Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
282/11.2TJLSB.L1-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
RESPONSABILIDADE CIVIL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/29/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. O recorrente, omitindo completamente a especificação dos pontos da matéria de facto impugnados, não cumpre o disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 685.º-B do Código de Processo Civil.
II. O incumprimento desse ónus de alegação provoca a rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
III. A gravidade do dano não patrimonial é medida por um padrão objetivo e é apreciada em função da tutela do direito.
IV. Com o atraso considerável de um voo aéreo, superior a três horas, o passageiro sofre sérios incómodos, que, pela sua gravidade, justificam o seu ressarcimento mediante a fixação de indemnização.
V. A indemnização está limitada ao valor de € 600,00, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 7.º do Regulamento (CE) n.º 261/2004, de 11 de fevereiro de 2004.
(OG)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

António instaurou, em 23 de fevereiro de 2011, na 4.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, contra B A, PLC, ação declarativa, sob a forma de processo sumário, pedindo que a Ré fosse condenadas a pagar-lhe a quantia de € 13 673,15, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal de 4 %.

Para tanto, alegou, em síntese, que, em 5 de julho de 2010, adquiriu uma viagem aérea à Ré, para si e dois filhos, e por facto imputável à mesma não foi possível embarcar com destino a Sydney, tendo aguardado dez horas pelo voo seguinte, para além de, na escala em Londres, a R. ter perdido as suas bagagens e dos filhos; estes factos causaram-lhe danos patrimoniais e não patrimoniais.

Citada, contestou a R., alegando que os factos que impossibilitaram o embarque se deveram a avaria de que não foi responsável, para concluir pela improcedência da ação e a sua absolvição do pedido.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, com gravação, foi proferida, em 15 de novembro de 2012, sentença, que, julgando a ação parcialmente procedente, condenou a Ré a pagar ao A. a quantia de € 97,65, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde aquela data até integral pagamento.

Não se conformando com a sentença, recorreu o Autor e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:

a) A decisão recorrida sofre de erro da avaliação da prova.

b) A sentença é contraditória quanto aos factos provados e sua fundamentação, dando origem a decisão deficiente e obscura.

c)Existe um efeito causal entre a lesão ocorrida e o dano sofrido, que não é apreciado de forma isenta e proporcional quanto à prova produzida.

d) Em todo o processo não foram aplicados os princípios legais gerais e constitucionalmente consagrados, por violação do princípio da igualdade, bem como no que respeita ao ónus da prova.

Pretende, com o provimento do recurso, a revogação da sentença recorrida e a procedência da ação quanto aos danos não patrimoniais.

A R. não contra-alegou.

Cumpre, desde já, apreciar e decidir.

Neste recurso, está essencialmente em discussão a impugnação da decisão relativa à matéria de facto e a verificação de um dano não patrimonial.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Na sentença, foram dados como provados os seguintes factos:

1.O A. viajou no dia 5 de julho de 2010, acompanhado dos seus dois filhos menores, para a Austrália (Sydney), com escala em Londres, num voo B A com o código de reserva 2YXMRK, com a seguinte configuração: - BA 499 05JUL LISBOA/LONDRES LHR 0820 1100; - BA 7372 05JUL LONDRES LHR/SYDNEY 1205 1915; - QF 728 10JUL SYDNEY/ AYERS ROCK 0930 1240; - QF 1850 12JUL AYERS ROCK/CAIRNS 1430 1730; - QF 5959 21JUL CAIRNS/SYDNEY 1920 2210; - BA 10 25JUL SYDNEY/LONDRES LHR 1640 0625; - BA 500 26JUL LONDRES LHR/LISBOA 0740 1015; com os bilhetes eletrónicos n.º s 2309418610-11, 2309418612-13, e 2309418614-15.

2. No dia 5 de julho de 2010, chegado o A. e os filhos ao balcão de check in, foram-lhe entregues os respetivos cartões de embarque do voo Lisboa/Londres, mas não os cartões de embarque Londres/Sydney, tendo sido efetuado o throw check in da bagagem até ao destino final.

3.O tempo de transferência de voo em Londres para o embarque no voo Londres/Sydney era apenas de uma hora, tendo a técnica de tráfego e assistência de escala da B A informado o A. e filhos de que não haveria qualquer problema, pois ao chegar ao aeroporto de Londres teria os cartões de embarque para o voo seguinte à espera junto do balcão de transferências da B A.

4.À chegada ao Aeroporto de Londres, Heathrow, o A. e os filhos viram-se obrigados a mudar de terminal, atravessando o posto de segurança, e a todos os procedimentos a que os passageiros que saem do Espaço Schengen são obrigados a percorrer, chegando ao balcão de transferências da R., perto da porta de embarque do voo Londres/Sydney, quinze minutos antes do fecho da porta.

