Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
862/24.6T8BRR-F.L1-1
Relator: NUNO TEIXEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO
OPOSIÇÃO
RESPOSTA
INTERESSADO
PRAZO PEREMPTÓRIO
PRAZO DE COMPLACÊNCIA
APLICAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (do relator) – artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil.
I – Para efeitos do disposto no artigo 188º, nº 10 do CIRE, “interessado que assuma posição contrária à das oposições” é todo aquele que apresentou alegações no sentido da qualificação da insolvência como culposa, bem como todos aqueles, que não tendo apresentado alegações em tempo, o poderiam ter feito, por gozarem de legitimidade para tal.
II – Por não ser “interessado”, para efeitos do disposto no artigo 188º, nº 10 do CIRE, não pode responder às demais oposições deduzidas pelas outras duas pessoas afectadas pela qualificação, o proposto afectado que também deduziu oposição ao requerimento do AI a pedir a abertura do incidente de qualificação da insolvência e que conclui pela qualificação desta como culposa.
III – Tanto o administrador da insolvência, como qualquer interessado poderá, de forma fundamentada, no prazo peremptório de 15 dias após a realização da assembleia de credores de apreciação do relatório ou, se tiver sido dispensada a sua realização, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155º, alegar por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afectadas por tal qualificação (artigo 188º, nº 1 do CIRE).
IV – Em caso de dispensa ou não realização da assembleia de apreciação do relatório, o prazo para requerer a abertura do incidente de qualificação da insolvência inicia-se no dia seguinte àquele em que o relatório é junto aos autos.
V – O prazo de condescendência do artigo 139.º, nº 5 do CPC aplica-se (a seguir) ao prazo peremptório de 15 dias previsto na actual redacção do artigo 188.º, nº 1 do CIRE.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,

1. A sociedade GHVS – HOSPITAL VETERINÁRIO, LIMITADA foi declarada insolvente por sentença proferida em 09/04/2024, transitada em julgado. Nesta sentença foi estabelecido o prazo de 60 dias, a contar da decisão, para o Administrador da Insolvência (AI) apresentar o seu relatório, ou seja, até 08/06/2024.
Após junção aos autos, em 13/06/2024, do relatório a que alude o artigo 155º do CIRE – de que o Ministério Público foi notificado a 14/06/2024 –, a 03/07/2024 o AI nomeado juntou aos autos o seu parecer, que finaliza pela qualificação da insolvência como culposa, devendo ser afectado pela referida qualificação o gerente da insolvente, BA.
Por despacho datado de 03/12/2024 (refª 440187721) foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência.
Entretanto, no dia 06/12/2024, veio o MINISTÉRIO PÚBLICO, por sua vez, juntar aos autos o seu parecer, que termina pela qualificação da insolvência como culposa, devendo ser afectados com tal qualificação os gerentes BA, IC e AA.
De seguida, por despacho de 18/12/2024 (refª 440962780), foi ordenada a notificação da devedora/insolvente e a citação dos seus gerentes, BA, IC e AA., para, no prazo de 15 dias, deduzirem oposição, nos termos do artigo 188º, nº 9 do CIRE.
Todos os gerentes citados vieram deduzir oposição: o primeiro, por requerimento de 22/01/2025 (refª 41695829), que termina pedindo a declaração de “nulidade, por extemporaneidade do ato praticado pelo AI, tendo-se os demais atos processuais praticados inválidos, por prejudicados”, bem como a improcedência do incidente; a segunda, por requerimento de 03/02/2025 (refª 41821342), mediante o qual também contesta a oposição apresentado pelo primeiro gerente; e, o terceiro, mediante requerimento de 06/02/2025 (refª 41860984), que termina pedindo igualmente a declaração de nulidade do incidente, bem como a declaração da sua ilegitimidade passiva, por nunca ter tido “qualquer acesso aos actos que levaram à dissipação dos activos da insolvente, uma vez que estes ocorreram em 2024, em data posterior à renúncia à  da gerência (2021)”, ou caso assim não se entenda, a sua absolvição da instância.
