Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CARLA MENDES | ||
Descritores: | PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA APREENSÃO DE VEÍCULO FURTO DE VEÍCULO LEGITIMIDADE PASSIVA INCERTOS | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/17/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Sumário: | I - A legitimidade processual não se confunde com a legitimidade substantiva, consistindo esta no pressuposto jurídico de uma determinada acção, pelo que é errónea a concepção de que a legitimidade processual mais não é do que a recepção no plano adjectivo da sua congénere substantiva. II – Em sede de providência cautelar não especificada em que o requerente peticiona a apreensão imediata de veículo automóvel entregue a terceiro com base em contrato de Aluguer Operacional de Automóveis que resolveu , e tendo a viatura sido furtada, porque não tem a requerente, conforme alega, possibilidade de identificar os interessados directos em contradizer por desconhecer quem detém a viatura, os incertos são parte legítima, face à configuração da relação controvertida apresentada pela requerente, cabendo a sua representação ao Ministério Público – art. 22 CPC. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 8ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa A [ …Unipessoal, Lda.] intentou uma providência cautelar não especificada contra incertos, pedindo a apreensão imediata do veículo de marca Mazda, modelo CX-5 2.2D Excellence Navi 150 Cv 5p, com a matrícula ..-RA-.., bem como os respectivos documentos que se encontram na posse de incertos, mesmo que se encontre em propriedade privada ou local fechado, designadamente garagem ou parque, a entrega da viatura à requerente que deverá ser nomeada fiel depositária, seja oficiado à Conservatória do Registo Automóvel para não realizar qualquer registo de transmissão por venda ou oneração do veículo identificado, pertença da requerente, até à sua efectiva entrega e seja declarada a inversão do contencioso, ex vi art. 369 CPC. Alegou, para tanto, que a requerente e a sociedade B [ …….Unipessoal, Lda ], celebraram um contrato que designaram de “Contrato - Quadro de Aluguer Operacional de Automóveis, nº 40141”, mediante o qual a requerente se obrigou a prestar à B, entre outros, a colocação à disposição de veículos automóveis, bem como a gestão dos respectivos custos de manutenção, obrigando-se aquela a pagar as respectivas rendas e preços. No âmbito desse contrato, celebraram um contrato individual de aluguer e administração (anexo) referente ao veículo supra identificado, pelo prazo de 48 meses e mediante o pagamento mensal de € 558,83, tendo a requerente adquirido o automóvel no concessionário Santogal pelo preço de € 33.320,45, cujo valor venal actual é de € 22.000,00. A requerida não pagou alguns alugueres somando a dívida, deduzida a nota de crédito, € 6.979,32. Não obstante interpelada a B nada pagou tendo a requerente resolvido o contrato, impendendo sobre aquela a restituição da viatura. Em 5/1/18, a B comunicou à requerente que o veículo tinha sido furtado, tendo tal facto sido reportado à PSP. A Seguradora declinou a responsabilidade. A requerente desconhece quem detém ilicitamente a viatura. Após julgamento foi proferida sentença que absolveu os réus da instância com fundamento em ilegitimidade – fls. 52/53. Inconformada, a requerente apelou formulando as conclusões que se transcrevem: 1. O presente recurso vem interposto da decisão final proferida pelo Tribunal a quo, que julgou improcedente o pedido da ora Recorrente de restituição da viatura locada; 2. Entende a Recorrente, salvo o devido respeitar que o Tribunal a quo desconsiderou parte da prova produzida em juízo; 3. Motivo pelo qual considera a ora Recorrente que o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento da matéria de factor ao dar apenas parte dos factos articulados pela Recorrente como provados, decorrente de uma apreciação errática da prova produzida; 4. Entende a Recorrente que a prova documental junta aos autos e os depoimentos prestados