Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11459/19.2T8LSB.L1-4
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL
REMUNERAÇÃO
DISCRIMINAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/25/2020
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: 1 -Na interpretação de um acordo escrito de cessão da posição contratual rege o disposto nos Artº 236º e 238º do CC, ou seja, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se não puder razoavelmente contar com ele, não podendo a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento.
2-Não se alcançando do clausulado que uma determinada prestação remuneratória se manteria até que fosse absorvida por posteriores aumentos salariais, não é legítima a conclusão da respetiva absorção.
3-A delimitação do conceito de discriminação faz-se a partir da enunciação de um conjunto de fatores discriminatórios, da delimitação negativa do princípio que lhe subjaz e das noções de discriminação direta e indireta.
4-Logo, nem todo o tratamento diferencial é tido como prática discriminatória.
Se na base do tratamento diferente não estiver um fator de discriminação, sobre o empregador não recai qualquer ónus de prova.
(Pela relatora)
Decisão Texto Parcial:TEXTO INTEGRAL:

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
BBB, R. nos autos à margem referenciados, notificada da sentença que julgou parcialmente procedente a ação, vem da mesma interpor RECURSO DE APELAÇÃO.
Pede a revogação da sentença.
Apresentou a sua alegação que concluiu como segue:
(…)
AAA, Autor nos autos à margem referenciados, notificado da interposição do recurso pela Ré apresentou as suas Contra – Alegações sustentando a manutenção da sentenç3a proferida.
O MINISTÉRIO PÚBLICO pronunciou-se no sentido da confirmação da sentença.
*
Segue-se um breve resumo dos autos para melhor compreensão da discussão:
AAA intentou a presente ação emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma do Processo Comum, contra “BBB” pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de € 29.923,00, a título de créditos emergentes do contrato, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, desde a data do vencimento dos montantes devidos até integral pagamento. Mais peticionou a condenação da ré no pagamento de indemnização por danos de natureza não patrimonial.
Alegou, em síntese, que: (i) por contrato de cessão da posição contratual passou a ser trabalhador da ré em 1 de Maio de 2009; (ii) aceitou as condições constantes do mencionado contrato, designadamente a categoria profissional em que foi colocado e respetivo grau, o valor das anuidades, o subsídio de turno, bem como o valor denominado de “remuneração individual fixa”; (iii) a ré pagou a componente denominada “remuneração individual fixa” até Outubro de 2011, sendo que, desde então, procede apenas ao pagamento, a esse título, da quantia de € 67,00, sem que, para o efeito, tenha existido qualquer acordo ou alteração ao contrato; (iv) o valor contratualmente estipulado a título de “remuneração individual fixa” – € 329,00 – integra a sua retribuição e foi condição de aceitação da cessão da posição contratual; (v) através do seu comportamento, a ré prejudica a sua vida e estabilidade económica, não lhe permitindo organizar a sua vida económica e assumir responsabilidades financeiras de acordo com o vencimento que contratualmente aufere; (vi) existem outros trabalhadores da ré que, em condições semelhantes às suas, celebraram acordos de cessão da posição contratual e que continuam a auferir a denominada “remuneração individual fixa”; (vii) tais trabalhadores, com a mesma categoria profissional, exercem funções que são idênticas às suas quanto à sua natureza, qualidade e quantidade, sendo, pois, a conduta da ré discriminatória.
