Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10819/2006-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: USUCAPIÃO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O erro na decisão da matéria de facto tem de ser especificamente impugnado, nos termos prescritos no artº 690º-A do CPC, não integrando qualquer das nulidades previstas no artº 668º do CPC;
2. Demonstrado que, por si e antecessores, a posse se exerce há mais de 30 anos (não sendo violenta ou oculta) é irrelevante apurar-se a data e forma da sua transmissão;
3. A destruição dos sinais de servidão de passagem, só por si, não implica a sua extinção nem origina a perda da correspondente posse;
4. Destruídos os sinais da servidão de passagem em ABR-MAI/2000 e reposta a situação anterior em 18MAI e 28JUL não ocorre a perda da posse por nova posse de ano e dia.
(RF)
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – Relatório
A… intentou acção declarativa sob a forma sumária contra R1 …, R2 … e R3… pedindo a condenação destes a respeitar e restituir a posse do Autor sobre os R-7434 e R-8810 da Madalena, a refazer a parte da parede que demoliram e a pagar-lhe uma indemnização de 20.000$00 pelos prejuízos causados e 200.000$00 pelos danos morais.
Os RR contestaram e deduziram reconvenção pedindo a condenação do Autor a reconhecer o direito de servidão de passagem a favor do prédio do 1º R. (R-7467 da Madalena) sobre os R-7434 e R-8810 da Madalena, a abrir os portais e colocar neles cancelas e a pagar-lhes uma indemnização de 500.000$00 por danos morais.
Intervieram na acção, como associados do A., C… , D… e F ….
A final foi proferida sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo os RR do pedido, e parcialmente procedente a reconvenção, condenando o A. a reconhecer e abster-se de impedir o exercício do direito de servidão de passagem sobre os R-7434 e R-8810 da Madalena a favor do prédio do 1º R. ( a qual se exerce por um trilho com 2 a 3 metros de largura, iniciando-se na entrada que em ABR-MAI/99 existia junto ao caminho da Travessa e atravessando ao longo de todo o lado sul, seguindo para meio, até entrar no prédio dominante) bem como a abrir a entrada junto ao caminho da Travessa e reconstituir o trilho.
Inconformados apelaram o A. e o interveniente D… concluindo, em síntese e tanto quanto se entende o conteúdo das correspondentes alegações:
- ao considerar-se provada em simultâneo a posse do 1º R. e a posse do todos os RR e decidindo-se que a servidão foi adquirida pelo 1º R. existe contradição consistente na nulidade do artº 668º, nº 1, al. c), do CPC;
- não sendo o 1º R. ainda proprietário do prédio e sendo considerado o tempo anteriormente decorrido para a usucapião cometeu-se a nulidade do artº 668º, nº 1, al. c), do CPC e violaram-se os artigos 1287º e 1296º do CCiv;
- não se indicando o início da posse nem a forma e data das transmissões anteriores violou-se o artº 1256º do CCiv;
- estabeleceu-se uma localização da servidão em desconformidade com a prova produzida cometendo-se a nulidade do artº 668º, nº 1, al. c), do CPC;
- nada foi decidido quanto à reposição da parede cometendo-se a nulidade do artº 668º, nº 1, als. c) e d), do CPC.
Houve contra- alegação em que se pugnou pela manutenção do decidido.

II – Questões a Resolver
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio (1).
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (2).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (3).
Assim, em face do que se acaba de expor, desde logo importa afirmar que, embora das alegações fique a impressão de que os recorrentes discordam da fixação da matéria de facto ou da solução jurídica perfilhada, o certo é que em sede de conclusões se limitam a imputar à sentença o vício de nulidade (e não já de erro de julgamento, de facto ou de direito).
Em particular no que tange à impugnação da matéria de facto não se vislumbram efectuadas as especificações exigidas pelo artº 690º-A do CPC; nesse aspecto apenas se podem considerar minimamente efectuadas tais especificações relativamente à questão da localização da servidão, pelo que apenas se conhecerá das respostas dadas aos quesitos 28, 29 e 30.
E nos casos em que, para além da referência ao artº 668º do CPC, se indicam como violados artigos do CCiv, entender-se-á aí que, para além da nulidade da sentença, se está a invocar erro de julgamento.

As questões a resolver são, pois:
- se a sentença padece de nulidade;
- se ocorre erro na resposta aos quesitos 28, 29 e 30;
- se a sentença viola os artigos 1287º e 1926º do CCiv.
- se a sentença viola o artº 1256º do CCiv.

III – Da Nulidade

A nulidade prevista na al. c) do nº 1 do artº 668º do CPC verifica-se quando existe contradição entre os fundamentos e a decisão; ou seja, quando na fundamentação da sentença se desenvolve um raciocínio lógico-jurídico tendente a uma determinada solução e se acaba de decidir em sentido diverso e incompatível com a argumentação expendida.
Segundo os recorrentes tal nulidade ocorreria porquanto quer nos factos provados quer na fundamentação da sentença se atribui a posse a todos os RR mas acaba apenas por se reconhecer a servidão a favor do 1º R.
Ainda que assim fosse (e não é) (4) não se verifica qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, pois que concluindo-se pela posse do 1º R. é natural que se lhe atribua o correspondente direito, ainda que essa posse não fosse exclusiva (se é a melhor posse, se prejudica ou omite o direitos de outros possuidores, não é uma questão de contradição entre os fundamentos e a decisão mas antes de erro de julgamento).

