Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
66/21.0YHLSB.L1-PICRS
Relator: MARIA DA LUZ TELES MENESES DE SEABRA
Descritores: PROPRIEDADE INTELECTUAL
MARCAS
IMITAÇÃO
AFINIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/27/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Para efeitos de recusa de registo da marca, por imitação, a afinidade pode existir entre produtos e serviços.
II. O facto de estarem incluídos em Classes distintas da Classificação Internacional de Nice não é determinante, podendo, apesar de tudo, existir afinidade, conforme se prevê no art. 238º nº 2 al. b) do CPI.
III. Um reduzido grau de semelhança entre os produtos ou serviços assinalados pelas marcas em confronto, pode ser compensado por um elevado grau de semelhança entre elas.
(elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão, do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO:
1.SO…, SA, intentou ao abrigo do disposto nos artigos 38.º e seguintes do Novo Código da Propriedade Industrial, recurso do despacho do Diretor de Marcas do INPI que recusou o pedido de registo da marca nacional n.º 631726 "AUDAZ SÓ PARA OS MAIS FORTES", no seguimento da decisão de deferimento do pedido de modificação da decisão anteriormente proferida de concessão, pedindo que fosse revogado o despacho recorrido e admitido o referido registo.
Alegou, em síntese, ser a decisão errada por não existir risco de confusão entre a marca registanda e as marcas da recorrida nº 624916- AUDAZES e nº 624918- AUDAZ, face à inexistência de afinidade entre os produtos e os serviços das classes 35 e 43 e, os produtos que a sua marca se destina assinalar na classe 30.
2. A então Recorrida O… SGPS apresentou resposta ao recurso, alegando que a decisão do INPI devia ser mantida porquanto se estabelece risco de confusão com as suas marcas, existindo afinidade entre os produtos/serviços e semelhança gráfica, fonética e semântica entre os sinais.
3. Foi proferida sentença final, pela qual se decretou o seguinte:
“Pelo exposto, julgo procedente o recurso interposto e, em consequência revogo o despacho do Instituto Nacional da Propriedade Industrial aludido na al. a), dos factos provados, sendo substituído pelo de concessão do registo da marca pedida.
Custas pela recorrido/a - (artigo 527º do Código de Processo Civil).
Valor da causa: 30.000,01 euros.
Registe, notifique e, após trânsito, comunique ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial.
Após trânsito da sentença, cumpra-se o artigo 34º, nº 5, aplicável nos termos do artigo 46º, do CPI.”
4. Inconformada, a Recorrida/aqui Recorrente O… SGPS interpôs recurso de apelação da sentença final, em que, nas conclusões:
i) impugna a decisão de direito, com fundamento em errada interpretação do artigo 238º do CPI, sustentando que há risco de confusão entre a marca da Apelada e as suas marcas, estando preenchido o requisito da afinidade entre produtos/serviços, requisito que o tribunal a quo não considerou verificado.
 Conclui, pedindo seja o presente recurso de apelação julgado totalmente procedente, revogando-se a decisão recorrida.
5. A aqui Recorrida SO…, SA não ofereceu contra-alegações.
6. Foram observados os vistos legais.
7. No presente recurso de apelação, a Apelante formulou as seguintes
CONCLUSÕES
A. O Tribunal a quo concluiu, de forma errada, que entre os sinais em confronto não existe semelhança/afinidade entre os serviços e produtos.
B. A não afinidade foi julgada segundo uma interpretação de especificação de produtos.
C. No entanto, uma classificação mais abrangente, é mais difícil de ser bem-sucedida, e, por conseguinte, goza de uma proteção mais ampla.
D. Essa proteção é colocada em causa pela decisão do Tribunal a quo.
E. Conforme analisámos, existem decisões anteriores que consideram que os serviços de retalho de bens alimentares, serviços de restauração, e os produtos assinalados pela marca da Apelada na classe 30 são afins, ou semelhantes em grau reduzido.
G. Resulta das mesmas decisões, que o grau reduzido pode ser colmatado se houver fortes semelhanças gráficas, fonéticas e/ou conceptuais, o que se verifica no caso concreto.
H. O Tribunal a quo parece ter ignorado estas decisões ao não proferir uma palavra sobre as mesmas e limitar-se a reger o seu argumento utilizando apenas uma decisão do INPI.
I. No entanto, o recurso administrativo, vulgo modificação de decisão, do INPI foi favorável para a Apelante.
J. Havendo semelhança ou afinidade no presente caso, é necessário avaliar a comparação gráfica e fonética dos sinais em confronto.
L. O termo dominante, e principal, da marca da APELADA é o termo “AUDAZ”, que é idêntico ao termo AUDAZ da marca da Apelante.
M. Deste modo não restam dúvidas que deverá ser considerado que as marcas da Apelada preenchem o conceito de imitação presente no artigo 238.º do CPI.
Concluiu, pedindo que seja julgado procedente a apelação, revogando a Douta Sentença recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA!
*
II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes perante o Tribunal de 1ª instância, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no nosso sistema de recursos, não se destina à prolação de novas decisões, mas à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias. ([1]).
