Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27/22.1TPEUR-B.L1-5
Relator: MAFALDA SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: INQUÉRITO DA PROCURADORIA EUROPEIA
ARRESTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I - À medida cautelar de arresto decretada no âmbito de Inquérito da Procuradoria Europeia são aplicáveis as concretas normas de direito interno, sem prejuízo da validade dos elementos probatórios recolhidos ao abrigo deste mecanismo de cooperação alargada em outro país da União se a tal não constituir obstáculo a livre apreciação da prova.
II – Ainda que o Procurador Europeu Delegado pretenda (no requerimento inicial) fazer equivaler o apuramento das vantagens da prática dos crimes (e correspondentes prejuízos) pelas autoridades espanholas, à liquidação a que alude o art.º 8.º da Lei 5/2002, o mesmo não pode aqui valer, pois que em nada se assemelha ao apuramento do que seja a vantagem da atividade criminosa prevista na lei nacional.
III – Podendo o arresto para garantia da perda alargada ser pedido antes da liquidação, a todo o tempo, desde que apurado o montante da incongruência (art.º 10.º, n.º 2), a lei não se basta com uma alegação genérica da existência de incongruência, impondo a liquidação do seu montante ou o seu apuramento provisório.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
Em 19/07/2023, a Juíza de Instrução Criminal de Lisboa (Juiz 3) julgou improcedente a oposição deduzida e manteve o arresto preventivo dos bens do arguido AA que havia sido decretado em 20/02/2023.
Não se conformando, interpôs recurso o arguido, peticionando a revogação da decisão recorrida, concluindo a sua motivação, nos termos que se reproduzem:
«1. A Decisão proferida em 19/07/2023, que manteve o arresto preventivo de bens do arguido AA, julgando improcedente a Oposição que deduziu contra o arresto decretado, padece de vários (e graves) erros factuais e jurídicos.
2. Está em causa, no caso sub judice, um procedimento de arresto no âmbito do regime da perda alargada de bens a favor do Estado estabelecido pela Lei n.º 5/2002, de 11/01.
3. Foi com fundamento no regime previsto nesta Lei que o Ministério Público deduziu a petição de arresto.
4. Foi ao abrigo do disposto nesta Lei que o arresto de bens foi decretado pelo Tribunal.
5. E foi tendo presente o regime previsto nesta Lei que o arguido carreou provas e argumentos na Oposição que deduziu contra o arresto decretado.
6. Portanto, a questão crucial que se encontrava submetida à apreciação do Tribunal consistia em saber se estavam ou não preenchidos os pressupostos inerentes à concreta medida cautelar perpetrada, por referência à concreta pretensão deduzida pelo Ministério Público e ao enquadramento jurídico convocado.
7. Entende, todavia, o Tribunal a quo que «a lei não exige fortes indícios da incongruência do património, pelo que carece de fundamento legal esse ponto da oposição» e, como tal, mantém o arresto decretado «para garantia da quantia de, pelo menos, €25.908.511,23», que é o valor estimado como constituindo vantagem do crime no âmbito dos factos em investigação pelas autoridades espanholas.
8. Ora, não se sabe em que redação dada aos artigos 10.º e 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11/01, é que se dispensa o Ministério Público de alegar e provar a existência de fortes indícios da desconformidade do património do arguido.
9. O que se sabe é que constitui entendimento jurisprudencial pacífico que, para que um arresto preventivo de bens possa ser decretado nos termos da Lei n.º 5/2002, de 11/01, é necessário demonstrar que existe uma desproporção entre o património do arguido e os seus rendimentos lícitos — vide, neste sentido, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-07-2022, proferido no âmbito do processo n.º 12/19.0FAPRT-L.P1.
10. Do mesmo modo, é sobejamente sabido que o arresto previsto na Lei n.º 5/2002, de 11/01, constitui um meio processual penal que tem em vista garantir o pagamento do valor de uma incongruência patrimonial determinada nos termos do n.º 1 do artigo 7.º, e não o confisco do valor da vantagem decorrente da prática de crimes - vide, neste sentido, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-11-2020, proferido no âmbito do processo n.º 230/14.8TAVLG-G.P1, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04-02-2020, proferido no âmbito do processo n.º 65/17.6PJLRS-C.L1-5, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-12-2019, proferido no âmbito do processo n.º 1423/18.4T8VRL.G1.
11. Logo, ao decidir decretar e manter um arresto, no âmbito do regime da denominada perda alargada de bens a favor do Estado, alicerçado numa alegada incongruência patrimonial (aliás não liquidada), para garantia de uma quantia estimada como vantagem do crime (25.908.511,23 C), o Tribunal a quo violou, por errada interpretação, o disposto nos artigos 10.º e 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11/01.
12. Mesmo que assim não fosse (no que não se concede e se admite apenas como hipótese de raciocínio), sempre se afiguraria patente a insubsistência de fortes indícios da desconformidade do património do arguido AA, ou seja, da incongruência entre o património apurado e o rendimento lícito apresentado, tendo em conta o conjunto das provas oferecidas e produzidas no incidente de oposição ao arresto, que o Tribunal a quo ostensivamente desprezou.
13. Desde logo e em primeiro lugar, para que o arresto fosse decretado, tinha o Ministério Público o ónus (também probatório) de demonstrar fortemente indiciada a prática dos crimes afirmados.
14. Porém, um qualquer quadro ou mapa (ainda que provisório), com a identificação dos circuitos de "fraude carrossel" em sede de IVA que se mostram em investigação pelas autoridades em Espanha, não consta da promoção, não consta do despacho que determina o arresto, nem consta do despacho de manutenção do arresto decretado e é, nessa medida, desconhecido do arguido AA, que se viu assim impedido de apreciar os termos em que o Ministério Público quantificou o valor de um alegado prejuízo estimado de 25.908.511,23€, em ordem a exercer o seu direito ao contraditório como parte do seu direito de defesa.
15. Tão-pouco sabe o arguido AA - porque a petição de arresto é omissa a esse respeito - a medida do seu suposto "contributo" no esquema criminoso que se investiga no processo espanhol por via das ações que supostamente executa em Portugal, ou a partir de Portugal.
16. Refere-se unicamente que «(o) teor de tais documentos sugere que AA assume proficientemente a gerência de facto de sociedades de fachada que são interpostas no circuito comercial concebido por todos, para efeitos de evasão a IVA em transações de mercadoria e componentes informáticos» (artigo 16.º), mas não se individualizam quaisquer transações e, como tal, não se alcança o teor e o alcance do envolvimento do arguido AA em operações que alegadamente faziam parte de um circuito de fraude ao IVA, com valores ascendentes a 25.908.511,23€.
17. Neste particular, e a propósito dos factos relevantes tidos por fortemente indiciados, considerou o Tribunal a quo que, «nem o arguido procurou, tão pouco, contradizer os mesmos, invocando incapacidade de defesa que, ante a pormenorização dos pontos da petição de arresto dados por reproduzidos na decisão de decretamento, e explanados supra, se revela incompreensível» (p. 5).
18. Trata-se aqui de observação que só pode ser própria de quem não leu atentamente a Oposição e que ostensivamente oblitera que o arguido AA pretendeu, embora sem sucesso, que lhe fosse facultado o acesso aos concretos elementos probatórios, constantes dos autos, que foram relevantes para considerar indiciados os concretos factos imputados, de modo a poder, como afirma o Tribunal a quo, "contradizer os mesmos".
19. Basta atentar no Despacho proferido em 21/03/2023, com a referência 8311496, e no Despacho proferido em 27/03/2023, com a referência 8321946, para se perceber que os volumes do processo e os seus apensos indiciadores não foram disponibilizados ao arguido, em manifesta violação do n.º 8 do artigo 194.º do CPP.
20. Há, portanto, que concluir que o decretamento do arresto (e a sua manutenção) como medida de garantia patrimonial - ao estribar-se numa promoção omissa de factos essenciais - não assegura o direito a um processo justo e equitativo, nem as próprias garantias de defesa do arguido, incluindo o direito ao contraditório, violando o disposto nos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
21. Em segundo lugar, para que o arresto fosse decretado, tinha o Ministério Público de proceder à demonstração do fundado receio de diminuição da garantia patrimonial e consequentemente da necessidade da providência.
22. No entanto, analisando-se com seriedade o comportamento do arguido AA, percebe-se que não há qualquer lógica de dissipação de património, mas antes um comportamento no sentido de integrar e estabilizar um conjunto de bens na sua titularidade.
23. Basta ver que, como consta da própria promoção, do despacho que determina o arresto e do despacho de manutenção do arresto decretado, o arguido AA tem inscrito a seu favor 1/3 do direito de propriedade sobre um imóvel desde 1997.
24. Por outro lado, mostra-se inscrito a seu favor o direito de propriedade sobre o imóvel onde atualmente reside, e que foi adquirido em 2018, com recurso a crédito hipotecário.
25. O mesmo se diga quanto às viaturas adquiridas pelo arguido AA entre maio de 2019 e 2023, sem ónus ou encargos associados, e que igualmente se encontram registadas em seu nome.
26. É, portanto, precipitada a conclusão de dar como indiciado um qualquer receio, muito menos fundado, de dissipação de património.
27. Aliás, em bom rigor, não vem indicado na Decisão recorrida um único facto que suporte tal conclusão, apenas se dizendo que «não é indiferente a sua ligação a outros elementos, indiciados como seus co-autores, e que residem fora do pais - e a outros que, pela prova da oposição, -, o que poderá facilitar a dissipação do seu património» (p. 18-19).
28. O que se alega são, como se vê, meras conjeturas, desconfianças, suspeições de caráter subjetivo e sem qualquer alicerce factual, que faça antever o perigo de perda próxima da garantia patrimonial do crédito.
29. Inerentemente se concluiu que não se encontra minimamente alegado (e muito menos provado) o fundado receio de diminuição da garantia patrimonial, necessário ao decretamento do arresto preventivo.
30. Em terceiro lugar, para que o arresto fosse decretado, tinha o Ministério Público o ónus (também probatório) de demonstrar a existência de fortes indícios da desconformidade do património do arguido nos termos do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11/01.
31. Sucede que, a situação patrimonial do arguido AA nada tem de inexplicável, quando se leva em conta, como se impunha, a totalidade dos rendimentos por si declarados (vide Docs. 1 a 4 juntos com a Oposição), por comparação com os valores aritméticos (e não conjeturados) das viaturas por si adquiridas - ..., ..., BB, ... e ... (vide Docs. 5 a 11 juntos com a Oposição).
32. De resto, como se sublinhou na Oposição, o arguido AA, não só adquiriu as identificadas viaturas, como também vendeu três outras viaturas de que era proprietário, tendo recebido o valor correspondente ao respetivo preço, verbas a somar, pois, ao "rendimento lícito" (vide Docs. 12 a 17 juntos com a Oposição),
33. Quanto ao alegado valor comercial atual dos veículos arrestados, desconhece o arguido, porque não foi notificado do seu teor, as avaliações feitas pela Guarda Nacional Republicana, não tendo, nessa medida, condições de as contradizer.
34. É, porém, óbvio que, para afirmar a existência de uma desproporção entre o valor do património do arguido (no caso, composto por veículos automóveis) e o seu rendimento lícito (declarado), o valor a considerar só pode ser o da respetiva aquisição, pois só desse confronto (isto é, entre o preço dos veículos e o rendimento disponível para os adquirir) é que poderá resultar um eventual valor incongruente, não justificado, incompatível com o rendimento lícito do arguido, sendo esse montante (o da eventual incongruência patrimonial) que poderá ser declarado perdido a favor do Estado.
35. E é também óbvio que o valor de aquisição dos veículos se comprova documentalmente, como não podia deixar de ser, com a junção da declaração de venda ou da fatura ou do extrato bancário.
36. Finalmente, no que respeita à análise da situação bancária do arguido AA, fez-se notar na Oposição que há movimentos a crédito mencionados na petição de arresto que, ao contrário do que se possa supor, nada têm de estranho, suspeito, obscuro ou ilícito, comprovando-se documentalmente a sua origem (vide Does, 18 a 27 juntos com a Oposição).
37. E foi também produzida prova testemunhal a respeito do negócio da venda da ... à ..., como consta da Decisão recorrida (p. 6), assim se demonstrando a ratio subjacente ao crédito de valores na conta bancária do arguido que totalizaram 135.000,00€.
38. Contudo, desvirtuando a prova carreada para os autos pelo arguido com a Oposição, o Tribunal a quo afirma despudoradamente que este negócio «escapa às regras da lógica, (...) sobretudo quando se considera que, simultaneamente, há indícios suficientes (entendeu o Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos) que todas estão implicadas em esquema de fraude fiscal qualificada» (p. 11).
39. Uma leitura atenta da certidão remetida pelo Juízo Central Criminal de Vila do Conde (deslocalizado em Matosinhos) permitirá concluir que o negócio da venda da ... à ... não integra os factos que constituem o objeto do processo n.º 350/17.7IDPRT.
40. Naquele processo n.º 350/17.7IDPRT, os arguidos apresentaram Contestação, juntaram documentos e arrolaram testemunhas, sendo que, não só o julgamento ainda não se iniciou, como até ao trânsito em julgado da decisão final naturalmente se presumem inocentes.
