Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
184/19.4YUSTR-G.L1-PICRS
Relator: PAULA POTT
Descritores: CONCORRÊNCIA
RECURSO
EFEITOS
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: CONTRAORDENAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Sumário: Efeitos do recurso da decisão final da autoridade da concorrência – Regime do recurso previsto no artigo 84.º n.ºs 4 e 5 do Regime Jurídico da Concorrência – Conformidade desse regime com a Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão, do Tribunal da Relação de Lisboa



1.–A recorrente, veio interpor o presente recurso da decisão judicial proferida em 24.3.2022, pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (doravante também Tribunal de primeira instância ou Tribunal a quo), na parte em que:
  • Julgou que o artigo 84.º n.º 4 e 5 do Regime Jurídico da Concorrência (RJC), aprovado pela Lei 19/2012 de 8 de Maio não é inconstitucional;
  • Julgou que a atribuição de efeito suspensivo à impugnação judicial da decisão final da AdC (no processo de contraordenação PCR/2017/7) depende da verificação de dois requisitos, que se traduzem, cumulativamente, na demonstração de que a execução da decisão pode causar prejuízo considerável à recorrente e na necessidade de prestação de caução em substituição daquela execução.

2.–No recurso, a recorrente, conclui pedindo o seguinte:

i)-Deve o presente recurso ser admitido, devendo ser-lhe conferido o efeito suspensivo, nos termos requeridos;

ii)-Após o que deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que, desaplicando o regime vertido no artigo 84.º, n.º 4 e n.º 5, do RJC, proceda à fixação de efeito suspensivo, sem necessidade de prestação de qualquer caução, ao recurso de impugnação judicial apresentado pela Recorrente sobre a decisão final proferida pela AdC no âmbito do processo contraordenacional n.º PRC/2017/7, com as demais consequências legais.

3.Nas alegações de recurso, vertidas nas conclusões, a recorrente invoca, em síntese:
  • Quanto ao efeito e modo de subida do presente recurso, o mesmo deve subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo, para acautelar o seu efeito útil, nos termos dos artigos 406.º n.º 2 e 407.º n.º 1 do Código de Processo Penal (CPP);
  • O Tribunal a quo interpretou o artigo 84.º nºs 4 e 5 do RJC, no sentido de que só pode ser atribuído o efeito suspensivo aos recursos interpostos sobre as decisões aí textualmente enumeradas – (i)-decisões que apliquem medidas de caráter estrutural determinadas nos termos do n.º 4 do artigo 29.º do RJC (ii)-ou decisões que apliquem coimas ou outras sanções, mas apenas quando se verifiquem dois requisitos, a saber, a execução da decisão causar prejuízo considerável ao visado e este se ofereça para prestar caução em substituição; ficando a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação de caução no prazo fixado pelo Tribunal e, na sua falta, sendo de negar o efeito suspensivo mesmo quando só ele permite acautelar o efeito útil do recurso;
  • Uma tal interpretação do artigo 84.º n.ºs 4 e 5 do RJC feita pelo Tribunal a quo é materialmente inconstitucional, por restringir de maneira desproporcional e/ou violar o direito à presunção de inocência, na medida em que antecipa a execução da coima, e o direito ao acesso aos tribunais para uma tutela jurisdicional efetiva, incluindo a tutela cautelar, na medida em que impõe a prestação de caução;
  • Esses direitos estão consagrados nos artigos 20.º, 32.º, n.ºs 1 e 10 e 268.º n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP);
  • A sua restrição viola o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º n.º 2 da CRP;
  • Adicionalmente, trata-se de uma restrição ao controle jurisdicional das decisões administrativas, que infringe o princípio da legalidade democrática consagrado nos artigos 202.º e 266.º n.º 2 da CRP;
  • A inconstitucionalidade do regime constante dos n.ºs 4 e 5 do artigo 84.º do RJC foi já julgada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão TC-674/2016, de 13 de Dezembro e no Acórdão TC - 445/2018, de 2 de Outubro.

