Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2164/12.1TVLSB.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
OMISSÃO DE DILIGÊNCIAS ESSENCIAIS
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Se, em ação contestada, de valor superior a metade da alçada da Relação, o juiz entende, finda a fase dos articulados e do pré-saneador, que o processo deverá findar imediatamente com prolação de decisão de mérito, deverá convocar audiência prévia, a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito.

II. A não realização de audiência prévia, neste caso, quando muito só será possível no âmbito da gestão processual, a título de adequação formal (artigos 547.º e 6.º n.º 1 do CPC), se porventura o juiz entender que no processo em causa a matéria alvo da decisão foi objeto de suficiente debate nos articulados, tornando dispensável a realização da dita diligência, com ganhos relevantes ao nível da celeridade, sem prejuízo da justa composição do litígio; tal opção carecerá, porém, de prévia auscultação das partes (cfr. art.º 6.º n.º 1 e 3.º n.º 3 do CPC).

III. A prolação de decisão final de mérito em saneador-sentença, com dispensa de audiência prévia, assente tão só na asserção de que “o estado dos autos permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa”, desacompanhada de prévia auscultação das partes, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso, implicando a revogação da decisão que dispensou a convocação da audiência prévia e a consequente anulação do saneador-sentença proferido.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

Em 08.11.2012 A, instaurou nas Varas Cíveis de Lisboa ação declarativa de condenação na forma ordinária contra B.

A A. alegou que no âmbito da sua atividade em 01.6.2010 celebrou com a R. um contrato de prestação de serviços de segurança e vigilância, referente ao estabelecimento comercial “A”, sito em Alfragide, de que a R. é proprietária. Na sequência dos serviços prestados, a A. apresentou à R. três faturas que a A. discriminou, vencidas em julho de 2010, setembro de 2011 e outubro de 2011, no valor total de € 35 982,84, que a R. não pagou.

A A. terminou pedindo que a R. fosse condenada ao pagamento da quantia de € 35 982,84, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor para as dívidas comerciais, até integral pagamento, liquidando em € 4 596,60 os juros vencidos.

A Ré contestou, por exceção e por impugnação. Por exceção, a R. alegou que em 28.10.2011 a ora A. havia instaurado uma ação declarativa de condenação contra a ora R., com causa de pedir e pedido idênticos aos destes autos, à qual as partes puseram termo por meio de transação que foi judicialmente homologada por sentença proferida em 17.5.2012. Nos termos dessa transação a Ré ficou obrigada a pagar à A. a quantia de € 19 817,24, quantia que a R. já pagou à A.. Verifica-se, assim, uma situação de caso julgado, que importa a absolvição da R. da instância. Ainda por exceção, a R. alegou já ter pago a quantia a que se obrigara na sequência da transação celebrada. Por impugnação, a R. negou ter alguma vez devido à A. os valores por esta reclamados, por não traduzirem os serviços prestados pela A. à R.. A R. alegou ainda que a A. litigava com má-fé.

A R. terminou pedindo que a exceção dilatória de caso julgado fosse julgada procedente e a R. absolvida da instância, ou que a exceção perentória extintiva do pagamento sequente à transação fosse julgada procedente e a R. absolvida do pedido, ou que a ação fosse julgada improcedente, por não provada, devendo a A. ser condenada em litigância de má-fé [pensa-se que em indemnização], bem como no pagamento da correspondente multa, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 456.º e 457.º do CPC.

A A. replicou, alegando que entre a presente ação e a referida pela R. não existe uma relação de caso julgado, pois embora ambas as ações se refiram ao mesmo contrato, as causas de pedir são diferentes: na primeira ação discute-se se a R. pagou uma dívida, cuja causa de pedir é uma indemnização e na presente ação discute-se outra dívida, cuja causa de pedir é a falta de pagamento de serviços efetivamente prestados. A A. alegou ainda que a R. litiga de má fé.

