Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
601/2008-7
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
REGISTO AUTOMÓVEL
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
RESERVA DE PROPRIEDADE
RENÚNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/12/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – Impõe-se a suspensão dos termos do processo executivo de molde a permitir ao exequente que obtenha o cancelamento do registo de reserva de propriedade, existente a seu favor, sobre o veículo que nomeou à penhora.
II - A reserva de propriedade, revestindo a natureza de direito real de gozo, beneficia in casu dum registo anterior ao da penhora, pelo que subsistirá mesmo após a venda do respectivo veículo automóvel, não podendo ser cancelado nos termos do artº 824º, nº 2, do Cod. Civil
III - Não faz sentido admitir a renúncia do exequente à reserva de propriedade, uma vez que não está na disponibilidade deste a unilateral e arbitrária alteração dos termos contratuais que firmou aquando da celebração do contrato de compra e venda em causa.
IV - Não há lugar à aplicação do disposto no artº 119º, do Código do Registo Predial, uma vez que não existem quaisquer dúvidas quando à titularidade do bem penhorado – não pertence, certamente, ao executado, contrariamente ao que o exequente quis fazer crer.
(LES)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: TEXTO INTEGRAL:


Acordam, em Conferência, os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa ( 7ª Secção ).
 
I – RELATÓRIO.
Veio o agravante Banco …, S.A., apresentar reclamação para a Conferência, nos termos do artº 700º, nº 3, do Cod. Proc. Civil, relativamente à decisão sumária proferida a fls. 78 a 87, ao abrigo do disposto no artº 705º e 749º, do Cod. Proc. Civil.
Conhecendo desta, decide-se :
Intentou Banco …, S.A., com sede na Rua…, em Lisboa, acção executiva contra M…, residente na….
No âmbito deste processo executivo veio a ser proferida decisão, conforme fls. 53 a 54, nos seguintes termos : “ Atendendo a que a propriedade sobre o veículo automóvel penhorado à ordem dos autos se encontra inscrita a favor da exequente, conforme resulta da certidão junta, não tendo a exequente acedido ao convite efectuado, a execução não poderá prosseguir para citação de credores e ulterior venda.
Com efeito, enquanto não se mostre ultrapassada tal omissão, não pode o Tribunal proceder à venda de bem de terceiro, uma vez que o referido direito se não enquadra na previsão do artº 824º, nº 2, do Código Civil. ( … )
Notifique.
Após, aguardem os autos que a exequente algo requeira. “.
É desta decisão que vem interposto o competente agravo que veio a ser admitido conforme despacho de fls. 67.
Juntas as competentes alegações, a fls. 2 a 41, formulou o agravante as seguintes conclusões :
1º - Nos presentes autos foi requerida, logo de início, a penhora sobre o veículo automóvel com a matrícula …, penhora que foi ordenada pelo senhor juiz a quo.
2º - Não é por existir uma reserva de propriedade sobre o veículo dos autos em nome do ora recorrente que é necessário que este requeira o cancelamento da dita reserva, não tendo, aliás, o senhor juiz a quo competência para proceder a tal notificação à exequente.
3º - O facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de acordo e de harmonia com o disposto no artigo 824º, do Código Civil e 888º, do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam.
4º - No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, deve agir-se de acordo com o que se prescreve no artº 119º, do Código do Registo Predial, caso a penhora já tenha sido realizada.
5º - Tendo o recorrente optado pelo pagamento coercivo da dívida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre o qual a mesma incide – o que, seria neste caso, ilegítimo – tendo o exequente renunciado ao domínio sobre o bem – pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia ao recorrido -, tendo, como dos autos resulta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia e para os efeitos antes referidos ; prevendo-se nos artsº 824º, do Código Civil e 888º, do Código de Processo Civil, que aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam ; e não se prevendo no artº 119º, do Código do Registo Predial que se notifique o detentor da reserva de propriedade para que requeira o seu cancelamento, o despacho recorrido decidiu incorrectamente.
6º - Caso assim se não entenda, deveria o exequente – titular da reserva de propriedade – ter sido notificado para se pronunciar pelo renúncia ou não à propriedade do veículo, como o foi, tendo respondido, mas não ser notificado para requerer o seu cancelamento.
7º - No despacho recorrido violou-se o disposto no artº 888º, do Código de Processo Civil ; o disposto nos artsº 5º, nº 1, alínea b) e 29º, do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro ; o disposto nos artsº 7º e 119º, do Código do Registo Predial ; o disposto nos artigos 408º, 409º, nº 1, 601º e 879º, alínea a), do Código Civil.
Foi proferido despacho de sustentação conforme fls. 47.
 