4.–A recorrida respondeu alegando e concluindo, em síntese, que:
  • Quanto ao efeito do presente recurso, o regime previsto nos artigos 407.º n.º 1 e 408.º n.º 3 do CPP prevê que o mesmo deve ser meramente devolutivo, por ser a regra aplicável à generalidade das decisões ou despachos, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 84.º do RJC;
  • Posteriormente aos acórdãos do Tribunal Constitucional invocados pela recorrente, aquele Tribunal julgou em sentido inverso, pela conformidade constitucional da norma constante do artigo 84.º n.ºs 5 do RJC, nos acórdãos n.º TC- 776/2019 (proferido em plenário) e TC- 173/2020;
  • Os nºs 4 e 5 do artigo 84.º do RJC devem ser interpretadas conjuntamente, não sendo possível concluir pela inconstitucionalidade do nº 4 sem atender ao n.º 5 desse preceito;
  • Relativamente a normas similares, constantes do artigo 46.º n.ºs 4 e 5 do Regime Sancionatório do Sector Energético (Lei 9/2013 de 28 de Janeiro) e do artigo 228.º - A do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (DL 298/92 de 31 de Dezembro), o Tribunal Constitucional emitiu idêntico juízo de conformidade constitucional.

5.–O Digno magistrado do Ministério Público na primeira instância respondeu, pedindo que seja negado provimento ao recurso, alegando, em síntese, que:
  • Estão pendentes recursos interpostos pelos seis visados (no processo de contraordenação PCR/2017/7) contra a decisão final da AdC;
  • O objecto dos recursos prende-se com a apreciação da fixação indireta de preços por via de uma prática concertada entre todas as empresas visadas, usando o fornecedor como pivot na comunicação entre as insígnias visadas (prática designada de “hub and spoke”), tendente a garantir um alinhamento entre insígnias, essencialmente no sentido da subida dos preços de venda ao público, no mercado nacional de distribuição retalhista de base alimentar, dos produtos de uma das empresas visadas;
  • No recurso da decisão final da AdC, que interpôs, a recorrente pediu a atribuição ao mesmo de efeito suspensivo sem pagamento de caução com base na inconstitucionalidade do artigo 84.º n.ºs 4 e 5 do RJC;
  • No despacho que admitiu o recurso da decisão final, o Tribunal a quo julgou que tal norma não é inconstitucional;
  • O Tribunal Constitucional, nos acórdãos TC- 776/2019 e TC- 173/2020, julgou a conformidade constitucional da norma em crise como já havia feito anteriormente no acórdão TC-376/2016;
  • O presente recurso, de uma decisão interlocutória do Tribunal a quo, deve ter efeito devolutivo, como tem sido decidido por uma jurisprudência constante.

6.–Na segunda instância, o digno magistrado do Ministério Público emitiu parecer no qual:
  • Acompanha a resposta ao recurso junta pelo digno magistrado Ministério Público na primeira instância;
  • Propõe a validação dos despachos proferidos e, na falta de prestação de caução, a exclusão do efeito suspensivo do recurso de modo a permitir a execução imediata da coima imposta pela AdC.

7.–Cumprido o disposto no artigo 417.º do CPP, a recorrente respondeu ao parecer do digno magistrado do Ministério Público, alegando, em síntese que:
  • Reitera as suas alegações e conclusões de recurso;
  • Defende que a prestação de caução substitutiva lhe causa prejuízo considerável.

8.–Corridos os vistos, cumpre decidir.

9.–Mantém-se a admissão do presente recurso (cf. artigo 89.º n.º 1 do RJC), com o efeito devolutivo que lhe foi atribuído (cf. artigo 408.º do CPP a contrário) e a subida imediata ordenada (cf. artigo 407.º n.º 1 do CPP).

Delimitação do âmbito do recurso

10.–A única questão suscitada no presente recurso e vertida nas conclusões é a seguinte:

A.Inconstitucionalidade do artigo 84.º n.ºs 4 e 5 do RJC.

Factos provados que o Tribunal leva em conta para decidir o recurso

11.–Para decidir o presente recurso, o Tribunal leva em conta os actos e temos processuais com as referências citius a seguir indicadas, juntos ao processo electrónico, quer no presente recurso, quer nos apensos mencionados infra, ao quais este Tribunal acedeu electrónicamente.

12.–No processo de contraordenação PCR 2017/7, no qual é visada a recorrente e outras, a AdC condenou a recorrente na coima 10 550 000, 00 euros, numa sanção acessória e numa medida de conduta,  por uma contraordenação prevista e punida nas disposições conjuntas dos artigos artigo 9.º n.º 1 – a) e 68.º n.º 1 – a) e b), do RJC e 101.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), devido a práticas restritivas da concorrênia que consistiram na fixação concertada, de forma indirecta, de preços em todo o território nacional ou  “hub & spoke”, entre 5.8.2017 e 18.5.2017 – cf. decisão da AdC junta com a refeência citius 364698 / processo 184/19.4YUSTR-G.L1.
[Nota: a mesma referência citius 364698 é dada a 17 documentos no processado eletrónico deste recurso e, entre eles, 10 são designados por “Certidão p/instrução do recurso”; para clareza da fundamentação, este Tribunal refere-se aqui à “Certidão p/instrução do recurso” ordenada em sexto lugar com a referência citius 364698, no processo electrónico].
 