A A. terminou concluindo como na petição inicial e pedindo que a R. e a sua mandatária fossem solidariamente condenadas como litigantes de má-fé, em multa e indemnização à A. em quantia não inferior a € 5 000,00.

A R. respondeu ao pedido de condenação em litigância de má-fé.

Ao abrigo do disposto no art.º 5.º n.º 4 da Lei n.º 41/2013, de 26.6, as partes foram notificadas para que no prazo de 15 dias apresentassem os requerimentos probatórios ou alterassem os que tivessem apresentado – o que fizeram.

Em 08.4.2014 foi proferido saneador-sentença, em que, após se ponderar que o estado dos autos permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa, com dispensa da audiência prévia, foram julgados improcedentes os pedidos formulados pela A. e consequentemente absolveu-se a R. da totalidade dos mesmos, mais se absolvendo ambas as partes dos pedidos de condenação como litigante de má fé.

A A. apelou desta decisão, tendo apresentado motivação em que formulou as seguintes conclusões:

a) No caso dos presentes autos, foi proferida sentença sem que as partes fossem notificadas para a finalidade prevista no art. 508º A. nº 1 al. b) do C.P.Civil, pelo que, foram confrontadas com um despacho saneador-sentença, relativamente ao qual nem tiveram oportunidade processual de se pronunciarem sobre a selecção da matéria de facto que serviu de fundamento à sentença ora impugnada.

b) A formulação legal determina que, não constituindo a decisão convocatória das partes para a audiência preliminar, caso julgado que vincule o juiz a tal apreciação, o juiz só estará habilitado processualmente a conhecer do mérito da causa, se convocar as partes, obrigatoriamente, para a audiência preliminar em despacho que expressamente contenha o objectivo e/ou finalidade previsto no art. 508º nº 1 al. b) do C.P.C., sob pena de o não fazendo, violar o disposto no art. 3º nº 3 do mesmo código.

c) Não tendo as partes sido convocadas com essa específica finalidade, existe uma nulidade processual, tendo a decisão recorrida violado o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C. e de modo geral, o princípio do contraditório, constituindo uma decisão surpresa que é atentatória do princípio do processo justo e equitativo, garantido no n.º 4 do citado art.º 20.º, da Constituição da República Portuguesa.

d) A sentença viola o dever de motivação da matéria de facto, nos termos do art. 653º nº 2 do C.P.Civil, já que não basta, para se produzir os seus efeitos, a nomeação genérica de que o tribunal formou a sua convicção em virtude de confissão, acordo das partes ou documento bastante, o que, aliás, nem sequer ocorreu, no caso concreto, pois não existe, na sentença recorrida, qualquer referência às provas em que o Tribunal se baseou para proferir sentença.

e) Tal omissão impossibilita que o apelante, em sede própria, sindique qualquer questão sobre a produção de prova e/ou legalidade da mesma.

f) A sentença recorrida é nula, nos termos do art. 668º nº 1 al. b) do C.P.C., na medida em que deveria ter excluído o caminho da regra do nº 2 do art. 236º do Código Civil e só após a conclusão de que o declaratário não conhecia a vontade real do declarante, é que poderia enveredar pela regra contida no nº 1 do art. 236º.

g) Nada disto foi feito, não se vislumbrando quais os factos em que o julgador se apoiou para, de imediato, formular um juízo de valor normativo de que o declaratário não conhecia a vontade real do declarante.

h) Tal permite concluir que a sentença não especifica fundamentos de facto que suportem a imediata opção pela regra contida no nº 1 do art. 236º do Código Civil.

i) Por outro lado, o circunstancialismo de se tratar de uma decisão fundada numa transacção celebrada noutro processo, permite concluir que a sentença recorrida não especifica fundamentos de facto que suportem a imediata opção pela regra contida no nº 1 do art. 236º do C.C..