*
No seguimento desta orientação, a questão a decidir no presente recurso é a seguinte:
Se o registo da marca da Apelada deve ser recusado por preencher o conceito de imitação previsto no art. 238º do CPI.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
1. O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
a) Por despacho de 17/12/2020, o Senhor Diretor do Departamento de Marcas e Desenhos ou Modelos do INPI, por subdelegação de competências do Conselho Diretivo, recusou o registo da marca nacional n.º 631726, AUDAZ SÓ PARA OS MAIS FORTES, pedida em 14/10/2019;
b) A marca referida assinala os seguintes produtos da classe 30, da Classificação Internacional de Nice: MOLHOS; PIRIPIRI; MOLHOS PICANTES. Cfr. teor da decisão constante do processo de registo, remetido aos autos pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial;
c) A recorrida é titular da marca nº 624916 - AUDAZES, requerida em 26.06.2019 e concedida por despacho de 25.10.2019 para assinalar na classe 35 da Classificação Internacional de Nice os serviços de “administração de empresas; serviços de gestão comercial; gestão de projetos empresariais; organização de gestão de negócios; publicidade; serviços de venda a retalho relacionados com alimentos, e na classe 43 “serviços de restaurante e bar; serviços hoteleiros”,
d) A recorrida é titular da marca nº 624918 - AUDAZ, requerida em 25.05.2019 e concedida por despacho de 10.10.2019, para identificar na classe 43 “serviços de restaurante e bar; serviços hoteleiros”. 
*
IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
Imitação entre a marca da Apelada e as marcas da Apelante.
O presente recurso vem interposto da sentença recorrida que, tendo revogado o despacho do Director de Marcas do INPI que recusou o pedido de registo da marca nacional nº 631726 “AUDAZ SÓ PARA OS MAIS FORTES”, concedeu o registo da referida marca à aqui Apelada.
Tal como decorre das conclusões de recurso, a Apelante considera que o tribunal a quo interpretou de forma incorrecta o art. 238º do CPI, ao concluir, de forma errada, que entre os sinais em confronto não existe semelhança/afinidade entre os serviços e produtos.
Como fundamento da sua pretensão invocou a Apelante que os serviços de venda a retalho relacionados com alimentos e o de fornecimento de alimentos e bebidas (serviços de restauração e bar) apresentam afinidade em relação aos molhos, piripiri e molhos picantes que constituem produtos alimentícios, que a proteção de que as suas marcas beneficiam por serem prioritárias é abrangente, compreendendo a venda a retalho de bens alimentícios os molhos, piripiri e molhos picantes que a marca registanda pretende assinalar, coincidem normalmente quanto ao produtor, ao público relevante e aos canais de distribuição, tendo o INPI já proferido decisões no sentido de considerar que entre os produtos inseridos na classe 30 e os serviços da classe 43 se estabelece uma relação de afinidade, que os produtos e os serviços confrontados destinam-se à mesma finalidade e à satisfação da mesma utilidade, sendo que perante um molho alimentício “AUDAZ SÓ PARA OS MAIS FORTES” da Apelada poderá ser associado ao comércio/restaurante/bar com a marca AUDAZ/AUDAZES da titularidade da Apelante, causando confusão por associação, que a prejudicaria, não se verificando diferenças entre os sinais que permitam que as marcas possam coexistir no mercado português sem risco de confusão, sendo o termo AUDAZ o elemento predominante e o único distintivo na marca da Apelada com total identidade gráfica e fonética com as marcas da Apelante.
O conceito de Marca extrai-se do art. 208º do NCPI, que dispõe que, a marca pode ser constituída por um sinal ou conjunto de sinais suscetíveis de representação gráfica, nomeadamente palavras, incluindo nomes de pessoas, desenhos, letras, números, sons, cor, a forma do produto ou da respetiva embalagem, ou por um sinal ou conjunto de sinais que possam ser representados de forma que permita determinar, de modo claro e preciso, o objeto da proteção conferida ao seu titular, desde que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas.
Sendo a marca um sinal distintivo dos produtos ou serviços de uma empresa das demais empresas, deverá assumir capacidade distintiva, razão pela qual no art. 209º do NCPI se elencam as hipóteses em que o sinal não satisfaz as condições necessárias para a constituição da marca, nomeadamente se desprovidas de qualquer carácter distintivo, ou se os sinais que entrem na composição da marca sejam constituídos por elementos genéricos (descritos nas alíneas a), c) e d) do nº 1 desse preceito legal), caso em que, esses elementos genéricos não serão considerados de uso exclusivo do requerente, excepto quando, na prática comercial, os sinais tiverem adquirido eficácia distintiva ( nº 2 do referido preceito legal).
Não tendo sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto fixada na decisão recorrida, não constituindo objecto deste recurso a reapreciação da referida matéria, a decisão recairá apenas e só sobre a matéria de direito em função dos factos dados como provados pelo tribunal a quo.
De acordo com os factos provados, constantes da sentença recorrida, a Apelante é titular do registo de marca nacional nº 624916 «AUDAZES», requerida em 26/06/2019 e concedida por despacho de 25/10/2019 para assinalar na classe 35 da Classificação Internacional de Nice os serviços de “administração de empresas; serviços de gestão comercial; gestão de projetos empresariais; organização de gestão de negócios; publicidade; serviços de venda a retalho relacionados com alimentos, e na classe 43serviços de restaurante e bar; serviços hoteleiros”.