41. Por seu turno, nos presentes autos de procedimento cautelar que correm por apenso ao NUIPC 27/22.1TPEUR, o arguido AA explicou, na Oposição que deduziu, a origem das entradas a crédito na sua conta bancária relacionadas com o negócio da venda da ... à ..., as quais, para além de se encontrarem documentalmente comprovadas (quer através do contrato de cessão de quota, quer através dos extratos bancários, quer através do depoimento da testemunha arrolada), constituem movimentos que nenhuma conexão têm com a factualidade objeto daquele processo e, como tal, não constituem indício de atividade criminosa.
42. Em face do que antecede, por manifesta inexistência de desconformidade do seu património nos termos do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11/01, torna-se patente que a medida de garantia patrimonial de arresto preventivo, incidente sobre automóveis, imóveis e saldos de contas bancárias do arguido AA, tinha de ser revogada.»
*
Foi admitido o recurso, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
*
A Procuradoria Europeia, representada pelo Procuradora Europeia Delegada, respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência do mesmo, concluindo a final:
«1. A primeira questão suscitada pelo recorrente consiste em apurar se a decisão proferida pelo Tribunal "a quo" violou, por errada interpretação, o disposto nos arts. 7.º e 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11.01 ao decidir e manter o arresto, no âmbito da perda alargada de bens a favor do Estado, numa incongruência patrimonial para garantia de uma quantia estimada como vantagem do crime.
2. Contrariamente ao alegado pelo arguido/recorrente forçosamente temos de concluir que a decisão que decretou e manteve o arresto preventivo não violou, por errada interpretação, o disposto nos arts. 7.º e 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11.01, alterada pela Lei n.º 2/2023, de 16.01.
3. Assim e nesta matéria dispõe o artigo 10.º-2 da Lei aludida que a todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação, quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o MP pode requerer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa.
4. A decisão proferida pelo Tribunal "a quo" decretou e manteve o arresto preventivo com base nos seguintes factos e fundamentos:
a) Fortes indícios da prática de dois dos crimes do catálogo consagrado no artigo 1.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, ou seja, por haver fortes indícios que o arguido/recorrente AA incorreu na prática dos crimes de branqueamento e associação criminosa;
b) O rendimento lícito do arguido AA é manifestamente inferior ao seu património, verificando-se que o património apurado é incongruente com o rendimento lícito (cfr. pontos 2 a 8 dos FACTOS FORTEMENTE INDICIADOS referidos no ponto IV-alínea a));
c) Fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e que AA venha a liquidar e movimentar o seu património, com vista a evitar a sua perda futura por inerência à responsabilização criminal (cfr. ponto 9 dos FACTOS FORTEMENTE INDICIADOS descriminados no ponto IV-alínea a)).
d) O valor dos bens arrestados foi restringido ao mínimo indispensável à garantia das obrigações patrimoniais do visado, ou seja, para garantia da quantia de €25.908.511,23, valor este provisoriamente liquidado pelas autoridades espanholas.
5. Por estes motivos foi decretado o arresto preventivo dos bens do arguido, para garantia da quantia de €25.908.511,23 a pagar a título solidário pelo requerido, sendo este valor provisoriamente liquidado pelas autoridades espanholas.
6. A segunda questão invocada pelo arguido consiste em apurar se consta ou não do despacho da petição inicial como foi calculado o valor de um alegado prejuízo estimado de €25.908.511.23. bem como a identificação dos circuitos da fraude em carrossel em sede de IVA e a medida do contributo do arguido no esquema criminoso em causa.
7. Ora não é verdade que não conste da petição inicial como foi calculado o valor do prejuízo estimado de €25.908.511,23.
8. O cálculo e valor do prejuízo estimado constam dos arts. 1.º a 11.º, 14.º a 37.º da petição inicial e de fls. 99 e segs. do Apenso III, sendo que tais documentos estão indicados como prova na petição inicial e foram entregues ao arguido para efeitos de exercício do contraditório ao arresto preventivo decretado pela Mm.a Juiz de Instrução Criminal em 20.02.2023.
9. A quantificação provisória do prejuízo faz parte do relatório da Autoridade Tributária Espanhola (AEAT) e da tabela de fls. 103 do Apenso III.
10. E também não corresponde à verdade que na petição inicial e despachos que determinou e manteve o arresto não estejam identificados os circuitos da fraude em carrossel, as empresas envolvidas e o papel que cada uma delas desempenha.
11. A Procuradoria Europeia na petição inicial indicou os circuitos da fraude em carrossel, as empresas envolvidas e o papel que cada uma delas desempenha no circuito da fraude.
12. As empresas foram classificadas como fornecedores (conduit company), remote trader, missing trader, sociedades emitentes de faturas falsas, sociedades fachada, conforme resulta dos artigos 5.º a 20.º da petição inicial e fls. 101 e segs. do Apenso III.
13. As empresas e circuitos de fraude em carrossel estão descriminadas na petição inicial e nos documentos de fls. 101 e seguintes do Apenso III indicados como prova na aludida petição inicial, documentos esses que foram entregues ao arguido para efeitos de exercício do contraditório ao arresto preventivo decretado pela Mm.a Juiz de Instrução Criminal em 20.02.2023.
14. Estes factos constam dos despachos que determinou e manteve o arresto e foram dados como fortemente indiciados (factos constantes nos pontos IV do despacho de 20.02.2023 que decretou o arresto preventivo e os factos constantes nos pontos IV e V do despacho de 19.07.2023 que manteve o arresto).
15. E no que concerne à medida do contributo do arguido no esquema criminoso que se investiga no processo espanhol os factos que sustentam tal participação constam da petição apresentada pela Procuradoria Europeia e dos despachos que determinaram e mantiveram o arresto.
16. Assim os factos relevantes fortemente indiciados referentes à atuação do arguido AA no esquema criminoso estão descriminados nos arts. 1.º a 11.º, 14.º a 24.º, 28.º a 37.º da petição inicial e respetivos meios de prova indicados, bem como nos factos fortemente indiciados no despacho de 20.02.2023 que decretou o arresto e factos relevantes fortemente indiciados no despacho de 19.07.2023 que manteve o arresto.
17. A terceira questão suscitada pelo arguido consiste em saber se existem ou não factos na decisão recorrida que demonstrem a existência do fundado receio de diminuição da garantia patrimonial.
18. Os factos constantes da decisão recorrida que fundamentaram o fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais foram os seguintes:
-A atividade criminosa altamente organizada que os arguidos têm vindo a praticar e que está fortemente indiciada justifica o receio que o conhecimento do arresto antes mesmo de se efetivar, conduziria, certamente, à dissipação do património que se pretende acautelar, sobretudo considerado o elevado montante do prejuízo para a União Europeia (cerca de €25.000 000,00).
-Concretizando, uma parte significativa dos bens do arguido/requerido são automóveis de alta gama, facilmente transferidos para terceiros ou ocultados e saldos bancários de rápida transmissão/transferência.
-AA tem vindo a adquirir e vender veículos automóveis de alta gama, algumas dessas viaturas estavam registadas em nome da sua companheira CC, e têm vindo a ser transferidas para as contas bancárias das sociedades de fachada geridas de facto pelo arguido AA e que operaram na referida rede de fraude de IVA movimentaram nos primeiros 7 meses e com aparente ligação à sua atividade comercial de transações de bens informáticos, com compras à ... (cujo 90% do capital social é detido por DD) €1.200.000,00, faturando aos clientes a 15 dias e pagando a fornecedores a pronto.
-O arguido AA dissimulou a sua participação nos factos, assumindo a gerência de facto de sociedades de "fachada" que operam na referida rede de fraude de IVA, em conluio com outras pessoas como EE, e utilizou para encobrir a sua participação neste esquema a sua companheira CC que "ficticiamente" adquiriu e figurava como gerente de direito de tais empresas.
-Os co-autores do arguido AA residem fora do país, tendo este viajado para Espanha e ... para combinar com FF e EE para a libertação e entrega de mercadorias condicente com o esquema de fraude em carrossel, verificando-se, por estes motivos, o fundado receio de dissipação do património.
19. Em suma, os factos e argumentos invocados pela Mm.a Juiz de Instrução Criminal no despacho recorrido para fundamentar o justo receio, justifica-se pela ocultação das empresas envolvidas no esquema, bem como os valores avultados que foram transferidos para as contas bancárias tituladas em nome da sua companheira e que são facilmente transferidos, dinheiro esse que é facilmente transferido/entregue aos demais co-autores com quem o arguido se encontra no estrangeiro, aliado aos vários investimentos que têm sido realizados recentemente pelo arguido na compra e venda de viaturas de alta gama com o dinheiro proveniente do crime de fraude fiscal por captura de receitas de IVA devida a países da União Europeia.
20. Estes factos são suscetíveis de provocar, em qualquer homem médio, colocado na posição do credor, a temer a perda da garantia patrimonial do seu crédito.
21. Neste sentido "vide" Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31.05.2023, proferido no âmbito do Processo n.º 4907/19.1T9PRT-C.P1, relator Jorge Langweg, in "https://www.dgsi.pt".
22. A última questão suscitada pelo arguido consiste em apurar se se verifica ou não a existência de fortes indícios da desconformidade do património do arguido, nos termos do art.º 7.º-1 da Lei n.º 5/2002, de 1.01.
23. A Mm.º JIC concluiu pela análise da prova documental e testemunhal trazidos pelo arguido ao processo através da oposição que se verificava a existência de fortes indícios da desconformidade do património do arguido.
24. E a conclusão não podia ser outra já que o que se logrou demonstrar é que o arguido está, de facto, enredado numa teia de negócios manifestamente contraditórios com as regras da normalidade da atividade empresarial, e indiciadoras de condutas de branqueamento e fraude ao IVA com contornos supranacionais, lesando os interesses da União Europeia.
25. Em sede de oposição apurou-se que o arguido, em 2018, obteve rendimentos de trabalho dependente no montante de €21.000,00 e independente de €38.641,73 e que alguns dos adquirentes dos serviços do arguido são a ..., a ...
26. Estas empresas têm atividade na área do comércio de equipamentos eletrónicos e periféricos informáticos ou prestação de serviços de informática, e estão acusadas para julgamento de fraude fiscal qualificada no âmbito do processo n.º 350/17.7IDPRT.
27. O arguido alegou ainda que celebrou um contrato de cessão de quota da sociedade "... à ... por €135.000,00, datado de 14.01.2019 (cfr. fls. 147 a 164).
28. Ambas as sociedades, tal como GG, que comprou a "... ao arguido AA, e este último também estão acusadas no âmbito do processo n.º 350/17.7IDPRT pelo crime de fraude fiscal qualificada.
29. “É certo que o arguido destes autos (tal como daqueloutros) se presumem inocentes, mas nesta sede importa a verificação da existência de indícios, o que não contende com essa presunção, e demonstra-se ao invés, que o objetivo do arguido com o arrazoado da oposição, com a aparente proveniência ilícita do seu rendimento e ausência de património incongruente, não pode merece acolhimento" (cfr. fls. 2166).
30. Os contornos destes negócios apenas permitem concluir que é um indício da prática de crimes de branqueamento, aliás na linha do descrito na decisão de arresto, não uma justificação de proveniência lícita de rendimento.
31. Relativamente às viaturas foram todas adquiridas entre maio de 2019 e 2023, sem ónus e encargos associados, apesar de o arguido ter cessado a sua atividade profissional como profissional independente em 2018 e ter declarado rendimentos em 2018 que totalizaram €30.564,56 e em 2019 de €82.234,24.
32. CC, companheira do arguido AA, que na "...," surge como gerente de direito, também aparece como primeira proprietária dos veículos que o arguido alega ter vendido (..., ..., etc.).
33. Os documentos juntos pelo arguido que procuram comprovar os alegados preços de aquisição das viaturas arrestadas não são plausíveis e são refutados pela avaliação das viaturas efetuada pela ... que avaliou os mesmos em valores muito superiores (salvo, em parte, o Rover, e o ...) e com maior fidedignidade perante o que são as regras da experiência e da normalidade.
34. Assim, o valor comercial das viaturas arrestadas alegado pelo arguido não é verosímil, nem conforme a realidade e não se coadunam com as avaliações fidedignas realizadas pela ....
35. Além do imóvel que tem inscrito em conjunto com a sua progenitora, desde 1997, e com o valor patrimonial de €80.306,80, inscrito a seu favor um direito de propriedade sobre um imóvel com valor patrimonial de €148.636,60 desde 03-09-2018, adquirido com crédito hipotecário.
36. A análise da sua situação bancária, como concluiu a Procuradoria Europeia, evidencia que na conta associada à aquisição do último imóvel, se registam movimentos a crédito, ordenados por HH (progenitora do requerido), não estando, por ora, demonstrado, pois meramente alegado, que consubstanciam doações entre pais e filhos, e de valores avultados ordenados por uma empresa que não foi declarada por AA como sendo sua entidade pagadora.
37. Registam-se, de igual modo, depósitos consideráveis que não encontram correspondência nos rendimentos declarados pelo arguido - cuja proveniência seja indiciariamente lícita - tendo procedido ao pagamento antecipado de parte do crédito para aquisição do imóvel sobredito.
