Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1235/12.9TMLSB-A.L1-7
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
ALIMENTOS ENTRE CÔNJUGES
ACORDO NÃO HOMOLOGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A força executiva de um documento advém das garantias que o mesmo oferece enquanto forma de atestar a existência de um direito, garantias que são uma consequência das formalidades de que o documento está revestido.
II - O acordo de alimentos constituído para vigorar em função e no âmbito do divórcio por mútuo consentimento encontra-se dele dependente, uma vez que a sua existência assume razão de ser na pretensão do decretamento do divórcio. Consequentemente, a natureza da obrigação de alimentos nascida neste contexto diverge de idêntica obrigação emergida de um qualquer negócio jurídico celebrado entre as partes.

III – A homologação pelo conservador do acordo de alimentos que instrui e acompanha o pedido de divórcio por mútuo consentimento constitui condição necessária para que o mesmo possa produzir efeitos jurídicos, designadamente, enquanto condição da sua exequibilidade.

IV – Não assume enquadramento no disposto no artigo 46.º, n.º1, alínea c), do anterior CPC (documento particular assinado pelo devedor que importe constituição ou reconhecimento de uma obrigação pecuniária) e, como tal, não constitui título executivo válido, o documento intitulado de “Acordo de alimentos ao cônjuge”, que instruiu e acompanhou o pedido de divórcio por mútuo consentimento, que foi objecto de decisão de arquivamento em face da desistência de um dos cônjuges.

(Sumário da Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam do Tribunal da Relação de Lisboa,

I - Relatório

Partes:

A (Exequente/Recorrente)

L (Executado/Recorrido)

Pedido:

Em oposição à execução o Executado invoca a inexistência, ineficácia e inexigibilidade da obrigação que a Exequente pretende fazer valer, bem como inexistência ou inexequibilidade do título executivo.

Decisão recorrida

Procedência da oposição à execução, julgando extinta a execução.

Requerendo a revogação da decisão recorrida, a Exequente conclui nas suas alegações:

i.        A exequente intentou acção executiva nos termos da alínea c) do nº 1º do Artº 46º do CPC aplicável aos presentes autos;

ii.       O executado entendeu opor-se uma vez que entende que tal documento carece de homologação;

iii.      Tendo o Tribunal Ad Quo decidido nesse sentido;

iv.  Porém, dúvidas não restam, nos termos da legislação aplicável, trata-se de um título executivo válido;

v.      Por tudo isto e entre outros, o Tribunal a quo violou os Artºs 45º e 46º do CPC aplicável aos presentes autos, o anterior à LEI 41/2013

Em contra alegações o Executado pugna pela manutenção da decisão recorrida.

II - Apreciação do recurso

Os factos:

O tribunal a quo deu como provado o seguinte factualismo:

1. Em 20.06.2012, A instaurou contra o seu marido, L, a execução principal por alimentos (proc. n.º ), requerendo a penhora do valor mensal de € 600,00, a título de pensões vencidas e de € 600,00, mensalmente, a título de pensões de alimentos vincendas.

2. Em 05.04.2012, A e L deram entrada na Conservatória do Registo Civil de Lisboa, sob o n.º, a requerimento de divórcio por mútuo consentimento, com o teor de fls. 31/32 dos autos, que se dá por devidamente reproduzido para os legais efeitos.

3. Com tal requerimento, as partes ali juntaram um documento assinado por ambos com data de 5 de Abril de 2012, sob a designação “acordo de alimentos ao cônjuge”, com o seguinte teor: “Os requerentes, L e A acordam quanto à prestação de alimentos devidos ao cônjuge mulher nos seguintes termos: 1. O requerente marido pagará à requerente mulher A (…) uma prestação de alimentos no valor de 600 euros mensais no primeiro ano de vigência do acordo a título de alimentos, quantia que após esse período de um ano a contar da data de início deste acordo, passará para 500 euros mensais, e será depositada até dia 8 de cada mês no NIB . 2. Este acordo cessará caso a requerente celebre matrimónio ou passe a viver em união de facto, ou no caso de passar a auferir, fruto de rendimento de trabalho valor superior a 500 Euros mensais, neste último caso a prestação de alimentos passa a ser no valor de 250 Euros.”