Alega-se, também, a existência do mesmo tipo de contradição pelo facto de se não ter atentado na fundamentação da sentença ao facto de a aquisição do prédio pelo 1º R. só ter ocorrido posteriormente ao facto de o A. ter destruído os sinais da servidão.
Mas também aí sem razão porquanto essa omissão não materializa uma contradição entre a fundamentação e a decisão (nos termos em que está formulada a fundamentação encontra-se em harmonia com a decisão) mas sim erro de julgamento (porque se desconsiderou um outro facto relevante).

Como, igualmente, o facto de, eventualmente, se terem considerado provados factos em desconformidade com a prova produzida ou ter-se omitido a apreciação de alguma questão posta, não constitui qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão.

Imputa-se, ainda, à sentença recorrida a nulidade de omissão de pronúncia porquanto o tribunal nada terá decidido quanto ao pedido de condenação dos RR a reconstruírem a parede que demoliram.
Foi dado como provada a existência de uma servidão de passagem com início na abertura que existia no caminho da Travessa, se estendia por um trilho ao longo do lado sul e depois para o meio do prédio onde existia o portal de entrada para o prédio do 1º R.; que o A. reconstruiu por inteiro a parede de pedra que separava o seu prédio do prédio do 1º R.; que os RR abriram nessa parede uma abertura de cerca de 2 a 3 metros a qual ainda se mantém.
Na fundamentação da sentença, o Mmº juiz a quo, depois de concluir pela existência da servidão afirma que, em consequência, se impõe que o A. reconstrua a situação que existia anteriormente, ou seja efectuar o trilho e abrir os portais de acesso ao mesmo. Mas constatando que existe já, e como tal se mantém (5), uma abertura de 2 a 3 metros no muro do lado poente que serve de passagem do prédio do A. para o prédio do 1º R (que foi aberta pelos RR depois de o A. fechar a que anteriormente existia), afirma nada haver a decidir, por considerar haver correspondência entre a situação que existe e a que devia existir (seria inútil e destituído de sentido condenar o A. a abrir um portal que já se encontra aberto). E, em conformidade, absolve os RR de todo o pedido (aí incluída a reconstrução da parte do muro demolido) e condena o A. a reconstituir o trilho e a abrir a entrada a nascente (nada se dizendo quanto à entrada a poente por esta já estar aberta e ser o A. condenado a reconhecer e respeitar a servidão).
Do que se constata ter sido decidido tudo quanto havia a decidir, não ocorrendo qualquer omissão de pronúncia.

IV – Fundamentos de Facto

Vem impugnada a decisão da matéria de facto relativamente aos quesitos 28, 29 e 30 cujo teor é:
28 – o trilho descrito em 21 situava-se ao longo de todo o lado sul do prédio descrito em a)?
29 – chegando ao prédio enunciado em g) seguia para o meio do prédio, onde existia o portal de entrada?
30 – passagem que tinha cerca de 2 a 3 metros de largura?

tendo todos eles recebido a resposta ‘provado’, com fundamento nos depoimentos das testemunhas G …, H … e I ….
Insurgem-se os recorrentes afirmando que tais depoimentos não permitem extrair os factos dados como provados.
Está em causa a localização da servidão, havendo, desde logo de ter em consideração que tal questão apenas surge porque o recorrente destruiu os sinais que a evidenciavam, pelo que as dificuldades que possam surgir nessa localização não podem ser usadas como pretexto pelo recorrente para impugnar a decisão; não é admissível que o recorrente possa tirar proveito de uma actuação ilícita que levou a cabo.
Por outro lado, ainda, quer os termos em que se encontram formulados os quesitos quer os termos em que se pronunciaram as testemunhas não podem ser entendidos no estrito rigor das palavras, mas enquadrados no contexto da indefinição própria da questão. Dai que quando se refere ‘ao longo de todo o lado sul’ não quer dizer que fosse em linha recta ou que fosse junto à parede; bem como quando se refere que ‘seguia para o meio’ não quer dizer exactamente o meio.
Ouvidos os depoimentos das testemunhas que fundaram as respostas aos quesitos em causa, e tanto quanto é possível apreender a dinâmica comunicacional do seu depoimento (6), não se vislumbra qualquer razão para alterar as respostas dadas na 1ª instância.
Com efeito há unanimidade dos depoimentos (e nem isso parece posto em causa pelos recorrentes) de que a entrada se fazia por um portal no caminho da Travessa, que ficava mais para a direita e que ainda hoje existe e é perfeitamente identificável.
Os mesmos depoimentos referem que a passagem era a pé e de gado, que o terreno era irregular, que havia de contornar obstáculos, que os animais não passam sempre pelo mesmo lugar, o que dava origem a vários trilhos. Mas referem, igualmente, que há entrada se virava à direita, para se dar a ‘volta ao maroiço’, e se ia por ali acima e que a ‘zona onde marcava mais era uma zona que ficava mais apertada com a parede e uma das moitas’. E que ao cimo se virava para o portal da saída, que era pela esquerda, mas não pelo canto, ‘muito perto’ ou ‘mais ou menos’ no local onde os RR derrubaram o muro construído pelo A.
Ora o que efectivamente se retira destes depoimentos é que a servidão se exercia num espaço de 2 a 3 metros, decorrendo, entre os portais localizados nos sítios que actualmente como tal se apresentam, ao longo do lado sul do prédio, inflectindo, ao cimo, em direcção ao portal. E é isso que se fez constar na resposta aos quesitos em causa.