38. O arguido juntou ainda documentos relativos à venda de um imóvel em ... por €75.000,00 a II, em 08-01-2019 (fls. 136 a 146), cujos contornos se desconhecem.
39. O juízo subjacente à consideração do património do arguido como incongruente, no despacho inicial de arresto preventivo, não só se manteve, como sai reforçado em virtude da prova produzida por ocasião da oposição.
40. Mantém-se, por isso, que é patente que o seu rendimento lícito é manifestamente inferior ao seu património que é, por tal, incongruente.
41. Face ao exposto, bem andou a Mmª. Juiz de Instrução Criminal "a quo" ao julgar improcedente a oposição ao arresto e a manter arresto preventivo dos bens do arguido para garantia da quantia de, pelo menos, €25.908.511,23, por haver fortes indícios da prática, pelo requerido AA, de factos suscetíveis de configurarem crimes de branqueamento e associação criminosa.
42. Assim sendo, dúvidas não temos que o recurso deve ser rejeitado, por ser manifesta a sua improcedência, conforme resulta do disposto no art.º 420.º-1 al. a) do CPP.»
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Nesta Relação, emitiu parecer no mesmo sentido, o qual, notificado ao recorrente, não mereceu resposta.
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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II. QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância (artigos 403º, 410.º e 412.º, n.º 1, do Cód. Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (AUJ de 19/10/1995, D.R. 28/12/1995) pelo que, no presente caso, cumpre apreciar e decidir se se mostram reunidos os pressupostos para decretamento e manutenção do arresto preventivo dos bens do recorrente.
Preliminarmente, importa ponderar a violação do disposto no art.º 194.º, n.º 8 do Cód. Processo Penal, em que o recorrente fundamenta a ausência de acesso a um processo justo e equitativo.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida (transcrição):
«I. RELATÓRIO
No inquérito que correu termos nos presentes autos, o Digno Magistrado do Ministério Público, a exercer funções na Procuradoria Europeia, requereu que fosse decretado arresto preventivo no interesse do Processo n.º 11/2022, da Procuradoria Europeia de Madrid (registo 218/2022, da Procuradora Europeia no ...), ao abrigo dos artigos 1.º, alínea j), 7.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a) e c), n.º 3, 10.º, n.º 1 a 4, todos da Lei nº 5/2002, de 11-01; 110.º, n.º 1, alínea b), n.º 2 a 4, 111.º, n.º 2 e n.º 3, do Código Penal, 391.º a 393.º do Código de Processo Civil, sem prévia audição da parte contrária, contra:
AA, nascido a ...-...-1976, natural de ..., de nacionalidade portuguesa, portador do Cartão de Cidadão n.º ..., divorciado, filho de JJ e de HH, com residência na ....
Pelos fundamentos consignados de fls. 4 a 17, e por referência aos bens identificados em fls. 15, que se dão por integralmente reproduzidos.
Por decisão de 20-02-2023, ref. 8263914, foi decretado o arresto preventivo nos termos requeridos.
O visado foi constituído arguido no prazo legalmente previsto e notificado da decisão sobredita.
O arrestado veio a deduzir oposição, ao abrigo do artigo 372.º do Código de Processo Civil, fls. 83 a 92, aduzindo, em síntese, que não foram alegados factos que permitam concluir pelo prejuízo de €25.908.511,23, nem qual o contributo do visado para o esquema criminoso em causa; que não foi demonstrado o fundado receio de diminuição da garantia patrimonial; que não há fortes indícios de desconformidade patrimonial, pois em 2018 AA não declarou somente rendimentos que totalizaram €30.564,56, tendo obtido rendimentos de trabalho dependente no montante de €21.000,00 e independente no montante de €38.641,73, tendo, ademais, vendido um imóvel por €95.000,00; em qualquer caso, aduz que o valor de aquisição das viatura não é incongruente com os rendimentos lícitos do arguido, pois o ... custou €15.000,00; o ... €41.531,00, pago com a retoma de um ... e pagamento de €1.000,00; O ... custou €50.000,00; o ... custou €19.999,99; que o ... é da sua enteada que o pagou a prestação; que, no mesmo período, vendeu um … por €9.700,00; um ... por €12.600,00; e outro ... por €7.000,00.
No que concerne aos movimentos bancários, alega que os mesmos não são suspeitos, justificando €8.250,00 como sendo o valor do sinal da venda da casa de ...; €66.750,00 respeita ao pagamento do remanescente do preço; a entrada de €67.500,00 respeita a metade do preço pela cessão da quota da sociedade ..., à ..., sendo as demais para pagamento do remanescente do preço da cessão da quota.
O arguido juntou documentos e arrolou uma testemunha.
A Procuradoria Europeia exerceu o contraditório (fls. 171 a 173), e também juntou documentos.
Produziu-se a prova arrolada com a oposição, cumprindo, agora, proferir decisão,
II. SANEAMENTO
Mantêm-se os pressupostos de validade e regularidade da instância, nada obstando, por isso, ao conhecimento do mérito da causa.
111. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Do mérito da oposição ao arresto preventivo para contrariar os pressupostos necessários para que seja mantida a providência cautelar decretada, com a consequente manutenção da apreensão dos bens identificados na petição de arresto.
IV. FACTOS RELEVANTES FORTEMENTE INDICIADOS
Dos documentos juntos aos autos, identificados na petição de arresto - todos os mencionados no articulado, a que acresce fls. 149 a 176, 178; Apenso 2, fls. 181 a 187, 195 a 197, 220 a 369, 372 a 416; fls. 128 e seguintes do Apenso I, volume 1; fls. 305 a 324, do Apenso I, volume 2; documento 2 do Apenso II (medida de arresto pedida pela Procuradoria Europeia em Espanha) - e, uma vez que em sede de procedimento cautelar apenas se exige uma análise meramente perfunctória da prova, têm-se como fortemente indiciados os factos listados de fls. 5 a 13 (1.º a 41.º), que se dão por integralmente reproduzidos.
Vejamos.
Em sede de oposição o visado AA afirma que não foram alegados factos que permitam concluir pelo prejuízo de €25.908.511,23, nem qual o contributo do visado para o esquema criminoso em causa.
No que concerne a este ponto, convoca-se a atenção para os factos indiciariamente provados e dados por reproduzidos supra dos pontos 1 a 11 e 14 a 37, e respectivos meios de prova subjacentes e igualmente identificados.
Consultando os elementos em causa, e atendendo o iter criminis descrito nos pontos identificados supra, a par dos demais, pode constatar-se que a dinâmica em investigação, e os seus participantes, estão cabalmente identificados, tal como o modo como se chega a um prejuízo estimado, para a União Europeia, de €25.908.511,23.
É narrado que FF e DD controlam uma rede de pessoas, hierarquicamente organizadas, com actuação estável e resiliência, com constância temporal e divisão de tarefas e responsabilidades, ordenados à prática de fraude fiscal por captura de receitas de IVA devida a países da União Europeia.
Que essa rede opera através do domínio das chamadas sociedades écran, detidas por terceiros, e que têm actividade na venda de componentes informáticos e electrónicos, havendo entre os fornecedores (conduit companies) empresas portuguesas e de muitos outros países, que transaccionam com outras empresas (remote traders) sediadas em vários Estados-Membros.
Uma das empresas identificadas como sendo fornecedora e cliente (vide fis. 101, Apenso III), é a ..., sociedade essa que foi adquirida, em Fevereiro de 2022, por CC, companheira de AA, a um cidadão … por €1.500,00, apesar de indiciariamente se ter provado que a sociedade não tem instalações físicas.
Apesar disso, as contas bancárias, no ... e no ..., da sociedade em causa movimentaram, nos primeiros sete meses - e com aparente ligação à sua actividade comercial de transacção intercomunitária de bens informáticos-, com compras à ... (cujo 90% do capital social é detido por DD), €1.200.000,00, facturando aos clientes a quinze dias e pagando a fornecedores a pronto.
Está indiciariamente provado que AA, segundo os elementos destes autos e provenientes da investigação espanhola, assume a gerência de facto de sociedades de fachada que operam na referida rede de fraude de IVA, em conluio com outras pessoas (como EE), que, tem-se por indiciariamente provado, assumem papel equivalente em outras empresas do tipo, mas em Espanha, e prestando contas a FF.
Há prova indiciária nos autos que AA viajou e ficou hospedado no mesmo hotel que FF, em ..., a 19-09-2019, e no ... a 02-03-2022; há, de igual modo, prova indiciária que AA viajou para o ..., em 17¬11-2021, na mesma data que EE fez a mesma viagem.
Há comunicações electrónicas entre EE e AA que espelham o conluio para a libertação e entrega de mercadorias condicente com o referido esquema de fraude em carrocel.
Aqui chegados, nota-se que a oposição do arguido e os documentos juntos pelo mesmo nesta sede não abalaram, de modo algum, a prova indiciaria que levou ao decretamento do arresto, nem o arguido procurou, tão pouco, contradizer os mesmos, invocando incapacidade de defesa que, ante a pormenorização dos pontos da petição de arresto dados por reproduzidos na decisão de decretamento, e explanados supra, se revela incompreensível.
Na oposição, procurou, sobretudo, justificar o seu património como congruente e com proveniência licita, mas tal não pode merecer colhimento. Vejamos.
O arguido juntou documentos que permitem concluir que o mesmo também declarou, relativamente ao ano de 2018, €21.000,00 de trabalho dependente (fls. 95); e €38.641,73 de trabalho independente (fls. 96); assim como a alienação de um imóvel pelo montante de €95.000,00 no mesmo ano (fls. 101), juntando documentos de apoio (fls. 107 e seguintes).
Alguns dos adquirentes dos serviços do arguido são a ..., a ...
Todas as empresas sobreditas têm actividade na área do comércio de equipamentos electrónicos e periféricos informáticos ou prestação de serviços de informática.
Analisados os documentos juntos pelo arguido, nota-se, também, que apesar de ser prestador de serviços da ..., em 2018, também recebia pagamentos com descritivo «ordenado» na mesma sociedade (e.g., fls. 124 e fls. 128).
A ..., segundo pesquisa em fontes abertas, e também atenta a documentação dos autos remetida pelo processo de Matosinhos, é uma sociedade anónima com actividade na área da assistência, instalação e reparação de computadores, unidades periféricas e programas informáticos.
O arguido juntou documentos quanto ao contrato de cessão de quota da sociedade ..., à ..., por €135.000,00, datado de 14-01-2019 (lis. 147 a 164).
Nesse ponto foi inquirida a testemunha KK, que declarou ter comprado a ... a AA, em Janeiro de 2019, por €135.000,00 (pago em duas tranches, explicando o modo de pagamento), porque tinha um contrato com o grupo ... que lhe interessava.
Justificou ter comprado a sociedade por, na ... - responsáveis pela área comercial da ... -, terem contratos com a ... para o mercado nacional, mas que o AA (que foi colaborador do grupo ... desde 2015 ou 2016, para o mercado internacional), logrou celebrar um contrato com a ..., através de LL, para passar a ser prestador de serviço do ... para o mercado internacional, o que fez através da ....
Afirma que só teve conhecimento do contrato da ... com o ... posteriormente à assinatura.
A beneficiária efectiva da ... reconhece como sendo a MM, que será sua irmã, sendo um negócio familiar, mas tendo, ainda assim, a testemunha autonomia e poder de decisão.
Questionado, aduz saber que a ... foi constituída em Dezembro de 2018, por AA, e que a renúncia à gestão foi em 07-01-2019, tendo AA apenas estado à frente da sociedade durante menos de um mês, mas que a única coisa que lhe interessou nesse negócio foi adquirir o contrato que a ... tinha com a ....
O contrato subjacente (entre a ... e a ...) não foi junto aos autos com a oposição.
Questionado com quem é que a ... celebra contratos fiscalmente declarados referiu a ... e a ..., confirmando que o grosso da facturação é à ..., e que o suporte económico é o crescimento do mercado internacional, tendo crescido até ao final de 2019 quase 5 milhões de euros.
Nega que tenha havido processo de due dilligence para aferir o valor de negócio, porque, cita-se, «não pode haver due dilligence de uma empresa que tenha um mês», reafirmando que estava, somente, a comprar um contrato, e que o valor foi aferido pela ....
Reconhece que há coincidência temporal entre a celebração do contrato por AA com a ..., através da ..., o seu interesse no mesmo através da aquisição da ..., a negociação e a efectivação dessa cessão de quota.
Confirmou ser membro do ... com funções executivas.
Questionada, a testemunha admitiu estar acusado em processo que se encontra em fase de julgamento, a par de AA, processo esse que corre termos em Matosinhos, e relacionado com fraude em carrocel de IVA com o ....
Foram juntos aos autos as peças do processo n.º 350/17.7IDPRT, no qual GG, AA, LL, MM, ..., ...; ..., ..., ..., e ..., foram acusados, pelo Ministério Público, da prática de crimes de fraude fiscal qualificada, em Matosinhos.