j) Aliás, refira-se, tal questão – a aplicação do art.º 236º do Código Civil, nem sequer foi aflorada pela Sentença recorrida, pelo que ocorre nulidade por falta (não só da fundamentação de facto), também, da motivação de direito, acarretando a nulidade da sentença, nos termos do art. 668º nº 1 al. b) do C.P.C..

k) Na acção que correu termos sob o nº ..., no 5º Juízo Cível de Lisboa, a causa de pedir era uma indemnização; Na presente acção, a causa de pedir é o incumprimento, puro e simples, pela falta de pagamento dos serviços (efectivamente) prestados.

l) Ora, sendo os pedidos diferentes, fundamentados em causas de pedir diversas, não pode ocorrer “caso julgado”; e mesmo atendendo a que a transacção passará, após homologação, a incorporar a respectiva sentença, que condena e absolve nos precisos termos ali previstos, o certo é que o alcance do caso julgado formado pela anterior decisão não abrange a situação sobre a qual ela própria não apreciou: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-03-2011.

m) Evidentemente, à transacção celebrada na acção judicial que correu termos sob o nº ..., no 5º Juízo Cível de Lisboa, não visou constituir uma quitação genérica, nem visou de forma alguma acertar o montante global de uma dívida que nem era ali peticionada, nem visou, de forma alguma, isentar a Ré do pagamento de serviços, em dívida, que lhe foram prestados, bastando, para tanto, atender ao teor da respectiva cláusula 4ª: da qual resulta que a transacção visa «extinguindo-se os direitos que a autora pretendia fazer valer através da presente acção.».

A apelante terminou pedindo que o recurso fosse julgado procedente e por via disso, a sentença recorrida fosse revogada.

A apelada contra-alegou, rematando com as seguintes conclusões:

A. O presente recurso vem interposto da Sentença proferida a fls. (…), a qual julgou procedente a improcedente a presente ação, absolvendo a Ré, aqui Recorrida, do pagamento das faturas peticionadas pela Autora, ora Recorrente, cujos montantes totalizavam o capital de Euros 35.592,84, acrescido ainda de juros de mora computados na quantia de Euros 4.596,60.

B. O pagamento das indicadas faturas seria devido, segundo a Recorrente, ao abrigo do contrato de prestação de serviços de vigilância, entre celebrado no dia 1 de junho de 2010, para o estabelecimento comercial da Recorrida “A”.

C. O mesmo contrato de prestação de serviços já havia sido objeto de anterior litígio, também movido pela ora Recorrente contra a Recorrida, o qual correu os termos sob o número ..., no 5.º Juízo Cível de Lisboa, com fundamento em alegado incumprimento do prazo de aviso prévio para denúncia contratual.

D. No âmbito da referida ação judicial, as partes vieram transigir sobre o seu objeto, e, por via da referida transação, a Recorrida procedeu ao pagamento à ora Recorrente da quantia de Euros 19.817,24, tendo ambas feito constar expressamente, uma cláusula com o seguinte teor: “Com o pagamento da quantia referida na Cláusula Primeira, as Partes declaram não ser devido qualquer montante entre elas a qualquer título, reconhecendo e aceitando, expressamente e sem reservas, ficarem resolvidas de modo integral e definitivo todas as questões e diferendos existentes entre as Partes, designadamente em relação ao contrato em causa nos presentes autos, extinguindo-se os direitos que a Autora pretendia fazer valer através da presente ação”.

E. Já na presente ação, o Tribunal a quo veio entender que o montante peticionado pela ora Recorrente, titulado pelas faturas que esta juntou aos autos e alegadamente em dívida pela ora Recorrida, não seria devido, porquanto, a transação anteriormente celebrada, deu quitação genérica a quaisquer obrigações emergentes do mesmo contrato.

F. A Recorrente, inconformada com a decisão a quo, vem sustentar a nulidade desta e a errada interpretação da transação em causa.