A ré contestou, alegando, em síntese, que: (i) o autor aceitou o acordo de cessão da posição contratual, sendo que o valor da remuneração individual fixa foi previsto no exato montante necessário para que a sua retribuição fosse de igual valor ao montante global da retribuição que antes recebia da cedente; (ii) tendo a remuneração individual fixa o citado objetivo, seria absorvida logo que, designadamente por evolução na grelha salarial de Técnico Comercial, o autor passasse a auferir montante igual ou superior ao montante da retribuição global auferida na cedente, o que veio a acontecer com efeitos ao mês de Outubro de 2011, mantendo-se apenas o montante da remuneração individual fixa necessário para compensar o valor ainda em falta, após a atualização do vencimento base; (iii) a cessão da posição contratual e a mudança de categoria profissional foi efetuada nos precisos termos acordados entre as partes e sujeitas aos regimes previstos nos AE’s aplicáveis, sem previsão ou obrigação de manter constante qualquer das componentes salariais inicialmente acordadas, desde que fosse cumprido o regime e a evolução previstas no AE que passou a ser o aplicável às partes; (iv) evoluindo o autor na nova categoria e absorvido o diferencial – cuja razão de ser era impedir a diminuição da remuneração global auferida na anterior categoria – deixou de se verificar a única razão de ser da previsão da atribuição da remuneração individual fixa; (v) a não ser assim, todos os trabalhadores da ré integrados no mesmo nível salarial da categoria em causa aufeririam, sem qualquer justificação ou racional, retribuições inferiores; (vi) o autor não alega as condições específicas dos vários trabalhadores relativamente aos quais se diz discriminado, sendo que muitas podem ser as razões que justificam as diferenças salariais; (vii) não foi globalmente diminuído o valor da retribuição do autor, pelo que não existe violação do princípio da irredutibilidade da retribuição. Conclui, a final, pela improcedência da ação, devendo, nessa conformidade, ser absolvida do pedido.
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida sentença que julga a presente ação parcialmente procedente e, em consequência:
a) Condena a ré no pagamento, ao autor, a título diferencial de remuneração individual fixa vencida desde Novembro de 2011 até Abril de 2019, da quantia de € 27.510,00 (vinte se sete mil quinhentos e dez euros), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data de vencimento de cada uma das prestações que a integra até efetivo e integral pagamento;
b) Condena a ré no pagamento, ao autor, a título de diferencial de remuneração individual fixa, das quantias vencidas e vincendas após a propositura da causa e até que a ré retome o seu pagamento, acrescidas de juros de mora, vencidos e vincendos, desde a data do respetivo vencimento e até integral e efetivo pagamento;
c) No mais, absolve a ré do pedido.
*
As conclusões delimitam o objeto do recurso, o que decorre do que vem disposto nos Art.º 608º/2 e 635º/4 do CPC. Apenas se exceciona desta regra a apreciação das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Nestes termos, considerando a natureza jurídica da matéria visada, são as seguintes as questões a decidir, extraídas das conclusões:
1ª – O Tribunal errou no julgamento da matéria de facto?
2ª - Tendo a remuneração individual fixa sido acordada de modo a que não houvesse diminuição da retribuição que o Autor vinha auferindo ao serviço da (...), não pode deixar de se concluir que logo que por força da evolução salarial na Recorrente o valor global de remuneração do Autor fosse superior à que auferia na (...), aquela justificação desapareceu?
3ª - Dos presentes autos não ocorre qualquer dos fatores descritos no art.º 13.º, n.º 2 da CRP e no art.º 24.º do CT, qualificados como fatores ilegítimos de discriminação?
*
FUNDAMENTAÇÃO:
DE FACTO:
(…)
Se a falta de concretização apenas o torna inócuo, esta última característica fere-o de morte, porquanto a instrução deve incidir sobre factos conforme resulta do que se dispõe no Artº 410º do CPC e vem a encontrar expressão também no Artº 607º/4 do CPC. Ora, assim sendo, e considerando também o princípio da utilidade dos atos processuais consignado no Artº 130º do CPC, elimina-se aquele ponto de facto do acervo. Com o que fica prejudicada a análise das demais questões colocadas sobre o mesmo.
(…)
Concluindo: eliminam-se do acervo fático os pontos 16 e 17.