O arguido AA, tal como a testemunha GG, e LL, com defesa conjunta, requereram a abertura da instrução no citado processo, mas todos os arguidos foram pronunciados nos exactos termos da acusação. Já apresentaram contestação e o julgamento está agendado para Outubro de 2023 (f1s. 923 e seguintes, volume 4).
Foram juntos documentos relativos ao registo comercial das sociedades ..., e ... (fls. 254 e seguintes, volume 2); informações intercalares do GRA a fls. 631 e seguintes).
O CAE da ... engloba, não só actividades de relações públicas e de comunicação e de consultoria para negócios e gestão, como comércio de veículos automóveis e motociclos, reparação, venda de peças, e acessórios, etc., e há indícios de que o grosso da sua actividade comercial é com a ... (fls. 631 e seguintes).
No que concerne ao remanescente do seu património, o arguido juntou uma declaração, datada de 05-11-2018, de um cidadão do ..., a atestar a venda de um ... por €15.000,00, aparentemente pago a pronto (fls. 110).
Há fortes indícios que o valor comercial actual do ... é de €52.153,00 (fls. 205).
Juntou recibo de compra de um ..., a uma empresa alemã, datado de 04-03-2021, por €41.531,00 (fls. 111).
Juntou comprovativo de expedição internacional de um ... para a empresa alemã a quem comprou o ... (fls. 112), datado de 01-03-2023, e recebido a 04-03-2023, na ....
Juntou comprovativo de um movimento bancário na mesma data (fls. 114) no montante de €1000,00.
Há fortes indícios que o valor comercial actual do ... é de €48.051,00 (fls. 192).
Desconhece-se o valor do ..., mas as regras da normalidade levam a que nos suscitem dúvidas que o mesmo pudesse ser trocado por um ... de sensivelmente €40.000,00 e ainda com o pagamento complementar de €1.000,00.
Juntou comprovativo da compra de um ... em ... por €50.000,00, em 20-01-2022 (fls. 117), e da compra de um ... em Espanha por €19.999,99 (fls. 118).
Há fortes indícios que o valor comercial actual do ... é de €136.644,00 (fls. 244).
Há fortes indícios que o valor comercial actual do ... é de €120.000,00 (fls. 231).
Juntou talões de multibanco que aduz serem relativos ao pagamento em prestações do ... que seria da sua enteada (fls. 119).
Há fortes indícios que o valor comercial actual do ... é de €2.106,00 (fls. 219).
Juntou informação do registo de propriedade do ... com matrícula ..-US-.., notando-se que a propriedade foi registada em nome de NN em 26-09-2018, apesar de só a ter registado no próprio nome em 11-09-2018, estando anteriormente em nome de CC, registo n.º 09457, e ter sido, no mesmo dia, registada em nome de AA, registo 09458 (fls. 121).
Segundo pesquisas em fontes abertas NN tinha, em 2018, 17 ou 18 anos de idade, e o comprovativo do pagamento, segundo o arguido, surge em nome de OO (fls. 123).
No que concerne à informação do registo do ..., matrícula ..-RS-.., que transmitiu a PP em 22-10-2018, nota-se que a propriedade anteriormente esteve registada em nome de CC, registo 09442, em 26-04-2027, e que, no mesmo dia, foi registada em nome de AA, registo 09443 (lis. 125).
O comprovativo de pagamento da venda a PP, segundo a defesa, consta de fls. 128, que identifica uma transferência de €12.600,00 de QQ.
Não se compreende, dentro de regras de normalidade, a necessidade da transmissão, no mesmo dia, e com números de registo diferentes, da propriedade de CC para AA, quanto a dois veículos diferentes, sobretudo atendendo a que ambos mantêm uma relação afectiva. Desconhece-se se foi gratuita ou onerosa.
O arguido juntou informação quanto à transmissão do registo do ..., matrícula ..., para RR a 02-06-2021 (fls. 130), tendo um movimento registado na sua conta com o montante de €7.000,00 na mesma data e com descritivo coincidente (fls. 133).
Juntou documentos relativos à venda de um imóvel em ... por €75.000,00 a II, em 08-01-2019 (fls. 136 a 146), cujos contornos se desconhecem.
É, deste modo evidente, e feita uma análise global dos dados trazidos pelo arguido ao processo através da oposição, que a sua pretensão de demonstrar que não há património incongruente e justificar a proveniência lícita do mesmo não obteve sucesso.
O que se logrou demonstrar é que o arguido está, de facto, enredado numa teia de negócios manifestamente contraditórios com as regras da normalidade da actividade empresarial, e indiciadoras de condutas de branqueamento e fraude ao IVA com contornos supranacionais, lesando os interesses da União Europeia - desde logo, por referência aos factos indiciariamente provados na decisão de arresto, que o arguido, tão pouco, põe, de facto, em causa na oposição - e, entende-se que fica também suficientemente demonstrado com a fatualidade em discussão, que os mesmos se reflectem em várias dimensões da vida do arguido.
CC, que na ..., surge como gerente de direito, também aparece como primeira proprietária dos veículos que o arguido alega ter vendido (..., ..., etc.); os rendimentos que o arguido alega que também recebeu no ano de 2018 e que não foram considerados na decisão de arresto, são provenientes de sociedades com actividade na área do comércio de equipamentos informáticos e são também suspeitas de crimes de fraude fiscal qualificada; o negócio da venda da ... à ..., gerida por GG (estando todos acusados para julgamento por fraude fiscal qualificada), é um indício relevante de actividade criminosa (não um contra-indício, como parece presumir o arguido), e é um negócio que escapa às regras da lógica, como fica patente das declarações da testemunha, sobretudo quando se considera que, simultaneamente, há indícios suficientes (entendeu o Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos) que todas estão implicadas em esquema de fraude fiscal qualificada.
Os documentos juntos pelo arguido que procuram comprovar os alegados preços de aquisição das viaturas arrestadas - que chocam a percepção da pessoa média pela sua ostensiva distância plausibilidade - não permitem comprovar indiciariamente que tal valor corresponda à realidade, pois a Guarda Nacional Republicana procedeu à avaliação dos veículos em valores muito díspares (salvo, em parte, o Rover, e o ...), e, esses sim, com maior fidedignidade perante o que são as regras da experiência e da normalidade.
Mantém-se, por isso, na íntegra, a factualidade indiciariamente provada aquando do arresto preventivo, a que acrescem os factos expostos supra nos termos em que estão enunciados.
V. DO ARRESTO PREVENTIVO
Foi decretado o arresto preventivo dos bens do requerido melhor identificados a fls. 15, e que se dão por reproduzidos, para garantia da quantia de €25.908.511,23 (vinte e cinco milhões novecentos e oito mil quinhentos e onze euros e vinte e três cêntimos), a pagar a título solidário pelo requerido, sendo este o valor provisoriamente liquidado pelas autoridades espanholas, e que resulta de uma associação criminosa que se dedica, também, ao branqueamento de capitais, além de fraude fiscal qualificada, com base nos documentos dos autos e identificados supra.
Giza o artigo 228.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que «para garantia das quantias referidas no artigo anterior, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial».
As quantias «referidas no artigo anterior» deve ser interpretado por referência à caução económica, ou seja, para garantia do pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime; e para garantia da perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondentes.
O Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente, prevê, artigo 391.º, n.º 1, que «o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor», esclarecendo o número 2 que «o arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo o que não contrariar o preceituado nesta secção».
O seu processamento ocorre nos termos dos artigos 392.º e 393.º, do mesmo diploma, ou seja, tem o requerente de deduzir os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência.
O juiz decreta o arresto, uma vez examinadas as provas produzidas, sem audiência da parte contrária, desde que se mostrem preenchidos os requisitos legais.
O arrestado não pode ser privado dos rendimentos estritamente indispensáveis aos seus alimentos e da sua família, que lhe são fixados nos termos previstos para os alimentos provisórios (artigo 303.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
Paralelamente, a Lei n.º 5/2002, de 11-01, dita, no seu artigo 10.º, n.º 1, que «para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo 7.º, é decretado o arresto de bens do arguido», complementando o número 2 que «a todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação, quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o Ministério Público pode requerer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa»—tem, deste modo, uma finalidade de garantir a futura perda de vantagens económicas, não cariz probatório.
O referido artigo 7.º dispõe que, número 1, «em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento licito», complementando o número 2 que «para efeitos desta lei, entende-se por «património do arguido» o conjunto dos bens: a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o beneficio, à data da constituição como arguido ou posteriormente; b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido; c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino», e o número 3 que «consideram-se sempre como vantagens de atividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111.º do Código Penal».
É, desta forma, relevante o denominado património incongruente no seu montante global e não tanto o vulgarmente designado património manchado/contaminado (que derive directa ou indirectamente da prática do crime), não sendo, de igual forma, essencial qualquer juízo de perda de bens determinados.
Ao abrigo do artigo 10.º, n.º 3, do citado diploma, «o arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime».
A Lei aº 5/2022, de 11-01, intitulada Medidas de Combate à Criminalidade Organizada, estabelece um regime especial de, inter alia, perda de bens a favor do Estado, e aplica-se quando estejam em causa factos susceptíveis de configurarem crimes de branqueamento de capitais e associação criminosa (artigo 1.0, n.º 1, alínea i) e j)).
Uma vez decretado o arresto, pode o mesmo cessar se for prestada caução económica (11.º, n.º 1), ou pode ser modificado se se vier a apurar que o valor susceptível de perda é maior ou menor ao inicialmente estimado.
Giza o artigo 110.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, que «são declarados perdidos a favor do Estado: b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem», complementando o n.º 2 que «o disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem», e os números 3 e 4, respectivamente, que «a perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado», e «se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A».
Por sua vez, o artigo 111.º, n.º 2, consagra que «ainda que os instrumentos, produtos ou vantagens pertençam a terceiro, é decretada a perda quando: a) O seu titular tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios; b) Os instrumentos, produtos ou vantagens forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou c) Os instrumentos, produtos ou vantagens, ou o valor a estes correspondente, tiverem, por qualquer título, sido transferidos para o terceiro para evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, sendo ou devendo tal finalidade ser por ele conhecida», e o número 3 que «se os produtos ou vantagens referidos no número anterior não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A».
Os artigos 191.º e 193.º do Código de Processo Penal, consagram os princípios da legalidade, tipicidade, necessidade, adequação e proporcionalidade, aquando da aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial, prevendo o primeiro que «a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função das exigências de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei», e o segundo que as medidas a aplicar em concreto devem ser «as necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e as sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas».
No que concerne às exigências cautelares relevantes, o artigo 204.º, do Código de Processo Penal, dispõe que «nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: a) perigo de fuga; b) perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas».
O Ministério Público identifica os bens do requerido AA a fls. 12 a 13, pontos 39.º a 40.º, e novamente a fls. 15, onde constam seis viaturas, pelo menos três de gama de luxo (...; ... e ...), e duas outras das marcas ... e ....
Todas as viaturas foram adquiridas entre Maio de 2019 e 2023, sem ónus ou encargos associados, apesar do requerido ter cessado a sua actividade como profissional independente em 2018, e ter declarado rendimentos, em 2018, que totalizaram €30.564,56; em 2019 de €82.234,24.
Entre os anos de 2019 e 2021 beneficiou de prestações sociais pagas pelo Instituto da Segurança Social, IP, respectivamente nos montantes totais de €7391,48; €10.773,00; e €2.525,44.
Em sede de oposição apurou-se que o arguido, em 2018, também obteve rendimentos de trabalho dependente no montante de €21.000,00 e independente no montante de €38.641,73.
Alguns dos adquirentes dos serviços do arguido são a ..., a ...
Todas as empresas sobreditas têm actividade na área do comércio de equipamentos electrónicos e periféricos informáticos ou prestação de serviços de informática, e estão acusadas para julgamento por fraude fiscal qualificada no âmbito do processo n.º 350/17.7IDPRT.
O arguido alega, ainda, como vimos, que celebrou um contrato de cessão de quota da sociedade ..., à ..., por €135.000,00, datado de 14-01-2019 (fls. 147 a 164).
Ambas as sociedades, tal como GG e AA, também estão acusadas no processo n.º 350/17.7IDPRT.
É certo que o arguido destes autos (tal como os daqueloutros) se presumem inocentes, mas nesta sede importa a verificação da existência de indícios, o que não contende com essa presunção, e demonstra-se, ao invés, que objectivo do arguido com o arrazoado da oposição, com à aparente proveniência lícita do seu rendimento e ausência de património incongruente, não pode merecer acolhimento.
Os contornos desses negócios, como amplamente se analisou supra, apenas permitem ao Tribunal concluir que é um indício da prática de crimes de branqueamento, aliás na linha do descrito na decisão de arresto, não uma justificação de proveniência licita de rendimento.
Os carros arrestados não têm, tem-se por indiciariamente provado, o valor comercial actual que o arguido alega na oposição, por conexão com os montantes de aquisição que invoca, pois é manifesto, pelas avaliações feitas nos presentes autos, que tal não é conforme à realidade histórica.
O juízo subjacente à consideração do património do arguido como incongruente, no despacho inicial de arresto preventivo, não só se mantém, como sai reforçado em virtude da prova produzida por ocasião da oposição.