A Apelante é ainda titular da marca nº 624918 «AUDAZ», requerida em 25/5/2019 e concedida por despacho de 10/10/2019, para identificar na classe 43serviços de restaurante e bar; serviços hoteleiros”. 
Estamos perante sinais meramente nominativos- AUDAZ/AUDAZES.
A marca cujo pedido de registo efectuado pela Apelada foi recusado pelo INPI, mas cuja decisão de recusa o tribunal a quo revogou, concedendo o registo, é a marca nacional n.º 631726, «AUDAZ SÓ PARA OS MAIS FORTES», pedida em 14/10/2019.
A referida marca da Apelada assinala os seguintes produtos da classe 30, da Classificação Internacional de Nice: molhos; piripiri; molhos picantes.
O carácter distintivo de uma marca ocorre, no sentido vertido no art. 208º do CPI, quando essa marca permite identificar o produto/serviço para o qual o respectivo pedido de registo foi solicitado, como provindo de uma empresa determinada, distinguindo-o do produto/serviço prestado por outras empresas.
A função essencial da marca é a de garantir ao consumidor lato sensu a identidade da origem do produto e/ou do serviço designado pela mesma, permitindo-lhe distingui-los, sem confusão possível, dos outros com proveniência empresarial diversa.(Acórdão do TJEU de 21/1/2010, Audi/OHMI, processo C-398/08 P,EU).
Segundo o art. 232º nº 1 do CPI “constitui ainda fundamento de recusa do registo de marca:
- al. b) a reprodução de marca anteriormente registada por outrem para produtos ou serviços afins ou a imitação, no todo ou em parte, de marca anteriormente registada por outrem para produtos ou serviços idênticos ou afins, que possa induzir em erro ou confusão o consumidor ou que compreenda o risco de associação com a marca registada.”
Por seu turno, dispõe o art. 238º nº 1 do CPI que, “a marca registada considera-se imitada ou usurpada por outra, no todo ou em parte, quando, cumulativamente:
a) A marca registada tiver prioridade;
b) Sejam ambas destinadas a assinalar produtos ou serviços idênticos ou afins;
c) Tenham tal semelhança gráfica, figurativa, fonética ou outra que induza facilmente o consumidor em erro ou confusão, ou que compreenda um risco de associação com marca anteriormente registada, de forma que o consumidor não as possa distinguir senão depois de exame atento ou confronto.”
Da conjugação dos preceitos legais acima reproduzidos retiramos que, constitui fundamento de recusa do registo de marca, quando ocorra imitação, no todo ou em parte, de marca anteriormente registada por outrem, se ambas se destinarem a assinalar produtos ou serviços idênticos ou afins, quando ambas tenham tal semelhança gráfica, figurativa, fonética ou outra que induza facilmente o consumidor em erro ou confusão, ou que compreenda um risco de associação com marca anteriormente registada.
«Tanto na doutrina, como na jurisprudência, desde há muito se firmaram, os seguintes princípios ou regras: o juízo comparativo deve ser objectivo, apurando-se se existe risco de confusão tomando em conta o consumidor ou utilizador final medianamente atento; para a formulação desse juízo relevam menos as dissemelhanças que ofereçam os diversos pormenores isoladamente do que a semelhança que resulta do conjunto dos elementos componentes, devendo ainda tomar-se em conta a interligação entre os produtos e serviços, por um lado, e, por outro, os sinais que os diferenciam.»[2]
No caso em apreço é pacífico que as marcas da Apelante são prioritárias relativamente à marca registanda, face à data de concessão do registo daquelas, situando-se o cerne do litígio na existência ou não de afinidade entre os serviços que as marcas da Apelante visam assinalar e os produtos para os quais foi pedido o registo da marca registanda.
O facto de estarem incluídos em Classes distintas da Classificação Internacional de Nice não é determinante, podendo, apesar de tudo, existir afinidade, conforme se prevê no art. 238º nº 2 al. b) do CPI.
Também se considera superada a questão da admissibilidade da afinidade se poder colocar entre produtos e serviços, conforme se pode ver dos ensinamentos, entre outros, de Pedro Sousa e Silva.[3]
No que diz respeito à análise da afinidade entre os produtos que visa assinalar a marca registanda e os serviços assinalados pelas marcas da Apelante, o confronto coloca-se com mais acuidade entre os produtos “molhos, piripiri e molhos picantes” da Classe 30 da marca registanda “AUDAZ SÓ PARA OS MAIS FORTES”por um lado e, os serviços de “venda a retalho relacionados com alimentos” e “serviços de restaurante e bar” da Classe 43 por outro das marcas da Apelante AUDAZ e AUDAZES.
Admitindo-se que não seja propriamente evidente a afinidade entre os produtos e serviços acima mencionados, ela existe e em grau que não é despiciendo, porquanto os molhos integram-se nos produtos alimentícios, são deles complementares, sendo em regra objecto de venda a retalho relacionada com alimentos.