13.–A recorrente inetrpôs recurso da decisão final da AdC referida no parágrafo anterior, pedindo que fosse atribuído efeito suspensivo ao recurso, sem necessidade de prestação de caução, ao abrigo dos principios constitucionais consagrados nos artigos 18.º n.º 2, 20.º, 32.º n.ºs 2 e 10 e 268.º n.º 4 da CRP e pelos demais fundamentos que alegou no seu recurso – cf. referências citius 311635 e 341836 / processo 20/19.1YUSTR-H, que veio a ser incorporado no processo 184/19.4YUSTR-D.

14.–O Tribunal a quo, por despacho de 24.3.2022, proferido no  processo 184/19.4YUSTR-D, que aqui se dá por reproduzido, admitiu o recurso mencionado no parágrafo anterior, condicionando a atribuição de efeito suspensivo à verificação cumulativa dos dois requisitos previstos no artigo 84.º n.º 5 do RJC, que julgou conforme aos princípios constitucionais, sendo tais requisitos, o prejuízo considerável causado à recorrente pela execução da decisão e a prestação de caução em susbtituição. No mesmo despacho, o Tribunal de primeira instância ordenou o processamento do incidente de atribuição de efeito suspensivo ao recurso, mediante prestação de caução e a produção de prova, levando em conta que a recorrente se ofereceu para prestar caução mediante garantia bancária no valor de 10% da coima – cf. referência citius 346662/ processo 184/19.4YUSTR-D.

15.–Em 14.4.2022 a recorrente interpôs o presente recurso, do despacho de 24.3.2022  mencionado no parágrafo anterior – cf. referência citius 60730/ processo 184/19.4YUSTR-D.

16.–Por despacho de 19.5.2022, que aqui se dá por reproduzido, o Tribunal a quo admitiu o recurso mencionado no parágrafo anterior, do despacho de 24.3.2022, tendo-lhe atribuído efeito devolutivo e ordenado a sua subida diferida – cf. referência citius 354208 / processo 184/19.4YUSTR-D.

17.–Após reclamação quanto à retenção do recurso, o Tribunal a quo ordenou a subida do recurso  do despacho de 24.3.2022 em separado – cf. referência citius 360228 / processo 184/19.4YUSTR-D.

18.–Por decisão de 26.7.2022, respeitante ao incidente de atribuição de efeito suspensivo ao recurso interposto da decisão final da AdC, cujo teor se dá aqui por reproduzido, o Tribunal a quo, após ter produzido prova sobre a situação económico-financeira da recorrente, fixou o efeito suspensivo a esse recurso, condicionado à prestação, pela recorrente, de uma caução de 50% da coima que lhe foi aplicada, na modalidade de garantia bancária tendo como beneficiário o Tribunal – cf. referência citius 365721 / processo 184/19.4YUSTR-D.

Apreciação das questões suscitadas pelo recurso

19.–Quadro legal relevante para a decisão:

Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia ou TFUE

Artigo 3.º n.º 1 - b)
1- A União dispõe de competência exclusiva nos seguintes domínios:
(…)
b)-Estabelecimento das regras de concorrência necessárias ao funcionamento do mercado interno;
(…)

Artigo 101.º
1.São incompatíveis com o mercado interno e proibidos todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objetivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno, designadamente as que consistam em:
a)-Fixar, de forma direta ou indireta, os preços de compra ou de venda, ou quaisquer outras condições de transação;
b)-Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos;
c)-Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento;
d)-Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência;
e)-Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objeto desses contratos.
2.São nulos os acordos ou decisões proibidos pelo presente artigo.
3.As disposições no n.o 1 podem, todavia, ser declaradas inaplicáveis:
- a qualquer acordo, ou categoria de acordos, entre empresas,
- a qualquer decisão, ou categoria de decisões, de associações de empresas, e
- a qualquer prática concertada, ou categoria de práticas concertadas, que contribuam para melhorar a produção ou a distribuição dos produtos ou para promover o progresso técnico ou económico, contanto que aos utilizadores se reserve uma parte equitativa do lucro daí resultante, e que:
a)-Não imponham às empresas em causa quaisquer restrições que não sejam indispensáveis à consecução desses objetivos;
b)-Nem deem a essas empresas a possibilidade de eliminar a concorrência relativamente a uma parte substancial dos produtos em causa.

