Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2123/18.0TXLSB-C.L1-5
Relator: ALDA TOMÉ CASIMIRO
Descritores: INTÉRPRETE
TRADUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/01/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: - Para que haja nomeação de tradutor/intérprete, não basta que a pessoa que intervenha no processo seja de nacionalidade estrangeira. É preciso que não conheça ou não domine a língua portuguesa.

- E, ainda que se considerasse que o Tribunal deveria ter nomeado intérprete para assistir a reclusa na diligência, estando perante uma nulidade da previsão da alínea c) do nº 2 do art. 120º do Cód. Proc. Penal, segundo o qual “constituem nulidades dependentes de arguição (…) a falta de nomeação de intérprete nos casos em que a lei a considerar obrigatória”, sempre esta estaria sanada porque a reclusa/recorrrente assistiu ao acto sem a ter arguido.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório

No âmbito dos autos de Liberdade Condicional com o nº 2123/18.0TXLSB-C que corre termos no Juiz 4 do Juízo de Execução das Penas de Lisboa, do Tribunal de Execução das Penas de Lisboa, vem a arguida I. interpor recurso da decisão que lhe recusou a concessão da liberdade condicional.
Em tal recurso a reclusa pede que seja anulada a sua audição e que se ordene a repetição desse acto bem como a tradução, para búlgaro, do despacho que não lhe concedeu a liberdade condicional. Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:
1ª - A aqui arguida foi ouvida perante juiz em 24/05/2019 para efeitos de concessão de Liberdade Condicional nos termos art. 176º do C.E.P.M.P.L., sem presença de intérprete.
2ª- Tal audiência é nula pois perante o Direito comunitário - vd. Directiva nº 2010/64/ EU, que já foi transposta para o ordenamento jurídico Português no seu nº 1 do art. 2º aponta que "Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal em causa beneficiem, sem demora, de interpretação durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências no tribunal e as audiências intercalares que se revelem necessárias.".
3ª- Devendo ser interpretado extensivamente à fase executória da Pena.
4ª- De igual modo deve-se interpretar nos termos "durante a tramitação penal" que in casu, é a verificação periódica da liberdade condicional.
5ª - A aqui reclusa tem direito a assimilar de modo competente e perfeito a audiência e discussão com o Juiz titular do processo na audição para concessão da Liberdade condicional sendo fulcral no seu direito de defesa no amplu sensu nos termos da C.E.D.H., e da C.R.P., no seu art. 32º nº 1 "O processo criminal assegura todas as garantias de defesa", essencialmente no direito a uma interpretação concreta e efectiva e sempre que legalmente seja obrigatório ou processualmente necessária, como certamente será no caso em apreço.
6ª- De modo que é inconstitucional a interpretação que o Tribunal "a quo", faz do art. 32º nº 1 da C.R.P., quando interpreta esta norma no sentido de negar uma interpretação na audição à aqui reclusa de forma a preparar a eventual concessão da Liberdade condicional e hipotética impugnação da sentença que negou tal concessão por violação do art. 32º nº 1 da C.R.P., conjugada com o art. 2º nº 1 da Directiva nº 2010/64/UE
7ª- A aqui reclusa está em Portugal faz 4 anos e 1/2, claro que já vai compreendendo alguma coisa da língua de Camões, mas tal compreensão não chega ainda aos conceitos legais e jurídicos que não domina, pelo que a tradução é de inteira pertinência
8ª- Aquela directiva é uma norma que tem uma relação supra infra ordenacional com a legislação Nacional e deve ser obedecida pelas instituições nacionais, nos termos da pirâmide de Kelsen.
9ª- De modo que, deve ser revogado tal despacho por outro que ordene a deslocação, de intérprete à audição da reclusa nos termos do art. 176º do C.E.P.M.P.L., bem como a sua repetição.
10ª- Da mesma forma a sentença que não concedeu liberdade condicional nos termos do art. 173º e ss do C.E.P.M.P.L., não foi traduzido para Búlgaro.
11ª- Quando nos termos da Lei comunitária deveria ter sido – nº 1 do art. 3º da referida Directiva comunitária prescreve que "Os Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo.
12ª- Muito menos podia a reclusa autorizar a falta de intérprete sem 1º ser informada das consequências tal acto por defensor ou aconselhamento jurídico ou "obtido, por outra via, pleno conhecimento das consequências da sua renúncia, e de que essa renúncia seja inequívoca e voluntária" – nº 8 do art. 3º da referida Directiva comunitária.
13ª- Tornando-se nulo, de modo insanável o despacho quando não traduzido, por menção ao Acórdão da Rl. Évora de 20/12/2018 do Relator JOÃO GOMES DE SOUSA, processo nº 55/2017.9GBLGS.E1, consultável in dgsi.pt. "22 - Entende-se, portanto, não se estar perante mera irregularidade ou nulidade sanável, figuras que se entendem revogadas sempre que exista uma "obrigação positiva" a onerar o Estado e proveniente de norma comunitária imperativa, levando necessariamente a considerar revogada a al. c) do nº 2 do artigo 120º do Código de Processo Penal. -Sublinhado nosso.