II – FACTOS PROVADOS.
Encontra-se provado nos autos que :
Nestes autos de acção executiva, em que é exequente Banco…, S.A., foi penhorado o veículo automóvel com a matrícula …., nomeado pelo exequente e referido, por este, como pertencente à executada.
Sobre esse mesmo veículo foi constituída reserva de propriedade em favor da ora exequente.
O registo da reserva de propriedade é anterior ao da penhora.
 
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
É a seguinte a questão jurídica essencial que importa dilucidar :
Da exigência do cancelamento prévio do registo da reserva de propriedade dum veículo automóvel penhorado em favor do exequente, como condição do prosseguimento da respectiva execução.
Passemos à sua análise :
A constituição da reserva de propriedade sobre o veículo automóvel, in casu em favor da mutuante/exequente, significa que tal bem, que foi nomeado à penhora e penhorado à ordem destes autos, não faz parte do património do comprador/ executado.
Dispõe, a este respeito, o artº 409º, nº 1, do Código Civil : “ Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento “.
A transmissão do direito de propriedade, por via do contrato de compra e venda sob reserva de propriedade, fica suspensa até à verificação de um evento futuro e incerto - o pagamento do preço pelo comprador.
Na situação sub judice, o beneficiário da reserva de propriedade não assume a qualidade de alienante do bem a transmitir o que, extravasando os limites típicos da figura conceptualmente definida no artº 409º, nº 1, do Código Civil, está precisamente na base das dificuldades técnicas, a nível jurídico, suscitadas no presente recurso.[1]
Tem-se sustentado, a este propósito, que o preceito legal supra transcrito abrange, na sua letra e espírito, as hipóteses de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda, uma vez que o objecto do primeiro constitui o elemento preço do segundo.[2]
De qualquer forma, da estipulação da cláusula de reserva de propriedade, devidamente registada, resulta que o executado assume em relação ao veículo penhorado, não a qualidade de proprietário, mas a de mero detentor, não lhe assistindo poderes de alienação quanto a esse bem.
Ora, a execução só pode incidir sobre bens de terceiros nos precisos termos do artº 818º, do Cod. Civil.
Pelo crédito exequendo, respondem, apenas e em princípio, os bens que pertençam ao executado, nos termos gerais dos artsº 601º, do Código Civil e 821º, do Cod. Proc. Civil.
Assim sendo, não poderia o exequente ter nomeado à penhora o bem em referência, sem primeiro haver cancelado o ónus que sobre o mesmo incide.
Acresce a este facto a circunstância do registo da cláusula de reserva de propriedade sobre veículos automóveis ser obrigatório nos termos do artº 5º, nº 1, alínea b) e nº 2, do Decreto-lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro - sendo aplicáveis ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, mutatis mutandis – artº 29º, do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro.
Importa, portanto, ter em consideração que, em conformidade com o disposto no artº 7º, do Código do Registo Predial, o registo definitivo constitui presunção ( juris tantum ) de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, não podendo os factos comprovados pelo registo ser impugnados em juízo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo – artº 8º, nº 1, do Cod. Registo Predial – o que o exequente não fez.
Por outro lado, o registo deste ónus que impede sobre o bem penhorado, não caduca nos termos gerais do artº 824º, nº 2, do Código Civil, onde se prevê que : “ Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo. “.[3]
A reserva de propriedade não reveste a natureza de garantia real.[4]
Assumindo, diferentemente, a natureza de um direito real de gozo, beneficia in casu dum registo anterior ao da penhora, pelo que subsistirá mesmo após a venda do respectivo veículo automóvel, não podendo ser cancelado nos termos do artº 824º, nº 2, do Cod. Civil[5].
Tal cancelamento não poderia ser oficiosamente ordenado nos termos do artº 888º, do Código de Processo Civil, uma vez que o respectivo ónus não se enquadra nas situações referidas no artº 824º, nº 2, do Código Civil.