Notificados pela secretaria em 04/02/2025, nos termos do disposto no artigo 188º, nº 10 do CIRE, todos os identificados gerentes vieram responder, o primeiro, por requerimento de 14/02/2025 (refª 41949784), a segunda, por requerimento de 24/02/2025 (refª 42040629) e o terceiro, por requerimento de 25/02/2025 (refª 42058046).
Juntos todos estes articulados, em 05/03/2025 foi proferido despacho (refª 442992526), que:
- ordenou a eliminação electrónica do sistema Citius dos requerimentos de BA de 14/02/2025 (refª citius 41949784), de AA de 24/02/2025 (refª citius 42040629) e de IC de 25/02/2025 (refª citius 42058046); e,
- conhecendo da nulidade arguida por BA, concluiu que o AI havia deduzido o incidente no 2º dia útil após o termo do prazo (03/07/2024), pelo que, nos termos do disposto no artigo 139º, nº 6 do CPC – que a secretaria não tinha cumprido oficiosamente –, ordenou a notificação do AI para proceder ao pagamento da respectiva multa, sob pena de se considerar o incidente extemporâneo e o direito à prática do acto como extinto.
É deste despacho que vem interposto recurso pelo gerente, BA, que o termina alinhando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1. O princípio do contraditório visa permitir a cada parte a pronúncia sobre as questões que as afetam e que relevam para a definição do direito;
2. O princípio do contraditório não se esgota nos termos gerais do artigo 3.º, do C.P.C., aliás, deparamo-nos com a sua concretização nos demais preceitos avulsos, dos demais diplomas legais;
3. Quanto ao direito de resposta do Apelante o n.º 10 do artigo 188.º, do C.I.R.E., manifesta-se como concretização do princípio do contraditório;
4. O direito de resposta às oposições é, na tramitação do incidente de qualificação de insolvência, uma faculdade – atribuída por lei – a ser exercida quer pelo i) Administrador de Insolvência, ii) o Ministério Público e iii) qualquer interessado que assuma posição contrária à das oposições;
5. Qualquer interessado que assuma posição contrária à das oposições, pode deduzir resposta;
6. O aqui Apelante é interessado em deduzir resposta às oposições apresentadas, na medida em são três os potenciais afetados pela qualificação da insolvência, e cujas oposições se mostram antagónicas;
7. O Apelante foi notificado pelo Tribunal a quo para deduzir resposta às oposições apresentadas;
8. Com a eliminação eletrónica do sistema citius do requerimento de resposta do Apelante de 14 de fevereiro de 2025, o Tribunal a quo violou o princípio do contraditório e o princípio da igualdade;
9. Termos em que, salvo melhor e douta opinião, deverá o Despacho sob censura ser revogado e substituído por douto Acórdão que julgue admissível a resposta do Apelante, datada de 14 de fevereiro de 2025;
10. A Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro procedeu, entre outras, a várias alterações do C.I.R.E., quanto à tramitação do incidente de qualificação de insolvência.