em juízo pelas testemunhas Sandra …. e Tiago …… comportam decisão diversa da proferida; 5. Pois, resulta de forma linear, da Declaração da Polícia de Segurança Pública e do Relatório de Actividade, já juntos aos autos como docs. 22 e 21 respectivamente, que a viatura locada foi objecto de furto no dia 5 de Janeiro de 2018; 6. O facto referido no artigo anterior é ainda suportado pelo depoimento prestado pelas testemunhas Sandra Ferreira [07:06 - 07:32] e Tiago ….. [00:25 - 00:59], ao afirmarem expressamente em plena audiência de discussão e julgamento que a viatura locada foi objecto de furto; 7. Como corolário do furto, provado pelas provas documental e testemunhal, a Recorrente não tem possibilidade de saber quem detém actualmente a viatura sub judice. 8. Porquanto, após ter tomado conhecimento da notícia de furto, a Recorrente desenvolveu um conjunto de diligências tendentes a averiguar do paradeiro da viatura e a descortinar a identidade do seu actual detentor; 9. Diligências que consistiram na deslocação à sede da antiga locatária e na realização de contactos, via e-mail e telefone, e cuja realização ficou linearmente provada pelos depoimentos das testemunhas Sandra …. ARB [05:57 - 07:20] e Tiago Honório [02:13 - 02:32]; 10. Paralelamente, a testemunha Tiago …. solicitou ainda que lhe fosse enviado auto de denúncia, de forma a comprovar a veracidade da queixa apresentada, que lhe foi enviada, como resulta claramente do Relatório de Actividade junto aos autos como doc. 22; 11. Mais, quando a sociedade B da Atalaia, Unipessoal, Lda., informou a testemunha Tiago …. do furto ocorrido, não indicou quem pudesse ser o seu autor e/ou actual detentor da viatura locada; 12. Resultando, ainda, claro da apresentação da queixa que a sociedade B, não é a actual detentora da viatura locada; 13. Ademais, a Recorrente aguardou o decurso do processo-crime instaurado com base na queixa apresentada pela B, para verificar se surgia alguma novidade quanto ao autor do furto; 14. Face às diligências levadas a cabo pela Recorrente, bem como à falta de qualquer indicação de quem pudesse ser o presumível autor do furto e/ou detentor actual da viatura locada, resulta inequívoco que a Recorrente não tem forma de identificar quem detém a viatura nos dias de hoje; 15. Os factos relativos ao furto da viatura locada e ao desconhecimento, por parte da Recorrente de quem seja o seu actual detentor, resultam da prova documental junta aos autos e dos depoimentos prestados pelas testemunhas Sandra …. [14:49 - 15:16] e Tiago …. [02:13 - 02:32], prestados de forma directa e próprios de quem tem um conhecimento pessoal dos factos; 16. Tendo o próprio Tribunal a quo reconhecido que os depoimentos produzidos em audiência de discussão e julgamento "( ... ) confirmaram os factos articulados na petição"; 17. Como tal, considera a ora Recorrente que, à luz do princípio da livre apreciação da prova, recaía sobre o Tribunal a quo o dever de avaliar a prova produzida, de forma equitativa, com base em critérios racionais e objectivos, que conduzisse a um juízo positivo quando se mostrasse indiciada a realidade constantes dos documentos e depoimentos em causa; 18. Conduta que não se verificou in casu, porquanto, não obstante resultar, de forma bastante translúcida, de diversos meios de prova de natureza documental e testemunhal que a viatura foi furtada e que a Recorrente desconhece quem seja o seu actual detentor, o douto Tribunal recorrido optou por julgar esses mesmos factos como não provados; 19. Entende a ora Recorrente que o Relatório de Actividade e a Declaração da Polícia de Segurança Pública, juntos aos autos como docs. 21 e 22 respectivamente, e os depoimentos prestados pelas testemunhas Sandra …. e Tiago …. atingem o patamar da probabilidade prevalecente, não se inferiorizando em relação à demais prova produzida; 20. E conduzindo a decisão diversa da proferida, de forma a que passem a constar do elenco de factos dados como provados os seguintes factos: a. A viatura locada foi objecto da prática de um crime de furto, em 