G. Insurge-se a Recorrente por ter sido confrontada com um despacho saneador-sentença, relativamente ao qual sustenta não ter tido oportunidade processual para se pronunciar sobre a seleção da matéria de facto que fundamentou a sentença ora recorrida, tendo existido uma violação do princípio do processo justo e equitativo e do dever de motivação da matéria de facto.

H. O novo Código de Processo Civil, aplicável aos presentes autos por força do artigo 5.º da Lei 41/2013, de 26 de junho, vem consignar, como regra geral, a obrigatoriedade de realização de audiência prévia (artigo 591.º, n.º 1 daquele diploma), muito embora restem salvaguardadas algumas exceções, como é manifestamente o caso dos presentes autos, por via do artigo 591.º, n.º 1, alínea d) e do artigo 593.º, n.º 2, alínea a), ambos do CPC, sendo, admissível ao Tribunal a quo, in casu, dispensar a realização da audiência prévia, atenta a desnecessidade de produção adicional de prova.

I. A Recorrente insurge-se igualmente quanto ao facto de não lhe ter sido facultada a hipótese de se pronunciar sobre a seleção da matéria de facto, mas a verdade é que o seu recurso não sindica quaisquer factos dados como provados na decisão a quo, reconhecendo, implicitamente, a veracidade daqueles.

J. A questão sub judice era, tão só, a de saber se a transação homologada pelo 5.º Juízo Cível de Lisboa esgotou quaisquer situações jurídicas provenientes do contrato de prestação de serviços de vigilância celebrado entre as partes, questão esta que se esgota no conteúdo do referido negócio processual, em razão da clareza e inequivocidade da sua redação, em particular, da cláusula 4.ª, já citada.

K. Não reveste qualquer fundamento a tese igualmente lançada pela Recorrente, de que a Primeira Instância não indica os fundamentos de facto “que suportem a imediata opção pela regra contida no n.º 1 do art. 236.º CC”.

L. A argumentação formulada pela Recorrente levaria, em análise última, a pôr em crise a redação de qualquer declaração negocial, com base em uma pretensa divergente vontade real do declarante.

M. Não se vislumbra que prova adicional estaria a Recorrida em condições de produzir, caso houvesse lugar a audiência de discussão e julgamento, suscetível de infirmar o sentido flagrante da cláusula 4.ª da aludida transação.

N. Ainda que se entenda que a motivação oferecida pelo Tribunal a quo é insuficiente, tem entendido a nossa jurisprudência que apenas a sua ausência total implicaria a nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, pelo que, em circunstância alguma, poderia considerar-se viciado de nulidade o saneador-sentença ora em crise.

O. O teor Cláusula 4.ª da transação decorreu do facto de as partes terem alcançado um acordo quanto à definição do exato conteúdo das obrigações emergentes do contrato de prestação de serviços, tendo sido deliberada a soma que a Recorrida acordou liquidar à Recorrente, por referência ao indicado contrato.

P. Aquando da transação sobre o objeto do litígio que correu termos anteriormente, as partes tiveram a oportunidade de negociar a concreta extensão do direito de crédito da Recorrente, tendo esta aceite a quantia determinada na Cláusula 1.ª da transação judicial e expressamente declarado nada mais ter a receber por conta do aludido contrato de prestação de serviços.

Q. Sublinhar apenas o excerto “extinguindo-se os direitos que a Autora pretendia fazer valer através da presente ação”, para fazer crer ao Ilustre Tribunal ad quem que a transação celebrada incidia apenas sobre o pedido daquela ação é apresentar uma versão distorcida da realidade que ladeou aquele negócio processual e contrariar a orientação expressa naquela cláusula, quando lida na sua integralidade.

R. À data da proposição da primeira ação, 28 de outubro de 2011, as três faturas ora peticionadas já haviam sido emitidas, encontrando-se, inclusivamente, a fatura n.º C0060100, no valor de Euros 12.997,80, já vencida desde 31 de julho de 2010 e a fatura n.º C1080466 vencida desde 30 de setembro de 2011.