11. Ao aprovar a Lei n.º 9/2022, o legislador definiu um equilíbrio entre os interesses em jogo e definiu as regras que achou adequadas quanto ao prazo para abertura do incidente de qualificação da insolvência;
12. O prazo vertido no n.º 1 do artigo 188.º, do C.I.R.E., opera como “prazo limite absoluto” de 15 dias para a abertura do incidente de qualificação de insolvência;
13. Na eventualidade da impossibilidade de abertura do incidente de qualificação de insolvência dentro daquele prazo de 15 dias, o legislador admitiu a sua prorrogação, a obedecer a regras específicas;
14. O legislador optou por estabelecer regras especiais sobre os prazos aplicáveis no âmbito da tramitação do incidente de qualificação de insolvência, afastando a aplicação das regras gerais do C.P.C.;
15. Entendendo o Ilustre Administrador de Insolvência que não seria viável a apresentação do requerimento de abertura do incidente de qualificação de insolvência, dentro do prazo perentório de 15 dias, poderia e deveria requerer, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 188.º, do C.I.R.E., a prorrogação do prazo para o efeito;
16. Não seria justo e equitativo, decorridos que foram 08 meses depois da prática de um ato prescrito, permitir a “sanação” desse ato com o pagamento de uma multa, quando, nos termos da lei, deveria o Administrador de Insolvência requerer a prorrogação do prazo para a abertura do incidente;
17. De modo algum podem as omissões e os incumprimentos dos deveres e obrigações legais do Administrador de Insolvência, prejudicar o Apelante;
18. Sempre deveria o Tribunal a quo, ex officio, dentro dos poderes e deveres funcionais, antes da prolação do despacho que declara aberto o incidente de qualificação de insolvência, averiguar pela regularidade do incidente, e bem assim por qualquer situação que obstasse à abertura do incidente, como in casu, o decurso do prazo perentório;
19. O despacho que declarou aberto o presente incidente de qualificação de insolvência, assenta num ato legalmente prescrito que, a ser valorado/considerado, influi na decisão da causa;
20. O ato do Administrador de Insolvência foi praticado além do prazo legal, sem qualquer alegação de justo impedimento que impedisse a sua prática dentro do prazo e sem que o Administrador de Insolvência tivesse requerido, como deveria ter feito, a prorrogação do prazo, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 188.º, do C.I.R.E..
21. Termos em que, salvo melhor e douta opinião, deverá o Despacho sob censura ser revogado e substituído por douto Acórdão que determine pela extemporaneidade do ato praticado pelo Administrador de Insolvência;
22. Quanto à contagem do dies a quo do prazo perentório de 15 dias, diz-nos objetivamente o supra citado normativo legal que a contagem do prazo inicia-se i) após a assembleia de apreciação do relatório ou ii) após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, do C.I.R.E.;
23. De acordo com o preceituado no n.º 1 do artigo 188.º, do C.I.R.E., in casu, o prazo perentório de 15 dias iniciou-se após a junção aos autos do relatório a que alude o artigo 155.º, do C.I.R.E.;
24. O prazo perentório de 15 dias começou a contar no dia imediatamente seguinte à apresentação do relatório a que alude o artigo 155.º, portanto, no dia 14 de junho de 2024;
25. O prazo de 15 dias para o Administrador de Insolvência apresentar o presente incidente, terminou no dia 28 de junho de 2024;
26. Neste raciocínio, o terceiro dia útil posterior ao termo do prazo, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 139.º, do C.P.C., coincide com o dia 3 de julho de 2024, data em que o Administrador de Insolvência deduziu o presente incidente;
27. Nos termos do disposto na alínea c) do n.º 5 do artigo 139.º, do C.P.C., se o ato for praticado no 3.º dia útil posterior, será aplicada uma multa fixada em 40% do valor da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato;
28. Termos em que, salvo melhor e douta opinião, deverá o Despacho sob censura ser revogado e substituído por douto Acórdão que determine pela aplicação de multa, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 5 do artigo 139.º, do C.I.R.E..

Notificada do recurso interposto, veio a opoente, AA, apresentar contra-alegações, que terminou do seguinte modo:
a) Deve ser admitido o requerimento do AI que relatou a insolvência indiciariamente como culposa, por estar em tempo;
b) Caso se determine a reinclusão das peças apresentadas pelo Apelante em resposta ao nosso requerimento de 03/02/2025, deve, também, ser repristinada a nossa resposta a esse requerimento/resposta mandado desentranhar dos autos.
Por fim, também o Ministério Público apresentou a sua resposta às alegações, que conclui do seguinte modo:
1. As partes não poderão, indistintamente e ao arrepio da tramitação própria do incidente de qualificação da insolvência, que se encontra regulado nos artigos 185.º e seguintes do CIRE, apresentar respostas, assim como respostas a respostas, no que se poderia afigurar numa interminável troca de argumentos.
2. O princípio do contraditório, não constituindo um direito absoluto das partes, terá, como os restantes princípios do processo civil, de obedecer ao rito processual estabelecido no CIRE, sob pena de o processo se transformar num repositório anárquico de requerimentos infindáveis, sem qualquer ordenação funcional nem finalística.