Mantém-se, por isso, que é patente que o seu rendimento lícito é manifestamente inferior ao seu património que é, por tal, incongruente.
Além do imóvel que tem inscrito em conjunto com a sua progenitora, desde 1997, e com o valor patrimonial de €80.306,80, tem inscrito a seu favor um direito de propriedade sobre um imóvel com valor patrimonial de €148.636,60 desde ...-...-2018, adquirido com crédito hipotecário.
A análise da sua situação bancária, como conclui o Ministério Público, evidencia que na conta associada à aquisição do último imóvel, se registam movimentos a crédito, ordenados por HH (progenitora do requerido)—não estando, por ora, demonstrado, pois meramente foi alegado, que consubstanciam doações entre pais e filhos—e de valores avultados ordenados por uma empresa que não foi declarada por AA como sendo sua entidade pagadora—e por conexão aos negócios analisados supra, cujos contornos são indiciadores de actividade criminosa.
Registam-se, de igual modo, depósitos de montantes consideráveis que não encontram correspondência nos rendimentos declarados pelo requerido—cuja proveniência seja indiciariamente lícita—, tendo procedido ao pagamento antecipado de parte do crédito para aquisição do imóvel sobredito.
Há, ainda, actos de inquérito a praticar, mas já resultam dos autos elementos fortemente indiciadores de que o requerido está envolvido num esquema altamente organizado de fraude fiscal, associação criminosa e branqueamento de capitais, havendo fortes indícios da sua ligação aos demais indivíduos e pessoas melhor identificadas na petição de arresto - mormente os identificados lideres da organização - e para a qual se remete, assim como a empresas e pessoas singulares conotadas com práticas análogas.
O modo como os factos estão fortemente indiciados de terem sido práticos revelam sofisticação, hierarquia, divisão de tarefas, conhecimento dos ordenamentos jurídicos do Estados-Membros da União Europeia, contactos internacionais, preocupações de encapotar proveitos e ligações negociais.
Há fortes indícios que o arguido se socorre da ..., e de CC para praticar os factos, o que revela, também, preocupação com a dissimulação da sua participação nos mesmos.
Nota-se, inclusivamente, que estão ainda por esclarecer as ligações do arguido a estes indivíduos que declararam ter-lhe vendido veículos por preços manifestamente inferiores ao seu valor real de mercado, em diferentes países da EU - e que não mereceu acolhimento na presente decisão ante as avaliações da Guarda Nacional Republicana -, e não se ignorando, por e.g., que o CAE da ..., fundada pelo arguido em Dezembro de 2018, engloba, não só actividades de relações públicas e de comunicação e de consultoria para negócios e gestão, como comércio de veículos automóveis e motociclos, reparação, venda de peças, e acessórios.
Há, por tal, também indícios de manobras de branqueamento por ligação a estas aquisições e vendas de automóveis.
Pelos motivos arrazoados aquando da dispensa da sua audição prévia na decisão inicial, pelo modo organizado e dissimulado como o requerido vem praticando os factos, ao que não é indiferente a sua ligação a outros elementos, indiciados como seus co-autores, e que residem fora do país - e a outros que, pela prova da oposição, -, o que poderá facilitar a dissipação do seu património, entende-se que há um justo receio de que AA, não sendo decretado o arresto pedido, venha a liquidar e movimentar o seu património, com vista a evitar a sua perda futura por inerência à responsabilização criminal. Entende-se que há fortes indícios de tal através dos negócios analisados nos presentes autos, incluindo por conexão aos veículos automóveis.
Há, dessarte, fortes indícios, pelo menos, da prática de crimes de associação criminosa e branqueamento, por conexão a crimes de fraude fiscal, e de que, inter alia, AA, é o seu autor - não tendo, o arguido, tão pouco, posto em causa a factualidade indiciaria do arresto, apenas procurando apresentar justificações que não contendem com a premissa da medida, somente com as apreensões concretas, não se tendo demonstrado a licitude da origem do seu património, que permanece qualificado de incongruente - ; e há evidente fundado receio de diminuição da garantia, pois o modo de actuação do arguido, de que está fortemente indiciado, mormente através de actos típicos de branqueamento, é orientado a promover a diminuição da garantia patrimonial, sendo o arresto necessário e proporcional.
A lei não exige fortes indícios da incongruência do património, pelo que carece de fundamento legal esse ponto da oposição.
Foram alegados e demonstrados, estando a prova junto aos autos, factos susceptíveis de preencherem o referido prejuízo de €25.908.511,23; foi demonstrado o contributo do arguido; foi demonstrado que o arguido seria solidariamente responsável pelo pagamento, pelo que, por ora, não se impõe a dissecação da proporção do seu contributo para o esquema criminoso, que permanece, aliás, em investigação.
Por tal, julga-se a presente oposição ao arresto não procedente e mantém-se o arresto preventivo dos bens do arguido melhor identificados a fls. 15 deste apenso (446 dos autos de inquérito), e dividido em três verbas, para garantia da quantia de, pelo menos, €25.908.511,23 (vinte e cinco milhões novecentos e oito mil quinhentos e onze euros e vinte e três cêntimos), por haver fortes indícios da prática, pelo requerido AA, de factos susceptíveis de configurarem crime de branqueamento e associação criminosa, ao abrigo do disposto nos artigos 10.º e 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11-01, 191.º e 193.º e 228.º do Código de Processo Penal.
Notifique.»
Em 20/02/2023 havia sido foi decretado o arresto preventivo de bens do recorrente, decisão relativamente à qual o mesmo deduziu oposição, com o seguinte teor:
« (…)
IV. FACTOS RELEVANTES FORTEMENTE INDICIADOS
Dos documentos juntos aos autos, identificados na petição de arresto - todos os mencionados no articulado, a que acresce fls. 149 a 176, 178; Apenso 2, fls. 181 a 187, 195 a 197, 220 a 369, 372 a 416; fls. 128 e seguintes do Apenso I, volume 1; fls. 305 a 324, do Apenso I, volume 2; documento 2 do Apenso II (medida de arresto pedida pela Procuradoria Europeia em Espanha) -  e, uma vez que em sede de procedimento cautelar apenas se exige uma análise meramente perfunctória da prova, têm-se como fortemente indiciados os factos listados de fls. 5 a 13 (1.º a 41.º), que se dão por integralmente reproduzidos.
Não se considerará a prova indicada por referência às intercepções telefónicas levadas a cabo nos autos principais em Portugal e ainda não transcritas (por esse motivo), mas é possível concluir que está indiciariamente demonstrado, de modo forte, o facto n.º 37 por concatenação dos demais elementos dos autos, destacando-se a incongruência manifesta entre os rendimentos declarados por AA e os bens por si adquiridos e utilizados, associado à sua relação pessoal com CC, e outros suspeitos, e ao circuito de transferência de dinheiro por referência à empresa alegadamente gerida pela última.
(…)
VI. DO ARRESTO PREVENTIVO
O Ministério Público peticiona o arresto preventivo dos bens do requerido melhor identificados a fls. 15, e que se dão por reproduzidos, para garantia da quantia de €25.908.511,23 (vinte e cinco milhões novecentos e oito mil quinhentos e onze euros e vinte e três cêntimos), a pagar a título solidário pelo requerido, sendo este o valor provisoriamente liquidado pelas autoridades espanholas, e que resulta de uma associação criminosa que se dedica, também, ao branqueamento de capitais, além de fraude fiscal qualificada.
Giza o artigo 228.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que «para garantia das quantias referidas no artigo anterior, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial».
As quantias «referidas no artigo anterior» deve ser interpretado por referência à caução económica, ou seja, para garantia do pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime; e para garantia da perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondentes.
O Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente, prevê, artigo 391.º, n.º 1, que «o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor», esclarecendo o número 2 que «o arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo o que não contrariar o preceituado nesta secção».
O seu processamento ocorre nos termos dos artigos 392.º e 393.º, do mesmo diploma, ou seja, tem o requerente de deduzir os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência.
O juiz decreta o arresto, uma vez examinadas as provas produzidas, sem audiência da parte contrária, desde que se mostrem preenchidos os requisitos legais (analisado supra).
O arrestado não pode ser privado dos rendimentos estritamente indispensáveis aos seus alimentos e da sua família, que lhe são fixados nos termos previstos para os alimentos provisórios (artigo 303.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
Paralelamente, a Lei 5/2002, de 11-01, dita, no seu artigo 10.º, n.º 1, que «para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo 7.º, é decretado o arresto de bens do arguido», complementando o número 2 que «a todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação, quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o Ministério Público pode requerer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa» - tem, deste modo, uma finalidade de garantir a futura perda de vantagens económicas, não cariz probatório.
O referido artigo 7.º dispõe que, número 1, «em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito», complementando o número 2 que «para efeitos desta lei, entende-se por «património do arguido» o conjunto dos bens: a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente; b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido; c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino», e o número 3 que «consideram-se sempre como vantagens de atividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111.º do Código Penal».
É, desta forma, relevante o denominado património incongruente no seu montante global e não tanto o vulgarmente designado património manchado/contaminado (que derive directa ou indirectamente da prática do crime), não sendo, de igual forma, essencial qualquer juízo de perda de bens determinados.
Ao abrigo do artigo 10.º, n.º 3, do citado diploma, «o arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime».
A Lei n.º 5/2022, de 11-01, intitulada Medidas de Combate à Criminalidade Organizada, estabelece um regime especial de, inter alia, perda de bens a favor do Estado, e aplica-se quando estejam em causa factos susceptíveis de configurarem crimes de branqueamento de capitais e associação criminosa (artigo 1.º, n.º 1, alínea i) e j)).
Uma vez decretado o arresto, pode o mesmo cessar se for prestada caução económica (11.º, n.º 1), ou pode ser modificado se se vier a apurar que o valor susceptível de perda é maior ou menor ao inicialmente estimado.
Giza o artigo 110.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, que «são declarados perdidos a favor do Estado: b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem», complementando o n.º 2 que «o disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem», e os números 3 e 4, respectivamente, que «a perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado», e «se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A».
Por sua vez, o artigo 111.º, n.º 2, consagra que «ainda que os instrumentos, produtos ou vantagens pertençam a terceiro, é decretada a perda quando: a) O seu titular tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios; b) Os instrumentos, produtos ou vantagens forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou c) Os instrumentos, produtos ou vantagens, ou o valor a estes correspondente, tiverem, por qualquer título, sido transferidos para o terceiro para evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, sendo ou devendo tal finalidade ser por ele conhecida», e o número 3 que «se os produtos ou vantagens referidos no número anterior não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A».
Os artigos 191.º e 193.º do Código de Processo Penal, consagram os princípios da legalidade, tipicidade, necessidade, adequação e proporcionalidade, aquando da aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial, prevendo o primeiro que «a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função das exigências de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei», e o segundo que as medidas a aplicar em concreto devem ser «as necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e as sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas».
No que concerne às exigências cautelares relevantes, o artigo 204.º, do Código de Processo Penal, dispõe que «nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: a) perigo de fuga; b) perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas».
O Ministério Público identifica os bens do requerido AA a fls. 12 a 13, pontos 39.º a 40.º, e novamente a fls. 15, onde constam seis viaturas, pelo menos três de gama de luxo (...; ... e ...), e duas outras das marcas ... e ....
Todas as viaturas foram adquiridas entre Maio de 2019 e 2023, sem ónus ou encargos associados, apesar do requerido ter cessado a sua actividade como profissional independente em 2018, e ter declarado rendimentos, em 2018, que totalizaram €30.564,56; em 2019 de €82.234,24.
Entre os anos de 2019 e 2021 beneficiou de prestações sociais pagas pelo Instituto da Segurança Social, IP, respectivamente nos montantes totais de €7391,48; €10.773,00; e €2.525,44.
É, por isso, patente que o seu rendimento lícito é manifestamente inferior ao seu património que é, por tal, incongruente.
Além do imóvel que tem inscrito em conjunto com a sua progenitora, desde 1997, e com o valor patrimonial de €80.306,80, tem inscrito a seu favor um direito de propriedade sobre um imóvel com valor patrimonial de €148.636,60 desde ...-...-2018, adquirido com crédito hipotecário.
A análise da sua situação bancária, como conclui o Ministério Público, evidencia que na conta associada à aquisição do último imóvel, se registam movimentos a crédito, ordenados por HH (progenitora do requerido) e de valores avultados ordenados por uma empresa que não foi declarada por AA como sendo sua entidade pagadora.
Registam-se, de igual modo, depósitos de montantes consideráveis que não encontram correspondência nos rendimentos declarados pelo requerido, tendo procedido ao pagamento antecipado de parte do crédito para aquisição do imóvel sobredito.
Há, ainda, actos de inquérito a praticar, o que será potenciado com a realização de buscas aos visados, e inerentes apreensões, mas já resultam dos autos elementos fortemente indiciadores de que o requerido está envolvido num esquema altamente organizado de burla qualificada, associação criminosa e branqueamento de capitais, havendo registo da sua ligação aos demais indivíduos e pessoas melhor identificadas na petição de arresto e para a qual se remete.