Conforme vem sendo do conhecimento público, não são raros os restaurantes que comercializam, quer nos seus próprios estabelecimentos, quer em superfícies comerciais de distribuição do ramo alimentar, produtos alimentícios sob a marca que assinala os serviços de restaurante, associando à marca sob a qual é prestado o serviço de restauração, a venda de produtos conexos com essa actividade.
A título meramente exemplificativo e que elucida bem essa possibilidade, veja-se o Ac. RL de 23/5/2019, que recaiu sobre a marca Belcanto e, que embora tenha por objecto a venda de vinhos, é transponível para a situação destes autos relacionada com a venda de produtos alimentares [4].
Nesse mesmo aresto se pode ler que, “É também do conhecimento público e facto notório que na realidade do mercado os grupos de empresas que exploram restaurantes desenvolvem comummente actividades conexas aos serviços de restauração incluindo, designadamente, a venda de bebidas alcoólicas que podem usar ou não marca idêntica àquela que assinala os serviços de restauração.”
Nos restaurantes consomem-se alimentos, os quais poderão ser ( e são-no frequentemente) complementados por molhos e, para além desse consumo, podem ser vendidos produtos alimentares (nomeadamente molhos) sob a mesma marca do restaurante, pelo que, sendo a Apelante titular das marcas AUDAZ e AUDAZES e visando aquelas marcas assinalar os serviços de restaurante e venda a retalho relacionada com alimentos, tem a Apelante também o direito de comercializar produtos relacionados com alimentos sob a marca AUDAZ/AUDAZES, designadamente um molho com nome AUDAZ idêntico à marca.
O Tribunal de Justiça da União Europeia, na decisão T-213/09, de 15 de Fevereiro de 2011, perfilhou já o entendimento de que “os serviços de restauração utilizam necessariamente os produtos relevantes das classes 30, 32 e 33. Os produtos e serviços em causa devem assim ser considerados como complementares à luz da jurisprudência acima citada (…)”.
A propósito dessa questão da afinidade entre produtos e serviços, inclusivamente entre “alimentação, bebidas e serviços de restaurante” e, complementaridade entre eles, salientam-se também as considerações vertidas nas Guidelines for Examination of European Union Trade Marks, EUIPO, Part C, Section 2, Double Identity and Likelihood of Confusion, Chapter 2, Comparison of Goods and Services, consultável em https://guidelines.euipo.europe.eu.
Se a Apelada visa assinalar com a marca AUDAZ SÓ PARA OS MAIS FORTES a venda de molhos, afigura-se-nos que causará evidente confusão ao consumidor médio, existindo um risco de que o público- mormente o consumidor da área da restauração- possa crer que os produtos em causa provêm da mesma empresa ou, eventualmente, de empresas ligadas economicamente à Apelante, face à afinidade entre aqueles produtos e os serviços das marcas prioritárias da Apelante.
O Ac. CANON (ProcC-39/97) menciona que “um risco de confusão existe na acepção do artigo 4º, nº 1, alínea b) da directiva quando o público pode ser induzido em erro quanto à origem dos produtos ou dos serviços em causa. (…) o risco de que o público possa crer que os produtos ou serviços em causa provêm da mesma empresa ou, eventualmente, de empresas ligadas economicamente (v., neste sentido, o acórdão SABEL).”
No mesmo sentido, Américo da Silva Carvalho, não aceitando que a análise da semelhança dos produtos se faça com base na mesma utilidade, satisfação das mesmas necessidades, sucedâneas ou complementares, perfilhava o entendimento que, “(…) a semelhança dos produtos deve ser aferida por referência à sua origem, isto é, à empresa. Se o público pode atribuir os produtos à mesma empresa são semelhantes, se não pode são dissemelhantes.”[5]
Por seu turno, a propósito desta temática, refere Pedro Sousa e Silva, o seguinte:
 “Assim, só deverão ter-se por afins produtos ou serviços que apresentem entre si um grau de semelhança ou proximidade suficiente para permitir, ainda que parcialmente, uma procura conjunta, para satisfação de idênticas necessidades dos consumidores. Os produtos ou serviços em causa terão que se situar, pois, no mesmo mercado relevante, permitindo dessa forma, ainda que tenuemente, uma relação de concorrência entre os agentes económicos que os ofereçam ao público.”
Em abono da posição de existir afinidade entre os serviços de restauração (e por maioria de razão nos serviços de venda a retalho relacionada com alimentos) e a venda de alimentos, sustenta aquele Autor “(…) parece-me claro que nada impede que se considere um serviço como afim de um produto: por exemplo, os serviços de restauração têm grande proximidade (afinidade) com produtos alimentares e com bebidas alcoólicas”.[6]
Também Luís Couto Gonçalves, quanto ao requisito da afinidade de produtos ou serviços, afirma que «do que se trata não é de distinguir económica ou, sequer, de um modo juridicamente abrangente produtos ou serviços, mas, apenas, o de distinguir produtos e serviços no âmbito do direito de marcas. Para além do critério da finalidade e utilidade dos produtos e serviços a doutrina refere ainda o critério da natureza (estrutura e características) dos produtos e serviços e o critério dos circuitos e hábitos de distribuição dos produtos e serviços. O grau de importância de cada um destes critérios é difícil de estabelecer aprioristicamente. É óbvio que quando todos os critérios puderem concorrer num caso concreto o conceito de afinidade sai claramente reforçado. O facto de os produtos ou serviços confrontados se destinarem à mesma finalidade e à satisfação da mesma utilidade, terem a mesma natureza e serem distribuídos, vendidos ou prestados através dos mesmos circuitos de comercialização, de modo simultâneo, indicia, com maior margem de segurança, a existência de afinidade.