3. O n.º 10 do artigo 188.º do CIRE não poderá ser invocado para permitir o direito de resposta do recorrente, pois este não é qualquer interessado, mas sim o proposto afetado, que o coloca numa posição processual bem distinta de interessado.
4. O princípio do contraditório nunca será beliscado com o desentranhamento da resposta à oposição, considerando que todos os factos (do requerimento inicial, do parecer do Ministério Público e das oposições deduzidas) estarão em discussão na audiência final, momento por excelência para demonstrar os factos que as partes pretendam provar.
5. O prazo perentório de 15 dias, previsto no n.º 1 do art. 188.º do CIRE, para a abertura do incidente de qualificação da insolvência iniciou-se a 15 de junho de 2024.
6. Tendo o presente incidente sido iniciado a 3 de julho de 2024, isto é, no segundo dia útil ao termo do prazo, foi corretamente ordenado o cumprimento do disposto no artigo 139.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, com a notificação do Senhor Administrador da Insolvência para proceder ao pagamento da respetiva multa, sob pena de se considerar o presente incidente extemporâneo.
7. Tendo o Tribunal a quo efetuado o correto enquadramento jurídico, não merece reparo o douto despacho recorrido.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
2. Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelo recorrente define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, de acordo com as alegações de recurso, as questões a apreciar são as seguintes:
- se num incidente de qualificação da insolvência é admissível a resposta à oposição de um afectado por outro afectado;
- tempestividade do requerimento previsto no artigo 188º, nº 1 do CIRE entrado num dos três dias úteis após o termo do prazo peremptório de 15 dias, mediante o pagamento de multa; e,
- caso seja admissível, qual a contagem do dies quo do prazo peremptório de 15 dias.

3. Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório supra enunciado, que aqui se dão por reproduzidos.

4. Cumpre agora analisar as questões colocadas pelas alegações recursórias, supra enunciadas.
4.1. Admissibilidade da resposta à oposição de um afectado, por outro afectado, no incidente de qualificação da insolvência.
Sustenta o Recorrente que o direito de resposta previsto no nº 10, do artigo 188º do CIRE é uma concretização do princípio do contraditório, atribuído ao Administrador de Insolvência, ao Ministério Público e a qualquer interessado que assuma posição contrária à das oposições e que, na medida em que são três os potenciais afectados pela qualificação da insolvência, cujas posições se mostram antagónicas, é interessado em deduzir resposta às oposições. Não foi este, porém, o entendimento do tribunal a quo ao não admitir aquela resposta.
Ora, cremos que a pretensão do Recorrente não tem qualquer fundamento legal, não se mostrando infringido o princípio do contraditório.
Com efeito, o incidente pleno de qualificação da insolvência segue uma tramitação própria, prevista nos artigos 188º e 189º do CIRE, a qual compreende a fase da notificação/citação do(s) afectado(s) para a oposição, e a fase de resposta à oposição. Caso seja deduzida oposição, a lei prevê que o administrador da insolvência, o Ministério Público e qualquer interessado que assuma posição contrária à da oposição, poderá apresentar resposta no prazo de 10 dias, a contar do termo do prazo para o oferecimento das oposições, seguindo-se, com as necessárias adaptações, os termos previstos nos artigos 132º a 139º do CIRE.
Para a doutrina, “interessados”, para efeito do disposto no artigo 188º, nº 10 do CIRE, “são os sujeitos que tenham apresentado alegações no sentido da qualificação da insolvência como culposa”[1], designadamente, “qualquer credor, mas também os restantes legitimados para requererem a declaração de insolvência (artigo 20º, nº 1, proémio)”[2].