Pelos motivos arrazoados aquando da dispensa da sua audição prévia, pelo modo organizado e dissimulado como o requerido vem praticando os factos, ao que não é indiferente a sua ligação a outros elementos, indiciados como seus co-autores, e que residem fora do país, o que poderá facilitar a dissipação do seu património, entende-se que há um justo receio de que AA, não sendo decretado o arresto pedido, venha a liquidar e movimentar o seu património, com vista a evitar a sua perda futura por inerência à responsabilização criminal.
Por tal, decreta-se o arresto preventivo dos bens do requerido melhor identificados a fls. 15 deste apenso (446 dos autos de inquérito), e dividido em três verbas, para garantia da quantia de, pelo menos, €25.908.511,23 (vinte e cinco milhões novecentos e oito mil quinhentos e onze euros e vinte e três cêntimos), por haver fortes indícios da prática, pelo requerido AA, de factos susceptíveis de configurarem crime de branqueamento e associação criminosa, ao abrigo do disposto nos artigos 10.º e 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11-01, 191.º e 193.º e 228.º do Código de Processo Penal.
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Ordena-se, por tal, a cativação dos saldos e posições em instrumentos financeiros, por referência às contas bancárias melhor identificadas a fls. 15, mas de modo a que não seja impedido o lançamento a crédito de novas verbas - as quais ficarão, não obstante, abrangidas pelo presente arresto.
Determina-se que o requerido seja constituído arguido no prazo de 72 (setenta e duas) horas após o decretamento do presente arresto, em linha com o artigo 192.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Transmita-se a presente decisão à Chefia do Gabinete de Recuperação de Activos do Norte, Inspectora SS, para que proceda às inscrições em registos públicos, quando adequado, e à transmissão às instituições bancárias do arresto dos saldos, a concretizar somente no dia 21-02-2023.
Entregue-se a presente decisão à UAF, encarregue de realizar as buscas do dia 21-02-2023, e que deve assumir o cargo de proceder à remoção das viaturas arrestadas e constituir o requerido como arguido após a prática dos actos cautelares necessários.
Notifique-se a presente decisão, juntamente com a decisão constante do Apenso III, para efeitos de exercício de contraditório, ao requerido, somente após a confirmação de que todas as posições patrimoniais identificadas estão, de facto, arrestadas.
Notifique o Ministério Público.
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Valor da acção: €25.908.511,23 (vinte e cinco milhões novecentos e oito mil quinhentos e onze euros e vinte e três cêntimos), ex vi artigo 304.º, n.º 2, alínea e), do Código de Processo Civil.»
Já os factos fortemente indiciados, por remissão para o requerimento inicial, são os seguintes (com referência aos elementos de prova de suporte):
1. No âmbito do processo espanhol 11/2022, que corresponde ao processo 1.218/2022, da Procuradoria Europeia, é investigada a atuação de FF (ou FF), italiano, e DD (ou DD), belga de ascendência italiana, que alegadamente controlam uma rede de pessoas que se organizaram hierarquicamente, para uma atuação estável, resiliente, que perdura no tempo, assente na divisão de tarefas, com responsabilidades e patamares de decisão distintos, e aceites por todos, e que terá por propósito a prática de crimes de fraude fiscal, em torno da captura de receitas de IVA devido aos Estados da União.
2 - FF e DD, através de uma cadeia estruturada de poder que exercem sobre os demais que aderiram aos seus propósitos, dominarão sociedades écran, legalmente detidas por terceiros, mas que operam entre si, num mercado destinado a permitir a introdução em Espanha, para venda a consumidores finais de componentes de informática e de eletrónica.
3- A investigação espanhola suspeita que tais empresas, com papel de intermediárias, atuam concertadamente, para a captura das parcelas de imposto de IVA devido na cadeia de transmissão de bens a consumidores finais, e com o uso do regime de dispensas de cobrança de IVA na transação intracomunitária de mercadoria.
4- Nos termos da investigação da Procuradoria em Espanha, a alegada estrutura criminosa conta com empresas que assumem o papel de fornecedoras (ditas de "conduit companies").
5 - Entre as empresas fornecedoras que alegadamente se dedicam a esse papel que lhes está destinado intencionalmente, constam empresas portuguesas, holandesas, inglesas, luxemburguesas, polacas, alemãs e domiciliadas na ... (fls. 100 ss. Apenso III).
6 - Nos termos da referida investigação, estão intencionalmente relacionadas com tais fornecedoras, para a consecução de propósitos ilícitos, empresas que com elas estabelecem transações ("remote traders"), domiciliadas na ..., ..., ... e ... (fls. 101 do Apenso III).
7 – Do leque de empresas mencionado no pedido de assistência da Procuradoria Europeia em Espanha, destaca-se, com base na investigação realizada no processo principal, as sociedades ... (ou ... e a ... (ou ... (...), respetivamente, fornecedora e cliente da sociedade de direito português ....
8 – De acordo com informação que esteve disponível à investigação espanhola, no site da empresa ..., DD detém 90% do capital social da companhia é presidente da respetiva comissão executiva (ou CEO) — cf. fls. 110, do Apenso III.
9 - No circuito que constituirá a cadeia de empresas que opera para fins alegadamente criminosos, atuam inúmeras empresas com o perfil de "missing traders", bem como sociedades emitentes de faturação que se suspeita forjada, a par da atuação de outras sociedades tidas pela investigação espanhola como empresas de fachada (fls. 101 ss. Apenso III)
10 - As autoridades em Espanha estimam que os responsáveis pelos comportamentos em investigação, entre 2020 e 2022, lograram locupletar-se ilicitamente com valores ascendentes a 25.908.511,23€, com que terão lesado, pelo menos, o Estado Espanhol em IVA não arrecadado (fls. 103, Apenso III).
Valores que são fonte de receita do orçamento da União Europeia.
11 – Está identificada a atuação, pelo menos, em Itália, Luxemburgo, Portugal, Eslováquia, Chéquia, Hungria, (fls. 104, Apenso III).
12 - Das medidas de recolha de prova feitas noutro processo da Procuradoria Europeia em Espanha (56/2021), juntas aos autos l. 218/22, a par do produto dos meios de obtenção de prova usados no segundo dos processos, constam:
- O conteúdo de mensagem "signal" com documentos a ela anexo, localizada em equipamento apreendidos em buscas (fls. 105, Apenso III);
- Documentos apreendidos em buscas domiciliárias (fls. 106, Apenso III;
- O produto de interceções telefónicas (fls. 107 e 108 Apenso III);
- A análise de planos de viagem e reservas em hotéis.
13 - Foram apreendidos elementos documentais que referem o que permite ser a conclusão indiciária de que a organização de tipo vertical em investigação é liderada por FF e DD.
14 – Ambos contarão, indiciariamente, com o apoio de responsáveis por assegurar a atuação premeditada de empresas de "trading" e de fachada.
15 - O teor de tais documentos sugere que AA assume proficientemente a gerência de facto de sociedades de fachada que são interpostas no circuito comercial concebido por todos, para efeitos de evasão a IVA em transações de mercadoria e componentes informáticos.
16 - Na prova apreendida na investigação espanhola está mencionado num documento: "Posteriormente a teia voltará a introduzir o referido produto em território nacional", sugerindo a circulação de mercadoria que comumente integra o procedimento de "carrocel" para fraude em IVA.
17 - Nos suportes probatórios recolhidos, pessoa com o nome de TT assumirá o papel de ... da empresa ..., tida por essencial ao plano criado, e que assegura as funções de centro logístico para transporte e armazenamento de mercadoria.
18 - No âmbito de interceções telefónicas realizadas pelas investigações em Espanha, e que abrangeram conversas mantidas por pessoa de nome UU, a mesma confessa-se testa de ferro das sociedades ... e ..., que nos termos do pedido de assistência feito pela Procuradoria Europeia, têm o comportamento de empresas de fachada.
19 - A mesma fonte de prova suporta a conclusão indiciária de que UU presta contas a FF e DD, e que AA tem intervenção na vida destas sociedades, em conluio com os demais (fls.145, 146 Apenso III).
20 – De acordo com a prova obtida na investigação espanhola, AA viajou coincidentemente com FF e hospedou-se como ele nos mesmos sítios, pelo menos nos dias:
- 19.09.2019, no ...;
- 02.03.2022, no ... (146, Apenso III).
21 - AA viajou para o ... na mesma data que EE, a 17.11.2021 (fls. 146, Apenso III).
22 - A análise às comunicações de correio eletrónico de EE leva as autoridades em Espanha a concluir atuação concertada com AA na libertação e entrega de mercadoria entre empresas.
23 - EE estará relacionada com o governo da ..., atual marca da ... (com sede na ...) — cf. fls. 147, 148 do Apenso III.
24 - VV, ex-... da ... tornou-se ... financeiro e parceiro de DD, na ....
25 - Interceções telefónicas revelam o que pode ser um possível conluio ilícito entre responsáveis de empresas de "trading" as empresas logísticas dominadas por EE.
26 – É o caso de uma conversa mantida entre pessoa identificada como "WW" - com o uso de um equipamento de comunicações detido pela sociedade grossista na venda de equipamentos informáticos, a ..., fornecedora da ... - e EE, no contexto de um circuito de passagem de 10800 discos externos de 1 TB cada, por determinação de ..., que as autoridades espanholas assumem ser FF (cf. telefonema 5 do oficio "3. 2 avanço", fls. 147-149)).
27 - XX tornou-se socia gerente da ..., por compra, em fevereiro de 2022, da quota da sociedade, de 1.500€, até então detida por sujeito espanhol de nome YY.
28 - A 13.07.2022 a sociedade não evidenciava atividade em instalações físicas (fls. 80, Apenso l).
29 - XX reside na ..., morada a que corresponde o imóvel adquirido por AA, com quem vive, aparentemente, uma relação amorosa (fls.151, Apenso l, vol. 1, informação GRA e informação policial junta aos autos).
30 – XX abriu uma conta bancária no ... no dia 19.04.2022, em nome da ... (fls. 153, do referido Apenso).
31 - A sociedade também movimentou, sob gestão de XX, uma conta bancária domiciliada no ....
32 - A sociedade movimentou em sete meses nas suas contas bancárias (a do ... atualmente encerrada), valores alegadamente relativos à sua atividade comercial, exclusivamente de transação intracomunitária de bens informáticos, com compras à ... em valores ascendentes a 1,2 milhões de euros, incompatíveis com a sua estrutura de capital (cf, fl., 153 do Apenso l, vol. 1). Sendo que fatura aos seus clientes a 15 dias, e paga aos seus fornecedores a pronto (fls. 155 a 169, e fls. 191 a 201, do referido apenso).
Tais valores terão ficado à disposição de DD, referenciado por constituir posições patrimoniais de relevo, designadamente em imóveis em ..., nos termos da medida de assistência que os Procuradores Europeus delegados espanhóis dirigem à Procuradoria Europeia em ... (fls. 104 — 111, 130-138, do Apenso III).
33 - Documentação de suporte apresentada por CC aos serviços de compliance dos bancos sugere viciação de elementos (cf. fls. 191, do Apenso l, quanto aos locais de carga e de descarga da mercadoria).
34 - A ... vendeu os artigos que adquiriu à ..., polaca, identificada pelas autoridades espanholas como estando envolvida no alegado esquema criminoso em investigação em Espanha.
35 - A empresa logística usada nestas operações é a ..., domiciliada em ..., alvo das investigações Espanholas, e dominada por EE.
36 – Interceções realizadas nestes autos revelam que AA comanda os destinos da ..., ainda que tenha feito figurar como dona e gerente da sociedade a sua companheira CC.
37 - No âmbito dos factos em investigação pelas autoridades espanholas estima-se o valor de 25.908.511,23€, como a vantagem do crime para efeitos do disposto no art.º 110º/1, al. b), 111º/2 e 3, do Código Penal, e provisoriamente para efeitos do disposto no art.º 8º/1, da Lei n.º 5/2002, de 11.01.
Para o qual AA terá contribuído com os seus atos, por via das ações que executa em Portugal, ou a partir de Portugal.
DAS POSIÇÕES PATRIMONIAIS DO SUSPEITO
38 - SITUAÇÃO TRIBUTÁRIA
AA declarou rendimentos:
- Em 2018, nos montantes de 9.564,56€+21.000€;
- Em 2019, nos montantes de 7.234,24€+75.000€;
Cessou a sua atividade como profissional independente em 20.12.2018
Beneficiou de prestações sociais pagas pelo Instituto de Segurança Social IP, entre 2019 e 2021:
2019: 7.391,48€
2020: 10.773€
2021: 2.525,44€.
39 - SITUAÇÃO PATRIMONIAL
AA adquiriu, sem ónus ou encargos, os seguintes veículos automóveis:
21.05.2019 - ..., com a matrícula ..-XJ-..;
14.05.2021 - ..., com a matrícula ...;
17.06.2022 - ..., com a matrícula Al-..-CF;
28.09.2022 - BB, matrícula AN-..-ZD;
No ano de 2023, um ..., matrícula AV-..-HQ.
