Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6468/2007-4
Relator: MARIA JOÃO ROMBA
Descritores: SIMULAÇÃO DE CONTRATO
CONTRATO DESPORTIVO
INTENÇÃO DAS PARTES
PROVA TESTEMUNHAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/31/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I- São elementos integradores do negócio simulado a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório) e o intuito de enganar terceiros.
II- Verificou-se uma simulação relativa se, com um intervalo de oito dias, as partes formalizaram dois contratos de trabalho desportivo, referentes às mesmas épocas desportivas, com conteúdo não inteiramente coincidente - mormente em matéria retributiva, sendo certo que no primeiro se estabelecia que, em termos monetários, era este o contrato válido, e se o segundo contrato foi celebrado para efeitos de registo desportivo, o que pressupõe o intuito de enganar terceiro.
III- Deixa de se justificar a proibição de prova testemunhal quanto ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado quando invocado pelos próprios simuladores.
IV- Existindo já prova documental que indicia a simulação, é lícito o recurso à prova testemunhal para interpretar tais documentos.
Decisão Texto Integral:             Acordam na secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

(C) intentou no Tribunal do Trabalho de Lisboa o presente processo declarativo comum contra "Sport Lisboa e Benfica - Futebol SAD", pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe o total de 389.109,77 € acrescida de juros vincendos até efectivo e integral pagamento.

Alegou, em síntese: por contrato celebrado em 9.06.99 obrigou-se a prestar a sua actividade de jogador de futebol, tendo o contrato início em 30.06.99 e termo em 30.06.03; nos termos deste contrato foi estabelecida a retribuição de 2.250 mil dólares líquidos, a pagar 200.000 dólares no acto da assinatura e 500.000 dólares distribuídos por cada uma das quatro épocas; paralelamente, mas unicamente para efeitos de registo desportivo, celebraram outro contrato em 17.06.99, redigido em português e com retribuição em escudos portugueses; na altura, para fazer a conversão em escudos utilizou-se câmbio de 180$00, fixando-se a quantia de 90.000.000$00 por cada época; precisamente porque aquando da celebração do verdadeiro contrato - de 9.06.99 - já se previa a necessidade de outorgar outro com retribuição em escudos, as partes logo convencionaram uma cláusula onde fizeram constar que "este es el contrato válido, referente a los montantes de dinero, que serão regulados põe la diferença en el final de cada temporada”; contudo apesar de terem assim convencionado que procederiam aos acertos cambiais no final de cada época desportiva, já que a retribuição acordada seria de 500.0000 Dólares por cada época, e não obstante a flutuação cambial que desvalorizou o escudo, a ré nunca procedeu aos acertos, quantias que ora vem reclamar indicando, relativamente a cada época desportiva, a diferença entre o devido e o percebido e o valor dos juros de mora sobre essas quantias vencidos desde 1 de Julho do ano em questão até à data da propositura.

A ré contestou, alegando que o contrato de trabalho desportivo celebrado em 17.06.99, por ser posterior e com o mesmo objecto, revogou tacitamente o anterior, sendo falso que este tenha sido efectuado somente para efeitos de registo desportivo; logo, sendo este o válido, a retribuição é expressa em escudos e somente aquela, nenhuma alusão ali se fazendo a diferenças cambiais, que assim não são devidas.
Procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida a sentença de fls. 152/155 que, julgou a acção procedente e condenou a R. a pagar ao A. o que se liquidar em execução de sentença referente a diferenças cambiais entre a retribuição anual auferida pelo A. em escudos portugueses (90.000.000$00) e a que deveria ter recebido por referência à retribuição anual de US$ 500.000 dólares, relativos a cada época anual de 1999/2000, 2000/2001 2001/2002 e 2002/2003.
Inconformadas, apelaram ambas as partes.
A R. termina as respectivas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

Por sua vez o A. formula nas suas alegações as seguintes conclusões:

      (…)
A R. contra-alegou o recurso do A..
Subidos os autos a este tribunal, pela digna PGA foi emitido o parecer de fls. 219, no sentido da não procedência do recurso


Delimitado o objecto dos recursos pelas conclusões alegatórias do recorrentes verifica-se que naquele interposto pela R. se imputa à sentença erro na interpretação e aplicação do direito, havendo por isso que apreciar se a mesma viola o disposto:
- no art. 238º nº 1 do CC e no art. 5º da L. 28/98;
- no art. 240º nº 1 do CC;
- no art. 394º nº 1 do CC.
Por sua vez o recurso interposto pelo A. impugna parcialmente a matéria de facto e, em termos de direito, a não condenação em juros de mora.
            São, essas pois, as questões a apreciar.
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

“1 - Por contrato celebrado em 9 de Junho de 1999, o autor obrigou-se a prestar ao Sport Lisboa e Benfica a sua actividade de jogador de futebol, sob a autoridade e direcção deste, mediante retribuição - doc. 1.