Assim, de acordo com aquela interpretação, a que aderimos, o “interessado que assuma posição contrária à das oposições” será todo aquele que apresentou alegações no sentido da qualificação da insolvência como culposa, bem como todos aqueles, que não tendo apresentado alegações em tempo, o poderiam ter feito, por gozarem de legitimidade para tal.[3]
Segundo este entendimento, é manifesto que o ora Recorrente, como proposto afectado, que deduziu oposição ao requerimento do AI a pedir a abertura do incidente de qualificação da insolvência e que conclui pela qualificação desta como culposa, não pode responder às demais oposições deduzidas pelas outras duas pessoas afectadas pela qualificação, porque, como parece evidente, assume idêntica posição à assumida por elas, isto é, todos eles se opõem à qualificação da insolvência como culposa, pese embora aleguem factos e razões diversas. É indiscutível que, com a junção da sua oposição, se ficou a conhecer que o ora Recorrente é contrário à qualificação da insolvência da devedora como culposa, tal como os demais propostos afectados, não cumprindo assim o pressuposto previsto na mencionada norma para, como “interessado”, apresentar resposta.
Em suma, por não assumir posição contrária à das oposições, não poderia o Recorrente  apresentar resposta nos termos do citado artigo 188º, nº 10 do CIRE.
Daí que, não mereça censura a parte do despacho que ordenou a eliminação electrónica do sistema Citius dos requerimentos de BA de 14/02/2025 (refª citius 41949784), de AA de 24/02/2025 (refª citius 42040629) e de IC de 25/02/2025 (refª citius 42058046).
4.2. Tempestividade do requerimento previsto no artigo 188º, nº 1 do CIRE entrado num dos três dias úteis seguintes após o termo do prazo peremptório de 15 dias.
Desde a alteração operada pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril à alínea i), do nº 1 do artigo 36º do CIRE, deixou de ser obrigatório que o juiz, na sentença de insolvência, declare a abertura do incidente de qualificação da insolvência, com carácter pleno ou limitado. Actualmente, a abertura deste incidente só terá lugar se o juiz dispuser de elementos necessários para tanto (artigo 36º, nº 1, alínea i), na redacção dada pelo DL nº 79/2017, de 30 de Junho). De todo o modo, caso o juiz não disponha desses elementos, nada impede que o incidente possa ser aberto em momento posterior. Assim, tanto o administrador da insolvência, como qualquer interessado poderá, de forma fundamentada, no prazo peremptório[4] de 15 dias após a realização da assembleia de credores de apreciação do relatório ou, se tiver sido dispensada a sua realização, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155º, alegar por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afectadas por tal qualificação (artigo 188º, nº 1 do CIRE). Caso algum interessado, designadamente um credor, tenha apresentado tal requerimento, deverá o juiz apreciar os factos alegados e, se assim o entender, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, por despacho fundamentado, a proferir no prazo de 24 horas, que é irrecorrível, e a publicar de imediato no portal Citius (artigo 188º, nºs 4 e 5 do CIRE, na redacção dada pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro).
Pode acontecer, no entanto, que sejam necessárias informações que não possam ser obtidas no prazo legal de 15 dias. Nestes casos, aquele prazo poderá ser prorrogado, mediante requerimento fundamentado do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, o que não suspende o prazo em curso (artigo 188º, nº 2 do CIRE). Segundo CATARINA SERRA, esta prorrogação “justifica-se nos casos mais complexos, em que, seja pelo número de afectados, seja pelo alcance ou pela sofisticação do seu comportamento, a averiguação e a recolha de todos os elementos relevantes exigem, presumivelmente, tempo extraordinário.”[5]
Ora, resulta dos autos principais e do presente apenso, que, apresentado o relatório do artigo 155º do CIRE em 13/06/2024 (ou seja, já depois do prazo de 60 dias fixado na sentença de declaração de insolvência), em 03/07/2024 o Administrador da Insolvência juntou aos autos o seu parecer, que finaliza pela qualificação da insolvência como culposa, pedindo que fosse afectado pela qualificação da insolvência o gerente BA. Apreciado este parecer, em 03/12/2024 foi proferido despacho a declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência.