5 de Janeiro de 2018; b. Nesse seguimento, a Requerente desconhece quem possa deter actualmente a viatura locada; 21. Em harmonia com o que se vem expondo, entende a Recorrente que, ao desconsiderar os factos referidos no artigo anterior, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à matéria de direito; 22. O Tribunal a quo considerou que a presente providência cautelar deveria ter sido instaurada contra a sociedade B., e não contra incertos, por ser aquela parte contratual na relação jurídica em juízo; 23. Ao fundamentar a decisão recorrida no raciocínio supra exposto, o Tribunal a quo desconsiderou os dois factos que a ora Recorrente entende deverem ser dados como provados e, por consequência, desconsiderou a questão nuclear levantada nos presentes autos; 24. Porquanto, atendendo à matéria de facto com a alteração resultante do presente recurso, resulta claro que a presente providência não como objectivo averiguar sobre quem recai a responsabilidade contratual de restituição da viatura no termo do contrato; 25. Responsabilidade que resulta evidente do contrato - quadro, junto aos autos como doc.1, como recaindo sobre a antiga locatária; 26. Tomando em consideração que a viatura foi furtada e que nem a ora Recorrente, nem a sociedade B, conhecem o seu actual detentor, é inequívoca a falta de interesse em contradizer desta última; 27. Pois a procedência ou improcedência da providência cautelar não consubstancia qualquer prejuízo para a sociedade B, devendo, ao invés, prosseguir contra incertos, 28. O artigo 22/1 CPC exige que, antes de propor a acção, o autor desenvolva um conjunto de diligências tendentes a identificar a pessoa contra quem a acção deverá seguir; 29. Diligências que foram realizadas no presente caso, considerando que, após ter tomado conhecimento do furto, a testemunha Tiago …. deslocou-se à sede da antiga locatária, não avistando a viatura, contactou por diversas vezes a mesma e solicitou o envio de cópia de auto de denúncia, de forma a deslindar a identidade do actual detentor da viatura locada e que foram frustradas; 30. Pelo que, em consequência, considera a ora Recorrente que deverá ser modificada a decisão recorrida, no sentido da procedência da presente providência cautelar contra incertos, ao abrigo do artigo 22/1 CPC. 31. Assim, deverá a sentença ser revogada, decretando-se a providência. Dispensados os visto, cumpre decidir. Factos indiciariamente apurados na 1ª instância: 1 – A autora dedica-se ao comércio, venda e aluguer de máquinas e veículos automóveis. 2 – Em 24-2-16, a autora e “B assinaram o “Contrato Quadro de Aluguer Operacional de Automóveis” junto a fls. 21v a 26v (cujo teor se dá aqui por reproduzido). 3 – Em data incerta, a autora e “B assinaram o “CONTRATO INDIVIDUAL DE ALUGUER E ADMINISTRAÇÃO” junto a fls 27 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – relativa ao veículo ‘MAZDA’ de matrícula ..-RA-.., que foi entregue à B (fls. 24). 4 – Em 5-5-16 foi registada a favor da autora a aquisição do veículo supra (fls. 28). 5 – A “B não pagou à autora os valores facturados a fls. 28v a 41. 6 – A autora enviou à “B, em 25-5-18, a carta junta a fls. 42v (cujo teor se dá aqui por reproduzido). 7 – A autora não conseguiu recuperar ou localizar a viatura supra – que a B não lhe entregou, alegando ter sido furtado (fls. 45v). 8 – Os veículos automóveis desvalorizam-se pelo uso normal e pelo decurso do tempo. Atentas as conclusões do apelante que delimitam, como é regra, o objecto do recurso – arts. 639 e 640 CPC – as questões que cabe decidir consistem em saber se: a) Ilegitimidade dos réus (incertos). b) Alteração da decisão sobre a matéria de facto Vejamos, então: a) Ilegitimidade Instaurou a requerente o presente procedimento cautelar contra incertos com fundamento no facto da viatura, objecto do contrato de aluguer celebrado entre si e a B, ter sido furtada, desconhecendo-se quem a detém, bem como o seu paradeiro. Após audição das testemunhas foi proferida decisão que, julgando os incertos parte ilegítima, absolveu-os da instância, com