5.O funcionário da R. informou o A. de que não tinha quaisquer cartões de embarque em nome deste ou dos filhos para o referido voo.

6. O voo Londres/Sydney era operado pela companhia Qantas.

7. O A., quando adquiriu e efetuou a reserva da viagem, fê-lo com a R., do princípio ao fim do seu trajeto; em caso de code-share, o voo é operado pela companhia principal mas o bilhete eletrónico será vendido ao passageiro em nome da code sherizada, neste caso, a R., que detém um certo número de lugares e partilha o voo/preço com a companhia detentora da aeronave.

8.Perante a situação, o funcionário afirmou que o A. e filhos teriam de se deslocar ao balcão da companhia aérea Q, a fim de solicitar os cartões de embarque.

9.Outro funcionário da R., após ter verificado no sistema operativo de voo que este se encontrava cheio, que o check in não tinha sido realizado em Lisboa, e que não constava nenhuma informação adicional sobre os passageiros em causa, colocou o A. e filhos num voo de proteção – BA 15 – pelas 22:00 horas, com chegada prevista às 6:00 horas de quarta feira, dia 7 de julho, a Sydney.

10. O funcionário da R. informou o A. de que não havia razão para se preocupar com as bagagens, pois estas seguem sempre com o passageiro, isto é, as bagagens apenas devem ser colocadas no porão da aeronave onde o passageiro viaja.

11.As bagagens seriam colocadas no mesmo voo onde o A. e filhos embarcassem.

12.Ao chegar a Sydney, pelas 6:00 horas, de 7 de julho, o A. constatou que as suas malas não tinham chegado.

13. Tendo reclamado do respetivo extravio.

14.O A. despendeu em roupa, artigos de higiene pessoal, para si e para os filhos, um total de € 551,00.

15.Valor que lhe foi liquidado pela R., em 23 de dezembro de 2010.

16. No dia 5 de julho de 2010, o A. despendeu a quantia de £78,65 em alimentação, no aeroporto de Heathrow.

17. Entre os dias 12 de julho de 2010 e 17 de julho de 2010, em Cairns, Austrália, o A. alugou uma viatura, pelo valor de $574,59 dólares australianos.

18.O A., nos dias 7, 9 e 10 de julho de 2010, gastou as quantias de $50,00; $23,00; e $50,00 dólares australianos em tarifas de táxi e passe familiar.

19.Em 19 de setembro de 2010, o A. liquidou a fatura datada de 20.8.2010, emitida por Club – Tour, Viagens e Turismo, Lda., no valor de € 2 822,35; com a descrição de “despesas adicionais referentes a viagem e estadia a Austrália”.

20. A ANETIE faturou ao A., em 11 de outubro de 2010, o valor de € 3 630,00, com IVA incluído, por “serviços de apoio à organização da vossa missão empresarial a Sydney”.

21.O A. sofreu incómodos com o atraso na chegada a Sydney e o atraso de entrega da bagagem.

22.A não emissão dos cartões de embarque Londres/Sydney deveu-se a problema de natureza técnica/informática.

2.2. Delimitada a matéria de facto provada, importa então conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, e cujas questões jurídicas emergentes foram antes especificadas.

A decisão sobre a matéria de facto pode ser alterada nos casos previstos no n.º 1 do art.º. 712.º do Código de Processo Civil (CPC), designadamente se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 685.º-B, a decisão com base neles proferida.

Neste caso, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida – art. 685.º-B, n.º 1, do CPC.

Trata-se, com efeito, de um ónus de alegação, que impende sobre o recorrente, com vista a delimitar, com rigor, o âmbito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a identificar, da mesma forma, os meios de prova que determinam uma decisão diversa, de modo a facilitar a apreciação da impugnação por parte do tribunal de recurso.

O incumprimento de tal ónus de alegação implica a rejeição do recurso quanto à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, como se prescreve, expressamente, no n.º 1 do art. 685.º-B do CPC.

Ora, no caso vertente, o Apelante omitiu completamente a especificação dos pontos da matéria de facto impugnados, não cumprindo, assim, o disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 685.º-B do CPC. Na verdade, nem nas conclusões, nem sequer no corpo das alegações, é possível encontrar a especificação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados. O Apelante, com efeito, limita-se a uma alegação meramente abstrata, sem qualquer concretização da matéria de facto impugnada, em manifesta desconformidade com respetivo ónus, obstaculizando assim a apreciação da impugnação da decisão relativa à matéria de facto. 

Ainda que o Apelante tenha especificado um meio de prova, nomeadamente o depoimento de certa testemunha, era indispensável que tivesse especificado, também, os concretos pontos de facto que considerava incorretamente julgados, para ser possível a apreciação da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

Assim, por incumprimento do ónus de alegação, nomeadamente pelo disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 685.º-B do CPC, é de rejeitar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, mantendo esta tal como ficou descrita.

