior horizontal, com os bordos
queimados e com visualização de tecidos moles no interior;
- Tal impacto originou laceração da traqueia, lobos pulmonares direitos queimados com pólvora ardente, hemorragias sub-endocardias, laceração dos arcos posteriores das 6ª e 8ª costelas direitas e da espessura da musculatura inter-costal, congestão meningo-encefálica, queimaduras da musculatura peitoral direita e asfixia por intoxicação por monóxido de carbono, lesões que por si só ou associadas, foram causa da morte antes mencionada;
- Por decisão penal proferida em 13.2.98, transitada em julgado, o 1° réu foi condenado como autor de um crime de homicídio com negligência grosseira;
- A 2ª ré foi a entidade organizadora do jogo de futebol em causa, classificando o mesmo de "alto risco" e competindo-lhe solicitar e assegurar o policiamento do recinto desportivo respectivo;
- Antes do jogo, as claques do Sporting e do Benfica partiram do Terreiro do Paço e aí foi disparado, por um elemento da claque do Benfica não identificado, um "very light";
- As autoridades policiais que estavam no local tiveram conhecimento do "lançamento do 1° rocket";
- Com autorização da 2ª ré, uma carrinha da claque benfiquista teve facultado o ingresso no recinto;
- A qual - carrinha - da claque benfiquista não foi revistada pelos agentes da PSP que estavam no local e a acompanharam;
- O Estádio Nacional não tinha um sistema de controle vídeo de vigilância e a revista feita à entrada do Estádio pelos agentes da PSP consistia na mera apalpação, não abrangendo todos os espectadores, desde logo, pela falta de torniquetes nas entradas do mesmo recinto;
- Para a preparação do jogo da final da Taça de Portugal, mais concretamente no dia 8.5.96, a ré, Federação portuguesa de Futebol, reuniu com os responsáveis pela organização do evento, onde estiveram os representantes da Federação Portuguesa de Futebol, da Associação de Futebol de Lisboa, do Estádio do Jamor, da PSP de Oeiras, do Batalhão de Trânsito da GNR e dos Bombeiros de Linda-a-Pastora;
- Na véspera do jogo verificou-se nova reunião, em que participaram representantes da FPF, da Edilidade de Lisboa, da AFL, do Sporting Clube de Portugal, do Sport Lisboa e Benfica, representantes das respectivas claques, da PSP e da GNR, com a finalidade de pacificar os ânimos entre os vários intervenientes no jogo da final da Taça de Portugal;
- As reuniões em causa tiveram por finalidade a estatuição e adopção de todas as medidas de segurança que o evento implicava, nomeadamente, encontros com as claques dos clubes intervenientes, número de agentes da PSP e da GNR, separação de claques e forma de controle dos espectadores;
- As despesas de policiamento no ano de 1995 foram de 3.637.685$00 ;
- E no ano de 1996 foram de 7.379.350$00;
- As claques dos clubes intervenientes na final da Taça de Portugal de 1996 foram acompanhadas pelas forças policiais ficando em sectores separados e vigiados, cada uma, por quinze agentes policiais;
- Na entrada do Estádio Nacional estava prevista uma revista obrigatória, ao mesmo tempo que o espectador deveria mostrar o bilhete de ingresso no estádio e, numa segunda barreira, o bilhete seria inutilizado e podia haver uma segunda revista, a título aleatório;
- As claques dos clubes intervenientes na final da Taça de Portugal de 1996 foram devidamente acompanhadas pelas forças policiais ficando em sectores separados e rodeados por forte dispositivo de segurança;
- Para a final de 1997 da Taça de Portugal, a entidade responsável pelo Estádio Nacional, o Instituto dos Desportos, providenciou a instalação, a título experimental, dum sistema de vigilância - sistema esse de vídeo;
- Além disso e visando impedir a introdução dentro do recinto desportivo de objectos susceptíveis de possibilitar actos de violência foi assegurada a formação de duas barreiras policiais de controle das entradas, onde cada espectador foi individualmente revistado e controlado, através de detectores de metais;
- Além disso e com o objectivo de separar as claques das equipas participantes do público em geral, foram, então, erguidas duas vedações;