fundamento no facto de que a acção contra incertos tem lugar quando a não haja possibilidade de identificar os interessados directos em contradizer (art. 22 CPC) sendo que, no caso concreto, tendo o contrato de aluguer da viatura sido celebrado com a B, o procedimento cautelar deveria ter sido instaurado contra esta e não já contra aqueles. “Após a revisão de 1995/96, a legitimidade processual singular (1) tem de ser apreciada e determinada pela utilidade ou prejuízo que da procedência ou improcedência da acção possa advir para as partes, de acordo com a configuração que o autor dá na acção à relação controvertida (cf. art. 30 LN e 26 da LV). A legitimidade processual não se confunde com a legitimidade substantiva, consistindo esta no pressuposto jurídico de uma determinada acção, pelo que é errónea a concepção de que a legitimidade processual mais não é do que a recepção no plano adjectivo da sua congénere substantiva. Ficou assim esclarecido, através da nova redacção art. 30/3 (26/3 LV), o tema de uma velha polémica relativo à apreciação da legitimidade das partes, que dividiu durante dezenas de anos a doutrina e a jurisprudência, acolhendo-se a posição de Barbosa de Magalhães na polémica travada com Alberto dos Reis, a propósito de um acórdão da Relação de Lisboa, de 16 de Janeiro de 1918 (2). Deste modo, é hoje indubitável que o demandante assegura a legitimidade singular activa na acção se se identificar ele próprio como o titular da relação controvertida. A questão era esta, em síntese: uma empresa comercial, alegando ter realizado a compra de 60 toneladas de chumbo ao réu, exigiu deste a entrega, que ainda não fora efectuada, de 23 toneladas ou, em alternativa, a respectiva indemnização por perdas e danos. O réu defendeu-se alegando a sua ilegitimidade, pois interviera no contrato apenas como representante do vendedor. A primeira instância aceitou esta defesa, mas a Relação julgou o réu parte legítima e a acção improcedente, tese que veio a ser defendida por B. Magalhães, por entender que basta que as partes sejam titulares da pretensa relação jurídica controvertida para serem tidas como legítimas, mas contrariada por A. Reis, o qual fazia depender a legitimidade da efectiva titularidade da relação jurídica controvertida. Ou seja, o formulante do pedido deduzido é, para a aferição da legitimidade processual, o suposto titular da pretensão formulada. Afastada a concepção objectivista da legitimidade, nenhuma dificuldade surge agora na diferenciação da sua congénere substantiva e evita confundir o aspecto da legitimidade, enquanto pressuposto processual, com o da procedência da acção”. Tal como referido supra o interesse em contradizer assenta no prejuízo que advenha para o réu a procedência da acção. In casu, atenta a pretensão da requerente e os factos alegados na p.i., não obstante o contrato de aluguer ter sido celebrado com a B, face ao furto da viatura, afastado está o seu interesse em contradizer porquanto, apesar da resolução do contrato acarretar a entrega do veículo, está impedida de o fazer. Ora, tendo a viatura sido furtada e não tendo a requerente, conforme alegado, possibilidade de identificar os interessados directos em contradizer por desconhecer quem a detém, os incertos são parte legítima, face à configuração da relação controvertida apresentada pela requerente, cabendo a sua representação ao Ministério Público – art. 22 CPC. Destarte, anula-se o julgamento, bem como a sentença, devendo o procedimento cautelar prosseguir com a citação do Ministério Público, ex vi art. 22 CPC. b) Alteração da decisão de facto. Atenta a decisão proferida prejudicada fica a apreciação desta questão. Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, ainda que com fundamento diverso e, consequentemente, anula-se o julgamento, bem como a sentença, determinando-se que o Sr. Juiz ordene a citação do Ministério Público, em consonância com o previsto no art. 22 CPC, seguindo-se os ulteriores termos do processo. Sem custas. Lisboa, 17/1/2019 Carla Mendes Octávia Viegas Rui da Ponte Gomes |