2 - Como resulta do mesmo o contrato celebrado teve início em 30.06.99 e termo em 30.06.03.

3 - Ainda nos termos do mesmo contrato, foi estabelecida a retribuição do autor de dois milhões e duzentos mil dólares líquidos a pagar da seguinte forma:
a ) US $ 200.000 com a assinatura do contrato;
b) US $ 500.000 na época de 1999/2000
c) US $ 500.000 na época de 2000/2001

d) US $ 500.000 na época de 2001/2002

e) US $ 500.000 na época de 2002/2003.
4 - Mais acordaram um subsídio de renda de casa no valor de esc. 250.000$00 e um subsídio de Esc. 70.000$00 para aquisição ou aluguer de automóvel.
5 - Para efeitos de registo desportivo, o autor e o Sport Lisboa e Benfica celebraram em 17.06.99, um contrato de trabalho desportivo redigido em português, em escudos portugueses, conforme doc. 2 que se reproduz, considerando o dólar ao valor de Esc. 180$00, ou seja:

 a) Esc. 36.000.000$00 com a assinatura do contrato;

 b) Esc. 90.000.000$00, na época de 1999/2000

c) Esc. 90.000. 000$00, na época de 2000/20001

d) Esc. 90.000.000$00, na época de 2001/2002

e)  Esc. 90.000.000$00, na época de 2002/2003.
6 - Tendo em atenção que as partes acordaram, a título de retribuição anual do autor, a quantia líquida de US $ 500.000 por época, e as variações que a taxa de câmbio teria ao longo do contrato, as partes clausularam no contrato redigido em espanhol que este era o contrato válido, no que respeitava aos montantes em dinheiro que seriam regularizados pela diferença no final de cada época: "Este es el contrato válido, referente a los montantes de diñero, que serão regulados põe la diferença en el final de cada temporada".
7 - Tendo-se estabelecido no contrato redigido em português a retribuição mensal de Esc. 7.500.000$00 (90.000.000$00:12), o Sport Lisboa e Benfica não pagou nos primeiros meses de contrato aquela quantia líquida, mas fazia incidir sobre (ela) os respectivos descontos para o IRS e Segurança Social (Doc. 3, 4 e 5).
8 - Em Outubro de 1999, o Sport Lisboa e Benfica passou a entregar ao autor a título de retribuição base a quantia líquida de sete milhões e quinhentos mil escudos correspondente à retribuição bruta de esc. 9.398.496$00 - doc. 6 a 13 - tendo-lhe inclusivamente pago os retroactivos.
9 - Em Junho de 2000, a posição de entidade patronal que daquele contrato decorria para o Sport Lisboa e Benfica foi transmitido à ré Sport Lisboa e Benfica, Futebol SAD, tendo esta continuado a pagar ao A a quantia líquida de sete milhões e quinhentos mil escudos correspondentes à retribuição ilíquida base de Esc. 9.398.496$00 ( doc. 14).
10 - Assim continuou a ré a proceder, quando a retribuição do autor passou a ser paga em Euros e até final do contrato.
11 - E ao contrário do que ficara acordado, nunca a ré procedeu aos acertos cambiais, isto é, nunca a ré pagou ao autor no final de cada época desportiva as diferenças cambiais verificadas.
12 a 15 - Nas épocas de 1999/2000, 2000/2001, 2001/2002, 2002/2003, o autor recebeu em cada uma das épocas as quantias de 90.000.000$00.

23 - O autor ao longo da vigência deste contrato e do que sucedeu sempre foi reclamando estas diferenças, sem que a ré lhe desse qualquer solução.

24 - Quando em 6.02.04, o autor teve de subscrever uma declaração para efeitos de licenciamento da ré nas provas de competição da UEFA teve de ressalvar o direito àquelas diferenças, porquanto esta continuava a não resolver o problema (doc. 15).

( da resposta )

11- O A. e a R. celebraram um novo contrato de trabalho desportivo com início em 1.07.03 e termo em 30.06.05, dando-se por reproduzido o doc. 1 junto pela R. – fls. 117.