S. E, à data da transação, e respetivas negociações, também a terceira fatura já se encontrava vencida. Note-se que a transação foi apresentada em juízo no dia 16 de maio de 2012 e a fatura n.º C1090425 se venceu no dia 31 de outubro de 2011.

T. A proceder a tese da Recorrente, seria expectável que esta tivesse peticionado o pagamento das três faturas logo na primeira ação judicial ou, ainda que assim não o fizesse em razão de uma delas se encontrar apenas emitida à data da proposição da petição inicial, sempre seria previsível que suscitasse o seu pagamento, acrescido ao montante acordado, em sede de transação.

U. Aquela transação representou o propósito de ambas as partes de dirimir quaisquer questões que ainda pudessem subsistir em razão da celebração do aludido contrato de prestação de serviços, não só aqueles relacionados com a denúncia do contrato – e objetos da anterior ação judicial – como quaisquer outros que pudessem existir e estivessem pendentes de solução. Só este entendimento justifica as partes terem expressamente declarado que, além da quantia estabelecida na cláusula 1.ª, não seria “(…) devido qualquer montante entre elas a qualquer título, reconhecendo e aceitando, expressamente e sem reservas, ficarem resolvidas de modo integral e definitivo todas as questões e diferendos existentes entre as Partes, designadamente em relação ao contrato em causa nos presentes autos”.

V. Sempre se questiona, de resto, por que razão, de uma perspetiva de eficiência económica, iria a Autora propor uma primeira ação para reivindicar os seus pretensos direitos decorrentes da denúncia contratual da ora Recorrida e a seguir propor a presente ação judicial para obter o pagamento das faturas peticionadas e alegadamente em dívida se, se não logo à data da proposição da primeira ação, quanto muito à data da celebração da transação, a Recorrente podia ter exigido expressamente o pagamento da totalidade das faturas em apreço, evitando as custas e demora associadas a uma nova disputa judicial.

W. O facto de a Recorrente não ter ali exigido o seu pagamento, adicionalmente ao montante objeto da transação, só corrobora a interpretação do Tribunal a quo, de que “(…) como as partes o definiram, que nada mais é devido, entre ambas, em consequência ou emergência do contrato de prestação de serviços celebrado – quer indemnização pela denúncia, quer pagamento de serviços efectivamente prestados”.

X. A transação judicial homologada pelo 5.º Juízo Cível esgotou quaisquer direitos de crédito adicionais relativos ao contrato de prestação de serviços dos quais a Recorrente se pudesse arrogar titular: assim o impõem, sem necessidade de produção de prova adicional, os elementos de facto aportados aos autos pelas partes e, particularmente, todo o teor da transação judicial em crise.

O Sr. juiz a quo pronunciou-se pela inexistência das nulidades apontadas pela recorrente à decisão recorrida.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO

As questões suscitadas neste recurso são as seguintes: dispensa indevida da audiência prévia; nulidades da sentença; caso julgado; interpretação da transação.

Primeira questão (dispensa indevida da audiência prévia)

O factualismo a ter em consideração é o supra narrado no Relatório.

O Direito

A apelante começou por alegar que o juiz estava obrigado a convocar as partes para audiência preliminar, não podendo conhecer do mérito da causa como o fez. Invoca o disposto no art.º 508.º-A n.º 1 alínea b) do CPC de 1961 e o art.º 595.º do CPC atual. Conclui que o Sr. juiz a quo proferiu decisão surpresa, tendo sido violado o disposto no art.º 3.º n.º 3 do CPC, atentando contra o princípio do processo justo e equitativo, garantido no n.º 4 do art.º 20.º da CRP.

Vejamos.

É certo que aquando da propositura da presente ação vigorava o CPC de 1961, com as alterações subsequentes. Findos os articulados realizar-se-ia audiência preliminar que, no entanto, poderia ser dispensada, ainda que o juiz pretendesse conhecer imediatamente do mérito da causa, nos casos em que a sua apreciação revestisse manifesta simplicidade (artigos 508.º-A n.º 1 alínea b) e 508.º-B n.º 1 alínea b)).