Nestes termos, a factualidade relevante é a fixada em 1ª instância (fls 299-302), para a qual se remete nos termos do artº 713º, nº 6, do CPC.

V – Fundamentos de Direito
Segundo os recorrentes a sentença impugnada teria violado o disposto nos artigos 1256º, 1287º e 1296º do CCiv ao considerar a acessão na posse sem indicar o início da mesma e as formas e datas de transmissão e ao desconsiderar que o 1º R. só adquiriu o prédio dominante em JAN2001 quando os sinais da servidão já não existiam.
Também aqui se nos afigura não lhes assistir razão.
Desde logo, ao dar-se como provado, em 2006, que a posse se exerce há mais de 30 anos está-se, como expressamente se refere na sentença (fls 305) a colocar o seu início em, pelo menos, 1976. E não sendo a posse violenta ou oculta (cf. artº 1297º do CCiv) é irrelevante apurar-se a data e as formas da sua transmissão uma vez que se mostra decorrido o tempo máximo necessário para operar a usucapião; ou seja, pouco importa aferir qual o âmbito das posses que se foram sucedendo, com vista a determinar o prazo de usucapião aplicável, se é evidente que tal prazo sempre se haverá de ter por decorrido dado a posse se verificar há mais tempo que o mais longo dos prazos aplicáveis.
E se é certo que o 1º R. apenas adquiriu o prédio dominante em JAN2001, quando os sinais da servidão já não existiam, não é menos certo (e sem discutir agora se já tinha ou não a posse desse prédio) que por efeito dessa compra adquiriu todos os direitos do anterior proprietário, incluindo o direito de invocar a constituição de servidão de passagem (cf. facto UU). E isso não é impedido pelo facto de não existirem os sinais da servidão, dado que haviam sido destruídos pelo A.(que lavrou o prédio e tapou os portais), na medida em que tal destruição, implicando uma impossibilidade de exercício da servidão não importa a sua extinção (artº 1571º do CCiv), não é causa de extinção da servidão (artº 1569º do CCiv), nem, tão-pouco, é causa de perda da posse por posse de ano e dia do A. (cf artº 1267, nº 1, al. d) do CCiv) dado que tendo a destruição dos sinais ocorrido em ABR/MAI2000 (factos D, E e F), logo em18MAI e 28JUL os RR se opuseram a tal repondo a situação anterior (factos I, O e P).

VI – Decisão

Termos em que se nega provimento à apelação, confirmando integralmente a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes.

Lisboa, 2007FEV27
(Rijo Ferreira)
(Afonso Henrique)
(Rui Moura)
_________________________________________
1 - Cf. artº 684º, nº 3, e 690º CPC, bem como os acórdãos do STJ de 21OUT93 (CJ-STJ, 3/93, 81) e 23MAI96 (CJ-STJ, 2/96, 86).
2 - Cf. acórdãos do STJ de 15ABR93 (CJ-STJ, 2/93, 62) e da RL de 2NOV95 (CJ, 5/95, 98). Cf., ainda, Amâncio Ferreira, Manual dos recursos em Processo Civil, 5ª ed., 2004, pg. 141.
3 - Cfr artigos 713º, nº 2,, 660º, nº 2, e 664º do CPC, acórdão do STJ de 11JAN2000 (BMJ, 493, 385) e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 247.
4 - nos factos provados não se atribui posse a ninguém mas apenas se descrevem comportamentos e na fundamentação jurídica da sentença é patente que apenas se atribui a posse ao 1º R, sendo a referência a RR de fls 304 um manifesto lapso, perfeitamente compreensível dado todos os RR terem praticado os actos correspondentes ao corpus da posse em causa.
5 - sensivelmente no mesmo local onde existira o portal, conforme os depoimentos prestados (“em princípio é muito perto”, “era mais ou menos perto”, “é perto daquele sítio”, foram as expressões usadas).
6 - importa recordar que o mesmo foi prestado com referência ao desenho de fls 10, sem que o que sobre ele indicaram conste do registo magnético.