- Face às equipas participantes em 1997 - "Boavista F .C." e "Sport Lisboa e Benfica", quando comparadas com as equipas participantes em 1996 - "Benfica" e "Sporting" -, o risco de ocorrência de incidentes era menor em 1997 do que em 1996, por força do maior ambiente de hostilidade entre as claques de 1996;
- Em 1997, verificou-se um reforço de policiamento, tendo os gastos, quanto a este aspecto, sido de 10.266.598$00;
- No total foram mobilizados cerca de oitocentos efectivos da PSP e da GNR, estando dentro do recinto onde o jogo se realizou, entre seiscentos e setecentos agentes da PSP;
- Com a organização da final da Taça de Portugal de 1996, a 2ª ré teve uma receita de duzentos e doze milhões, oitocentos e sessenta e um mil, quatrocentos e vinte e nove escudos, depois de deduzido o IVA e despesas no valor de quarenta e cinco milhões, quatrocentos e vinte e sete mil e dezassete escudos;
- À data da sua morte o R. M. era um homem saudável, trabalhador e com grande alegria de viver;
- Anualmente auferia um rendimento, proveniente da sua actividade por conta própria na construção civil, de cerca de 1.000.000$00;
- Além de auxiliar terceiros, nos seus tempos livres, em obras que estes realizassem na região onde vivia;
- E afectando cerca de 2/3 dos seus proventos no suporte económico do agregado 1 familiar constituído pelos AA.;
- Posto que a A. P. M. aufere cerca 62.800$00 mensalmente, como auxiliar de acção educativa;
- Ao tempo da sua morte o R. M. vivia com os M., numa propriedade dos herdeiros de Alexandre de Almeida, que lhe era facultada contra a prestação de serviços de vigilância e manutenção da mesma;
- Além de utilizarem a habitação, o R. M. e os AA. podiam cultivar a quinta adjacente, assim se abastecendo de cereais e legumes, e tendo até uma pequena criação de porcos, galinhas, coelhos e um bezerro, para proveito e utilização própria;
- Com a morte do R. M., os AA. deixaram de poder prestar os serviços que vinham sendo prestados na propriedade;
- O que os obrigou a abandonar a mesma, deixando de contar com os meios de abastecimento e subsistência que ali detinham;
- Vendo-se forçados a ir habitar para a casa da mãe da A. P. M., sem possibilidade de cultivar terra ou manter quaisquer animais, situação que ainda hoje se mantém;
- Depois da morte de R. M., os AA. foram auxiliados materialmente pelo "Sporting Clube de Portugal" e tiveram o apoio de familiares, vizinhos e amigos;
- Com a morte de R. M., a A. P. M. viu-se forçada a enfrentar a vida sem o amparo e o carinho daquele com quem construíra o seu futuro;
- No ano lectivo de 1998/99, a A. L. M. frequentou o 11° ano, na Escola Secundária Oficial da Mealhada;
- No ano lectivo de 1998/99, D. M. frequentou o 5° ano da Escola C+S da Mealhada;
- Os 2° e 3° AA. não exercem qualquer actividade remunerada;
- Só no início do ano lectivo de 1998/99, a A. P. M. teve de despender cerca de vinte e sete mil escudos - 27.000$00 - com os livros escolares da A. L. M. e importância aproximada relativamente aos livros escolares do A. D. M.;
- Com os passes para deslocação de casa para a escola cada um dos 2° e 3° AA. despende mensalmente dois mil escudos - 2.000$00;
- 0 Rui Mendes participava intensamente da vida dos 2° e 3° AA., preocupando-se com o seu desenvolvimento emocional e educacional;
- Em consequência da morte do pai, os 2° e 3° AA. tornaram-se emocionalmente perturbados, tendo mesmo a A. L. M. de receber apoio psiquiátrico;
- Os AA. tiveram conhecimento da morte do R. M. através duma vizinha, que fora informada pelo seu marido, que se encontrava no Estádio Nacional com a vítima, a assistir à final da Taça de Portugal, telefonicamente;
- Foi para os AA. particularmente dolorosa tal notícia;
- O R. M. faleceu às 16 horas e 35 minutos, do dia 18.5.96;
- O falecido R. M. teve um sofrimento físico e moral elevado, em ambiente desconhecido, rodeado de centenas de pessoas em pânico e por um motivo que lhe era totalmente estranho;
- A 1ª A. despendeu 30.000$00 com as despesas de luto e funeral do R. M., tendo as restantes despesas sido suportadas pelo , "Sporting Clube de Portugal".