In casu, entrou em vigor o novo CPC quando o processo ainda se encontrava na fase dos articulados. Assim, nos termos das normas de direito transitório contidas na Lei n.º 41/2013, de 26.6, terminada a fase dos articulados as partes foram notificadas para apresentarem os seus requerimentos probatórios ou alterarem os que tivessem apresentado (assim se compatibilizando o processo com o ónus de indicação das provas com os respetivos articulados, imposto no novo CPC – artigos 552.º n.º 2, 572.º, alínea d).º n.º 1), “seguindo-se os demais termos previstos no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei” (n.º 4 do art.º 5.º da Lei n.º 41/2013). Ou seja, passaram a aplicar-se, neste processo, as regras previstas no novo CPC quanto à realização de audiência prévia (art.º 591.º e seguintes).

Nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação (como é o caso destes autos) a realização de audiência prévia é a regra (vide artigos 597.º e 591.º do CPC). As suas finalidades principais, cumulativas ou alternativas, são a tentativa de conciliação das partes, discussão sobre as exceções dilatórias, discussão de mérito, discussão para delimitação dos termos do litígio, completamento dos articulados deficientes, prolação do despacho saneador, determinação da adequação formal, da simplificação ou da agilização processual, despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova e a programação da audiência final (art.º 591.º do CPC).

De entre essas finalidades, avultam, no quadro deste recurso, as que estão previstas nas alíneas b) e d) do n.º 1 do art.º 591.º do CPC:

Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” (alínea b));

Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º” (alínea d)).

Pese embora a enunciação da realização da audiência prévia como regra, a lei estipula a sua não realização nas ações não contestadas em que a revelia seja inoperante (alínea a) do n.º 1 do art.º 592.º) e quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados (alínea b) do n.º 1 do art.º 592.º). Além disso, a audiência prévia poderá ser dispensada pelo juiz nos casos em que, embora o processo deva prosseguir, a audiência apenas teria como finalidade a prolação de despacho saneador (em que não se decida pelo fim do processo), a determinação da adequação formal, da simplificação ou da agilização processual e/ou a prolação de despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova (vide art.º 593.º n.º 1 do CPC).

Destas normas resulta que se, em ação contestada, de valor superior a metade da alçada da Relação, o juiz entende, finda a fase dos articulados e do pré-saneador, que o processo deverá findar imediatamente com prolação de decisão de mérito, deverá convocar audiência prévia, a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito (neste sentido, vide Lebre de Freitas, “A ação declarativa comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 172; Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, pág. 292 e pág. 293, nota 673). Tal convocação importa a vários títulos, conforme pondera Paulo Pimenta, na obra supra citada (páginas 231 e 232): “Antes de mais, impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão-surpresa (art.º 3º 3). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final. Desse modo, a discussão entre as partes tanto poderá confirmar como infirmar a existência de condições para o tal conhecimento imediato do mérito (…). Por outro lado, sabendo as partes que, no caso de o juiz pretender decidir o mérito da causa logo no despacho saneador, serão convocadas para uma discussão adequada, não terão de preocupar-se em utilizar os articulados para logo produzirem alegações completas sobre a vertente jurídica da questão. A solução consagrada permite, portanto, que os articulados mantenham a sua vocação essencial (exposição dos fundamentos da acção e da defesa), ao mesmo tempo que garante a discussão subsequente, se necessária, em diligência própria.”