*
OS FACTOS PROVADOS SÃO OS SEGUINTES:
1. Datado de 1 de Maio de 2009, o autor, a ré e a sociedade (…) subscreveram o convénio que denominaram de “Contrato de Cessão da Posição Contratual”, sendo o seguinte o seu teor:
«(…)
Entre os Contraentes:
Primeiro: (...) – (…). (…) adiante designado por “cedente”;
Segundo: BBB (…) adiante designado por “cessionária”;
Terceiro: AAA (…)
Considerando que:
a) O Terceiro Contraente se encontra vinculado, com contrato de trabalho sem termo à cedente, desde 1 de Outubro de 2003 (reconhecendo, a cedente e cessionária, para todos os efeitos, a antiguidade a 29 de Abril de 1991), onde, até à data, exerce funções de Técnico de Tráfego de Assistência em Escala;
b) O Terceiro Contraente aufere, atualmente, uma retribuição mensal composta por Vencimento Base € 1.530,00; Anuidades € 262,82; Gratificação Função Especial € 144,00; Subsídio de Turnos € 179,70; Remuneração Individual Fixa € 95,00.
c) Eventuais créditos laborais detidos nesta data pelo Terceiro Contraente sobre a Primeira Contraente serão por esta assumidos e liquidados.
Os Contraentes celebram e declaram aceitar a presente cessão nos termos seguintes:
Cláusula 1.ª
Pelo presente contrato a cedente cede à cessionária a sua posição de empregadora no contrato de trabalho supra identificado, cabendo ao Terceiro Contraente:
 a antiguidade atualmente possuída;
 categoria profissional de Técnico Comercial;
 integração no grau VI da carreira de Técnico Comercial € 1.440,00; Anuidades € 262,82; Subsídio de Turnos € 179,70; auferindo ainda a título de Remuneração Individual Fixa € 329,00;
(…)
Cláusula 5.ª
Cedente e Cessionária aceitam os termos da presente cessão.
Cláusula 6.ª
A presente cessão produz efeitos a 1 de Maio de 2009.
Cláusula 7.ª
O Terceiro Contraente declara expressamente dar o acordo e consentimento à cessão aqui expressa.
(…)».
2. A ré procedeu ao pagamento, ao autor, do valor correspondente à remuneração individual fixa, constante da cláusula 1.ª, ponto 3., do convénio referido em 1., desde Maio de 2009 até Outubro de 2011.
3. A partir de Novembro de 2011, a ré deixou de pagar ao autor a totalidade do quantitativo referente à remuneração individual fixa, mantendo, apenas, o pagamento mensal, a esse título, da quantia de € 67,00.
4. Em Janeiro de 2011, a retribuição base do autor foi aumentada para o valor de € 1.466,00.
5. Em Outubro de 2011, o autor progrediu para o Grau VII, da categoria de Técnico Comercial, com o vencimento base de € 1.728,00.
6. Em Junho de 2016, o autor progrediu para o Grau VIII, da categoria de Técnico Comercial, com o vencimento base de € 1.849,00.
7. A trabalhadora (…) celebrou com a ré e com a (...) o convénio constante de fls. 67 e 67v., dos autos, datado de 1 de Maio de 2009, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, mas que, e no que ora releva, determinou a sua integração no grau V da carreira de Técnico Comercial e a atribuição de uma remuneração individual fixa no valor de € 75,17.
8. A trabalhadora (…) celebrou com a ré e com a (...) o convénio constante de fls. 68 e 68v., dos autos, datado de 1 de Maio de 2009, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, mas que, e no que ora releva, determinou a sua integração no grau VI da carreira de Técnico
Comercial e a atribuição de uma remuneração individual fixa no valor de € 121,17.
9. A trabalhadora (…)  celebrou com a ré e com a (...) o convénio constante de fls. 69 e 69v., dos autos, datado de 1 de Maio de 2009, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, mas que, e no que ora releva, determinou a sua integração no grau VI da carreira de Técnico Comercial e a atribuição de uma remuneração individual fixa no valor de € 121,17.