4. No âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento referido em 2., foi designado o dia 27 de Abril de 2012, pelas 13.50 horas, para realização da conferência prevista no n.º 3 do artigo 14.º do DL 272/2001.

5. Em 24.4.2012, o ora Executado solicitou o adiamento da referida conferência, informando que a ora Exequente “tomou conhecimento do adiamento da conferência”.

6. Em consequência do deferimento do referido pedido, foi alterada a data da conferência para 7 de Maio de 2012, pelas 14.10 horas.

7. Em 4.5.2012, o Executado remeteu à ora Exequente uma comunicação, via email, com o seguinte teor: “(…) A reflexão serena e ponderada que tenho vindo a fazer acerca dos termos e condições do divórcio que foi apresentado na conservatória levaram-me a concluir que eles são totalmente injustificados, e, por isso, inaceitáveis. Daí que tenha hoje decidido que não irei comparecer e já tenha avisado a conservatória (…)”.

8. No dia 7.5.2012, a ora Exequente requereu o adiamento da conferência de divórcio.

9. No mesmo dia, foi pela Sra. Conservadora do Registo Civil proferido despacho que designou o dia 28 de Setembro de 2012, pelas 16 horas, para realização da conferência de divórcio.

10. Em 21.9.2012, o ora Executado apresentou no processo de divórcio por mútuo consentimento um requerimento com o seguinte teor: “L (…) vem reiterar que não aceita divorciar-se por mútuo consentimento, mantendo o desacordo e a não aceitação dos termos do requerimento de divórcio e acordos a ele anexos. Pelo que, caso ainda não o tenha sido, deve, por impossibilidade de acordo, ser declarado extinto o presente processo de divórcio por mútuo consentimento, o que (..) se requer (…)”.

11.  Em 22.1.2013, foi pela Sra. Conservadora do Registo Civil de Lisboa homologada a desistência do pedido de divórcio por mútuo consentimento apresentada pelo ora Executado e determinada a extinção do pedido de divórcio por mútuo consentimento das partes e, em consequência, determinado o arquivamento do processo de divórcio por mútuo consentimento.

O direito

Questão submetida pela Apelante ao conhecimento deste tribunal: (delimitada pelo teor das conclusões do recurso e na ausência de aspectos de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do NCPC)

       Da inexequibilidade do título

Está em causa no recurso determinar se pode ser reconhecida força executiva ao documento apresentado pela Exequente (“Acordo de alimentos ao cônjuge”) com base no qual a mesma instaurou execução contra o Executado.

A sentença recorrida julgou a execução extinta por considerar que o acordo dado à execução não constituía título executivo válido e eficaz, uma vez que carecia de homologação. Sustentou-se na seguinte ordem de argumentos:

- o acordo quanto a alimentos foi subscrito pelas partes para efeitos de decretamento do divórcio por mútuo consentimento, inserindo-se no âmbito dos acordos legalmente exigidos para esse efeito;

- não tendo o cônjuge-marido dado o seu acordo ao divórcio por mútuo consentimento, caducou o acordo quanto a alimentos a favor do cônjuge-mulher

- não obstante o documento dado à execução ter sido assinado por ambas as partes, o mesmo não constitui o reconhecimento de uma obrigação pecuniária, nos termos do artigo 46.º, n.º1, alínea c), do CPC, por carecer de homologação judicial ou equivalente.

  Insurge-se a Recorrente/Exequente defendendo que nos termos do disposto no artigo 46.º, n.º1, alínea c), do CPC (anterior ao NCPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26-06), o acordo em causa nos autos constitui título executivo válido por, para esse efeito, apenas se exigir o reconhecimento de uma obrigação pecuniária.

Sustenta ainda que tal acordo não carece de ser homologado por a sua natureza ser diversa da do acordo de regulação das responsabilidades parentais no qual o Estado assume a obrigação de defender o menor.

Não podemos concordar com tal entendimento porquanto o mesmo, ao ignorar o contexto da origem do documento, adúltera a natureza do mesmo.