14ª- De igual modo, devemos interpretar extensivamente à fase executória da Pena aplicada à aqui reclusa.
15ª- Finalmente é inconstitucional a interpretação que o Tribunal "a quo" faz do art. 32º nº 1 da C.R.P. quando interpreta esta norma no sentido de negar uma tradução da sentença que nega a concessão da liberdade condicional numa língua que entenda ou na sua língua natal à aqui reclusa de forma a preparar a eventual concessão da Liberdade condicional e hipotética impugnação da sentença que negou tal concessão por violação do art. 32º nº 1 da C.R.P., conjugada com o art. 2º nº 1 da Directiva nº 2010/64/ UE.
16ª- Devendo ser anulado tal despacho por outro que ordene a tradução do mesmo em língua Búlgara.
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O Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou, pugnando pela procedência do recurso e assim concluindo:
1. A recorrente invoca que a sua audição, realizada, nos termos do Art. 176º do CEPMPL, no dia 24/05/2019, na ausência de tradutor interprete padece de nulidade, bem como a sentença proferida, por não ter sido traduzida para a sua língua de origem, o búlgaro.
2. Analisando o Auto de audição da recorrente, constante de fls. 1303-1305, do Apenso B, observa-se que o espaço, referente ao intérprete, não contêm qualquer nome, nem nas declarações prestadas pela mesma existe menção de que prescindiu de tradutor intérprete, por dominar ou entender a língua portuguesa.
3. O certo é que prestou as suas declarações, que as rubricou e assinou.
4. Como decorre da factualidade, dada como provada na sentença, está longe de estar demonstrado que não é conhecedora da língua portuguesa, como pretende lançar o anátema, em particular, mercê da frequência do curso de português para estrangeiros, em ambiente prisional, permitindo-lhe exercer, até, actividade laboral, na oficina da Polismar.
5. E em boa verdade, impõe-se distinguir a necessidade de nomeação de tradutor intérprete, em acto processual, a cidadão estrangeiro, por não compreender, de todo, a língua portuguesa e não conseguir comunicar, das circunstâncias desse mesmo cidadão, apesar de não dominar a língua, de forma perfeita, mas compreender, mormente as perguntas que lhe são feitas e expressar-se, verbalmente, em relação a estas.
6. Estamos em crer ser este último caso, no que respeita à recorrente.
7. Não se questiona o quadro legal que esgrima, em matéria de nulidade processual, em que se traduz a falta de nomeação de tradutor intérprete a arguido/condenado/recluso/recorrente estrangeiro, em acto processual e sua consequência legal, atento o disposto conjugado dos Arts. 92º 118º nº 1, 120º nº 2 al. c) e nº 3 al. a) do C. P. Penal, "in casu", aplicáveis por força do Art. 154º do C.EPMPL.
8. Como não se ignora, igualmente, a Directiva 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 22/05/2012, direito interno, o qual preconiza escrupulosa defesa dos direitos, liberdades e garantias do cidadão em geral.
9. E inegável que as regras do processo penal português, mormente, na vertente da defesa dos direitos, liberdades e garantias do cidadão, exigem um grau de respeito elevado e irrepreensível, não compatível com a mínima lesão de direitos fundamentais do cidadão.
10. Aliás, tais regras, em particular, a que se mostra em apreciação, pretende, exatamente, acautelar, eventual, prejuízo desse direito de defesa, com consagração na Constituição da República Portuguesa''.
11. Verificando-se a ausência de qualquer menção, no Auto de audição, de que prescindiu de tradutor interprete, por dominar a língua ou compreender a língua portuguesa, em face do seu recurso, impõe-se aplicar o quadro legal vigente.
12. Assim, entendemos que independentemente, de se poder questionar a tempestividade da arguição da nulidade invocada é de perfilhar as consequências e efeitos desta, nos termos do Art. 122º nºs 1, 2 e 3 do C. P. Penal.
13. O Ministério Público, na estrita defesa dos princípios da legalidade e da objetividade, não pode deixar de pugnar pela procedência do recurso, restrita à repetição da audição da reclusa/ recorrente, nos termos do Art. 176º do CEPMPL, com a presença de tradutor intérprete a nomear e prolação de nova sentença, a qual deverá ser traduzida, com notificação à mesma e ao seu mandatário.
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Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer onde acompanha a posição expressa pelo Ministério Público junto da primeira instância.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação

Compulsados os autos verifica-se que, sendo a reclusa/recorrente de nacionalidade búlgara, não lhe foi nomeado tradutor quando foi inquirida nos termos do art. 176º do CEPMPL, nem ela prescindiu de tradutor.
Ainda, a decisão que lhe negou a concessão da liberdade condicional não foi traduzida para búlgaro.
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Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Em causa está a nulidade a que alude a alínea c) do nº 2 do art. 120º do Cód. Proc. Penal, aplicável ex vi o art. 154º do CEPMPL.