Assim, a não realização de audiência prévia, neste caso, quando muito só será possível no âmbito da gestão processual, a título de adequação formal (artigos 547.º e 6.º n.º 1 do CPC), se porventura o juiz entender que no processo em causa a matéria alvo da decisão foi objeto de suficiente debate nos articulados, tornando dispensável a realização da dita diligência, com ganhos relevantes ao nível da celeridade, sem prejuízo da justa composição do litígio (artigos 547.º e 6.º n.º 1 do CPC). Tal opção carecerá, porém, de prévia auscultação das partes (cfr. art.º 6.º n.º 1 – “ouvidas as partes” – e 3.º n.º 3 do CPC; neste sentido, vide Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil”, volume I, 2014, 2.ª edição, Almedina, pág. 536).

Aplicando o supra exposto ao caso que ora nos ocupa, dir-se-á que tendo a R. apresentado a transação operada no litígio judicial que anteriormente ocorrera entre as mesmas partes como obstáculo à prossecução destes autos em termos de exceção dilatória, na modalidade de caso julgado, com a consequente absolvição da R. da instância, o tribunal fez aplicação do disposto no art.º 278.º n.º 3 do CPC (“…não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se [a exceção dilatória] a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte”), não apreciando a aludida exceção dilatória e proferindo decisão de mérito final, com base na análise do âmbito e natureza jurídica da transação referida (que se considerou revestir a natureza de um contrato atípico, de acertamento). Ora, como decorre do supra exposto, tal decisão não poderia ser tomada sem a realização de audiência prévia, sendo certo que, in casu, atendendo a que o enfoque da decisão não coincidiu de pleno com a perspetiva que havia sido apresentada e discutida pelas partes (existência de caso julgado), não havia base para, com invocação de uma suposta adequação formal ou gestão processual, omitir uma diligência cuja realização é claramente pretendida pelo legislador. De resto, a imediata prolação de saneador-sentença, com dispensa de audiência prévia, não foi legitimada, pelo senhor juiz a quo, numa pretendida adequação das regras do processo às particularidades do caso concreto, mas tão só na asserção de que “o estado dos autos permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa” (cfr. fls 114 dos autos), invocando-se concomitantemente o disposto nos artigos 593.º, n.º 2 alínea a) e 595.º, n.º 1, alínea b), do CPC, para se dispensar a convocação de audiência prévia – normas essas que, como decorre do supra exposto, não são aplicáveis ao caso sub judice.

Foi, pois, cometida uma nulidade, traduzida na prolação de decisão final de mérito com dispensa de uma prévia diligência que era imposta por lei, suscetível de influenciar o exame e a decisão da causa (art.º 195.º n.º 1 do CPC; considerando a omissão de convocação da audiência prévia, quando obrigatória, uma nulidade processual inominada sujeita ao regime dos artigos 195.º e seguintes do CPC, vide Rui Pinto, “Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, pág. 369).

Contra a decisão de dispensa de audiência prévia, que “cobriu” a nulidade praticada, reagiu-se pelo meio adequado, que é o recurso (cfr., v.g., Manuel de Andrade, “Noções elementares de processo civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 183; acórdão da Relação de Évora, 25.10.2012, 381658/10.5YIPRT.E1), sendo certo que, estando nesta apelação em causa uma primeira apreciação da dita nulidade, não é aplicável aqui o preceito restritivo da recorribilidade previsto no n.º 2 do art.º 630.º do CPC.

A procedência da apelação nesta parte importa a anulação do saneador-sentença igualmente impugnado, ficando prejudicadas as restantes questões suscitadas no recurso (artigos 195.º n.º 2, 663.º n.º 2 e 608.º n.º 2 do CPC).

DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e consequentemente revoga-se a decisão que dispensou a realização no processo de audiência prévia e, consequentemente, anula-se o saneador-sentença proferido, devendo, em substituição da decisão revogada, ser emitido despacho de convocação de audiência prévia, nos termos previstos no art.º 591.º do CPC.

As custas da apelação são a cargo da apelada, que nela decaiu.

Lisboa, 09.10.2014

Jorge Manuel Leitão Leal

Ondina Carmo Alves

Eduardo José Oliveira Azevedo