Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2902/18.9T8OER.L1-8
Relator: CARLA MENDES
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
APREENSÃO DE VEÍCULO
FURTO DE VEÍCULO
LEGITIMIDADE PASSIVA
INCERTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - A legitimidade processual não se confunde com a legitimidade substantiva, consistindo esta no pressuposto jurídico de uma determinada acção, pelo que é errónea a concepção de que a legitimidade processual mais não é do que a recepção no plano adjectivo da sua congénere substantiva.
II – Em sede de providência cautelar não especificada em que o requerente peticiona a apreensão imediata de veículo automóvel entregue a terceiro com base em contrato de Aluguer Operacional de Automóveis que resolveu , e tendo a viatura sido furtada, porque não tem a requerente, conforme alega, possibilidade de identificar os interessados directos em contradizer por desconhecer quem detém a viatura, os incertos são parte legítima, face à configuração da relação controvertida apresentada pela requerente, cabendo a sua representação ao Ministério Público – art. 22 CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

A [ …Unipessoal, Lda.]  intentou uma providência cautelar não especificada contra incertos, pedindo a apreensão imediata do veículo de marca Mazda, modelo CX-5 2.2D Excellence Navi 150 Cv 5p, com a matrícula ..-RA-.., bem como os respectivos documentos que se encontram na posse de incertos, mesmo que se encontre em propriedade privada ou local fechado, designadamente garagem ou parque, a entrega da viatura à requerente que deverá ser nomeada fiel depositária, seja oficiado à Conservatória do Registo Automóvel para não realizar qualquer registo de transmissão por venda ou oneração do veículo identificado, pertença da requerente, até à sua efectiva entrega e seja declarada a inversão do contencioso, ex vi art. 369 CPC.
Alegou, para tanto, que a requerente e a sociedade B [ …….Unipessoal, Lda ], celebraram um contrato que  designaram de “Contrato - Quadro de Aluguer Operacional de Automóveis, nº 40141”, mediante o qual a requerente se obrigou a prestar à B, entre outros, a colocação à disposição de veículos automóveis, bem como a gestão dos respectivos custos de manutenção, obrigando-se aquela a pagar as respectivas rendas e preços.
No âmbito desse contrato, celebraram um contrato individual de aluguer e administração (anexo) referente ao veículo supra identificado, pelo prazo de 48 meses e mediante o pagamento mensal de € 558,83, tendo a requerente adquirido o automóvel no concessionário Santogal pelo preço de € 33.320,45, cujo valor venal actual é de € 22.000,00.
A requerida não pagou alguns alugueres somando a dívida, deduzida a nota de crédito, € 6.979,32.
Não obstante interpelada a B nada pagou tendo a requerente resolvido o contrato, impendendo sobre aquela a restituição da viatura.
Em 5/1/18, a B  comunicou à requerente que o veículo tinha sido furtado, tendo tal facto sido reportado à PSP.
A Seguradora declinou a responsabilidade.
A requerente desconhece quem detém ilicitamente a viatura.
Após julgamento foi proferida sentença que absolveu os réus da instância com fundamento em ilegitimidade – fls. 52/53.
Inconformada, a requerente apelou formulando as conclusões que se transcrevem:
1. O presente recurso vem interposto da decisão final proferida pelo Tribunal a quo, que julgou improcedente o pedido da ora Recorrente de restituição da viatura locada;
2. Entende a Recorrente, salvo o devido respeitar que o Tribunal a quo desconsiderou parte da prova produzida em juízo;
3. Motivo pelo qual considera a ora Recorrente que o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento da matéria de factor ao dar apenas parte dos factos articulados pela Recorrente como provados, decorrente de uma apreciação errática da prova produzida;
4. Entende a Recorrente que a prova documental junta aos autos e os depoimentos prestados em juízo pelas testemunhas Sandra …. e Tiago …… comportam decisão diversa da proferida;
5. Pois, resulta de forma linear, da Declaração da Polícia de Segurança Pública e do Relatório de Actividade, já juntos aos autos como docs. 22 e 21 respectivamente, que a viatura locada foi objecto de furto no dia 5 de Janeiro de 2018;
6. O facto referido no artigo anterior é ainda suportado pelo depoimento prestado pelas testemunhas Sandra Ferreira [07:06 - 07:32] e Tiago ….. [00:25 - 00:59], ao afirmarem expressamente em plena audiência de discussão e julgamento que a viatura locada foi objecto de furto;
7. Como corolário do furto, provado pelas provas documental e testemunhal, a Recorrente não tem possibilidade de saber quem detém actualmente a viatura sub judice.