Notificada da decisão que não lhe concedeu a liberdade condicional, veio a reclusa, ora recorrente, invocar a nulidade dessa decisão por falta de nomeação de tradutor aquando da sua audição.
Estando em causa a possibilidade de concessão de liberdade condicional, preceitua o nº 1 do art. 174º do CEPMPL que “encerrada a instrução, o juiz, por despacho, convoca o conselho técnico para um dos 20 dias seguintes e designa hora para a audição do recluso, a qual tem lugar em acto seguido à reunião daquele órgão” e, nos termos do nº 1 do art. 176º do mesmo código, “o juiz questiona o recluso sobre todos os aspectos que considerar pertinentes para a decisão em causa, incluindo o seu consentimento para a aplicação da liberdade condicional”, sendo que, em conformidade com o disposto no nº 5 daquele art. 176º “a audição do recluso é reduzida a auto”.
Analisado tal auto, verifica-se que, efectivamente, sendo a reclusa de nacionalidade búlgara, não lhe foi nomeado tradutor quando foi inquirida, nem ela prescindiu expressamente de tradutor.
Porque a questão da presença do tradutor não está regulada no CEPMPL, haverá que aplicar as regras do Cód. Proc. Penal, por força do disposto no art. 154º do CEPMPL.
Determina o nº 2 do art. 92º do Cód. Proc. Penal que “quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo (…)”.
Assim, para que haja nomeação de tradutor/intérprete, não basta que a pessoa que intervenha no processo seja de nacionalidade estrangeira. É preciso que não conheça ou não domine a língua portuguesa.
Ora da análise do auto a que supra se faz referência resulta que as declarações da reclusa são extensas e detalhadas. Não se limitou a dar o consentimento para a liberdade condicional, nem a dizer o que tenciona fazer quando em liberdade. Também descreveu o contexto em que praticou os crimes, descreveu as relações familiares e juntou até uma declaração de trabalho (o que demonstra que estava ciente do propósito da diligência).
Tal, salvo o devido respeito por diferente opinião, leva à conclusão de que a arguida conhece e entende a língua portuguesa, ao que não será alheia a circunstância de, segundo a própria, se encontrar no nosso país há 4 anos e meio e ter frequentado um curso de português para estrangeiros, em ambiente prisional.
Conclusão diversa conduziria à consideração de que o auto de audição da reclusa é falso, porque a Senhora Juiz que presidiu à diligência teria que ter inventado declarações que a condenada não proferiu… mas não foi levantado qualquer incidente de falsidade do auto, o que só pode atestar a veracidade do conteúdo do mesmo.
Aqui chegados, temos que afirmar que a reclusa tinha conhecimentos da língua portuguesa suficientes para entender a finalidade da diligência e prestar as declarações em causa, o que implica a desnecessidade de nomear intérprete para a diligência – relembramos que o nº 2 do art. 92º do Cód. Proc. Penal só estatui a necessidade de nomear intérprete “quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa”.
Todavia, ainda que se considerasse que o Tribunal deveria ter nomeado intérprete para assistir a reclusa na diligência, não podemos escamotear que sempre estaríamos perante uma nulidade da previsão da alínea c) do nº 2 do art. 120º do Cód. Proc. Penal, “constituem nulidades dependentes de arguição (…) a falta de nomeação de intérprete nos casos em que a lei a considerar obrigatória”.
Ora dispõe a alínea a) do nº 3 que “as nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas: a) tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto esteja terminado”.
No caso, porque a reclusa/recorrrente assistiu ao acto sem ter arguido a nulidade, temos que considerar que esta, a existir, sempre estaria sanada.

Alega a recorrente que a sua audição é nula perante o Direito Comunitário, concretamente porque a Directiva nº 2010/64/ EU, que já foi transposta para o Ordenamento jurídico Português, no seu nº 1 do art. 2º aponta que "Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal em causa beneficiem, sem demora, de interpretação durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências no tribunal e as audiências intercalares que se revelem necessárias".
Contudo, tal Directiva (nº 2010/64/EU), refere expressamente as fases processuais a que se aplica, não incluindo a fase da execução da pena.
E ainda que se interpretasse extensivamente tal directiva, em ordem a que a mesma tivesse aplicação à fase executória da pena, não nos parece que a mesma acrescente algo no caso. É que o direito processual penal português já determina que “quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo (…)” – cfr. o disposto no nº 2 do art. 92º do Cód. Proc. Penal já citado – e comina tal falta com nulidade, apenas determinando que se trata de uma nulidade sanável, em conformidade com o estabelecido na alínea c) do nº 2 do Cód. Proc. Penal.
Este entendimento não viola, por qualquer forma o disposto no nº 1 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa, nem as garantias de defesa da recorrente.

Quanto ao facto de a decisão – que não concedeu a liberdade condicional – não ter sido traduzida para búlgaro, entendemos que é questão que não pode ser levantada, sem mais, em sede de recurso.
Com efeito, impunha-se que a recorrente solicitasse a tradução à 1ª instância e só se este requerimento fosse indeferido é que poderia vir interpor recurso dessa decisão. 
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Decisão

Pelo exposto acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UCs.

Lisboa, 1.10.2019
(processado e revisto pela relatora)

Alda Tomé Casimiro
Anabela Simões Cardoso