10. A trabalhadora (…) progrediu para o grau VI, da categoria de Técnico Comercial, em 1 de Maio de 2013, e para o grau VII, da mesma categoria, em 1 de Junho de 2016, com aumento da retribuição base, em Março de 2010, para o valor de € 1.403,00, em Maio de 2013, para € 1.466,00, em Janeiro de 2016, para € 1.480,00, em Junho de 2016, para € 1.744,00, em Julho de 2017, para € 1.762,00, em Janeiro de 2018, para € 1.851,00, e, em Janeiro de 2019, para € 1.907,00.
11. A trabalhadora (…) progrediu para o grau VII, da categoria de Técnico Comercial, em 1 de Junho de 2017, com aumento da retribuição base em Abril de 2010, para o valor de € 1.466,00, aumento da retribuição base, em Janeiro de 2016, para o valor de € 1.480,00, aumento da retribuição base, em Junho de 2017, para o valor de € 1.762,00, aumento da retribuição base, em Janeiro de 2018, para o valor de € 1.851,00, e aumento da retribuição base, em Janeiro de 2019, para o valor de € 1.907,00.
12. A trabalhadora (…) progrediu para o grau VII, da categoria de Técnico Comercial, em 1 de Novembro de 2012, e para o grau VIII, da mesma categoria, em 1 de Junho de 2018, com aumento da retribuição base, em Abril de 2010, para o valor de € 1.466,00, em Novembro de 2012, para o valor de € 1.728,00, em Janeiro de 2016, para o valor de € 1.744,00, em Julho de 2017, para o valor de € 1.762,00, em Janeiro de 2018, para o valor de € 1.851,00, em Junho de 2018, para o valor de € 1.962,00, e, em Janeiro de 2019, para o valor de € 2.021,00.
13. A trabalhadora (…) aufere a remuneração individual fixa, no valor de € 75,17, desde 1 de Maio de 2009, não tendo a ré cessado o seu pagamento.
14. A trabalhadora (…) aufere a remuneração individual fixa, no valor de € 121,17, desde 1 de Maio de 2009, não tendo a ré cessado o seu pagamento.
15. A trabalhadora (…) aufere a remuneração individual fixa, no valor de € 121,17, desde 1 de Maio de 2009, não tendo a ré cessado o seu pagamento.
16. Eliminado
17. Eliminado
18. O autor foi, por força do convénio transcrito em 1., integrado na categoria profissional de Técnico Comercial, grau VI, uma vez que na ré a categoria profissional de Técnico de Tráfego e Assistência em Escala não existia, sendo que a rúbrica ali prevista sob a denominação de “remuneração individual fixa” foi acordada por forma a que, da cessão da posição contratual, não resultasse para o autor a diminuição da sua retribuição.
*
O DIREITO:
Avançamos, pois, para a 2ª questão elencada - Tendo a remuneração individual fixa sido acordada de modo a que não houvesse diminuição da retribuição que o Autor vinha auferindo ao serviço da (...), não pode deixar de se concluir que logo que por força da evolução salarial na Recorrente o valor global de remuneração do Autor fosse superior à que auferia na (...), aquela justificação desapareceu?
A questão vem desenvolvida nas conclusões 17 a 37.
Aí se invoca que do conjunto dos factos provados face à prova produzida, quer documental quer testemunhal, resultou que a prestação designada por remuneração individual fixa foi acordada única e exclusivamente, para que da cessão de posição contratual da (...) para a Recorrente não resultasse para o Autor diminuição da sua retribuição global.
Certo é, porém, que tal não emerge com tal clarividência de algum dos factos cuja prova se obteve.
Claro é que foi celebrado um Acordo de Cessão de Posição Contratual com todas as suas condições e termos descritos no ponto 1 do acervo fático.
Se houve ou não dúvidas levantadas pelo Autor e pelos restantes trabalhadores face à minuta de Acordo que lhe foi apresentada e que se prenderam com questões relacionadas com as férias por gozar no ano da cessão e o pagamento dos créditos vencidos, é matéria que se desconhece.