Nos casos em que não concorram, simultaneamente, todos os factores de apreciação de afinidade haverá que ponderar cuidadosamente o peso relativo de cada um e não perder de vista o risco de confusão quanto à origem dos produtos e serviços marcados de forma igual ou semelhante.
Há casos em que o risco de afinidade aumenta. Referimo-nos aos casos em que possa mediar uma relação de substituição, complementaridade, acessoriedade ou derivação entre os produtos ou serviços ou, mesmo, entre produtos e serviços».[7]
Havendo uma relação de complementaridade entre os molhos a comercializar pela Apelada sob a marca AUDAZ SÓ PARA OS MAIS FORTES e, os alimentos a serem vendidos quer nos serviços de restaurante, quer na venda a retalho relacionada com alimentos, sob as marcas da Apelante AUDAZ e AUDAZES, tendo a mesma natureza, destinando-se à mesma finalidade e à satisfação da mesma utilidade e, podendo ser distribuídos, vendidos ou prestados através dos mesmos circuitos de comercialização, dever-se-á concluir que a marca da Apelada se destina a assinalar produtos afins daqueles serviços que são assinalados pelas marcas da Apelante, tendo-se por verificado o requisito previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 238.º do CPI.
Cumpre ainda averiguar se, apesar da afinidade entre os produtos/serviços que as marcas em confronto visam assinalar, as marcas são ou não são semelhantes de molde a poder aferir se se verifica imitação obstativa do registo da marca.
O TJUE no Ac. CANON (P. C-39/97) fez menção ao facto de que “a apreciação global do risco de confusão implica uma certa interdependência entre os factores tomados em conta, nomeadamente a semelhança das marcas e dos produtos ou serviços designados. Assim, um reduzido grau de semelhança entre os produtos ou serviços designados pode ser compensado por um elevado grau de semelhança entre as marcas, e inversamente.”
No mesmo sentido, Pedro Sousa e Silva, «A abordagem correcta no exame da confundibilidade das marcas é aquela que- no respeito do princípio da interdependência- coloca, num dos “pratos da balança” os factores de semelhança dos sinais, ao nível fonético, visual e conceptual e, no outro “prato”, os factores de diferenciação desses sinais, podendo a grande semelhança no contexto de um desses níveis ser compensada pela elevada dissemelhança no contexto dos demais.»[8]
Destarte, da visão de conjunto entre as marcas prioritárias da Apelante e a marca registanda, não sendo propriamente iguais, porque a marca registanda não se reduz ao termo AUDAZ, afigura-se-nos que não há dissemelhanças que as permitam facilmente distinguir numa análise geralmente apressada e displicente do consumidor médio de produtos alimentares.
Delas não se evidenciam diferenças suficientemente significativas que afastem o risco de confusão, por associação, pelo consumidor desses produtos, o qual, confrontado com a marca registanda, tendo reminiscências na memória das marcas da Apelante registadas anteriormente não consegue, no imediato, distingui-las, sendo, como é prevalecente o vocábulo AUDAZ , vocábulo que constitui a parte inicial do conjunto de vocábulos AUDAZ SÓ PARA OS MAIS FORTES da marca registanda  e, como tal nela está totalmente consumido.
“A imitação de uma marca por outra existirá não só quando, postas em conjunto, elas se confundam, mas também quando, tendo-se à vista apenas a marca a constituir, se deva concluir que ela é susceptível de ser tomada por outra de que se tenha conhecimento.
Tratando-se de marcas nominativas, a marca não será nova quando, em confronto gráfico ou fonético com outra mais antiga, seja de molde a provocar confusão, não interessando o tipo, os caracteres ou as dimensões em que são escritas”.[9]
A marca registanda, com grafismo, concepção e elemento predominante nominativo comum às marcas da Apelante anteriormente registadas,  não possui elementos distintivos suficientes que façam distinguir os produtos da Apelada dos produtos da Apelante (produtos do ramo alimentar) tomando-se por referência um consumidor-tipo de produtos alimentares que, por regra, não realizará uma comparação directa entre as duas marcas, mantendo de memória as marcas prioritárias que a Apelante utiliza no mercado de restauração.
O consumidor deste tipo de produtos alimentícios complementares (produtos susceptíveis de terem em comum o mesmo público alvo e os mesmos canais de distribuição), quando confrontado com produtos da marca AUDAZ SÓ PARA OS MAIS FORTES facilmente incorrerá em erro ou confusão, podendo assumir naturalmente que se tratam de produtos da mesma marca ou pelo menos de produtos do mesmo grupo económico da Apelante dada a identidade do termo AUDAZ.