            Apreciação

            Do recurso interposto pela R., Sport Lisboa e Benfica, SAD

            A apelante insurge-se contra o entendimento manifestado na sentença de que não se provou que a vontade real dos contraentes  tivesse sido a de substituir a disciplina do primeiro contrato pela do segundo, mas pelo contrário se provou que o segundo contrato foi subscrito apenas para efeitos de registo

Alega que ao assim entender a Srª Juíza violou o disposto pelo art. 238º nº 1 do CC e o art. 5º da L. 28/98, porque, sendo o contrato de trabalho do praticante desportivo um contrato formal, na respectiva interpretação há que ter em atenção que a declaração negocial não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência com o texto e no caso isso não sucede, dado que no texto do segundo contrato nada existe que permita suportar que as partes quiseram manter os acertos cambiais.

Ora precisamente porque a Srª Juíza entendeu que o contrato querido por ambas as partes foi o primeiro e não o segundo - o qual, conforme consignado no ponto 5 da matéria de facto, foi celebrado apenas para efeitos de registo – e aquele também foi reduzido a escrito (cumprindo, assim, o requisito de forma) e contém a cláusula 7ª([1]), não se percebe, salvo o devido respeito, a pertinência de vir invocar violação do art. 238º nº 1 do CC relativamente ao segundo contrato, quando o julgador entendeu que era o primeiro que era válido. É que, quanto a ele, não nos parece – atenta a referida clª 7ª - que possa oferecer dúvidas que a obrigação de proceder aos acertos cambiais  tem no texto um mínimo de correspondência verbal.

Não tem pois razão a apelante quanto a esta questão, não se podendo, de forma alguma, concluir que tivesse havido violação do disposto pelo art. 238º nº 1 do CC.

É certo que nenhuma explicação foi dada, quer na petição, quer na sentença, para que o contrato “para efeitos de registo” não correspondesse pura e simplesmente à tradução do contrato querido pelas partes, designadamente em termos de remuneração (líquida ou ilíquida, com ou sem referência ao dólar americano e com acertos cambiais no final de cada época), nem tal explicação é de forma alguma óbvia, uma vez que, nos termos do previsto na parte final do art. 550º do CC, é lícito às partes estipularem que o cumprimento das obrigações pecuniárias se faça em moeda sem curso legal no país - apesar de a regra geral ser precisamente o contrário - e, por outro lado, o art. 558º do mesmo compêndio legal, dispõe que a estipulação do cumprimento em moeda estrangeira não impede o devedor de pagar em moeda nacional, segundo o câmbio do dia do cumprimento e do lugar para este estabelecido (salvo se essa faculdade houver  sido afastada pelos interessados). 

            Entendeu a Srª Juíza que “estamos perante um caso de simulação entre as partes ao outorgarem o segundo contrato, dado que a vontade declarada neste não corresponde à real de regular a relação desportiva, e cujo regime leva igualmente à validade do negócio dissimulado: a manutenção do primeiro contrato e do respectivo clausulado – art. 241º do CC.”

            A apelante vem pôr em causa este entendimento porquanto nada se refere na sentença sobre a intenção de enganar terceiros nem se indica o terceiro ou terceiros que se visava enganar, o que, por se tratar de um requisito matricial para a existência e qualificação da simulação, impedia a referida qualificação e consequentemente a nulidade imputada ao contrato de 17/6/99. Conclui assim que a sentença violou o disposto no art. 240º nº 1 do CC.

            Vejamos se lhe assiste razão.

            Constata-se, efectivamente, que a sentença não explicita com clareza que a divergência entre a vontade declarada pelas partes no contrato datado de 17/6/99 e a vontade declarada no contrato datado de 9/6/99 (que considera a vontade real), tivesse o intuito de enganar terceiros, não identificando quem seriam os terceiros visados, nem isso foi, aliás, explicitamente articulado pelo A. na petição.

Permitirão, ainda assim, os elementos de facto apurados considerar que houve simulação?

Como ensinava o Prof. Mota Pinto[2] referindo-se ao disposto pelo art. 240º nº 1 do CC, são elementos integradores do negócio simulado

a) a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração;

b) acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório);

c) o intuito de enganar terceiros.

Ainda segundo este autor, a simulação é inocente, se houve o mero intuito de enganar terceiros, sem os prejudicar (animus decipiendi) e é fraudulenta se houve o intuito de prejudicar terceiros ilicitamente ou de contornar qualquer norma da lei (animus nocendi).