2.2. De direito :
2.2.1. Traçando as conclusões da alegação o objecto do recurso, delas emergem como questões a apreciar no recurso independente interposto pela ré Federação Portuguesa de Futebol saber se, no caso, ocorrem a ilicitude, a culpa e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, três dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.

A violência e os excessos dos espectadores por ocasião de manifestações desportivas, em particular nos jogos de futebol constitui uma preocupação ao nível europeu.
Reflexo de tensões sociais exteriores ao fenómeno desportivo, é neste, principalmente nos desportos colectivos como é o futebol, que a violência encontra o palco privilegiado para se exprimir, sendo, grande parte das vezes, os próprios espectadores que acorrem ao espectáculo desportivo os sujeitos activos e passivos dessa violência.
A intensidade e frequência de actos violentos no futebol tem motivado estudos sociológicos e tem sido o motor de iniciativas, como é o caso da recomendação nº R (84) 8 Sobre a Redução da Violência dos Espectadores nas Manifestações Desportivas e particularmente nos Encontros de Futebol, adoptada pelo Comité de Ministros em 19 de Março de 1984, e da Convenção Europeia sobre a Violência e os Excessos dos Espectadores por Ocasião das Manifestações Desportivas e nomeadamente de Jogos de Futebol, de 19 de Agosto de 1985, esta aprovada, para ratificação, no nosso país pela Resolução da Assembleia da República nº 11/87, publicada no DR I Série de 10 de Março de 1987.
A referida Convenção, que constituiu uma resposta implícita ao conjunto de causas que provocaram o drama de Heysel, apresentou como preocupação central a necessidade de serem adoptadas medidas legislativas de forma a que as organizações desportivas, os clubes e as autoridades públicas tomem medidas concretas, visando prevenir e dominar a violência e os distúrbios dos espectadores por ocasião de manifestações desportivas.
De entre as várias medidas preconizadas com esse objectivo, destacam-se : a separação eficaz dos adeptos rivais; a expulsão dos estádios e dos jogos dos potenciais desordeiros e das pessoas sob a influência do álcool ou de drogas; a proibição de introduzir bebidas alcoólicas nos estádios; controle de modo a impedir que os espectadores introduzam nos recintos desportivos objectos susceptíveis de possibilitar actos de violência, ou fogo de artifício ou objectos similares (artigo 3º nº 4 als. b), d), f) e g) ).
Desde 1980 que o ordenamento jurídico português reconhece o fenómeno da violência associada ao desporto, procurando desenvolver medidas preventivas e sancionatórias com o objectivo de por cobro a essa realidade.
Assim, para além de ter sido aprovada a aludida Convenção e de ter obtido consagração constitucional, no segmento final do nº 2 do artigo 79º, que incumbe ao Estado “prevenir a violência no desporto”, pela revisão constitucional operada em 1989, sinal da preocupação que rodeia esta problemática, foram publicados o DL nº 339/80, de 30 de Agosto, alterado pela Lei nº 16/81, de 31 de Julho, o DL nº 61/85, de 12 de Março, o DL nº 270/89, de 18 de Agosto, a Lei de Bases do Sistema Desportivo - Lei nº 1/90, de 13 de Janeiro, a Lei nº 8/97 e, finalmente, a Lei nº 38/98, de 4 de Agosto.
No domínio da lei ordinária merece destaque o DL nº 270/89, de 18 de Agosto, em vigor à data dos factos a que os autos se reportam e que, nas palavras de José Manuel Meirim, “constitui um patamar coeso, buscando coerência neste domínio de prevenção e punição de manifestações antidesportivas.” (in A prevenção e punição das manifestações de violência associada ao desporto no ordenamento jurídico português, estudo publicado na Revista nº 83 do SMMP, pág. 21).
Conforme se deixou expresso no preâmbulo deste diploma, procurou o legislador tornar efectivas as medidas preconizadas pela Convenção Europeia de 1985, de modo a que as manifestações desportivas “decorram em ambiente de dignidade e num salutar espírito de competição”.
Para tanto e de acordo com o mesmo preâmbulo, agravaram-se as sanções e instituíram-se medidas destinadas a prevenir a ocorrência de actos de violência. Considerando ainda que este problema não pode ser eficazmente resolvido apenas pela acção do Estado, atribuíram-se “... amplas competências e responsabilidades às organizações desportivas, que têm todo o interesse em assegurar o bom andamento das manifestações que organizam e cujo papel é essencial na salvaguarda e preservação do ideal desportivo.”