Porém, tal como alega o Recorrente, quando, em 03/07/2024, o Administrador da Insolvência veio aos autos juntar o requerimento para abertura do incidente de qualificação, já o prazo legal de 15 dias se encontrava esgotado. Com efeito, tendo sido dispensada a realização da assembleia para apreciação do relatório, o prazo de 15 dias contava-se após a junção aos autos do relatório previsto no artigo 155º do CIRE, que foi em 13/06/2024.[6] Assim, este prazo peremptório terminava em 28/06/2024. Mas sendo um dia não útil – por o dia 28 de Junho ser feriado municipal no concelho do Barreiro (elevação da vila do Barreiro a cidade) – o termo daquele prazo transferiu-se para 01/07/2024, tal como determina o nº 2 do artigo 138º do CPC.
Do exposto resulta que o requerimento para abertura do incidente de qualificação deu entrada fora do prazo legal previsto no nº 1 do artigo 188º do CIRE. Consequentemente, tratando-se de um prazo peremptório, diz-nos o artigo 139º, nº 2 do CPC que o respectivo decurso “extingue o direito de praticar o ato”. Quer isto dizer que, fora dos casos previstos na lei em que se permite a prática do acto após o termo do prazo (artigo 139º, nº 5 e 140º do CPC), o decurso do prazo peremptório acarreta a extinção, por caducidade, do direito de praticar o acto.[7] Tal sucede, concretamente, com o prazo para requerer a qualificação da insolvência como culposa.
Na verdade, foi intenção do legislador de 2022, ao qualificar o prazo como “perentório”, de limitar, em geral, a abertura do incidente, funcionando tal prazo “como prazo-limite absoluto para a abertura do incidente”.[8] Daí que, a palavra “perentório” utilizada no artigo 188º, nº 1 do CIRE só poderá ter o significado constante do nº 3 do artigo 139º do CPC, implicando que “o decurso do prazo perentório extingue o direito de praticar o acto”.[9]
Em suma, como esclarece MARCO CARVALHO GONÇALVES, “(…) a inobservância de um prazo perentório acarreta a produção de um efeito extintivo ou resolutivo em relação à parte que se encontrava vinculada a observar esse prazo, já que o ato processual deve ser praticado dentro do prazo, sob pena de, não o sendo, ficar precludida, sem necessidade de qualquer declaração judicial ou impulso da parte contrária, a possibilidade de o ato processual em falta ser praticado em momento posterior. Vale isto por dizer que, ressalvadas as exceções previstas na lei, uma vez esgotado um prazo perentório, sem que o respetivo ato processual tenha sido praticado, nem o juiz pode, a título excecional, admitir a parte a praticar o ato, nem as partes podem acordar na renovação ou na repristinação do prazo extinto.”[10]
Acontece que, no caso dos autos, apesar de estar esgotado o prazo peremptório em causa, o acto (ou seja, o requerimento do administrador da insolvência a pedir a qualificação da insolvência como culposa) ainda poderia ser praticado nos dias 2, 3 ou 4 de Julho de 2024, por corresponderem aos três dias úteis subsequentes ao termo do prazo, tal como permitido pelo nº 5 do artigo 139º do CPC, pese embora ficasse dependente do pagamento imediato de uma multa, que é progressivamente maior por cada dia de atraso, havendo sempre um limite máximo para cada dia de multa. E mesmo que a multa devida não fosse paga de imediato, a lei prevê ainda um mecanismo suplementar destinado a salvar o acto, cuja solução varia em função de a parte estar ou não patrocinada por mandatário (cfr. artigo 139º, nºs 6 e 7 do CPC).[11]
Diz, no entanto, o Recorrente que “o legislador optou por estabelecer regras especiais sobre os prazos aplicáveis no âmbito da tramitação do incidente de qualificação de insolvência, afastando a aplicação das regras gerais do CPC” (cfr. conclusão 14 das alegações de recurso).