8. Porquanto, após ter tomado conhecimento da notícia de furto, a Recorrente desenvolveu um conjunto de diligências tendentes a averiguar do paradeiro da viatura e a descortinar a identidade do seu actual detentor;
9. Diligências que consistiram na deslocação à sede da antiga locatária e na realização de contactos, via e-mail e telefone, e cuja realização ficou linearmente provada pelos depoimentos das testemunhas Sandra …. ARB [05:57 - 07:20] e Tiago Honório [02:13 - 02:32];
10. Paralelamente, a testemunha Tiago …. solicitou ainda que lhe fosse enviado auto de denúncia, de forma a comprovar a veracidade da queixa apresentada, que lhe foi enviada, como resulta claramente do Relatório de Actividade junto aos autos como doc. 22;
11. Mais, quando a sociedade B da Atalaia, Unipessoal, Lda., informou a testemunha Tiago …. do furto ocorrido, não indicou quem pudesse ser o seu autor e/ou actual detentor da viatura locada;
12. Resultando, ainda, claro da apresentação da queixa que a sociedade B, não é a actual detentora da viatura locada;
13. Ademais, a Recorrente aguardou o decurso do processo-crime instaurado com base na queixa apresentada pela B, para verificar se surgia alguma novidade quanto ao autor do furto;
14. Face às diligências levadas a cabo pela Recorrente, bem como à falta de qualquer indicação de quem pudesse ser o presumível autor do furto e/ou detentor actual da viatura locada, resulta inequívoco que a Recorrente não tem forma de identificar quem detém a viatura nos dias de hoje;
15. Os factos relativos ao furto da viatura locada e ao desconhecimento, por parte da Recorrente de quem seja o seu actual detentor, resultam da prova documental junta aos autos e dos depoimentos prestados pelas testemunhas Sandra …. [14:49 - 15:16] e Tiago …. [02:13 - 02:32], prestados de forma directa e próprios de quem tem um conhecimento pessoal dos factos;
16. Tendo o próprio Tribunal a quo reconhecido que os depoimentos produzidos em audiência de discussão e julgamento      "( ... ) confirmaram os factos articulados na petição";
17. Como tal, considera a ora Recorrente que, à luz do princípio da livre apreciação da prova, recaía sobre o Tribunal a quo o dever de avaliar a prova produzida, de forma equitativa, com base em critérios racionais e objectivos, que conduzisse a um juízo positivo quando se mostrasse indiciada a realidade constantes dos documentos e depoimentos em causa;
18. Conduta que não se verificou in casu, porquanto, não obstante resultar, de forma bastante translúcida, de diversos meios de prova de natureza documental e testemunhal que a viatura foi furtada e que a Recorrente desconhece quem seja o seu actual detentor, o douto Tribunal recorrido optou por julgar esses mesmos factos como não provados;
19. Entende a ora Recorrente que o Relatório de Actividade e a Declaração da Polícia de Segurança Pública, juntos aos autos como docs. 21 e 22 respectivamente, e os depoimentos prestados pelas testemunhas Sandra …. e Tiago …. atingem o patamar da probabilidade prevalecente, não se inferiorizando em relação à demais prova produzida;
20. E conduzindo a decisão diversa da proferida, de forma a que passem a constar do elenco de factos dados como provados os seguintes factos:
a. A viatura locada foi objecto da prática de um crime de furto, em 5 de Janeiro de 2018;
b. Nesse seguimento, a Requerente desconhece quem possa deter actualmente a viatura locada;
21. Em harmonia com o que se vem expondo, entende a Recorrente que, ao desconsiderar os factos referidos no artigo anterior, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à matéria de direito;