Assim, nos termos do artigo 12º nº 1 daquele DL nº 270/89, quando se verifiquem indícios de provável ocorrência de distúrbios em determinados jogos, deverá a federação respectiva classificá-los como «jogos de risco» ou «de alto risco», impondo aos clubes desportivos intervenientes medidas especiais de segurança adequadas à situação concreta. De entre essas medidas, cuja enumeração não é taxativa, como o evidencia o advérbio “designadamente” utilizado naquele preceito legal, importa salientar o reforço do policiamento, a separação dos adeptos rivais, reservando-lhes zonas distintas, e a adopção obrigatória de controlo no acesso, de modo a impedir a introdução de objectos proibidos ou susceptíveis de possibilitarem actos de violência (alíneas a), b) e e) ).
Estabelece ainda o nº 2 do artigo 13º do mesmo diploma legal a expulsão pelos elementos das forças de segurança dos indivíduos que, dentro do recinto desportivo, praticarem ou incitarem à prática de distúrbios.
É à luz deste DL nº 270/89, de 18 de Agosto, em vigor, como se disse, na data em que ocorreram os factos, que tem de analisar-se o caso sub judice, paradigmático quanto aos efeitos devastadores da violência associada ao desporto, com particular incidência no futebol.
Sustentou a ré Federação Portuguesa de Futebol que nenhuma responsabilidade pode ser- lhe assacada, uma vez que cumpriu todos os ditames da lei.
Em matéria de responsabilidade por factos ilícitos rege o artigo 483º do Código Civil, preceito que dispõe : “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
Não obstante algumas divergências doutrinárias, é maioritariamente aceite que a responsabilidade civil extracontratual ou extraobrigacional tem como pressupostos : o facto; a ilicitude; a imputação do facto ao lesante; o dano; o nexo de causalidade entre o facto e o dano (A. Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 3ª ed., pág. 418).
Destes elementos constitutivos da responsabilidade, de verificação cumulativa, afastou a ré a ilicitude, a culpa e o nexo de causalidade para concluir pela inexistência de responsabilidade por facto ilícito e, consequentemente, da obrigação de indemnizar.
É o que importa averiguar.
A ré Federação Portuguesa de Futebol foi a entidade organizadora do jogo de futebol da Taça de Portugal de 1996, a disputar no Estádio Nacional entre as equipas do Sporting Clube de Portugal e do Sport Lisboa e Benfica, jogo que aquela classificou de “alto risco”, em conformidade com o estatuído no nº 1 do artigo 12º do DL nº 270/89, sendo inquestionável o acerto de tal classificação quer em face da importância que revestia, quer, principalmente, pelas equipas que estariam em campo a diputá-lo, tradicionalmente rivais, com claques hostis e adeptos particularmente empenhados.
A mesma ré solicitou e assegurou o policiamento daquele recinto desportivo, tendo realizado previamente reuniões preparatórias com representantes dos clubes envolvidos, das respectivas claques, da Polícia de Segurança Pública, do Batalhão de Trânsito da Guarda Nacional Republicana, dos Bombeiros, da Associação de Futebol de Lisboa, do Estádio do Jamor e da Câmara Municipal de Lisboa com vista à adopção das medidas de segurança que o evento implicava.
Teve também a ré o cuidado de separar as claques e de assegurar o seu acompanhamento policial.
Porém, ao contrário do que a mesma ré sustentou, não se esgotaram nessas medidas, aliás correctas, todos os deveres de prevenção e de repressão a que estava vinculada, designadamente pelo estabelecido no nº 1 do artigo 12º do citado DL nº 270/89, e que o caso concreto impunha.
Com efeito, o legislador optou neste diploma por uma enunciação exemplificativa das medidas de segurança a adoptar, deixando à federação respectiva a imposição “das medidas especiais de segurança adequadas à situação concreta”. Confiou, assim, ao critério da federação respectiva, dotada de melhor informação e percepção das dificuldades e riscos específicos de cada caso, a escolha dos meios adequados para prevenir e reprimir actos de violência.
Aliás, as federações, nomeadamente a ré, não podiam ignorar o clima de insegurança que se vivia e os perigos existentes, não só pelas frequentes manifestações do fenómeno do “hooliganismo” e pelo largamente noticiado drama ocorrido em Heysel, como também pelas preocupações assumidas pelas autoridades europeias sobre a necessidade de combater os excessos dos espectadores nos eventos desportivos, sobretudo no futebol.