Artigo 278.º
Os recursos interpostos para o Tribunal de Justiça da União Europeia não têm efeito suspensivo. Todavia, o Tribunal pode ordenar a suspensão da execução do ato impugnado, se considerar que as circunstâncias o exigem.

Artigo 279.º
O Tribunal de Justiça da União Europeia, nas causas submetidas à sua apreciação, pode ordenar as medidas provisórias necessárias.


Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia  ou Carta

Artigo 47.º
Direito à ação e a um tribunal imparcial
Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo.
Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo.
É concedida assistência judiciária a quem não disponha de recursos suficientes, na medida em que essa assistência seja necessária para garantir a efetividade do acesso à justiça.

Artigo 48.º
Presunção de inocência e direitos de defesa
1.Todo o arguido se presume inocente enquanto não tiver sido legalmente provada a sua culpa.
2. É garantido a todo o arguido o respeito dos direitos de defesa.

Artigo 49.º
Princípios da legalidade e da proporcionalidade dos delitos e das penas
1.Ninguém pode ser condenado por uma ação ou por uma omissão que, no momento da sua prática, não constituía infração perante o direito nacional ou o direito internacional. Igualmente não pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicável no momento em que a infração foi cometida. Se, posteriormente à infração, a lei previr uma pena mais leve, deve ser essa a pena aplicada.
2.O presente artigo não prejudica a sentença ou a pena a que uma pessoa tenha sido condenada por uma ação ou por uma omissão que, no momento da sua prática, constituía crime segundo os princípios gerais reconhecidos por todas as nações.
3.As penas não devem ser desproporcionadas em relação à infração.

Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou CEDH

Artigo 13°
Direito a um recurso efectivo
Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso perante uma instância nacional, mesmo quando a violação tiver sido cometida por pessoas que actuem no exercício das suas funções oficiais.

Constituição da Republica Portuguesa, também CRP ou Constituição

Artigo 12.º
Princípio da universalidade
1.Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição.
2.As pessoas coletivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza.

Artigo 18.º n.º 2
Força jurídica
(...)
2.A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
(...).

Artigo 20.º
Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2.Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
3.A lei define e assegura a adequada proteção do segredo de justiça.
4.Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5.Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.

Artigo 32.º
Garantias de processo criminal
1.O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
2.Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
3.O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os atos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.
4.Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos atos instrutórios que se não prendam diretamente com os direitos fundamentais.
5.O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
6.A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em atos processuais, incluindo a audiência de julgamento.
7.O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.
8.São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
9.Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
10.Nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.

Artigo 81.º - f)
Incumbências prioritárias do Estado
Incumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social:
(…)
f)-Assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral;
(…)

Artigo 99.º
Objetivos da política comercial
São objetivos da política comercial:
a)-A concorrência salutar dos agentes mercantis;
b)-A racionalização dos circuitos de distribuição;
c)-O combate às atividades especulativas e às práticas comerciais restritivas;
d)-O desenvolvimento e a diversificação das relações económicas externas;
e)-A proteção dos consumidores.

Artigo 202.º
Função jurisdicional
1.Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo.
2.Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
3.No exercício das suas funções os tribunais têm direito à coadjuvação das outras autoridades.
4.A lei poderá institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos.

Artigo 203.º
Independência
Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.

Artigo 204.º
Apreciação da inconstitucionalidade
Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.

Artigo 266.º n.º 2
Princípios fundamentais
(...)
2.Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.

Artigo 268.º n.º 4
Direitos e garantias dos administrados
(...)
4.É garantido aos administrados tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos e a adoção de medidas cautelares adequadas.
(...).

Regime Jurídico da Concorrência aprovado pela Lei 19/2012 de 8 de Maio ou RJC

Artigo 83.º
Regime processual
Salvo disposição em sentido diverso da presente lei, aplicam-se à interposição, à tramitação e ao julgamento dos recursos previstos na presente secção os artigos seguintes e, subsidiariamente, o regime geral do ilícito de mera ordenação social.