Se era suposto que a remuneração fixa acordada se reduzia, depois de absorvido o diferencial a que efetivamente corresponde, também não emerge dos factos. O mesmo se diga no respeitante à circunstância, também invocada, de a denominada remuneração individual fixa ter sido acordada de modo a que não houvesse diminuição da retribuição que o Autor vinha auferindo ao serviço da (...). Toda esta ausência de prova inviabiliza o juízo de que não pode deixar de se concluir que logo que por força da evolução salarial na Recorrente o valor global de remuneração do Autor fosse superior à que auferia na (...), aquela justificação desapareceu.
Isto posto, diremos, como na sentença, que “Em matéria de interpretação da declaração negocial rege o art. 236.º, do Código Civil, que estatui, no seu n.º 1, que «[a] declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele», prosseguindo o n.º 2 do mesmo preceito dizendo que «[s]empre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida».
A propósito dos negócios formais dispõe o art. 238.º, n.º 1, do Código Civil, que não pode a declaração neles contida valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, podendo, no entanto, esse sentido valer se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a essa validade (n.º 2 do art. 238.º do Código Civil).
Ora, revela-se que foi celebrado um contrato de cessão da posição contratual, reduzido a escrito, “sendo que será eminentemente com recurso ao respetivo clausulado que a questão em apreço terá que ser decidida, posto que, a despeito da prova produzida, não se alcançou qual fosse a vontade das partes aquando da celebração do referido convénio, isto é, se a remuneração individual fixa foi acordada com carácter duradouro e inalterável ou se, ao invés, o foi transitoriamente e até que absorvida por posteriores aumentos o que demandaria que a sua convenção o fosse a título de diferencial retributivo”.
Não deixaremos, a este propósito, de alertar para quanto se dispõe no Artº 394º/1 do CC, ou seja, é inadmissível a prova por testemunhas se tiver por objeto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou particular conforme ao disposto nos Artº 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.
Isto posto, não estamos impedidos de ensaiar, como fez a sentença, uma interpretação do conteúdo do acordo firmado, plasmado no documento que o sustenta, e, a partir dela, retirar as conclusões que se impõem. Até porque conforme ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, “na interpretação de negócios formais é admissível o recurso a elementos exteriores ao contexto do documento, conforme está hoje claramente expresso no nº 3 do Artº 393º” (Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª Ed. revista  e atualizada, Coimbra Editora, 225).
Para este efeito, a sentença ponderou que “analisando o texto do contrato, milita a favor da tese da ré – a da natureza transitória ou de mero diferencial da remuneração individual fixa – a circunstância de o seu valor equivaler exatamente à diferença entre o que o autor auferia ao serviço da (...) e o que passaria a auferir ao seu serviço, atenta a alteração de categoria de grau provindos do pretérito.
Sem prejuízo, apenas este fator sustenta a posição assumida nos autos pela ré, sendo que, no texto do contrato, se não vislumbra, nem mesmo remotamente, que a remuneração individual fixa – até pelo seu próprio nome: remuneração fixa – assumisse o carácter transitório e de mero diferencial que a ré lhe pretende emprestar.
Acresce ao exposto que a alteração de categoria do autor e a sua inserção numa carreira – a de Técnico Comercial – obedeceria, como obedeceu, a progressões (cfr., factos provados sob os pontos 5. e 6.), não podendo a esse fator ser alheia a ré. Assim, e fosse a dita remuneração um mero diferencial a absorver por posteriores incrementos salariais e então o texto do convénio teria que tanto consagrar e, perdoem-nos, não consagra de todo. Na verdade, vista a expressão utilizada – remuneração individual fixa – claramente dela se intui a sua oposição à sua natureza transitória, alterável, mutável, daí que no texto do contrato o sentido dado à dita remuneração pela ré nele não encontre um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa. Aliás, o autor já trazia do pretérito uma rúbrica retributiva com a mesma nomenclatura, sem que tenha sido explicitada a sua razão de ser.