22. O Tribunal a quo considerou que a presente providência cautelar deveria ter sido instaurada contra a sociedade B., e não contra incertos, por ser aquela parte contratual na relação jurídica em juízo;
23. Ao fundamentar a decisão recorrida no raciocínio supra exposto, o Tribunal a quo desconsiderou os dois factos que a ora Recorrente entende deverem ser dados como provados e, por consequência, desconsiderou a questão nuclear levantada nos presentes autos;
24. Porquanto, atendendo à matéria de facto com a alteração resultante do presente recurso, resulta claro que a presente providência não como objectivo averiguar sobre quem recai a responsabilidade contratual de restituição da viatura no termo do contrato;
25. Responsabilidade que resulta evidente do contrato - quadro, junto aos autos como doc.1, como recaindo sobre a antiga locatária;
26. Tomando em consideração que a viatura foi furtada e que nem a ora Recorrente, nem a sociedade B, conhecem o seu actual detentor, é inequívoca a falta de interesse em contradizer desta última;
27. Pois a procedência ou improcedência da providência cautelar não consubstancia qualquer prejuízo para a sociedade B, devendo, ao invés, prosseguir contra incertos,
28. O artigo 22/1 CPC exige que, antes de propor a acção, o autor desenvolva um conjunto de diligências tendentes a identificar a pessoa contra quem a acção deverá seguir;  
29. Diligências que foram realizadas no presente caso, considerando que, após ter tomado conhecimento do furto, a testemunha Tiago …. deslocou-se à sede da antiga locatária, não avistando a viatura, contactou por diversas vezes a mesma e solicitou o envio de cópia de auto de denúncia, de forma a deslindar a identidade do actual detentor da viatura locada e que foram frustradas;
30. Pelo que, em consequência, considera a ora Recorrente que deverá ser modificada a decisão recorrida, no sentido da procedência da presente providência cautelar contra incertos, ao abrigo do artigo 22/1 CPC.
31. Assim, deverá a sentença ser revogada, decretando-se a providência.
Dispensados os visto, cumpre decidir.

Factos indiciariamente apurados na 1ª instância:

1 – A autora dedica-se ao comércio, venda e aluguer de máquinas e veículos automóveis.
2 – Em 24-2-16, a autora e “B  assinaram o “Contrato Quadro de Aluguer Operacional de Automóveis” junto a fls. 21v a 26v (cujo teor se dá aqui por reproduzido).
3 – Em data incerta, a autora e “B  assinaram o “CONTRATO INDIVIDUAL DE ALUGUER E ADMINISTRAÇÃO” junto a fls 27 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – relativa ao veículo ‘MAZDA’ de matrícula ..-RA-.., que foi entregue à B (fls. 24).
4 – Em 5-5-16 foi registada a favor da autora a aquisição do veículo supra (fls. 28).
5 – A “B não pagou à autora os valores facturados a fls. 28v a 41.
6 – A autora enviou à “B, em 25-5-18, a carta junta a fls. 42v (cujo teor se dá aqui por reproduzido).
7 – A autora não conseguiu recuperar ou localizar a viatura supra – que a B não lhe entregou, alegando ter sido furtado (fls. 45v).
8 – Os veículos automóveis desvalorizam-se pelo uso normal e pelo decurso do tempo.
Atentas as conclusões do apelante que delimitam, como é regra, o objecto do recurso – arts. 639 e 640 CPC – as questões que cabe decidir consistem em saber se:
a) Ilegitimidade dos réus (incertos).
b) Alteração da decisão sobre a matéria de facto
Vejamos, então:

a) Ilegitimidade

Instaurou a requerente o presente procedimento cautelar contra incertos com fundamento no facto da viatura, objecto do contrato de aluguer celebrado entre si e a B, ter sido furtada, desconhecendo-se quem a detém, bem como o seu paradeiro.