Acontece que, no caso vertente, a vítima R. M. depois de ter adquirido o ingresso emitido pela ré Federação Portuguesa de Futebol ocupou no Estádio o lugar que lhe competia situado no sector 17, topo norte, entre os adeptos do Sporting Clube de Portugal. Por sua vez, o réu Hugo Inácio ocupou no mesmo Estádio um lugar nas primeiras filas do sector 17, topo sul, junto dos adeptos do Sport Lisboa e Benfica, mais precisamente junto da claque “No Name Boys”, ou seja, do lado oposto àquele em que se encontrava o R. M., distanciando aqueles sectores cerca de 200 metros um do outro.
Antes do início do jogo , sensivelmente na ocasião em que alguns pára-quedistas largados de helicóptero faziam a sua aproximação ao relvado o réu H. I. disparou um “rocket”, tipo “very light”, que tinha em seu poder, na direcção da parte superior do sector 17 reservado aos adeptos sportinguistas e que já na altura se encontrava repleto de pessoas, “rocket” que descreveu uma trajectória em arco e que foi cair sobre uma árvores situadas a cerca de 230 metros de distância e junto das instalações sanitárias que se sobrepõem àquelas bancadas, provocando um incêndio nas referidas árvores que foi bem visível a todos os ocupantes do estádio.
Após o início do jogo e cerca de dez minutos decorridos sobre o mesmo a equipa benfiquista marcou o seu primeiro golo. Nessa ocasião o réu H. I. lançou um segundo “rocket” do mesmo local onde se encontrava, mas numa trajectória tensa e quase em linha recta, que sobrevoou o terreno de jogo e pistas, indo embater directamente no corpo do R. M., que se encontrava no local acima indicado, provocando-lhe ferimentos que foram causa, directa e necessária, da sua morte.
Esta factualidade evidencia que a ré não providenciou pela neutralização do espectador - o réu H. I. - que antes do início do jogo, mas já durante os festejos que imediatamente o antecederam, efectuou o disparo do primeiro “rocket”, tipo “very light”, na direcção da parte superior do sector 17 reservado aos adeptos sportinguistas, que já na altura se encontrava repleto de pessoas, apesar de ter caído junto das instalações sanitárias que se sobrepõem àquelas bancadas, sobre uma árvores situadas a cerca de 230 metros de distância e ter provocado um incêndio nas referidas árvores que foi bem visível a todos os ocupantes do estádio.
A situação concreta exigia que a ré tivesse assegurado os mecanismos de segurança passiva (preventivos) e activa (repressivos), por forma a dominar de imediato os excessos de qualquer espectador, principalmente integrado na claque de uma das equipas, como acontecia com o réu Hugo Inácio, relativamente ao qual se impunha, por isso, uma vigilância mais apertada.
A passividade da ré Federação Portuguesa de Futebol, traduzida na ausência de medidas perante o disparo do “very light” pelo réu H. I., não obstante as consequências visíveis do mesmo e os sinais objectivamente reveladores de perigo (a distância e o local onde caiu e o facto de o sector reservado aos adeptos sportinguistas estar já repleto de pessoas), é reprovável ou censurável. No contexto de um jogo que a mesma qualificou de “alto risco” impunha-se que tomasse, desde logo, medidas para se averiguar se o autor do disparo tinha em seu poder mais material igual ou semelhante e impedir a sua eventual utilização, com recurso à expulsão desse espectador sendo caso disso.
Esta actuação impunha-se em face do disposto nos artigos 12º nº 1 al. e) e 13º nº 2 do DL nº 270/89. Na verdade, não pode entender-se que a sua acção e controle estavam confinados ao momento de acesso dos espectadores ao estádio. A ré tinha o dever de garantir a segurança dos espectadores durante o espectáculo e tomar para isso “as medidas especiais adequadas”, adoptando, se necessário, outras além daquelas que o legislador mencionou, como veio a suceder no jogo realizado no ano imediato (1997). Inerente à aquisição do ingresso e à apreciação do espectáculo está assegurada pelo organizador do espectáculo a segurança contra excessos e distúrbios de outros espectadores.
E, no caso vertente, o disparo do segundo “very light” pelo mesmo H. I. dez minutos depois do início do jogo para comemorar o golo da sua equipa, que foi atingir mortalmente o R. M., teria sido evitado se aquele tivesse sido neutralizado logo que efectuou o primeiro disparo, ou seja, se a ré tivesse tido cuidado suficiente na previsão dos meios e tivesse montado um sistema organizado de reacção a actuações desse tipo.