A ponderação assim efetuada não nos merece reparo, antes que a subscrevamos.
Na verdade, em presença do texto subscrito por ambas as partes qualquer declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do A., concluiria que ali se acordava um complemento salarial fixo, independente de qualquer vicissitude futura. A não ser que o declaratário soubesse de algo em contrário, o que não consta dos autos, ou que não se registasse razoabilidade no sentido da declaração que se apreende, o que também não é o caso (Artº 236º/1 e 2).
Razão pela qual não tem cabimento o apelo que, em sede conclusiva, é feito, de lançar mão do disposto no Artº 237º do CC que, como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, apenas “vale para os casos em que a declaração, consultados todos os elementos utilizáveis para a sua interpretação de harmonia com o critério fixado no artigo anterior, comporta ainda dois ou mais sentidos, baseados em razões de igual força” (Ob. cit., 224).
Termos em que, sem necessidade de outros considerandos, improcede a questão em apreciação.
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Passamos, pois, à 3ª questão - Dos presentes autos não ocorre qualquer dos fatores descritos no art.º 13.º, n.º 2 da CRP e no art.º 24.º do CT, qualificados como fatores ilegítimos de discriminação?
Defende a Apelante que não se verifica qualquer discriminação porque a situação de facto e de direito em que o Autor assenta tal invocação não se verifica, já que cessou todo e qualquer efeito do Acordo de Cessão da Posição Contratual.
Como vimos, não temos base para afirmar que cessou todo e qualquer efeito do acordo de cessão.
Mas temos como afirmar que há um tratamento diferenciado dispensado ao Apelado no contraponto com o que foi dispensado às trabalhadoras mencionadas nos pontos 13, 14 e 15, relativamente às quais se registou progressão nas respetivas carreiras, progressão essa acompanhada dos aumentos salariais que revela o acervo fático.
O Apelado contrapõe, no que se reporta à questão em análise, que os trabalhadores que estão na mesma situação e que a Recorrente discrimina são os oriundos da (...), que detinham todos a categoria profissional de Técnicos de Tráfego e Assistência em Escala e foram integrados na categoria de Técnico Comercial, em virtude do contrato de cessão de posição contratual que todos celebraram, sendo igual e com as mesmas condições para todo este grupo de trabalhadores, nomeadamente o pagamento de uma parcela remuneratória designada “remuneração individual fixa“, que a Recorrente deixou de pagar a uns, mantendo o pagamento a outros. Estes trabalhadores, que mudaram de empregadora em determinadas condições, estão todos na mesma situação mas em situação diferente dos trabalhadores que já pertenciam àquela empregadora ainda que com a mesma categoria profissional.
Isto consubstancia algo distinto daquilo que está em causa nos autos, dos quais emerge que a diferença de tratamento é entre trabalhadores cedidos e não entre estes e os que foram ab initio contratados pela R.. Não nos deteremos, pois, nesta questão, que nem sequer foi abordada previamente.
A questão que nos deve ocupar prende-se com a diferença que emana do tratamento dispensado aos trabalhadores mencionados nos pontos 13 a 15 e aí nos centraremos.
O Artº 13º/2 da CRP dispõe que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
E o Artº 24º proíbe que um trabalhador seja privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, identidade de género, estado civil, situação familiar, situação económica, instrução, origem ou condição social, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica ou raça, território de origem, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical, devendo o Estado promover a igualdade de acesso a tais direitos.
Nenhum dos fatores de discriminação constantes dos textos legais foi invocado ou se perceciona no caso em análise.
Por força do que se dispõe no Artº 25º/1 do CT o empregador não pode praticar qualquer discriminação, direta ou indireta, em razão, nomeadamente dos fatores referidos no nº 1 do artigo anterior.