            Ora, na medida em que foi dado como assente que, com um intervalo de oito dias, as partes formalizaram dois contratos de trabalho desportivo, referentes às mesmas épocas desportivas, com conteúdo não inteiramente coincidente - mormente em matéria retributiva, já que o primeiro fixava as retribuições devidas em dólares americanos e valores líquidos e o segundo em escudos, correspondendo os valores neste indicados à conversão em escudos, à razão de 1 US$=180$00, dos valores constantes no 1º, mas sem conter a cláusula que nele constava e que determinava que, no final de cada época, se procedesse ao acerto, ou seja, ao apuramento da diferença (atenta a variação do câmbio ao longo do tempo), sendo certo que nele (o 1º) também se estabelecia que, em termos monetários, era este o contrato válido – e que o segundo contrato foi celebrado para efeitos de registo desportivo, cremos encontrarem-se aqui reunidos todos os elementos integrantes da simulação relativa, já que sob o contrato assinado em 17/6/99 e registado se encontrava o outro, assinado em 9/6/99 (art. 241º CC), que obedecia ao requisito de forma exigido pelo art. 2º da L. 28/98 de 26/6. 

Embora formalizados em datas distintas, no 1º contrato já se deixa entender a existência de um acordo das partes relativamente à formalização de um outro, ao deixar expresso que, em termos monetários, o que era válido era aquele e não esse outro. Fica ainda clara a divergência entre a vontade das partes e a declaração no que concerne aos valores monetários que constariam do segundo contrato e a intencionalidade dessa divergência. Por outro lado, ao dar-se como assente que o segundo contrato foi celebrado para efeitos de registo desportivo, está também assente o intuito de enganar terceiro (não sendo indispensável o intuito de prejudicar, se bem que em regra seja esse o motivo determinante da simulação), sendo que o terceiro em causa era, pelo menos, a entidade que procede ao registo, ou seja, a Federação Portuguesa de Futebol (federação dotada de utilidade pública desportiva, cfr. art. 6º nº 1 da citada L. 28/98). Além disso, na medida em que, à época, a tendência no mercado cambial era que o escudo desvalorizasse em relação ao dólar, poder-se-ia ainda presumir que, ao omitir a referência da retribuição ao dólar, assim como a obrigação de proceder ao acerto no final de cada temporada, havia ainda a intenção de enganar e prejudicar as Finanças Públicas e a Segurança Social, uma vez que os impostos e taxas que incidem sobre as retribuições iriam incidir sobre as declaradas no contrato registado, o que, no contexto, até poderá ser considerado como facto notório (cfr. art. 514º nº 1 do CPC). Mas, mesmo que assim não se entenda, pelo menos a intenção de enganar a FPF, afigura-se-nos indiscutível.

Corroboramos pois o entendimento a que chegou a Srª Juíza (se bem que em termos conclusivos, não suficientemente explicitado) quanto à existência de simulação.

Não tem assim razão a apelante também quanto ao seu segundo argumento, não tendo a sentença violado o disposto pelo art. 241º nº 1 do CC.

Mas a R. invoca ainda a violação do art. 394º nº 2 do CC, por a Srª Juíza ter assentado a  sua convicção sobre a simulação apenas em prova testemunhal, o que não é consentido pelo referido preceito legal.