A circunstância de a ré, enquanto organizadora, ter requisitado o policiamento do evento desportivo em causa, de acordo com o disposto no DL nº 238/92, de 29 de Outubro, não a libertava do dever de previsão e manutenção dos meios adequados, nem a impedia de actuar.
Neste quadro e formulando um juízo de “prognose póstuma”, tem de concluir-se que ocorre ilicitude e culpa da ré. Verifica-se também o nexo causal entre o evento e o dano à luz das regras da experiência e do circunstancialismo concreto conhecido ou cognoscível pela ré.
Com efeito, o Código Civil consagrou a doutrina da causalidade adequada (artigo 563º), que Galvão Telles formulou nos seguintes termos : “Determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar” (Manual de Direito das Obrigações, nº 229, citado por P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., pág. 578).
E o “ nexo de causalidade exigido entre o dano e o facto não exclui a ideia de causalidade indirecta, que se dá quando o facto não produz ele mesmo o dano, mas desencadeia ou proporciona um outro que leva à verificação deste” (P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., pág. 579).
O acto fundador da responsabilidade civil da ré é, in casu, negativo. A responsabilidade extraobrigacional da mesma assenta na omissão de agir quando tinha o dever, imposto por lei (DL nº 270/89), de praticar o acto omitido, podendo este normalmente ter evitado a verificação do dano (artigo 486º do Código Civil).

Improcedem, pois, as conclusões da alegação da ré, na totalidade.

2.2.2. Assentes os pressupostos da obrigação de indemnizar radicada em responsabilidade civil por facto ilícito, importa conhecer do objecto do recurso subordinado, o qual se centra na quantificação dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com a morte de R. M., marido e pai dos autores.

A sentença recorrida condenou os réus a pagarem, solidariamente, aos autores a indemnização de 30.030.000$00, sendo 30.000$00 por danos patrimoniais e 30.000.000$00 por danos não patrimoniais, valor este a repartir em partes iguais por cada um dos autores -10.000.000$00 para cada autor -.
Invocam os autores que a quantia arbitrada naquela sentença corresponde apenas ao valor dos danos patrimoniais, não cobrindo o montante dos danos não patrimoniais, que ascende, na globalidade, a 30.000.000$00, sendo 5.000.000$00 pela perda do direito à vida, 5.000.000$00 pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima e 20.000.000$00 pelos danos não patrimoniais sofridos pelos autores, dos quais 10.000.000$00 para a viúva e 5.000.000$00 para cada um dos filhos.
Embora no segmento decisório da sentença recorrida se tenha referido que o valor de 30.000.000$00 era arbitrado a título de danos não patrimoniais, a verdade é que resulta do contexto da sentença que nela se optou por computar todos os danos num montante global, sem discriminação, neles absorvendo os danos patrimoniais e não patrimoniais.
Com efeito, na fixação daquele montante indemnizatório total foram valorizados a perda do direito à vida do falecido, o sofrimento deste, o sofrimento dos autores, bem como o facto de este trabalhar e ser “a única fonte de rendimentos dos AA.”, como expressamente se consignou na sentença recorrida.
Assim, na apreciação do recurso subordinado apenas haverá que ter em conta que os limites da condenação contidos no artigo 661º do Código de Processo Civil se entendem referidos ao pedido global formulado e não ao quantitativo das parcelas neste indicado para a demonstração daquele valor, como é entendimento pacífico na jurisprudência Cfr., por todos, o Ac. do STJ de 16.04.1996, in www.dgsi.pt/jstj..
Danos não patrimoniais.
Como é sabido, os danos não patrimoniais resultam da lesão de bens estranhos ao património do lesado (tais como a integridade física, a saúde, o bem-estar físico e psíquico, a liberdade, a tranquilidade, etc.), de muito difícil reparação e quase impossível quantificação, razão pela qual a indemnização devida por aqueles, não podendo destinar-se a fazer desaparecer o prejuízo, visa, todavia, proporcionar ao lesado meios económicos que de algum modo o compensem da lesão sofrida.