Artigo 84.º
Recurso, tribunal competente e efeitos do recurso
1Cabe recurso das decisões proferidas pela AdC cuja irrecorribilidade não estiver expressamente prevista na presente lei.
2Não é admissível recurso de decisões de mero expediente e de decisões de arquivamento, com ou sem imposição de condições, exceto quando expressamente previsto na presente lei.
3Das decisões proferidas pela AdC cabe recurso para o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão.
4O recurso, incluindo o de decisão interlocutória, tem efeito meramente devolutivo, exceto no que respeita a decisões que imponham medidas de caráter estrutural determinadas nos termos do n.º 4 do artigo 29.º, cujo efeito é suspensivo.
5No caso de decisões que apliquem coimas ou outras sanções previstas na lei, o visado pode requerer, ao interpor o recurso, que o mesmo tenha efeito suspensivo quando se ofereça para prestar caução, no prazo de 20 dias, no valor de metade da coima aplicada, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação de caução.

Artigo 88.º
Controlo pelo tribunal competente
1Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão conhece com plena jurisdição dos recursos interpostos das decisões em que tenha sido fixada pela Autoridade da Concorrência uma coima ou uma sanção pecuniária compulsória, podendo reduzir ou aumentar a coima ou a sanção pecuniária compulsória.
2As decisões da Autoridade da Concorrência que apliquem sanções mencionam o disposto na parte final do número anterior.

A.Inconstitucionalidade do artigo 84.º n.ºs 4 e 5 do RJC

20.–Os princípios constitucionais que a recorrente alega estarem em crise quando fundamenta o presente recurso, são os seguintes: o princípio da legalidade da actividade da administração (cf. artigos 202.º e 266.º n.º 2 da CRP), o princípio do acesso ao direito e aos Tribunais, incluindo à tutela jurisdicional efectiva e cautelar perante os actos da administração (cf. artigo 268.º n.º 4 da CRP), o princípio da presunção da inocência (cf. artigo 32.º n.º 2 da CRP) e, o princípio da proporcionalidade (cf. artigo 18.º n.º 2 da CRP)

21.–Trata-se essencialmente de saber se os preceitos constitucionais indicados no parágrafo anterior foram violados pela aplicação do disposto no artigo 84.º n.ºs 4 e 5 do RJC, à fixação do efeito do recurso interposto da decisão final da AdC que condenou a visada numa coima e noutras sanções previstas na lei (cf. decisão mencionada supra no parágrafo 12).

22.–Antes de mais, importa sublinhar que o princípio da presunção da inocência é directamente aplicável ao processo contraordenacional aqui em causa, por força do artigo 32.º n.º 2, aplicável ex vi artigo 12.º n.º 2, ambos da CRP (e não por aplicação subsidiária do regime previsto para o processo penal). Em termos idênticos, no plano da União, é jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), que, o princípio da presunção da inocência se aplica em processos por infracção ao artigo 101.º do TFUE, como o que aqui está em causa (cf. acórdão  do TJUE no processo C- 199/92, parágrafo 150).

23.–No entanto, tanto no plano nacional como no plano da União Europeia, aos recursos das decisões das autoridades da concorrência (que são, respectivamente, a AdC no caso português e a Comissão Europeia no caso da União), aplica-se a regra do efeito meramente devolutivo – cf. artigos 84.º n.º 4 do RJC e 278.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

24.–O artigo 278.º do TFUE contém, aliás, uma regra geral de que o contencioso da União tem efeito meramente devolutivo. Porém, com relevo para a questão a resolver, quer o legislador nacional (cf. artigo 84.º n.º 5), quer o legislador da União (cf. artigo 278.º do TFUE), permitem a possibilidade de o Tribunal atribuir ao recurso efeito suspensivo da execução da decisão se as circunstâncias o justificarem.

25.–Adicionalmente, tal como alega a recorrida/AdC, idêntico regime, fixando o efeito devolutivo do recurso, vigora quanto aos recursos das decisões administrativas noutros sectores (cf. o artigo 67.º n.º 5 do DL 126/2014 de 22 de Agosto quanto às decisões da Entidade Reguladora da Saúde; artigo 46.º nºs 4 e 5 do Regime Sancionatório do Sector Energético, aprovado pela Lei 9/2013 de 28 de Janeiro; artigo 228.º -A do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras).

26.–O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre as regras constantes do artigo 84.º n.ºs 4 e 5 do RJC, em termos que vieram consolidar a conformidade constitucional dessas regras. Com efeito, tal como alegam o digno Magistrado do Ministério Público e a AdC, embora o Tribunal Constitucional se tenha, em dado momento, pronunciado de forma contraditória, pela insconstitucionalidade do regime previsto no artigo 84.º n.ºs 4 e 5 do RJC, nos acórdãos TC-674/2016 e TC - 445/2018 (invocados pela recorrente) e pela constitucionalidade desse regime, no acórdão TC-376/2016, o certo é que, posteriormente, em acórdãos mais recentes, o Tribunal Constitucional veio a sanar tais dúvidas interpretativas considerando que o regime do recurso aqui em crise não é incosntitucional, nos acórdãos TC- 776/2019 e TC- 173/2020.