Já no Ac RL de 4/5/2021 foi decidido que “Tais consumidores vivem num mundo verbal em que a palavra, designadamente a escrita, domina o quotidiano recordando, de forma muito mais intensa, vocábulos ainda que de maneira imprecisa e com escasso rigor e em termos sempre desfocados pela nebulosidade da memória que se constrói sobre o trinómio «impressão», «repetição» e «associação»”. [10]
Assim acontecerá no caso em apreço, em que o elemento nominativo AUDAZ assume preponderância, sendo recordado com mais acuidade a parte inicial comum às marcas em confronto- AUDAZ- uma vez que o restante da marca registanda- SÓ PARA OS MAIS FORTES- pouco ou nenhum relevo assume face à banalidade desses termos no conjunto do sinal, potenciando erro ou confusão designadamente quanto à origem comum ou não dos produtos/serviços assinalados.
De facto, aquelas outras palavras não produzem suficiente diferenciação entre as marcas (nem sequer são de apropriação individual), são de uso banal esvaziado de conteúdo diferenciador pelo uso generalizado, indiscriminado em relação a qualquer tipo de produto/serviço, contrariamente à palavra AUDAZ que assume evidente sonoridade e predominância na impressão geral do consumidor mediano.
Nada nos elementos verbais da marca registanda (que contem o vocábulo AUDAZ das marcas da Apelante) permite ao consumidor aferir que está perante marca de empresário diferente da Apelante, não sendo a marca registanda, analisada no seu conjunto, em termos objectivos, adequada a distinguir os produtos da Apelada dos serviços da Apelante.
Considerando-se que o termo AUDAZ se constitui como o elemento distintivo e predominante dos sinais em cotejo, cremos ser indesmentível que existe semelhança visual, fonética e conceptual entre os mesmos, para mais quando o vocábulo das marcas da Apelante está integralmente reproduzido no sinal da Apelada, circunstância que, a nosso ver, dificilmente permitirá a destrinça entre as origens diferenciadas dos produtos/serviços.
Tal semelhança é suscetível de induzir em erro ou favorecer uma associação entre os sinais impelindo o consumidor a crer, indevidamente, que têm a mesma origem empresarial ou que existe alguma relação de natureza jurídica, económica ou organizacional entre as respetivas entidades, julgando, por exemplo, que a marca da Apelada identifica uma variante das marcas anteriormente registadas pela Apelante, podendo o consumidor, naturalmente, assumir que os molhos comercializados sob a marca AUDAZ SÓ PARA OS MAIS FORTES estão associados aos restaurantes sob a marca AUDAZ, pertencendo ao mesmo grupo económico, sendo um produto derivado daquela marca prioritária.
Neste sentido, no Ac RL de 29-9-2011, entendeu-se, com grande propriedade para o caso aqui em apreço que “A imitação não implica a cópia, igualdade total, podendo ser parcial e a existência simultânea de elementos diferentes e de elementos comuns. O que importa é verificar-se se, os elementos diferentes possibilitam que a marca possua, no seu conjunto, capacidade ou eficácia distintiva, pois, não acontecendo tal, isto é, sendo a semelhança com a outra tão grande que possa determinar a confusão entre as duas, deve considerar-se verificada a existência de imitação.” [11]
Na hipótese dos autos, apesar das diferenças, existe aquele elemento comum às marcas-AUDAZ- que determina uma forte semelhança entre elas, quer de ordem verbal, quer conceptual, quer fonética, passível de induzir em erro ou confusão o consumidor médio, sendo essa semelhança suficiente para possibilitar que venha a adquirir um produto da marca da Apelada, por se ter convencido da existência de uma associação daquela marca com as marcas da Apelante- risco de confusão por associação.
Em suma, estando provado que as marcas AUDAZ e AUDAZES da Apelante são prioritárias em relação à marca registanda AUDAZ SÓ PARA OS MAIS FORTES, sendo os sinais sob cotejo muito semelhantes e, afins os produtos/serviços que aquelas marcas em confronto visam assinalar, é muito provável que os  consumidores, quando confrontados com os produtos da Apelada, considerem que os mesmos estão a ser comercializados pelo grupo económico da Apelante, ou por alguém que com esta mantenha uma relação de parceria, o que não é o caso, sendo induzidos em erro ou confusão relativamente à respectiva proveniência empresarial ou associação com marca anteriormente registada.
Assim sendo, mostrando-se preenchido o motivo de recusa do registo previsto no art. 232º nº 1 al. b) do CPI, conjugado com o art. 238º nº1 do CPI, por existir imitação, em parte, pela marca registanda relativamente às marcas prioritárias da Apelante, deve ser revogada a decisão de concessão do registo da marca da Apelada.
Concluindo, tudo conhecido e apreciado, deve ser declarada procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida.
*
V. DECISÃO:
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa, julgar procedente o recurso de apelação, revogando-se a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, substituindo-a por decisão de recusa do registo da marca nacional nº 631726 “AUDAZ SÓ PARA OS MAIS FORTES”
Custas pela Apelada – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
*
Lisboa, 27/1/2022
Maria da Luz Teles Meneses de Seabra
Eurico José Marques dos Reis
(assina, com voto de vencido que se segue)
Carlos M G de Melo Marinho

(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)


DECLARAÇÃO DE VOTO
PROC. Nº 66/21.0YHLSB.L1
VISTO N.º 02/2022 (1)
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1. Pelas razões a seguir indicadas e com todo o respeito pela posição que fez vencimento no acórdão de que este voto de vencido faz parte integrante, divirjo da mesma, sendo que, portanto, teria julgado totalmente improcedente a apelação e confirmado, na íntegra, ainda que acrescentando outros argumentos à fundamentação em matéria de Direito nela explanada, a decisão recorrida que revogou o despacho do Diretor do Departamento de Marcas e Desenhos ou Modelos do INPI datado de 17/12/2020, lavrado por subdelegação de competências do Conselho Directivo desse Instituto, e o substituiu pelo decretamento da concessão do registo da marca nacional n.º 631726 AUDAZ SÓ PARA OS MAIS FORTES, pedida em 14/10/2019 pela aqui apelante.