Tratando-se de danos cujo valor exacto não pode ser apurado, quando indemnizáveis, o que acontece sempre que pela sua gravidade mereçam tutela do direito (artigo 496º do Código Civil), o respectivo montante deverá ser fixado pelo tribunal segundo critérios de equidade, fazendo apelo a “...todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida” (A. Varela, Código Civil Anotado, 4ª ed., vol. I, pág. 501), tendo em atenção a extensão e gravidade dos prejuízos, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso (artigos 496º nº 3, 1ª parte, e 494º do Código Civil).
Assume particular dificuldade quantificar o dano morte (perda do direito à vida), por estar em causa a supressão de um bem único e irrepetível, que é a vida humana, o que explica as disparidades na determinação do respectivo quantum indemnizatório. São, aliás, visíveis os esforços que a jurisprudência vem fazendo no sentido de minorar tais disparidades, havendo até na doutrina quem defenda que “...a forma mais justa, e obviamente a única dotada de certeza, para avaliar o dano moral da morte seria padronizá-lo.” Cfr. Álvaro Dias, Dano Corporal - quadro epistemológico e aspectos ressarcitórios, Coleccção Teses, Almedina, págs.359-360.
No caso vertente, os autores pediram a indemnização de 5.000.000$00 pela ofensa do direito à vida do R. M., montante que se tem por adequado, pelo que essa quantia será atribuída.
Quantificam também os autores em 5.000.000$00 os danos não patrimoniais sofridos pela
própria vítima no período que mediou entre o momento em que o seu corpo foi directamente atingido pelo “rocket” e aquele em que ocorreu a sua morte.
Resultou provado que, face à violência do impacto e à explosão da carga propulsora do "rocket", que atingiu cerca de 600° centígrados dentro do corpo do R. M., sofreu este ferida perfuro-contundente na região para-external esquerda, situada 14 cm abaixo do plano horizontal que passa pelos ombros, tendo o orifício aberto um diâmetro de sete centímetros com eixo maior horizontal, com os bordos queimados e com visualização de tecidos moles no interior. Mais se provou que tal impacto originou laceração da traqueia, lobos pulmonares direitos queimados com pólvora ardente, hemorragias sub-endocardias, laceração dos arcos posteriores das 6ª e 8ª costelas direitas e da espessura da musculatura inter-costal, congestão meningo-encefálica, queimaduras da musculatura peitoral direita e asfixia por intoxicação por monóxido de carbono, lesões que por si só ou associadas, foram causa da morte antes mencionada.
A natureza e gravidade das lesões que os factos evidenciam, que lhe causaram sofrimento físico e moral elevado, em ambiente desconhecido, rodeado de centenas de pessoas em pânico e por um motivo que lhe era totalmente estranho, justificam plenamente, sem necessidade de outros considerandos, a indemnização pedida.
De acordo com o disposto no artigo 496º nº 2 do Código Civil estas indemnizações, que englobando a perda do direito à vida e os danos não patrimoniais sofridos pela vítima perfazem 10.000.000$00, radicam na própria vítima, transmitindo-se com o seu falecimento, no caso, aos autores – sua viúva e filhos.
Não é também de fácil solução a quantificação dos danos não patrimoniais sofridos pelos autores.
Provou-se que os autores tiveram conhecimento da morte do R. M. através de uma vizinha, que fora informada telefonicamente pelo seu marido que se encontrava no Estádio Nacional com a vítima, e que essa notícia foi particularmente dolorosa para os autores.
Mais se provou que o R. M. participava intensamente na vida escolar dos filhos, então com 8 e 14 anos de idade, preocupando-se com o seu desenvolvimento emocional e educacional, os quais, após a morte do pai ficaram emocionalmente perturbados, tendo mesmo a autora L. M. de receber apoio psiquiátrico.
Acresce que a morte do R. M. em circunstâncias tão dramáticas e inesperadas, que transformaram em tragédia de impacto nacional com cobertura jornalística e televisiva o que era suposto ser um momento de lazer proporcionado pela oportunidade de presenciar um evento desportivo de relevo, conferem ao caso contornos algo particulares, que não devem ser desconsiderados, na medida em que o impacto daquela morte assumiu uma dimensão que, seguramente, se reflectiu e agravou a dor, o sofrimento e sentimento de perda dos autores, algo que só muito vagamente pode ser minorado com uma indemnização.
Tudo ponderando, considera-se adequado fixar em 7.000.000$00 o valor dos danos não patrimoniais da autora P. M. e em 5.000.000$00 os danos não patrimoniais de cada um dos filhos, os autores L. M. e D. M..

Danos patrimoniais futuros.