 Também não faz sentido admitir a renúncia à reserva de propriedade, uma vez que não está na disponibilidade do exequente/agravante a unilateral e arbitrária alteração dos termos contratuais que firmou aquando da celebração do contrato de compra e venda em causa.[6][7]
Conforme refere, a este propósito, o Prof. Raul Ventura, in “ O Contrato de Compra e Venda no Código Civil “, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 43, pags. 613 a 614 : “ A renúncia à cláusula de reserva de propriedade – se pudesse ser subentendida no pedido de execução coactiva – não constitui um meio idóneo para a transmissão da propriedade ; a reserva da propriedade pode ser estipulada em benefício do vendedor, mas foi estipulada contratualmente – não o podia ter sido de outra forma – e, por outro lado, ela não constitui um direito a que o vendedor possa renunciar, mas sim o deferimento contratual de um efeito do contrato. Por força do contrato, o direito de propriedade mantém-se no vendedor, mas ele não tem um direito a esse direito, susceptível – aquele – de renúncia ; nem a “ renúncia “ ao próprio direito de propriedade é meio adequado para transmitir este a alguém. “.[8]
A aquisição pelo comprador da viatura automóvel em referência só poderá ter lugar pelo pagamento do competente preço e não pela extinção, por renúncia, duma cláusula de reserva de propriedade livremente acordada e aceite entre os celebrantes.[9]
Por outro lado, o próprio averbamento do facto de se encontrar verificada a condição ínsita na cláusula de reserva de propriedade constante da inscrição de aquisição – nos termos do artº 409º, do Código Civil – é efectuado em face de documento autêntico, autenticado, ou com reconhecimento presencial de assinatura que comprove o cumprimento total ou parcial das obrigações a que a outra parte se vinculou, por força do disposto nos arts 787º e 375º, do mesmo diploma.[10]
Não é assim suficiente a mera declaração de renúncia efectuada neste processo, sem a formalidade necessária a servir de base ao cancelamento registral.
O carácter certo e inequívoco da titularidade do bem penhora – em favor do exequente/agravante – afasta, pela sua razão de ser, a aplicação do artº 119º, do Código de Registo Predial.[11]
Impunha-se, por estas razões, a suspensão dos termos do processo executivo, permitindo ao exequente o cumprimento duma obrigação que lhe competia e que manifestamente não respeitou : obter o cancelamento do registo de reserva de propriedade sobre o veículo que ( indevidamente ) nomeou à penhora.[12]
Relativamente à argumentação expendida pela recorrente, dir-se-á, em síntese :
1º - É evidente que assiste ao juiz toda a competência funcional para ordenar a referida notificação ao exequente, configurando inclusive um dever processual quanto à regular condução dos autos executivos.
2º - Defender que todos os registos que incidem sobre o bem vendido na acção executiva devem ser mandados cancelar após a venda, atenta frontalmente contra o preceituado no artº 824º, nº 2, do Código Civil, na medida em que tal disposição legal distingue entre direitos reais com registo anterior e posterior ao da penhora, estabelecendo, para cada um, regimes jurídicos diversos.
3º - Não há lugar à aplicação do disposto no artº 119º, do Código do Registo Predial, uma vez que não existem quaisquer dúvidas quando à titularidade do bem penhorado – não pertence, certamente, ao executado, contrariamente ao que o exequente quis fazer crer.
4º - Não é pelo simples facto do recorrente decidir afirmar que o bem que nomeia à penhora é do executado e não dele próprio que se produz o efeito translativo da propriedade – em frontal desrespeito com o princípio da estabilidade do regime jurídico aplicável ao contrato em causa, donde emerge o crédito exequendo, bem como da obrigação de não impugnar em juízo um facto registado sem, simultaneamente, requerer o cancelamento do dito registo.
5º - Não há, pelos motivos apontados, qualquer justificação para notificar o exequente/agravante com vista a que o mesmo diga se renuncia ou não à propriedade do veículo. Este deve é obter o cancelamento do ónus que incide sobre o bem em referência para após, e só após, ter lugar a sua venda judicial.
Razões pelas quais que se entende confirmar a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
 