2.3. Delimitada a matéria de facto provada, nos termos decididos pela 1.ª instância, interessa agora passar à apreciação da questão de direito, respeitante à indemnização por dano de natureza não patrimonial, que foi negada pela sentença recorrida, quando o Apelante pedira, a esse título, a quantia de € 10 000,00.

Especificamente, neste âmbito, ficou apenas provado que o Apelante sofreu incómodos com o atraso a Sydney e o atraso de entrega da bagagem (n.º 21).

Serão estes incómodos passíveis de ressarcimento a título de dano não patrimonial?

O Apelante insiste na sua indemnização, que a sentença recorrida negou, depois de se ter considerado que o dano não era de tal forma grave que merecesse proteção jurídica (fls. 120).

Na verdade, a fixação da indemnização por danos não patrimoniais está dependente da sua gravidade, que justifique merecer a tutela do direito – art. 496.º, n.º 1, do Código Civil (CC).

Por isso, positivamente, é pela gravidade dos danos não patrimoniais que se afere a sua ressarcibilidade, sendo certo que, há muito, está ultrapassada a controvérsia da sua ressarcibilidade, depois de se reconhecer a justa necessidade de uma compensação, reparação ou satisfação adequada, de modo a contribuir para atenuar, minorar e compensar os danos sofridos pelo lesado (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, 2004, pág. 603/604).

A gravidade do dano não patrimonial é medida por um padrão objetivo e, por outro lado, é apreciada em função da tutela do direito (ANTUNES VARELA, Ibidem, pág. 606).

Perante estes pressupostos, que condicionam a fixação da indemnização por danos não patrimoniais, e no confronto com o facto do Apelante ter sofrido incómodos com o atraso na chegada a Sydney e o atraso de entrega da bagagem, justifica-se a fixação da indemnização, dado que o dano, objetivamente considerado, assume gravidade suficiente para ser ressarcido, nomeadamente nos termos do disposto no n.º1 do art. 496.º do CC.

 Com efeito, o incómodo sofrido pelo Apelante foi causado, designadamente, pelo atraso do voo (intercontinental), muito superior a três horas. Trata-se, na verdade, de um atraso considerável e em relação ao qual se reconhece ser causa de “sérios transtornos e inconvenientes” para os passageiros, como consta do preâmbulo do Regulamento (CE) n.º 261/2004, de 11 de fevereiro de 2004, diploma que estabelece as regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos.

Com um atraso de voo tão considerável, é de admitir que o lesado, que seguia ainda acompanhado de dois filhos menores, sofreu sérios incómodos, que, pela sua gravidade, justificam o seu ressarcimento mediante a fixação de indemnização. Como se viu, a lei protege em especial estas situações, nomeadamente como “direitos mínimos dos passageiros” (art. 1.º do Regulamento (CE) n.º 261/2004).

Não se trata, neste caso, de um simples incómodo causado por atraso pouco significativo de um voo, que até são banais, e que, nessa medida, não justifica a fixação de indemnização.

Dentro da perspetiva descrita, e atento o disposto no art. 496.º, n.º 3, do CC, e, ainda, no art. 7.º, n.º 1, alínea c), do Regulamento (CE) n.º 261/2004, que estabelece um limite para a indemnização no valor de € 600,00, é de fixar a indemnização devida ao Apelante, a título de dano não patrimonial, na quantia de € 600,00.

Nestes termos, procede parcialmente a apelação.

2.4. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 O recorrente, omitindo completamente a especificação dos pontos da matéria de facto impugnados, não cumpre o disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 685.º-B do Código de Processo Civil.

I. O incumprimento desse ónus de alegação provoca a rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

II.A gravidade do dano não patrimonial é medida por um padrão objetivo e é apreciada em função da tutela do direito.

III. Com o atraso considerável de um voo aéreo, superior a três horas, o passageiro sofre sérios incómodos, que, pela sua gravidade, justificam o seu ressarcimento mediante a fixação de indemnização.

IV. A indemnização está limitada ao valor de € 600,00, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 7.º do Regulamento (CE) n.º 261/2004, de 11 de fevereiro de 2004.

2.5. O Apelante e a Apelada, ao ficarem vencidos por decaimento em ambas as instâncias, são responsáveis pelo pagamento proporcional das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 446.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, alterando a sentença recorrida, condenar a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 697,65 (seiscentos e noventa e sete euros e sessenta e cinco cêntimos).

2) Condenar o Apelante (Autor) e a Apelada (Ré) no pagamento proporcional das custas, em ambas as instâncias.

Lisboa, 30 de maio de 2013

(Olindo dos Santos Geraldes)

(Fátima Galante)

(Manuel José Aguiar Pereira)