Não é essa, porém, a conclusão que se pode retirar do artigo 17º, nº 1 do CIRE. Na verdade, a regra da aplicação subsidiária do Código de Processo Civil aos processos de insolvência e seus incidentes significa que, quanto à contagem de prazos, se aplicam as regras do CPC sempre que o CIRE não estabeleça regras próprias e desde que essa aplicação não seja incompatível com a natureza urgente e especial do processo de insolvência.​ Assim, nos casos em que o CIRE define expressamente o prazo e a forma de contagem, prevalece sempre essa regra especial sobre as disposições do CPC.​ Mas, quando o CIRE for omisso, recorre-se ao regime subsidiário do CPC (arts. 138.º e segs).​ Daí que, regras como as de contagem dos prazos (art. 138.º), extensão para o primeiro dia útil seguinte se terminar em dia em que os tribunais estiverem encerrados (artigo 138º, nº 2), e também regimes de justo impedimento (artigo 140º) ou de prática do acto com multa (artigo 139º, nº 5, 6, 7 e 8), possam ser aplicados no processo de insolvência e em todos os seus incidentes, quando não contrariem normas ou objetivos próprios do CIRE.
Esta é a posição assumida pelo STJ, no Acórdão de 12/12/2023 (proc. 3410/21.6T8VNG-Q.P1.S1)[12], quando responde afirmativamente à questão de saber se o prazo de condescendência do artigo 139.º, nº 5 do CPC se aplica (a seguir) ao prazo peremptório de 15 dias previsto na actual redacção do artigo 188.º, nº 1 do CIRE.
Segundo este aresto, a cuja fundamentação aderimos, “não estamos aqui (…), como no PER, perante um processo híbrido, que combine uma fase informal/negocial com uma fase formal/judicial, o que poderia levar a afastar – o que, todavia, não vem sendo decidido – a aplicação do art. 139.º/5 do CPC aos PER”, nem “perante uma regra como as regras que constam do art. 17º-D do CIRE, em que os prazos aí previstos (alguns, muito curtos) são seguidos e independentes de qualquer notificação pessoal aos interessados, o que pode levar a que a aplicação do prazo de condescendência previsto no artigo 139.º/5 do CPC gere alguma “perturbação” na contagem dos prazos de tal art. 17.º-D do CIRE, possibilidade de “perturbação” essa que não obstou ao que vem sendo decidido: que a contagem dos prazos de tal art. 17.º-D do CIRE é inteiramente compaginável com a faculdade dos respetivos atos poderem ser praticados num dos três dias úteis seguintes, mediante o pagamento das multas previstas no art. 139º do CPC.”. Argumenta o STJ que no caso do artigo 188º, nº 1 do CIRE nem sequer existe a possibilidade de qualquer “perturbação” processual, da aplicação do artigo 139.º, nº 5 do CPC.
Conclui, assim, que “as razões de urgência e celeridade processual do processo de insolvência não justificam, só por si, a não aplicação subsidiária do CPC, ou seja, não justificam a não concessão do prazo de tolerância ou condescendência previsto no artigo 139.º/5 do CPC, prazo esse que (…) não se questiona (nunca se questionou) seja aplicado aos demais processos de natureza urgente previstos na lei processual.”
No caso em apreço, verifica-se que o requerimento do Administrador da Insolvência foi apresentado, como vimos, no 2.º dia útil após o termo do prazo.
É certo que, apesar de estarmos perante um processo urgente, o despacho que ordenou a liquidação da multa ocorreu vários meses após o termo do prazo para a prática do acto. Mas, como decorre da letra do nº 6 do artigo 139º do CPC, a notificação do interessado para pagar a multa ocorre “logo que a falta seja verificada”. À parte (por si ou através de mandatário) apenas se exige que o acto seja praticado num dos três dias seguintes ao termo do prazo, pese embora a respectiva validade fique dependente do pagamento de uma multa. Por isso, se a falta do pagamento imediato da multa não for logo verificada pela secretaria, a parte não perde o direito de praticar o acto, se, entretanto, a pagar depois de para tal ser notificada. Ao estabelecer este regime, o legislador teve a intenção de “proteger a parte contra a preclusão de um direito, em virtude de um eventual descuido ou desleixo do seu mandatário”.[13] Nesta medida, conforme se decidiu no Acórdão do TRC de 10/11/2021 (proc. 776/19.1GCLRA.C1)[14], este regime não viola o direito a um processo justo e equitativo, já que assegura, de forma adequada, a igualdade entre as partes.