III - DECISÃO :
Pelo exposto, e em conferência, os Juízes desta Relação acordam em indeferir a reclamação apresentada, negando provimento ao agravo e mantendo a decisão recorrida.



Lisboa, 12 de Fevereiro de 2008.


( Luís Espírito Santo )                                       

 ( Isabel Salgado )

(Soares Curado)

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[1] Sobre este ponto e insurgindo-se contra a “ perplexidade “ suscitada por esta situação, vide acórdão da Relação de Lisboa de 27 de Maio de 2003, publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVIII, tomo III, pags. 93 a 95.
[2] Vide, sobre este ponto, acórdão da Relação de Lisboa de 13 de Março de 2003, publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVIII, tomo II, pags. 74 a 76.
[3] Vide acórdão da Relação de Lisboa de 2 de Junho de 1999, sumariado in BMJ nº 488, pag. 407.
[4] Vide acórdão da Relação de Lisboa de 8 de Maio de 2003, publicado in Colectânea de Jurisprudência/STJ, Ano XI, tomo II, pags. 34 a 38.
[5] Em sentido contrário, vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Junho de 2005, publicado in www.dgsi.pt..
[6] Neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa de 21 de Fevereiro de 2002, publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVII, tomo I, pags. 112 a 116 ; acórdão da Relação de Lisboa de 30 de Abril de 2002, publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVII, tomo II, pags. 124 a 126 ; acórdão da Relação de Lisboa de 4 de Dezembro de 2003, pubicitado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVIII, tomo V, pags. 114 a 117.
[7] Contra, acórdão da Relação de Lisboa de 29 de Abril de 2004, publicitado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXIX, tomo II, pags. 120 a 122 ; acórdão da Relação de Lisboa de 22 de Junho de 1999, publicado in Colectânea de Jurisprudência Ano XIV, tomo III, pags 118 a 121.
[8] Sobre este ponto, vide Luís Lima Pinheiro, in “ A Cláusula de Reserva de Propriedade “, pag. 69.
[9] Não será assim de sufragar a posição manifestada por Vasco da Gama Lobo Xavier, in “ Venda a Prestações : algumas notas sobre os artsº 934º e 935º, do Código Civil “, Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXI, pags. 210 a 219, quando entende aceitável que a nomeação à penhora dum bem pertencente ao exequente signifique a sua renúncia tácita ao domínio que se reservara sobre o mesmo.
[10] Parecer nº 106/97 do Conselho Técnico da Direcção Geral dos Registos e do Notariado, Boletim os Registos e do Notariado, nº 4/98, Abril, pags. 16 a 22.
[11] No sentido propugnado nesta decisão, vide, entre outros, acórdão da Relação de Lisboa de 21 de Fevereiro de 2002, publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVII, tomo I, pags. 112 a 116 ; acórdão da Relação de Lisboa de 4 de Dezembro de 2003, publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVIII, tomo V, pags. 114 a 117 ; acórdão da Relação de Lisboa de 30 de Abril de 2002, publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVII, tomo II, pags. 124 a 126.
[12] Neste sentido, vide o recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 2005, publicado in Colectânea de Jurisprudência/acórdãos do STJ, Ano XIII, tomo II, pags. 87 a 91.