Após audição das testemunhas foi proferida decisão que, julgando os incertos parte ilegítima, absolveu-os da instância, com fundamento no facto de que a acção contra incertos tem lugar quando a não haja possibilidade de identificar os interessados directos em contradizer (art. 22 CPC) sendo que, no caso concreto, tendo o contrato de aluguer da viatura sido celebrado com a B, o procedimento cautelar deveria ter sido instaurado contra esta e não já contra aqueles.
“Após a revisão de 1995/96, a legitimidade processual singular (1) tem de ser apreciada e determinada pela utilidade ou prejuízo que da procedência ou improcedência da acção possa advir para as partes, de acordo com a configuração que o autor dá na acção à relação controvertida (cf. art. 30 LN e 26 da LV).
A legitimidade processual não se confunde com a legitimidade substantiva, consistindo esta no pressuposto jurídico de uma determinada acção, pelo que é errónea a concepção de que a legitimidade processual mais não é do que a recepção no plano adjectivo da sua congénere substantiva.
Ficou assim esclarecido, através da nova redacção art. 30/3 (26/3 LV), o tema de uma velha polémica relativo à apreciação da legitimidade das partes, que dividiu durante dezenas de anos a doutrina e a jurisprudência, acolhendo-se a posição de Barbosa de Magalhães na polémica travada com Alberto dos Reis, a propósito de um acórdão da Relação de Lisboa, de 16 de Janeiro de 1918 (2).
Deste modo, é hoje indubitável que o demandante assegura a legitimidade singular activa na acção se se identificar ele próprio como o titular da relação controvertida.
A questão era esta, em síntese: uma empresa comercial, alegando ter realizado a compra de 60 toneladas de chumbo ao réu, exigiu deste a entrega, que ainda não fora efectuada, de 23 toneladas ou, em alternativa, a respectiva indemnização por perdas e danos. O réu defendeu-se alegando a sua ilegitimidade, pois interviera no contrato apenas como representante do vendedor. A primeira instância aceitou esta defesa, mas a Relação julgou o réu parte legítima e a acção improcedente, tese que veio a ser defendida por B. Magalhães, por entender que basta que as partes sejam titulares da pretensa relação jurídica controvertida para serem tidas como legítimas, mas contrariada por A. Reis, o qual fazia depender a legitimidade da efectiva titularidade da relação jurídica controvertida.
Ou seja, o formulante do pedido deduzido é, para a aferição da  legitimidade  processual, o suposto titular da pretensão formulada.
Afastada a concepção objectivista da legitimidade, nenhuma dificuldade surge agora na diferenciação da sua congénere substantiva e evita confundir o aspecto da legitimidade, enquanto pressuposto processual, com o da procedência da acção”.
Tal como referido supra o interesse em contradizer assenta no prejuízo que advenha para o réu a procedência da acção.
In casu, atenta a pretensão da requerente e os factos alegados na p.i.,  não obstante o contrato de aluguer ter sido celebrado com a B, face ao furto da viatura, afastado está o seu interesse em contradizer porquanto, apesar da resolução do contrato acarretar a entrega do veículo, está impedida de o fazer.
Ora, tendo a viatura sido furtada e não tendo a requerente, conforme alegado, possibilidade de identificar os interessados directos em contradizer por desconhecer quem a detém, os incertos são parte legítima, face à configuração da relação controvertida apresentada pela requerente, cabendo a sua representação ao Ministério Público – art. 22 CPC.
Destarte, anula-se o julgamento, bem como a sentença, devendo  o procedimento cautelar prosseguir com a citação do Ministério Público, ex vi art. 22 CPC.
b) Alteração da decisão de facto.
Atenta a decisão proferida prejudicada fica a apreciação desta questão.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, ainda que com fundamento diverso e, consequentemente, anula-se o julgamento, bem como a sentença, determinando-se que o Sr. Juiz ordene a citação do Ministério Público, em consonância com o previsto no art. 22 CPC, seguindo-se os ulteriores termos do processo.
Sem custas.
Lisboa, 17/1/2019
Carla Mendes
Octávia Viegas
Rui da Ponte Gomes