27.–Neste contexto, não se afigura que as regras constantes do artigo 84.º n.ºs 4 e 5, primeira parte, do RJC, ao consagrarem o efeito meramente devolutivo do recurso como regra e a possibilidade de o Tribunal lhe atribuir efeito suspensivo, se houver circunstâncias, ligadas à situação económico-financeira da visada, que o justifiquem, viole os princípios da legalidade, do acesso aos Tribunais, incluindo à tutela jurisdicional efectiva e cautelar perante as decisões da administração, ou o princípio da presunção da inocência. Isto pelos seguintes motivos.

28.–Em primeiro lugar, está aqui em causa uma contraordenação por violação do artigo 101.º do TFUE e, as violações a este preceito, dependendo dos casos, tanto podem ser investigadas pela AdC como pela Comissão Europeia, estando sujeitas, em ambos os casos, ao controlo da legalidade, ainda que em termos diferentes: no  contencioso da União, o controlo da legalidade tem natureza puramente administrativa; ao passo que no contencioso nacional, os Tribunais têm poderes de plena jurisdição nos recursos previstos no artigo 88.º do RJC, sendo aplicáveis subsidiáriamente as regras do Regime Geral das Contraordenações (RGCO) e, por remissão deste, do Código de Processo Penal (cf. artigos 83.º do RJC e 41.º do RGCO). De onde resulta que, o controlo da legalidade e a tutela jurisdicional, consagrados no plano nacional, atribuem, no caso em análise, poderes mais extensos – de plena jurisdição – aos Tribunais nacionais, dos que são atribuídos ao Tribunal de Justiça, em sede de controlo da legalidade das decisões administrativas da Comissão Europeia, em idêntica matéria.

29.–Em segundo lugar, o regime do efeito do recurso, constante do artigo 84.º n.ºs 4 e 5, primeira parte, do RJC, é semelhante ao consagrado no artigo 278.º do TFUE, com uma especificidade, é que no plano nacional o legislador indica que a circunstância que pode levar o Tribunal a suspender a execução é o prejuízo consideravel que a mesma cause à visada. Ora, os princípios da legalidade, do acesso ao direito e aos Tribunais, incluindo à tutela jurisdicional efectiva, e da presunção da inocência, encontram-se igualmente consagrados, no plano da União, nomeadamente, nos artigos 47.º a 49.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (também, a Carta). Isto, sem que o disposto no artigo 278.º do TFUE represente uma infracção a tais princípios. Pelo que, por razões de unidade do sistema jurídico aqui aplicável, composto por regras nacionais e supra nacionais, não é possível concluir que o regime previsto no artigo 84.º n.ºs 4 e 5, primeira parte, do RJC, viole os princípios constitucionais mencionados neste parágrafo, na medida em que, tal preceito é semelhante ao consagrado no artigo 278.º do TFUE que é conforme à Carta.

30.–Porém, este Tribunal não ignora a dificuldade suscitada pela redacção do artigo 84.º n.º 5 segunda parte, do RJC, que condiciona  a atribuição de efeito suspensivo à prestação de caução, ainda que fique demonstrado, como tem de ficar para esse efeito, o prejuízo considerável que a execução da coima/da decisão final da AdC, possa causar à visada. Esta solução legislativa coloca um problema de proporcionalidade à luz do artigo 18.º n.º 2 da CRP, que, tal como resulta da análise dos acórdãos mencionados supra no parágrafo 26, nem sempre foi resolvido da mesma maneira pelo Tribunal Constitucional.

31.–A este propósito, no contencioso europeu, apesar de o efeito do recurso ser em regra devolutivo, a prática da Comissão Europeia é abster-se de executar a decisão de aplicação de uma coima enquanto está pendente o recurso de anulação, mediante a prestação de garantia bancária. No entanto, o Tribunal Geral pode dispensar a prestação de caução e pode atribuir efeito suspensivo a um recurso no quadro de uma medida cautelar se considerar que as circunstâncias o justificam (cf. artigos 278.º, 279.º, conjugados com o artigo 256.º n.º 1, do TFUE e Lei da Concorrência, Comentário Conimbricense, 2.ª edição, Almedina, páginas 956 a 962).