Os danos patrimoniais comportam quer o dano emergente, ou seja, o prejuízo imediato sofrido pelo lesado, quer o lucro cessante, isto é, as vantagens concretas que deixaram de entrar no património do lesado em consequência da lesão, englobando estes a perda efectiva de proventos futuros de natureza patrimonial.
No caso vertente, para a análise do pedido de indemnização por danos patrimoniais futuros (perda de rendimentos) importa considerar, desde logo, que o R. M. tinha à data em que faleceu 36 anos de idade, era pessoa saudável e trabalhadora, auferindo anualmente cerca de 1.000.000$00 na actividade, por conta própria, da construção civil, afectando 2/3 daquela quantia no suporte económico do agregado familiar constituído pelos autores.
É razoável supor que teria à sua frente mais 30 anos como tempo normal de vida activa, ou seja, até aos 66 anos de idade, pelo que teria ainda ganho, pelo menos, 30.000.000$00 (30 anos x 1.000.000$00 anuais), dos quais 20.000.000$00 (2/3) reverteriam para as despesas do seu agregado familiar, isto é, dos autores.
Esse o montante que deverá ser repartido entre os autores, sendo 10.000.000$00 para a autora P. M. e 5.000.000$00 para cada um autores D. M. e L. M.. Esta repartição desigual justifica-se na medida em que os filhos, naturalmente, se autonomizariam da economia familiar, enquanto que autora P. M. a ela permaneceria ligada.
Entende-se que não haverá que aplicar ao montante referido qualquer redução com vista a evitar um injustificado enriquecimento dos lesados por receberem de uma só vez aquilo que iriam receber em fracções anuais ao longo de trinta anos.
Com efeito, há que recorrer à equidade, que na avaliação dos danos patrimoniais funciona residualmente, visto não ser possível averiguar o valor exacto dos danos (artigo 566º nº 3 do Código Civil).
E assim, ponderando que os proventos do R. M. sofreriam aumentos ao longo dos referidos trinta anos de vida útil, atenta a actividade profissional a que se dedicava na área da construção civil, e que o mesmo vivia com os autores numa propriedade que lhe era facultada contra a prestação de serviços de vigilância e manutenção, onde, além de utilizarem a habitação, podiam cultivar a quinta adjacente, assim se abastecendo de cereais e legumes e tendo até uma pequena criação de porcos, coelhos e um bezerro para proveito e utilização própria, o que se traduzia numa vantagem patrimonial que perderam em consequência da morte do R. M., incluindo a habitação, forçando a autora P. M. e os filhos a ir habitar para casa da sua mãe, afigura-se que, no caso concreto, a indemnização por danos patrimoniais futuros fixada em 20.000.000$00 não consubstancia qualquer enriquecimento ilegítimo por parte dos autores.
A este montante, acresce a quantia de 30.000$00 arbitrada na 1ª instância a título de danos patrimoniais, relativos às despesas de luto e funeral, que as partes não questionam, a repartir igualmente pelos autores.

Procedem, assim, parcialmente as conclusões da alegação do recurso subordinado.

Sobre o valor da indemnização incidem juros de mora desde a citação até pagamento à taxa legal, como decidido na sentença recorrida que neste segmento decisório não sofreu impugnação.

3. Decisão :
Face ao exposto, acordam os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso independente interposto pela ré Federação Portuguesa de Futebol, e parcialmente procedente o recurso subordinado interposto pelos autores P. M., L. M. e D. M., e, em consequência, alteram a sentença recorrida, condenando, solidariamente, os réus H. I. e Federação Portuguesa de Futebol a pagarem aos autores a indemnização global de € 234.584,65 (47.030.000$00), sendo € 101.472,12 (7.000.000$00 + 10.000.000$00 + 3.333.333$00 + 10.000$00) à autora P. M. e € 66.556,27 (5.000.000$00 + 5.000.000$00 + 3.333.333$00 + 10.000$00) a cada um dos autores L. M. e D. M., quantias a que acrescem juros de mora desde a data da citação até pagamento à taxa legal, como decidido na sentença recorrida. No mais absolvem-se os réus do pedido.
Custas nas duas instâncias pelos autores e pelos réus, na proporção do respectivo decaimento, tendo em atenção o apoio judiciário concedido.

Lisboa, 12-2-04
(Fernanda Isabel Pereira)
(Maria Manuela Gomes)
(Olindo Geraldes)