1. De acordo com o disposto no n.º1 do artigo 45.º do anterior CPC (a aplicar à situação dos autos), o título é a base da execução e por ele se determina o fim e os limites da acção executiva. É pelo seu conteúdo e contexto que se determina a espécie da prestação e da execução que lhe corresponde, o quantum da prestação e a legitimidade passiva e activa para a acção executiva.

          A função do título executivo é, por isso, dar origem à acção executiva, criando para o exequente o poder de promover a acção e para o tribunal o dever de exercer a sua actividade em ordem à satisfação do direito daquele.

Embora a lei não defina título executivo[1], o mesmo assume necessariamente uma determinada forma e conteúdo, representando um facto jurídico constitutivo de um direito.

Delimitando o título o objecto da acção executiva de acordo com as pretensões nele documentadas[2], o mesmo consubstancia-se num documento que certifica a obrigação exequível[3].

A força executiva de um documento advém, por isso, das garantias que o mesmo oferece enquanto forma de atestar a existência de um direito, garantias que são uma consequência das formalidades de que o documento está revestido.

É assim indispensável que o documento que seja dado à execução como título executivo esteja em condições de certificar a existência da obrigação que entre as partes se constituiu e formou – a obrigação a considerar nasceu do acto jurídico a que o título dá forma[4].      

2. O artigo 46.º, do CPC, a aplicar no caso, enuncia o elenco dos títulos executivos, prevendo expressamente na alínea c) do seu n.º1 que podem servir de base à execução os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.

          De acordo com este preceito, constituirá título executivo os documentos que incorporem declarações de vontade destinadas a criação de uma obrigação ou ao reconhecimento da mesma.

A natureza do conteúdo da obrigação é o factor determinante do respectivo processo executivo em causa. (para pagamento de quantia certa, para entrega de coisa certa e para prestação de facto).

          Sabendo-se que pela sua natureza e fim o título executivo deverá conter, num quadro de autonomia e de suficiência, a declaração negocial subjacente à constituição ou reconhecimento da obrigação exequenda, cabe apreciar se, no caso, o acordo em causa materializa a existência do direito da Exequente nos termos pela mesma definido no pedido exequendo – pagamento da pensão de alimentos no montante de 600,00 euros.

Para tal cabe averiguar no documento dado à execução qual o conteúdo da pretensão obrigacional que nele se encontra incorporada.

O documento dado à execução, intitulado de “Acordo de alimentos ao cônjuge”, foi junto com o requerimento de divórcio por mútuo consentimento apresentado, pelos aqui Recorrente e Recorrido, na Conservatória do Registo Civil de Lisboa (cfr. pontos 2 e 3 da matéria de facto provada na douta sentença), nos termos previstos no artigo 1775.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil.

Nesse sentido, não pode ser ignorada a circunstância do documento em causa se caracterizar enquanto acordo complementar celebrado pelos cônjuges no âmbito de um processo de divórcio por mútuo consentimento e com vista decretamento deste. Esta finalidade/génese confere a especificidade deste tipo de documento, delimitando a sua natureza e regime.

3. Reportando-se aos documentos que fazem acompanhar o requerimento de divórcio por mútuo consentimento, tal como se encontra consignado na sentença recorrida, os Professores Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira referem que “entre o acordo sobre o divórcio e estes acordos há assim uma união ou coligação negocial genética que se traduz aqui numa relação de dependência bilateral. Por um lado, os acordos previstos no n.º 2 do art. 1775.º do CCiv caducam e ficam sem efeitos se os cônjuges ou algum deles não derem o seu acordo ao divórcio por mútuo consentimento na conferência a que se refere o artigo seguinte, ou retirarem esse consentimento antes da data em que o divórcio seria decretado. Por outro lado, o acordo sobre o divórcio depende daqueles acordos e da sua homologação pelo conservador do registo civil ou pelo juiz; se, no termo do processo, os acordos previstos no nº 2 do art. 1775º do CCiv não forem homologados por não acautelarem suficientemente os interesses de algum dos cônjuges ou dos filhos, o pedido de divórcio é indeferido (arts. 1778º e 1778º-A CProcCiv)”[5] .