Tem inscrita a seu favor a propriedade sobre os seguintes imóveis:
- 1/3, do direito sobre o artigo 643 U, de ..., Art.º 2 Urbano 508, da mesma freguesia, com o valor patrimonial de 80.306,80€, a que corresponde o prédio 56, da descrição predial de ..., inscrito pela AP 1 de 1997/02/13, bem sobre o qual HH (mãe) também tem direito inscrito;
- Direito sobre o artigo 55U, da freguesia a ..., com o valor patrimonial de 148.636,60€, a que corresponde o n. 2 1622 de Amorim, inscrito pela AP 3573, de ........2018.
A análise preliminar à conta bancária usada para a aquisição deste segundo imóvel, com recurso a crédito hipotecário (fls. 411ss., CD de fls. 416), revela movimentos a crédito ordenados por HH. Revela o crédito de valores significativos ordenados por uma empresa que não surge na informação fiscal prestada por AA como entidade pagadora.
Evidencia depósitos múltiplos de valores avultados (19.12.2018, 08.01.2019, 21.01.2019), não compatíveis com os rendimentos declarados,
O saldo da conta em causa terá servido para o pagamento antecipado de parte da dívida contraída para a compra do imóvel em referência.
40 - AA é titular e tem poderes de movimentação sobre as seguintes contas bancárias:
...:
- Conta ... DO e de Instrumentos financeiros;
...:
- Conta ...
- Conta ...;
- Conta ...;
- Conta ...;
-Conta …;
- Conta ...»
violação das condições de Aplicação da medida de Garantia Patrimonial:
Alega o recorrente a violação do direito a um processo justo e equitativo por não lhe terem sido facultados elementos do processo, numa violação do disposto no art.º 194.º, n.º 8 do Cód. Processo Penal.
Alega que os volumes do processo e os seus apensos indiciadores não foram disponibilizados ao arguido, motivo pelo qual não foi assegurado o direito a um processo justo e equitativo, nem as próprias garantias de defesa do arguido, incluindo o direito ao contraditório, violando o disposto nos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Manifestamente sem razão!
Basta atentar no despacho proferido em 21/03/2023, com a referência 8311496, e no despacho proferido em 27/03/2023, com a referência 8321946, a que o recorrente apela, para se constatar que apenas lhe foi vedado o acesso ao processo integral.
E o que o art.º 194.º, n.º 8 do Cód. Processo Penal determina, em termos de observância do direito ao contraditório, é que o arguido e seu defensor podem consultar as elementos do processo determinantes da aplicação da medida de garantia patrimonial (e não do processo na sua integralidade), o que se compreende atendendo à fase processual em que habitualmente nos encontramos e cujo êxito implica, em muitos casos, a salvaguarda de sigilo relativamente a elementos de prova que não tenham sido utilizados no decretamento da medida.
Como se constata da notificação efetuada em 28/03/2023 (Ref. 8325610), foi remetida ao Ilustre Mandatário do arguido cópia dos elementos de prova que sustentaram a decisão.
Tal é o exigível (e suficiente) para o cabal exercício do contraditório, mostrando-se plenamente salvaguardadas as garantias de defesa do arguido, mormente as consagradas nos arts. 20.º e 32.º da CRP.
E tendo o arguido, no âmbito das garantais processuais consagradas no Regulamento (EU) 2017/1939 do Conselho, de 12 de outubro de 2017, o direito à informação e acesso aos elementos do processo, nos termos do direito da União, nomeadamente da Diretiva 2012/13/EU (art.º 41.º, n.º 2, al. b), o acesso à prova material não é pleno, podendo ser recusado, de acordo com o direito nacional, se, no sopesar de interesses em confronto, se entender que esse é suscetível de constituir uma ameaça grave para a vida ou os direitos fundamentais de outra pessoa ou se a recusa de tal acesso for estritamente necessária para salvaguardar um interesse público importante (considerando 32 e art.º 7.º da referida Diretiva).
Desde que seja facultado o essencial para impugnar eficazmente a medida decretada, que no caso concreto e de acordo com o direito nacional, se reconduz aos elementos probatórios de suporte à decisão, mostra-se salvaguardado o direito a um processo equitativo e respeitado o direito (primário e derivado) da União.
Dos pressupostos legais de decretamento do arresto preventivo
Os autos principais reportam-se a investigação da Procuradoria Europeia que corre termos em Espanha, mas de extensão transfronteiriça, no âmbito do combate à fraude e outras atividades ilícitas lesivas dos interesses financeiros da União (arts. 2.º, n.º 2, 3.º, n.º 2, al. c), 4.º, n.º 1 e 8.º da Diretiva (UE) 2017/1371, de 5 de julho de 2017 e arts. 22.º, 23.º, 30.º, 31.º e 32.º do Regulamento (UE) 2017/1939 do Conselho, de 12 de outubro de 2017).
À medida cautelar requerida, decretada e aqui sob recurso, são aplicáveis as concretas normas de direito interno, sem prejuízo da validade dos elementos probatórios recolhidos ao abrigo deste mecanismo de cooperação alargada em outro país da União se a tal não constituir obstáculo a livre apreciação da prova (considerandos 80, 81, arts. 4.º, 13.º, 30.º, 31.º e 37.º Regulamento (UE) 2017/1939 do Conselho, de 12 de outubro de 2017).
O arresto preventivo dos bens do arguido foi decretado como garantia da quantia de, pelo menos, 25.908.511,23€ (vinte e cinco milhões novecentos e oito mil quinhentos e onze euros e vinte e três cêntimos), por haver fortes indícios da prática, pelo requerido AA, de factos suscetíveis de configurarem crime de branqueamento e associação criminosa, ao abrigo do disposto nos artigos 10.º e 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11-01, 191.º e 193.º e 228.º do Código de Processo Penal.
O recorrente contesta os pressupostos em que foi decretado o arresto preventivo, em concreto sustenta a exigência de fortes indícios da incongruência do património (ao contrário do sustentado na decisão recorrida), a inexistência de fortes indícios da prática de um dos crimes previstos na Lei n.º 5/2002 e a insubsistência de (fortes) indícios da incongruência patrimonial.
§Pressupostos específicos de decretamento do arresto preventivo para salvaguarda da declaração de perda alargada
A Lei n.º 5/2002, de 11/1, que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, estabelece um regime específico de perda alargada, relativamente ao qual também prevê um mecanismo de garantia de eficácia da decisão final.
Regem, em primeira linha, as seguintes disposições legais, pelas quais se terá de aferir a legalidade da medida decretada nos presentes autos:
Artigo 7.º
Perda de bens
1 - Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
2 - Para efeitos desta lei, entende-se por «património do arguido» o conjunto dos bens:
a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente;
b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido;
c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.
3 - Consideram-se sempre como vantagens de atividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111.º do Código Penal.
Artigo 8.º
Promoção da perda de bens
1 - O Ministério Público líquida, na acusação, o montante apurado como devendo ser perdido a favor do Estado.
2 - Se não for possível a liquidação no momento da acusação, ela pode ainda ser efetuada até ao 30.º dia anterior à data designada para a realização da primeira audiência de discussão e julgamento, sendo deduzida nos próprios autos.
3 - Efetuada a liquidação, pode esta ser alterada dentro do prazo previsto no número anterior se houver conhecimento superveniente da inexatidão do valor antes determinado.
4 - Recebida a liquidação, ou a respetiva alteração, no tribunal, é imediatamente notificada ao arguido e ao seu defensor.
Artigo 9.º
Prova
1 - Sem prejuízo da consideração pelo tribunal, nos termos gerais, de toda a prova produzida no processo, pode o arguido provar a origem lícita dos bens referidos no n.º 2 do artigo 7.º
2 - Para os efeitos do número anterior é admissível qualquer meio de prova válido em processo penal.
3 - A presunção estabelecida no n.º 1 do artigo 7.º é ilidida se se provar que os bens:
a) Resultam de rendimentos de atividade lícita;
b) Estavam na titularidade do arguido há pelo menos cinco anos no momento da constituição como arguido;
c) Foram adquiridos pelo arguido com rendimentos obtidos no período referido na alínea anterior.
4 - Se a liquidação do valor a perder em favor do Estado for deduzida na acusação, a defesa deve ser apresentada na contestação. Se a liquidação for posterior à acusação, o prazo para defesa é de 20 dias contados da notificação da liquidação.
5 - A prova referida nos n.ºs 1 a 3 é oferecida em conjunto com a defesa.
Artigo 10.º
Arresto
1 - Para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo 7.º, é decretado o arresto de bens do arguido.
2 - A todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação, quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o Ministério Público pode requerer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa.
3 - O arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime.
4 - Em tudo o que não contrariar o disposto na presente lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no Código de Processo Penal.
O arresto cessará se for prestada caução económica e poderá ser ampliado ou reduzido em qualquer momento, em função do apuramento do valor suscetível de perda (art.º 11.º).
O arresto preventivo constitui uma medida de garantia patrimonial que gera uma situação de indisponibilidade sobre o património (todo ou parte dele) do visado.
O instituto específico de arresto consagrado no ar. 10.º da Lei 5/2002, de 11/1, visa garantir a eficácia da futura declaração de perda, ou seja, o cumprimento da decisão final de confisco.
No art.º 7.º/1, consagra-se uma presunção legal iuris tantum, portanto ilidível, temporalmente delimitada, da proveniência ilícita de bens que excedam o património do arguido congruente com o seu rendimento lícito, e que são presumidos vantagem da atividade criminosa1.
Por outras palavras, a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seria congruente com o seu rendimento lícito constitui o montante da incongruência patrimonial presumivelmente de proveniência ilícita.
O decretamento do arresto para garantia da perda alargada antes, portanto, da condenação, depende, assim, dos seguintes pressupostos:
- procedimento por um crime de catálogo (art.º 1.º da Lei n.º 572002, de 11/1);
- prévia constituição de arguido;
- a existência de património (7.º/2)
- requerimento do M.º P.º e decretamento por decisão judicial;
- a medida pode ser decretada a todo o tempo, se necessário antes da liquidação;
- a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais;
- existência de fortes indícios da prática de crime de catálogo;
- apuramento do montante da incongruência patrimonial, isto é da desconformidade do património do visado com os rendimentos lícitos (declarados nas respetivas declarações fiscais nos termos legais aplicáveis)2;
- Os bens arrestados devem ser de valor equivalente ao apurado como constituindo vantagem da atividade criminosa.
A lei não exige a prova de que o património incongruente foi obtido com a prática do crime ou crimes da sentença condenatória, ou seja, revela-se desnecessário provar a origem concreta dos bens abrangidos nos cálculos da vantagem patrimonial3.
Existindo fortes indícios da prática de crime de catálogo, o arresto pode ser decretado independentemente da verificação do periculum in mora, do fundado receio da perda ou diminuição substancial das garantias de pagamento, exceto nos casos de apuramento provisório da vantagem patrimonial4.
No mais, o arresto preventivo segue o regime previsto no Código Processo Penal e, como medida restritiva de direitos que é, não poderá deixar de estar subjacente ao respetivo decretamento a observância dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade (art.º 193.º do Cód. Processo Penal).
De igual forma está sujeito ao princípio da legalidade (art.º 191.º do Cód. Processo Penal), só podendo ser decretado nas condições específicas previstas na lei.
Liquidada a incongruência patrimonial, pode o arguido ilidir a presunção legal, provando a origem lícita dos bens considerados no cálculo da vantagem da atividade criminosa, nomeadamente que:
- resultam de rendimentos de atividade lícita;
- estavam na titularidade do arguido há pelo menos 5 anos no momento da constituição como arguido;
- foram adquiridos pelo arguido com rendimentos obtidos no período referido no ponto anterior.
Mas não estamos aqui em sede de decisão definitiva de perda de bens com base em liquidação também definitiva, efetuada com a acusação ou até ao 30.º dia anterior ao início do julgamento, nos termos do art.º 8.º da Lei 5/2002, de 11/1, mas sim perante medida cautelar fundada em liquidação provisória prévia à acusação, na qual se estriba o arresto preventivo de bens suscetíveis de garantir o valor da incongruência assim provisoriamente liquidado, e contestação deste por via de oposição.
Aplicando os princípios probatórios à fase em curso, temos que a liquidação da vantagem de atividade ilícita que servirá de base ao arresto não é definitiva, antes se tratando de um cálculo provisório realizado em condições sempre precárias atendendo às especificidades desta fase processual.
Mas os requisitos para decretamento do arresto do valor do património incongruente serão, aqui, mais exigentes, impondo ao requerente a demonstração de fortes indícios da prática de um crime de catálogo, do periculum in mora e do montante da incongruência patrimonial5.
Mas naquela liquidação provisória do património incongruente, hipótese expressamente prevista na lei, não poderão deixar de funcionar juízos presuntivos, ainda que ilidíveis (cabendo o ónus desta elisão ao afetado pela medida).
Deduzida oposição ao arresto, pode nesta sede se procurar ilidir aquele juízo, mas a decisão a tomar é sempre precária porque assente em prova meramente indiciária.
Releva aqui a natureza dogmática da perda alargada e a sua divergente qualificação – medida de índole civil, administrativa, medida penal, de segurança, restitutória, de reposição do património6.