De acordo com o estipulado no nº 5 deste artigo cabe a quem alega a discriminação indicar o trabalhador ou trabalhadores em relação a quem se considera discriminado, incumbindo ao empregador provar que a diferença de tratamento não assenta em qualquer fator de discriminação.
Deste conjunto normativo extrai-se que apontando-se o dedo ao empregador por discriminar com base em algum dos fatores negativos referidos ou outro, o empregador terá que convencer que a prática instituída não assenta em nenhum dos fatores indicados.
Daqui não se extrai, porém, que toda e qualquer prática diferenciada seja discriminatória.
Isto mesmo parece ter sido assumido pela sentença quando transcreve um excerto subscrito por Guilherme Dray, a saber:
Isto significa que a presunção de discriminação não resulta da mera prova dos factos que revelam uma diferença de remuneração entre trabalhadores da mesma categoria profissional, ou seja da mera diferença de tratamento, pois, exigindo a lei que a pretensa discriminação seja fundamentada com a indicação do trabalhador ou trabalhadores favorecidos, naturalmente tal fundamentação há-de traduzir-se na narração de factos que, reportados a características, situações e opções dos sujeitos em confronto, de todo alheias ao normal desenvolvimento da relação laboral, atentem, direta ou indiretamente, contra o princípio da igual dignidade sócio laboral, que inspira o elenco de fatores característicos da discriminação exemplificativamente consignados na lei”.
Porém, a sentença prosseguiu detendo-se no cotejo da factualidade enunciada sob os pontos 3, 13, 14, 15 e 17, partindo do pressuposto, relativamente à trabalhadora (…) que “Atenta a sua progressão e aumento do respetivo vencimento base verifica-se que a sua remuneração individual fixa deveria ter sido reduzida em Março de 2010 e completamente suprimida em Maio de 2013, posto que, conforme se colhe do documento de fls. 67 e 67v., dos autos, a sua integração no grau V da carreira de Técnico Comercial importou a atribuição de um vencimento base de € 1.378,00 e esse vencimento foi aumentado, nas referidas datas, para € 1.403,00 e € 1.466,00, respetivamente”; quanto à (…) que “Atenta a sua progressão e aumento do respetivo vencimento base verifica-se que a sua remuneração individual fixa deveria ter sido reduzida em Abril de 2010 e suprimida, na íntegra, a em Novembro de 2012, posto que, conforme se colhe do documento de fls. 68 e 68v., dos autos, a sua integração no grau VI da carreira de Técnico Comercial importou a atribuição de um vencimento base de € 1.440,00 e esse vencimento foi aumentado, nas referida datas, para € 1.466,00 e € 1.728,00” e à (…) que “Atenta a sua progressão e aumento do respetivo vencimento base verifica-se que a sua remuneração individual fixa deveria ter sido reduzida em Abril de 2010, reduzida em Janeiro de 2016 e completamente suprimida em Junho de 2017, posto que, conforme se colhe do documento de fls. 69 e 69v., dos autos, a sua integração no grau VI da carreira de Técnico Comercial importou a atribuição de um vencimento base de € 1.440,00 e esse vencimento foi aumentado, nas referidas datas, para € 1.466,00, € 1.480,00 e € 1.762,00, respetivamente”. Não obstante nenhuma delas viu a retribuição fixa diminuída.
Vem, assim, a concluir que “Ao privar o autor de parte considerável da remuneração individual fixa diferenciando-o dos demais trabalhadores que a mantiveram na íntegra e que, aquando da sua convenção, se encontravam em igualdade de circunstâncias com ele – originários da (...), categoria de Técnico Comercial, e fixação de remuneração individual fixa com critério de cálculo igual – conclui-se, com todo o respeito, que a ré discriminou o autor”.
Como acima dissemos os factos revelam, efetivamente, um tratamento distinto – perspetiva-se-nos um conjunto de trabalhadores, todos oriundos de certa empresa no âmbito de um contrato de contornos absolutamente idênticos, com progressão registada nas respetivas carreiras, com atribuição de uma prestação remuneratória com a mesma natureza, sendo que apenas o A. viu cessado o respetivo pagamento.