2. Esta opinião decorre, essencialmente, do seguinte conjunto de pressupostos conceptuais:
a) em primeiro lugar, entendo que, como para mim resulta clara e inequivocamente do estatuído no n.º 1 do art.º 9º do Código Civil [mais exactamente a menção que aí é feita à “unidade do sistema jurídico”], o Ordenamento Jurídico é um compósito unitário, o que significa que nenhum normativo desse Ordenamento (aí considerando, em igualdade de circunstâncias para os diplomas de igual dignidade institucional, os dispositivos constantes de instrumentos legais internacionais aplicáveis em Portugal mas também as normas que regulam a tramitação dos processos que correm termos perante os Tribunais Judiciais) pode alguma vez ser interpretado isoladamente; isto é e para usar uma figura de estilo, o Ordenamento Jurídico é um continente, não um arquipélago (ou sequer uma soma de arquipélagos), sendo que esta conclusão normativa se aplica, na íntegra, ao segmento de mercado no qual este conflito emergiu, e que é identificado pela expressão economia baseada no conhecimento;
b) por outro lado, como creio que tem mesmo que ser sabido (ou melhor, não pode ser ignorado - art.º 6º do Código Civil), a delimitação dos contornos da compreensão/extensão lógica da previsão/estatuição de uma qualquer norma jurídica, seja qual for a sua natureza (substantiva ou adjectiva), tem forçosamente de ser feita em conformidade com as regras interpretativas definidas nos três números do art.º 9º do Código Civil, sendo, de igual modo, inquestionável que as palavras têm um peso e um valor ontológico - razão pela qual no n.º 2 desse mesmo normativo se escreve que «Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso», e estando, de igual modo, inequivocamente estabelecido no n.º 3 desse mesmo artigo que « … (na) fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados»;
c) nesta conformidade e continuando a seguir a mesma linha de raciocínio lógico, para a construção do conceito “solução mais acertada” - de facto e mais exactamente, a solução ética e socialmente mais acertada -, considero que não podem ser esquecidas as exigências inscritas nos artºs 335º (proporcionalidade assente na posição que o valor ético que valida a norma e a torna em verdadeiro Direito ocupa na Hierarquia de Valores que enforma e dá consistência ao tecido social comunitário) e 334º do mesmo Código, destacando-se neste último e sem prejuízo de haver de atender também às finalidades económicas e sociais dos direitos em causa, a atenção que é dada, em primeira linha, à boa-fé e aos bons costumes, em suma, aos valores éticos que constituem os pilares estruturantes da Comunidade, que validam as normas legais produzidas pela forma prevista na Constituição e que servem de padrão aferidor quando está em causa apreciar a adequação das condutas individuais aos padrões comportamentais reputados exigíveis à vivência em Sociedade, sendo que esses padrões não podem - ou, pelo menos, não devem -, em geral, ser outros que não os que são típicos de um qualquer diligente bom pai (ou boa mãe) de família - art.º 487º n.º 2 do Código Civil -, mas também, e nesta específica área económica denominada economia baseada no conhecimento, os que são típicos de um/a  consumidor/a minimamente atento/a e informado/a;
d) acresce ao atrás enunciado que aqueles que têm como função buscar e administrar a Justiça nos casos concretos, têm sempre de contar com a natureza de certas coisas (v. Pedro Pais de Vasconcelos in “Última lição: A Natureza das Coisas” - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 16 de maio de 2016), porquanto “a realidade das coisas” (ou seja, a realidade material das situações submetidas ao julgamento do Tribunal), não pode ser ignorada ou desprezada já que essa materialidade objectiva se impõe a todos, mesmo àqueles que fingem que ela não existe, e também porque, quando tal acontece, é a tutela da certeza e da segurança jurídicas que é posta em perigo e, no final, com uma tal descuidada visão dos factos, é a protecção dos direitos de todos aqueles que interagem no comércio jurídico que está a ser desconsiderada – sendo que essa atenção à vida tal qual ela realmente é assume uma muito significativa relevância na construção da solução jurídica deste pleito;
e) outrossim, a antes referida necessidade de, para aquilatar qual será, no concreto caso submetido ao seu julgamento, a solução ética e socialmente mais acertada, ter obrigatoriamente o Intérprete/Juiz, seja qual for a instância em que exerce funções, de fazer apelo ao que se encontra estipulado no art.º 335º desse mesmo Código tem uma importância que muitas vezes é negligenciada porque no n.º 2 desse dispositivo está clara e incontornavelmente consagrado o Princípio da Proporcionalidade, para o qual esse Julgador é remetido, princípio esse que, incontornavelmente, apesar de não existir uma norma constitucional que, em termos expressos, a ele se refira [contudo, são várias as manifestações do mesmo que estão subjacentes a vários dos comandos jurídicos que constam dessa Lei Maior - a título de mero exemplo, mencionam-se aqui os três números do art.º 26º e o n.º 2 do art.º 18º da Constituição da República e, de certa forma, ao fazer referência ao conceito de “justa indemnização”, também o n.º 2 do art.º 62º desse mesmo Diploma Fundamental], constitui um dos pilares fundamentais não apenas do Estado de Direito e do normal funcionamento da Sociedade, mas sim de toda a Civilização Ocidental [embora, curiosamente, tenha sido historicamente registado pela primeira vez no várias vezes milenar Código de Hamurábi, com o reconhecimento nele feito da demasiadas vezes imerecidamente vilipendiada Lei (ou Princípio) de Talião através da(o) qual se estabelece a correlação sancionatória “olho por olho, dente por dente”, limitando o anteriormente totalmente ilimitado poder – daqueles que o detinham, claro - de punir irrestritamente o infractor perante um agravo por esses socialmente poderosos sofrido, ainda que mínimo].