Com efeito pode ler-se no despacho de fls. 148: “Convicção do tribunal: baseou-se  fundamentalmente no depoimento de (M), advogado que aconselhou juridicamente o A. e interveio na negociação do contrato de trabalho celebrado em 9/6/99, estando presente inclusive na reunião ocorrida em Lisboa entre o A. e (J), confirmando que logo nessa reunião ficou acordado que seria necessário celebrar posteriormente outro contrato que seria válido unicamente para efeitos de registo desportivo, onde a retribuição do A. teria de constar em escudos. …”.
Dispõe o art. 394º do CC
1- É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos art. 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.
2- A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores.
3- -…
Como referiam Pires de Lima e Antunes Varela em anotação ao preceito em causa[3], “O objectivo dos nºs 1 e 2 é afastar os perigos que a admissibilidade da prova testemunhal seria susceptível de originar: quando uma das partes (ou ambas) quisessem infirmar ou frustrar os efeitos do negócio poderia socorrer-se de testemunhas para demonstrar que o negócio foi simulado, destruindo assim, mediante uma prova extremamente insegura, a eficácia do documento (vide Vaz Serra, Provas nº 136).
Não obstante a formulação irrestrita dos nºs 1 e 2, Vaz Serra propugna a admissibilidade da prova testemunhal em determinadas situações excepcionais: quando exista um começo ou princípio de prova por escrito; quando se demonstre ter sido moral ou materialmente impossível a obtenção de uma prova escrita; e ainda em caso de perda não culposa do documento que fornecia a prova.”
Com efeito, referia o Prof. Vaz Serra[4]  “Quando há um princípio de prova por escrito que torne verosímil o facto alegado, a  prova testemunhal já não é o único meio de prova do facto, justificando-se a excepção por, então, o perigo da prova testemunhal ser eliminado em grande parte visto a convicção do tribunal se achar já formada parcialmente com base num documento.”
            Também o Prof. Mota Pinto, em parecer publicado na CJ ano X, T. 3, pag. 10 e seg.  sustentava:
“A interpretação do art. 394º impõe, com efeito, alguma maleabilidade, sob pena de a rigidez de interpretação desta norma conduzir nalguns casos a graves iniquidades.
Por razões de justiça, entendemos que a existência de um princípio de prova por escrito, tal como é definido e aplicado nos sistemas jurídicos francês e italiano, poderá permitir o recurso à prova testemunhal.
Com menos hesitação afirmamos ainda que, existindo já prova documental susceptível de formar a convicção de verificação do facto alegado, é de admitir a prova por testemunhas, a fim de:
1º- interpretar o contexto dos documentos conforme prescreve o nº 3 do art. 393º do CC, na linha de uma orientação fortemente sedimentada na jurisprudência e na doutrina.  …
2º- completar a prova documental desde que esta, a existir … constitua por si só, um indício que torne verosímil a existência de simulação, a qual poderá ser plenamente comprovada não só com a audição de testemunhas juxta scripturum – pelos esclarecimentos e precisões que venham a fornecer à interpretação dos documentos – mas mesmo como modo de integração – complementar, repetimos – da prova documental.”
Ora no caso vertente temos a contra-declaração das próprias partes, uma vez que o contrato dissimulado foi também reduzido a escrito. Constitui, sem dúvida, um princípio de prova documental que,  na senda de Vaz Serra e Pires de Lima/Antunes Varela, permite afirmar que deixa de se justificar a proibição de prova testemunhal quanto ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado quando invocado pelos próprios simuladores (como foi o caso). Tem ainda plena aplicação o ensinamento de Mota Pinto: existindo já prova documental que indicia a simulação, é lícito o recurso à prova testemunhal para interpretar tais documentos.
Foi justamente o que sucedeu no caso com a inquirição da testemunha (M), que como decorre da motivação, veio fazer luz sobre ambos os contratos, permitindo a respectiva interpretação.
Não incorreu, pois, a Srª Juíza em violação do art. 394º nº 2 do CC.

Improcede, assim na totalidade o recurso da R.

Da apelação interposta pelo A.

Vem o A. sustentar que a matéria por si articulada nos nºs 12º a 15º da p.i. deveria ter sido considerada admitida por acordo, por a R. não ter tomado posição definida sobre ela, uma vez que da posição que assumiu na contestação, parecendo querer arguir a nulidade da petição, não tirou as necessárias consequências pedindo a absolvição da instância e também não fez uso do disposto no nº 3 do art. 490º do CPC, declarando que não sabia, nem tinha obrigação de saber, se os valores alegados são reais.

Vejamos antes de mais o teor dos referidos art. 12º a 15º da p.i.:

“12º- Na época de 1999/2000 o A. recebeu a quantia de esc.: 90.000.000$00 quando o equivalente a 500.000 dólares seriam esc.: 100 .572.458$33, pelo que se verifica uma diferença de esc.: 10.572.458$33;

13º- Na época 2000/2001 o A. recebeu a quantia de esc.: 90.000.000$00 quando o equivalente a 500.000 dólares seriam esc.: 112.100.666$67, pelo que se verifica uma diferença de esc.: 22.100.667$67;

14º- Na época 2001/2002 o A. recebeu a quantia de esc.: 90.000.000$00 quando o equivalente a 500.000 dólares seriam esc.: 109.549.073$54, pelo que se verifica uma diferença de esc.: 19.549.073$54;

15º- Na época 2002/2003 o A. recebeu a quantia de esc.: 90.000.000$00 quando o equivalente a 500.000 dólares seriam esc.: 106.676.333$33, pelo que se verifica uma diferença de esc.: 16.676.333$33;”.