32.–Pelo que, quanto a este aspecto, a argumentação da recorrente aponta para a dificuldade concreta, com a qual se deparou o Tribunal de primeira instância quando proferiu o despacho recorrido:  tendo em conta a possível existência de um prejuízo considerável, atenta a situação económico-financeira da visada, o legislador, em coerência, deveria ter concedido ao julgador a faculdade de autorizar a dispensa de prestação de caução, medida que permitiria obter o mesmo efeito alcançado pela tutela cautelar prevista no contencioso europeu. No entanto o legislador assim não fez. O que coloca os Tribunais perante, por um lado o dever de sujeição à lei (cf. artigo 203.º da CRP) e, por outro, o dever de não aplicar normas – neste caso, a segunda parte do n.º 5 do artigo 84.º do RJC – que infrinjam a Constituição (cf. artigo 204.º da CRP).

33.–Para resolver a dificuldade, este Tribunal leva em conta a jurisprudência do Tribunal Constitucional acima citada, constante dos acórdãos TC- 776/2019 e TC- 173/2020, da qual resulta que, tendo em conta a natureza de interesse público ou coletivo dos bens jurídicos que o direito da concorrência pretende salvaguardar, que têm igualmente assento constitucional e no TFUE (cf. artigos 81.º -  f), 99.º - a) e c), da Constituição, e artigo 3.º n.º 1-b) do TFUE), não é desrazoável, nem injustificada a solução consagrada no artigo 84.º n.º 5 do RJC.

34.–Adicionalmente, atendendo às divergências que possam subsistir quanto à solução dada pelo Tribunal Constitucional, este Tribunal julga adequado levar em conta, na apreciação do presente recurso, os seguintes factores, que, segundo a doutrina, permitem ao julgador levar a cabo uma interpretação ágil e conforme à Constituição, do artigo 84.º n.º 5, última parte do RJC (cf. Lei da Concorrência, Comentário Conimbricense, 2.ª edição, Almedina, páginas 956 a 962):
  • A fixação do valor da caução em montante idêntico ao valor da coima não é automático;
  • Na verdade, os moldes e o montante da prestatação de caução não se encontram legislativamente fixados no artigo 84.º n.º 5 do RJC, sendo deixados ao critério do julgador, pelo que, o Tribunal de primeira instância goza de margem de apreciação para fixar o montante da caução em valor inferior ao valor da coima e tem poderes para equacionar várias modalidades de prestação de caução;
  • O prejuízo considerável da visada, que não consiste apenas na demonstração de um risco sério de falência, mas pode incluir, em alternativa, a demonstação das dificuldades significativas de tesouraria ou de operacionalidade da empresa visada, causadas pela execução da coima, pode ser levado em conta também para fixar o valor da caução em montante inferior ao valor da coima, incluindo num valor simbólico, se a situação económico financeira da empresa o justificar, podendo o Tribunal acautelar, dessa forma, a operacionalidade da empresa até ao trânsito em julgado da decisão sob recurso.

35.–Não está em causa, no presente recurso, apreciar o mérito da decisão que fixou o valor e a modalidade da caução a prestar pela visada em 50% do valor da coima, na modalidade de garantia bancária a favor do Tribunal. Porém, importa sublinhar que, no que releva para o presente recurso, ficou provado que o Tribunal de primeira instância não procedeu à fixação automática da caução mas, antes, ordenou o processamento do incidente de atribuição de efeito suspensivo ao recurso levando em conta a necessiadde de produção de prova à luz dos factores indicados supra no parágrafo 34 (cf. actos e termos processuais mencionados nos parágrafos 14 e 18 deste acórdão).

36.–Em consequência afigura-se que, à luz do juízo de proporcionalidade feito pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos TC- 776/2019 e TC- 173/2020, conjugado  com a circunstância de o Tribunal a quo ter levado em conta os factores indicados supra no parágrafo 34, a interpretação que o Tribunal de primeira instância fez do artigo 84.º n.ºs 4 e 5 do RJC, no despacho recorrido, proferido em 24.3.2022, mencionado supra no parágrafo 14, não se afigura contraria aos princípios constitucionais cuja violação invoca a recorrente.