Em consonância com a doutrina que se nos afigura maioritária, entendemos tratar-se de instituto de natureza não penal, desprovida de caráter sancionatório (já que tem por objeto bens e direitos que não provêm do crime de catálogo subjacente, prescindindo da ligação ao facto criminoso). A perda alargada predominantemente tem por objetivo o restabelecimento da ordem jurídico-patrimonial.
Na senda, aliás, do que vem sendo posição do Tribunal Constitucional (TC), expressa nomeadamente nos acórdãos 101/20157, 392/20158, 476/20159, 498/201910 e 595/202011.
No juízo de conformidade constitucional do instituto da perda alargada tem considerado o TC que, embora enxertado num processo penal, o que está em causa neste procedimento de perda alargada, não é apurar qualquer responsabilidade penal do arguido, mas sim verificar a existência de ganhos patrimoniais resultantes de uma atividade criminosa. Daí que, quer a determinação do valor dessa incongruência, quer a eventual perda de bens decorrente, não se funde num concreto juízo de censura ou de culpabilidade em termos ético-jurídicos, nem num juízo de concreto perigo daqueles ganhos servirem para a prática de futuros crimes, mas numa constatação de uma situação em que o valor do património do condenado, em comparação com o valor dos rendimentos lícitos auferidos por este faz presumir a sua proveniência ilícita, importando impedir a manutenção e consolidação dos ganhos ilegítimos.
A presunção de proveniência ilícita de determinados bens e a sua eventual perda em favor do Estado não é uma reação pelo facto de o arguido ter cometido um qualquer ato criminoso. Trata-se, sim, de uma medida associada à verificação de uma situação patrimonial incongruente, cuja origem lícita não foi determinada, e em que a condenação pela prática de um dos crimes previstos no artigo 1.º da Lei 5/2002 de 11 de janeiro tem apenas o efeito de servir de pressuposto desencadeador da averiguação de uma aquisição ilícita de bens.
Por isso se considera não se aplicarem aqui as garantias constitucionais de incidência penal, mormente o princípio da presunção de inocência e as suas várias manifestações. A necessidade de o arguido ilidir a presunção de incongruência do respetivo património não coloca em causa a presunção de inocência nem o direito ao silêncio de que continua a beneficiar quanto ao cometimento do crime que lhe é imputado no processo.
E o ónus da demonstração da origem lícita de determinados rendimentos não traduz desvio em relação à estrutura acusatória do processo, não determinando uma autoincriminação relativamente ao ilícito penal que lhe é imputado12, nem comprime desproporcionalmente, segundo o TC, o direito de propriedade privada (arts. 18.º, n.º 2 e 62.º, n.º 1 da CRP).
Refere-se, no último dos apontados arestos, “Na verdade, o arresto previsto na Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, tem uma natureza diversa, face a meios processuais penais, designadamente o arresto preventivo previsto no artigo 228.º do CPP (cfr. M. Costa Andrade e M. J. Antunes, “Da natureza processual penal do arresto preventivo”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 27, n.º 1 (janeiro-abril de 2017), pp. 135 e ss., especialmente pp. 141/143, e João Conde Correia, “Apreensão ou arresto preventivo dos proventos do crime?”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 25, n.os 1 a 4 (janeiro-dezembro de 2015), pp. 505 e ss., especialmente p. 538, e “«Non-conviction based confiscations» no direito penal português vigente: «quem tem medo do lobo mau?»”, Revista Julgar, n.º 32 (maio-agosto de 2017), págs. 71 e ss., concluindo, a pp. 94: “(n)este modelo de mera restauração de uma ordem patrimonial conforme ao direito, o confisco não é uma pena. Em causa está, apenas, corrigir uma situação patrimonial ilícita, que não goza de tutela jurídica. O mecanismo dirige-se contra os próprios bens, sem um qualquer juízo de censura da ação ou omissão individual que lhes está subjacente. Se assim não for, quando por força das especificidades das concretas normas jurídicas aplicáveis, o confisco tiver afinal caráter punitivo, será impossível decretá-lo sem prévia condenação, sob pena de violação de princípios jurídico-constitucionais básicos, como, por exemplo, a presunção de inocência”).
A natureza não penal dos meios previstos na Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro (designadamente, a apreensão e perda), foi, ainda que implicitamente, admitida pelo Tribunal Constitucional, em jurisprudência atrás referida, apreciação que, apesar de não ser unânime (…), está em linha com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (…).”
E o TEDH tem reconhecido a conciliabilidade do confisco com a presunção de inocência consagrada no art.º 6.º da CEDH (nomeadamente no Ac. Phillips c. ..., de 5 de julho de 2011), assim como com o direito de propriedade e acesso a um processo equitativo, afirmando a natureza não penal do procedimento, que considera como uma forma de regulação do uso de bens, justificada pelo interesse geral.
Para tal reconhece como essencial o efetivo direito ao contraditório e a um standard probatório mínimo.13
E mais recentemente o TC, no Ac. 34/202414, não julgou inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, quando interpretada no sentido de que o decretamento da medida de garantia patrimonial de arresto prescinde da realização e demonstração do património incongruente dos arguidos.
Refere o TC não ser a norma em causa violadora do princípio da legalidade criminal ou das garantias de defesa em processo penal, por o arresto se destinar à salvaguarda da exequibilidade do instituto da perda alargada, que não tem natureza iminentemente penal. E tendo o visado direito de defesa, a apresentar na contestação, ou no prazo de 20 dias contados da liquidação, bem como o direito ao recurso, não se podem ter por postergados os princípios da legalidade e do contraditório.
Mais se refere, «Naturalmente, as pretensões dos recorrentes relativas ao conhecimento do modo de apuramento do montante da incongruência e de ilisão da presunção de ilicitude desse montante, terão o seu lugar no momento de apresentação da defesa, no âmbito do processo criminal, tendo o Ministério Público a obrigação legal, nos termos do n.º 2 do artigo 11.º da Lei n.º 5/2002, de requerer a sua redução (ou até a sua cessação), se, em qualquer momento, se verificar que o valor suscetível de perda é menor ou maior do que o inicialmente apurado. Ou seja, a demonstração cabal da dimensão do património incongruente dos arguidos não pode deixar de ser levada a cabo em momento processualmente adequado, não sendo o facto de tal momento poder ser posterior ao do decretamento do arresto preventivo determinante de um juízo de desconformidade com a Constituição.
(…) atendendo à transitoriedade da medida de arresto, (…), e à análise de proporcionalidade de que acima se deu nota, não se vê como possa este instituto corresponder a uma privação patrimonial violadora do direito fundamental à propriedade consagrado no n.º 1 do artigo 62.º da CRP. Na verdade, os titulares do património arrestado terão oportunidade processual de demonstrar que os seus rendimentos permitem justificar o património controvertido e/ou que acederam à respetiva propriedade de forma lícita, bem como de discutir e contestar o cálculo do montante da incongruência; além disso, em caso algum a lei estatui como inevitável a privação definitiva dos concretos bens arrestados, podendo os condenados à perda alargada de bens a favor do Estado proceder ao pagamento do respetivo valor monetário.»
Revertendo estes pressupostos específicos de decretamento do arresto preventivo para salvaguarda da perda alargada à situação concreta, erra o Tribunal a quo quando refere estar dispensada a forte indiciação da incongruência patrimonial. Por estarmos em fase prévia à liquidação, sendo os pressupostos legais mais exigentes, não se encontra dispensada tal forte indiciação, ainda que no apuramento da mesma também interfiram juízos de presunção que cabem ao visado afastar.
Mas mais do que isso, deparamo-nos com um arresto decretado para garantia de pagamento do valor do prejuízo provisoriamente apurado pelas autoridades espanholas e resultante da atividade criminosa investigada e não para salvaguarda da futura decisão de perda a favor do Estado da vantagem da atividade económica apurada nos termos do art.º 7.º, n.º 1 da Lei 5/2002, de 11/1.
Ainda que o Procurador Europeu Delegado pretenda (no requerimento inicial) fazer equivaler o apuramento das vantagens da prática dos crimes (e correspondentes prejuízos) pelas autoridades espanholas, à liquidação a que alude o art.º 8.º, o mesmo não pode aqui valer, pois que em nada se assemelha ao apuramento do que seja a vantagem da atividade criminosa prevista na lei nacional.
E o valor em causa reporta-se à atividade delituosa de todos os envolvidos no esquema em investigação e não à específica situação do recorrente.
Desconhece-se, por isso, qual seja o montante da incongruência patrimonial.
Relembremos que a perda determinada nos presentes autos, o foi nos termos do artigo 7.º, § 1.º da Lei n.º 5/2012, de 11 de janeiro, regime especial que se não confunde com a perda de bens e vantagens concretas, previsto no artigo 110.º Cód. Penal.
Enquanto este se reporta a bens concretos resultantes da prática do ilícito ou a vantagens adquiridas pelo facto ilícito, naquele a «perda» não recairá sobre bens determinados, mas sobre o valor correspondente à diferença entre o valor do património do agente do crime e aquele que se mostra congruente com o seu rendimento lícito.
É essa a razão pela qual a Lei n.º 5/2012 prevê no seu artigo 8.º a liquidação do montante apurado da incongruência patrimonial, como aquele que deverá ser perdido a favor do Estado. E é este o preciso enquadramento da perda que poderá operar e que o arresto de bens do art.º 10.º, n.º 2 pode garantir.
É certo que o arresto pode ser pedido antes da liquidação, a todo o tempo, desde que apurado o montante da incongruência (art.º 10.º, n.º 2), ónus que cabe ao Ministério Público satisfazer.
A lei não se basta com uma alegação genérica da existência de incongruência, impondo a liquidação do seu montante ou o seu apuramento provisório, o que não foi feito nos presentes autos.
E este valor assume particular relevância, pois é pelo mesmo que se pode aferir o princípio da proporcionalidade – decretando-se e mantendo-se o arresto de bens com valor adequado à respetiva salvaguarda.
Falhando, por isso, um dos pressupostos determinantes do decretamento do arresto previsto nos arts. 7.º, n.º 1, 10.º, n.º 2 e 12.º da Lei n.º 5/2002, de 11/1 – o apuramento provisório do montante da incongruência patrimonial – não pode o mesmo subsistir (mostrando-se prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso).
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IV. Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA, revogando-se a decisão do Tribunal a quo e ordenando, consequentemente, o levantamento dos arrestos decretados.
Sem custas (art.º 522.º do Cód. Processo Penal).
Notifique.
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Lisboa, 5 de março de 2024
Mafalda Sequinho dos Santos - Relatora
Manuel José Ramos da Fonseca – 1.º Adjunto
Alda Tomé Casimiro – 2.ª Adjunta
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1. «Com base na verificação dos três requisitos… (condenação por crime de catálogo, titularidade de património e património incongruente com o rendimento lícito), os quais constituem a “base da presunção”, o legislador presume que a diferença entre o património detectado e aquele que seria congruente com o seu rendimento lícito provém de atividade criminosa”, Bernardo Costa Faria, Perda Alargada de Bens no Sistema Penal Português, Almedina, p. 34.
2. Concordando-se com o que refere João Conde Correia: «(…) embora a lei não o refira diretamente, parece-nos apodíctico que devem também ser exigidos fortes indícios da desconformidade do património do arguido.» Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, 2.ª ed. p. 666.
3. João Conde Correia, obr. cit., p.666 e Maria Dolores da Silva e Sousa, RMP, 172, Ano 43, p. 154.
4. A lei prescinde da liquidação para o decretamento do arresto, à custa da verificação cumulativa dos requisitos da existência do fundado receio da diminuição de garantia patrimoniais e fortes indícios da prática do crime - Maria Dolores da Silva e Sousa, RMP, 172, Ano 43, p. 180 e Ac. TRC de 10/11/2020, Relatora Maria José Nogueira, Proc. n.º 294/18.5GAACB.C1 ECLI:PT:TRC:2021:294.18.5GAACB.C1.2B.
5. João Conde Correia, obr. cit., p. 667.
6. Enunciando as diferentes posições, vide Bernardo Costa Faria, obr. cit., p. 38 a 43. Sustentando este autor estarmos perante uma verdadeira non-conviction based confiscation (p. 58). Também Jorge dos Reis Bravo, “O Estatuto Constitucional do Confisco: Reflexões Exploratórias”, in “O Confisco não Baseado numa Condenação”, Almedina, p. 527 e ss.
7. Proc. n.º 1090/2013, Relatora Maria Lúcia Amaral.
8. Proc. n.º 665/15, Relator João Cura Mariano.
9. Proc. n.º 1163/14, Relator João Cura Mariano.
10. Proc. n.º 457/18, Relator Lino Rodrigues Ribeiro.
11. Proc. n.º 393/2020, Relator José António Teles Pereira.
12. É também esta a posição de Pedro Caeiro: “Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime no confronto com outros meios de prevenção da criminalidade reditícia (em especial, os procedimentos de confisco in rem e a criminalização do enriquecimento «ilícito»)”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal 21 (2011), p. 267 e ss..
13. Ainda sobre as linhas orientadoras do confisco, agora no TJUE, vide “O confisco no Direito da União à luz da jurisprudência do TJUE”, Joana Amaral Rodrigues, “O Confisco não Baseado numa Condenação”, Almedina, p. 193 e ss.
14. Proc. n.º 996/21, Relatora Mariana Canotilho.