Evidencia-se, pois, que o facto constitutivo da aquisição da obrigação de alimentos – enquanto acordo que acompanha o divórcio por mútuo consentimento – condiciona a eficácia e exigibilidade do mesmo: o acordo de alimentos constituído para vigorar em função e no âmbito do divórcio por mútuo consentimento, dele se encontra dependente porquanto a sua existência assume razão de ser na pretensão do decretamento do divórcio.

Consequentemente, a natureza da obrigação de alimentos nascida neste contexto diverge de idêntica obrigação emergida de um qualquer negócio jurídico celebrado entre as partes.

Por outro lado, a especificidade da natureza do acordo de alimentos que acompanha o pedido de divórcio por mútuo consentimento reflecte-se, ainda, no respectivo regime pois que, nestes casos, a lei sujeita-o à apreciação do conservador, por forma a que este acautele o interesse dos cônjuges (cfr. artigo 1776.º, n.º1, do Código Civil[6]), cabendo-lhe a recusa de homologação nos casos em que considere que tais interesses não se encontram suficientemente acautelados (cfr. artigo 1778.º, do Código Civil[7]).

Em conformidade com esta disciplina legal, não pode deixar de se considerar que o controlo/homologação destes acordos pelo conservador constitui condição necessária para que possam produzir efeitos jurídicos, designadamente, enquanto condição da sua exequibilidade. 

Consequentemente, carecendo de homologação, o acordo sobre alimentos que instruiu o pedido de divórcio por mútuo consentimento, por si só, nunca poderia possuir força bastante para fazer prova da constituição, ou melhor, do reconhecimento da obrigação pecuniária que a Exequente/Recorrente pretende obter por via coactiva através desta execução, uma vez que tal obrigação (de alimentos a que o Executado, na qualidade de cônjuge se havia obrigado nos termos do referido acordo) se encontrava dependente da verificação de um facto que lhe serve de suporte genésico: o decretamento do divórcio.

Tendo ocorrido a desistência do pedido de divórcio, não pode o acordo quanto a alimentos que o instruiu constituir título executivo para efeitos de pagamento de qualquer quantia a esse título.

Corroborando-se, assim, o entendimento sufragado na sentença recorrida no sentido de que no caso a Recorrente não dispõe de um título executivo válido e eficaz, há que fazer improceder o recurso. 

III – Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida.

          Custas da Apelação a cargo da Exequente.

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2015


Graça Amaral
Orlando Nascimento
Alziro Antunes Cardoso


[1] O direito à acção é um direito substantivo e não adjectivo, como a doutrina e a jurisprudência quase unanimemente aceitam. Daí que o Código de Processo Civil não defina o que é um título executivo, limitando-se a indicar quais são e quais os seus requisitos de exequibilidade – Acórdão do STJ de 07.10.93, processo n.º 083767, acedido por http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954.
[2] O título executivo é o meio legal de demonstração da existência do direito do exequente – Miguel Teixeira de Sousa, “A exequibilidade da pretensão”, Edições Cosmos, Lisboa, 1991, pág. 27, citado por Remédios Marques, CURSO DE PROCESSO EXECUTIVO COMUM À FACE DO CÓDIGO REVISTO, Almedina, 2000, págs. 46.
[3] Remédios Marques, CURSO DE PROCESSO EXECUTIVO COMUMÀ FACE DO CÓDIGO REVISTO, Almedina, 2000, págs. 46/47.
[4] Acórdão do STJ supra citado.
[5] Curso de Direito da Família, Vol. I, 2003, Coimbra Editora (4.ª edição), pág. 660 e 661.
[6] Nos termos do qual “Recebido o requerimento, o conservador convoca os cônjuges para uma conferência em que se verifica o preenchimento dos pressupostos legais e aprecia os acordos referidos nas alíneas a), c) e d) do n.º1 do artigo anterior, convidando os cônjuges a alterá-los se esses acordos não acautelarem os interesses de algum deles (…) ” – sublinhado nosso.
[7] Nos termos do qual “Se os acordos apresentados não acautelarem suficientemente os interesses de um dos cônjuges (…) a homologação deve ser recusada (…)”.