Por isso, é admissível, desde que se cumpra o disposto no artigo 139.º, nº 6 do CPC (pagamento da multa), como, aliás, foi ordenado pelo tribunal a quo.
Por esta razão e pelo que supra se referiu, fica prejudicada a apreciação da última questão colocada pelo Recorrente respeitante à contagem do dies quo do prazo peremptório de 15 dias.
Improcedem, pois, na globalidade, as alegações de recurso.

5. Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação totalmente improcedente, confirmando, consequentemente, o despacho recorrido.
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Custas a cargo do Recorrente (artigo 527º do CPC).

Lisboa, 28 de Outubro de 2025
Nuno Teixeira
Isabel Maria Brás da Fonseca
Elisabete Assunção
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[1] Cfr. CARVALHO FERNANDES, “A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor”, AA. VV. Themis, Edição Especial – Novo Direito da Insolvência, 2005, pág. 91, (nota 8), bem como, no mesmo sentido, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª Edição, Lisboa, 2008, pág. 621.
[2] Cfr. MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, 7ª Edição, Coimbra, 2020, pág. 178, (nota 540).
[3] Cfr. neste sentido CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 621.
[4] A principal alteração levada a cabo no artigo 188º do CIRE pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro, foi a de estabelecer o carácter “perentório” do prazo que o administrador de insolvência ou qualquer interessado dispõe para alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa (cfr. JOSÉ MANUEL BRANCO, “Alterações ao regime legal de qualificação da insolvência: da congestão à convulsão”, Revista de Direito da Insolvência, nº 7, 2023, pág. 149). Pôs-se assim termo à divisão jurisprudencial que até então se verificava quanto à qualificação desse prazo como meramente ordenador ou como peremptório.
[5] Cfr. “O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei nº 9/2022 – Algumas observações ao regime com ilustrações de jurisprudência”, Julgar, nº 48 – Setembro/Dezembro 2022, pág. 14.
[6] O artigo 188.º, n.º 1, na redação actual, explicita que “Até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º...”.​ Por isso, é entendimento da jurisprudência mais recente de que, na ausência de assembleia, o termo inicial do prazo é a junção do relatório ao processo, precisamente para garantir certeza e segurança quanto ao termo inicial, cabendo aos interessados acompanhar essa junção nos autos, visto que a publicação do despacho judicial e a tramitação processual são acessíveis para as partes. (cfr. ST, Ac. de 09/04/2025, proc. 1313/24.1T8ACB-B.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt/jStj). Também nesta Relação já se decidiu que não se exige notificação autónoma aos interessados e que só se inicia a contagem do prazo quando o relatório é apresentado tempestivamente; caso contrário, poderá haver necessidade de notificação. (cfr. TRL, Ac. de 23/04/2024, proc. 3903/17.0T8VFX-A.L1-1, disponível em www.dgsi.pt/jtrl). Portanto, em caso de dispensa ou não realização da assembleia de apreciação do relatório, o prazo para requerer a abertura do incidente de qualificação da insolvência inicia-se no dia seguinte àquele em que o relatório é junto aos autos (cfr. artigo 279º, alínea b) do Código Civil).
[7] Na verdade, como se deixou dito no Ac. da Relação de Coimbra de 06/07/2016 (proc. 10/11.2JALRA.C1), disponível em www.dgsi.pt/jtrc, “se não houvesse consequências para a prática de acto processual para além do prazo que a lei estabelece, não tinha qualquer sentido definir prazos para a prática dos actos.”
[8] CATARINA SERRA, Julgar, nº 48, pág. 16.
[9] Cfr. neste sentido, JOSÉ MANUEL BRANCO, Artigo citado, pág. 149, nota 44.
[10] Prazos Processuais, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2022, pp. 36-37.
[11] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume I, 2ª Edição, Coimbra, 2020, pág. 173.
[12] Disponível em www.dgsi.pt/jStj.
[13] Cfr. MARCO CARVALHO GONÇALVES, Ob. Cit., pp. 222-223.
[14] Disponível em www.direitoemdia.pt.