Sobre esta matéria se pronunciou a R. no art. 18º da contestação nos seguintes termos:

“18º Mas, mesmo que assim não fosse, o que se admite apenas por mero exercício de exegese jurídica, haveria que relevar a absoluta inexpressividade e infundamentação do pedido do A., omitindo as taxas de câmbio que utilizou e respectiva origem, elemento imprescindível e requisito indispensável para a substantivação e admissibilidade do pedido.”

Na decisão da matéria de facto a Srª Juíza considerou que não se provou “qual o valor do equivalente em dólares às quantias recebidas pelo A. em escudos nas épocas de 99 a 2003” (cfr. fls. 148), decisão que não mereceu qualquer reclamação (cfr. acta de fls. 151).

Ora é manifesto que, nos pontos em causa, a petição sofre de deficiente articulação dos factos  que servem de fundamento ao pedido de diferenças salariais, porquanto se limita a indicar, de forma absolutamente conclusiva, o valor das diferenças devidas em cada época, omitindo os pressupostos factuais determinantes desse cálculo, designadamente o valor do câmbio na data ou datas a considerar.

A R. não arguiu a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial, como parece vir agora sustentar o A., nem tinha que a arguir[5], porque o vício de que padecia a petição não era efectivamente a ineptidão. Com efeito, não faltava, nem eram ininteligíveis, a indicação do pedido nem da causa de pedir; o pedido não estava em contradição com a causa de pedir, nem havia cumulação de pedidos ou de causas de pedir substancialmente incompatíveis (art. 193º nºs e 1 e 2 do CPC). Havia sim e tão só, deficiente articulação dos factos, integradores da causa de pedir (embora esta seja perceptível), indispensáveis à decisão. Trata-se de factos constitutivos do direito do A., recaindo por isso e de acordo com o previsto no art. 342º nº 1 CC, sobre ele o ónus de alegação e de prova.

Ora, nos termos do art. 490º nº 1 do CPC, a R. apenas tem de impugnar os factos articulados, não os que estão pressupostos nas conclusões totalmente desprovidas de suporte factual.

Podia e devia o tribunal ter-se apercebido da deficiência e, ao abrigo do art. 27º al. b) do CPT, ter convidado o A. a supri-la, articulando convenientemente os factos. Contudo, não o fez. Nesta fase processual já não é possível suprir essa omissão.

Não podemos é esquecer que, antes de mais, a deficiência em causa é imputável ao A., pelo que é sobre ele que têm de recair as consequências negativas daí resultantes.

Não podem pois, contrariamente ao que pretende o apelante, dar-se como assentes as conclusões constantes dos mencionados art. 12º a 15º da p.i. porque absolutamente destituídas de base fáctica.

Improcede, pois o recurso nesta parte.

E também no que respeita aos juros de mora o recorrente carece de razão.

Embora tivesse sido formulado um pedido líquido, o certo é que, por deficiente alegação do A., o tribunal considerou não dispor de elementos para proceder à liquidação, acabando por reconhecer ao A. um crédito, mas ilíquido.

Sendo o crédito ilíquido, conforme resulta do nº 3 do art. 805º do CC, não há mora enquanto não se tornar líquido, a menos que a falta de liquidez seja imputável ao devedor, o que não é o caso, como vimos, pois essa falta de liquidez é apenas imputável ao credor, ora A., que não articulou os factos indispensáveis.

Nenhuma censura nos pode pois merecer a sentença nesta parte, improcedendo assim, também, o recurso do A..

Decisão

Em face do que ficou exposto se acorda em julgar improcedentes ambas as apelações, confirmando inteiramente a sentença recorrida.

Custas em cada um dos recursos pelos recorrentes.

Após trânsito, remeta-se cópia deste acórdão à Direcção Geral de Contribuições e Impostos, bem como ao Centro Regional de Segurança Social

            Lisboa, 31 de Outubro de 2007

Maria João Romba

Paula Sá Fernandes

José Feteira

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[1] Do seguinte teor: “Este es el contrato válido, referente a los montantes de diñero, que serão regulados poe la diferença en el final de cada temporada” (sic).
[2] Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 2ª ed., pag. 470.
[3] CC Anotado, 1º vol., 3ª ed. pag. 342.
[4]  RLJ nº 107, a fls. 312.
[5] Aliás trata-se de uma excepção de conhecimento oficioso.