3. Ora, à luz desses pressupostos, sublinhando muito especialmente o critério da atenção à vida tal qual ela realmente é, considero que, com um muito elevado grau de probabilidade [mas tenha-se em devida conta que o filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm Leibniz, que viveu entre 1646 e 1716, demonstrou inequivocamente que não existem certezas absolutas mas tão só certezas probabilísticas], um/a diligente bom pai/boa mãe de família, mas também a um/a normal consumidor/a, minimamente atento/a e informado/a, usando, para tanto, juízos de experiência comum e raciocínios de razoabilidade adequada, forçosamente concluirá que a marca registanda não se confunde com as marcas registadas de que é titular a recorrente porque apenas uma palavra (“AUDAZ”) existe em comum e, sobretudo, na marca registanda, que é uma frase inteira, sublinho, e não um sinal isolado, se estabelece uma ligação entre o epiteto AUDAZ (o que sempre valeria para o termo “AUDAZES”) e uma outra qualidade descritiva associada à palavra “FORTES”, que é totalmente inexistente nas marcas invocadas como obstativas do registo peticionado.
4. O que, a meu ver, é suficiente para evitar a ocorrência de um qualquer risco de confusão (ou a susceptibilidade de a mesma se verificar) entre essas três marcas e, de igual modo, e quanto à possibilidade de criação de uma percepção de que os bens e serviços assinalados provêm da mesma empresas produtora.
5. A concluir, creio ser desproporcionado, considerar que existe afinidade ou identidade do tipo do produto/serviço assinalados pelas marcas em confronto, até porque a marca registanda visa assinalar produtos da classe 30 da Classificação Internacional de Nice: MOLHOS; PIRIPIRI; MOLHOS PICANTES, enquanto as marcas obstativas assinalam, respectivamente, serviços das classes 35 e 43 [“AUDAZ”] dessa mesma Classificação Internacional, a saber:
- a primeira [“AUDAZES”], na classe 35, os serviços de “administração de empresas; serviços de gestão comercial; gestão de projetos empresariais; organização de gestão de negócios; publicidade; serviços de venda a retalho relacionados com alimentos», e na classe 43 “serviços de restaurante e bar; serviços hoteleiros”;
- a segunda [“AUDAZ”], só para identificar na classe 43 “serviços de restaurante e bar; serviços hoteleiros”.
6. E, nessa medida, sufrago inteiramente a posição assumida pela Mma Juíza a quo na decisão recorrida.
7. E essa é, naturalmente em termos muito sumários, a posição que sustento quanto às questões que constituem o objecto da apelação cujo mérito aqui se aprecia, sendo estas, repito, de forma muito resumida, as razões da minha divergência.

Lisboa, 27/01/2022
(Eurico José Marques dos Reis)
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[1] F. AMÂNCIO FERREIRA, “ Manual dos Recursos em Processo Civil ”, 8ª edição, pág. 147 e A. ABRANTES GERALDES, “ Recursos no Novo Código de Processo Civil ”, 2ª edição, pág. 92-93.
[2] Ac RL de 30-9-2008, Proc. Nº 3546/3008-1e, em igual sentido Ac RL de 20-12-2017, Proc. Nº 271/17.3YHLSB.L1-7, www.dgsi.pt
[3] Direito Industrial, p. 273; CPI Anotado, Coord. Luis Couto Gonçalves, p. 948
[4] Proc. Nº 148/17.2YHLSB.L1-8, www.dgsi.pt
[5] Direito de Marcas, p. 67
[6] Ob Cit, p. 273
[7] Manual de Direito Industrial, p. 275 a 277
[8] Pedro Sousa e Silva, ob.cit., p286
[9] Ac RL de 24-6-2014, Proc. Nº 1021/08.0TYLSB.L1-7, www.dgsi.pt
[10] Proc. Nº 365/19.0YHLSB.L1-(PICRS), www.dgsi.pt
[11] Proc. 111/07.1TYLSB.L1-8, www.dgsi.pt