37.–Enfim, as questões suscitadas pela recorrente prendem-se com o direito ao recurso efectivo, que se encontra consagrado no artigo 13-º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). Embora seja inegável a sua importância, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, proferida em matéria penal, o direito ao recurso efectivo não é um direito absoluto. Os Estados podem adoptar, na sua legislação processual interna, limites ao exercício desse direito, desde que os mesmos não contendam com a sua substância, que exista proporcionalidade entre os limites impostos e o objectivo que visam alcançar e que não sejam infringidos outros direitos previstos na CEDH (cf. Affaire Golder c. Royaume Uni, Requête n.º 4451/70, de 21.2.1975, parágrafo 38). Ora, à luz desta jurisprudência e tendo em conta as circunstâncias concretas do caso em análise na busca de uma solução equitativa, este Tribunal constata, em primeiro lugar que, a prestação de caução não condiciona a admissibilidade do recurso mas apenas o seu efeito. Pelo que, a imposição de uma tal condição não contende com  a substância do direito ao recurso, que foi admitido independentemente da prestação de caução. Em segundo lugar, pelos motivos indicados supra no parágrafo 33, a limitação introduzida pela prestação de caução como condição do efeito suspensivo do recurso, é proporcional aos fins que a mesma visa alcançar, como foi decidido pelo Tribunal Constitucional. Em terceiro lugar, pelos motivos explicados nos parágrafos 29 e 34, não se afigura que o regime consagrado no artigo 84.º n.ºs 4 e 5 do RJC infinja outros direitos fundamentais, aqui invocados pela recorrente.

38.–Pelo que, improcede o presente recurso.

Em síntese

39.–O efeito meramente devolutivo do recurso em matéria de infracções ao direito da concorrência é o regime regra, quer no plano nacional quer no contencioso da União, podendo porém, em certos casos, o Tribunal atribuir efeito suspensivo ao recurso  –  cf. artigos 84.º n.ºs 4 e 5 do RJC e 278.º do TFUE.

40.–Nesse contexto, o artigo 84.º n.ºs 4 e 5 do RJC não viola os princípios constitucionais da legalidade, do acesso à tutela jurisdicional efectiva, nem da presunção de inocência, aplicáveis em matéria contraordenacional.

41.–No plano nacional, para que seja atribuído o efeito suspensivo ao recurso, o legislador exige a demonstração do prejuízo considerável causado pela execução imediata da decisão da AdC, embora não permita ao julgador, nesse caso, dispensar a prestação de caução, o que suscita a questão da proporcionalidade dessa solução legislativa, à luz do disposto no artigo 18.º n.º 2 da CRP.

42.–Uma vez que artigo 84.º n.º 5 do RJC deixa ao Tribunal de primeira instância margem de apreciação para fixar o montante da caução em valor inferior ao valor da coima, incluindo num valor simbólico, se a situação económico-finaceira da visada o justificar e lhe confere poderes para equacionar várias modalidades de prestação de caução, afigura-se que, tendo a sua interpretação sido feita nesses moldes pelo Tribunal a quo, a mesma é conforme à Constituição.

43.–Os acórdãos do Tribunal Constitucional TC- 776/2019 e TC- 173/2020 vieram consolidar o juízo de conformidade constitucional do regime previsto no artigo 84.º n.º 5 do RJC, julgando que o mesmo é proporcional à necessidade de salvaguardar bens jurídicos de natureza pública e colectiva, protegidos pelo direito da concorrência, que também têm assento constitucional e no TFUE (cf. artigos 81.º -  f), 99.º - a) e c), da Constituição, e artigos 3.º n.º 3 do TFUE).

44.–Por último, mas não menos importante, à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em matéria penal, o direito ao recurso efectivo previsto no artigo 13.º da CEDH não é absoluto, podendo os Estados adoptar, na sua legislação processual interna, limites ao exercício desse direito, desde que os mesmos não contendam com  a substância do direito ao recurso,  que exista proporcionalidade entre os limites impostos e o objectivo que visam alcançar e que não sejam infringidos outros direitos previstos na CEDH, condições que, pelo motivos acima expostos, se afigura estarem preenchidas no caso do artigo 84.º n.ºs 4 e 5 do RJC (cf. Affaire Golder c. Royaume Uni, Requête n.º 4451/70, de 21.2.1975, parágrafo 38).

Decisão

Acordam os juízes que compõem a presente secção em:

I.–Negar provimento ao recurso.

II.–Condenar a recorrente em custas fixando em 4 Ucs a taxa de justiça – artigo 8.º n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e artigo 513.º n.º 1 do CPP, aplicável por força dos artigos 83.º do RJC e 74.º n.º 4 do RGCO.


Lisboa, 26 de Setembro de 2022


Paula Pott - (relatora)  
Ana Mónica Pavão - (1.ª adjunta) 
Luís Ferrão - (2.º adjunto)