Mas daqui não emerge que competisse à R. provar que tal diferença não assenta em qualquer fator de discriminação. É que não foi invocado nenhum fator discriminatório.
Ensina Maria do Rosário Palma Ramalho que para operacionalizar o princípio da não discriminação há que delimitar o próprio conceito de discriminação, para o que “a lei enuncia um conjunto de fatores discriminatórios, delimita negativamente o princípio e fornece as noções de discriminação direta e indireta” (Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 6ª Ed., Almedina, 176). Segundo a autora, relevam, em especial, para aferir da prática de discriminações, os conceitos de discriminação direta e indireta. Ora, de acordo com o Artº 23º/1-a) e b) estes conceitos partem da diferenciação em função de algum fator de discriminação. Por outro lado, a regra de repartição do ónus da prova a que a sentença alude pressupõe a invocação de algum dos ditos fatores.
Donde, não subscrevemos a sentença quando enuncia esse ónus. Nessa medida, também não podemos invalidar, por esta via, o ato em análise, como ocorreria se estivéssemos em presença de discriminação subjetiva (Artº 25º/7 do CT).
Com o que se subscreve a tese adiantada pela Apelante quando conclui que não se verifica in casu o pressuposto base da alegação de qualquer discriminação com fundamento no Acordo de Cessão, uma vez que não foram sequer alegados os factos integrativos dos fatores de discriminação referidos no n.º 1 do art.º 24.º do CT.
Nesta medida, não assentando a alegação do Apelado senão num tratamento desigual objetivamente verificado, assistindo embora razão à Apelante nesse conspecto, certo é que não podemos deixar de afirmar o desigual tratamento para cuja efetivação não vemos razão válida.
Ora, como é comumente aceite, o princípio da igualdade, emanado da CRP, obriga a que se trate como igual o que for, necessariamente igual e como diferente o que for, na sua essência, diferente, proibindo as distinções de tratamento que não tenham qualquer justificação material. Assumindo, quer a doutrina, quer a jurisprudência, que quer a proibição do arbítrio, quer a da discriminação, quer ainda a obrigação de diferenciação, traduzem dimensões do referido princípio.
Como se exarou no Ac. do STJ de 1/06/2017, Procº 816/14.0T8LSB, “Nestas situações em que é alegada discriminação o legislador estabelece um regime especial de repartição do ónus da prova, em que afastando-se da regra geral, estipula uma inversão do ónus da prova, impondo que seja o empregador a provar que a diferença de tratamento não assenta em qualquer fator de discriminação.
É o que resulta do n.º 5, do citado art.º 25, do Código do Trabalho, que refere que cabe a quem alega discriminação indicar o trabalhador ou trabalhadores em relação a quem se considera discriminado, incumbindo ao empregador provar que a diferença de tratamento não assenta em qualquer fator de discriminação.
Nas situações em que é alegado violação do princípio do trabalho igual salário igual” – e, dizemos nós, nas situações em que é invocada diferença de tratamento-, “sem que sejam invocados quaisquer factos suscetíveis de serem inseridos na categoria do que se pode considerar fatores de discriminação, não opera a referida presunção, devendo funcionar a regra geral estabelecida no art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil, que refere que àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
Ora o A., agora Apelado, provou o diferente tratamento que lhe foi dispensado, comparativamente aos que, como ele, foram cedidos em idênticas circunstâncias.
Daí que o juízo efetuado na sentença deva manter-se.
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Considerando que a Apelante decai no pedido formulado, as custas serão suportadas por si nos termos do disposto no Artº 527º/1 do CPC.
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Em conformidade com o exposto, acorda-se em modificar o acervo fático conforme sobredito e julgar a apelação improcedente, confirmando, em consequência, a sentença.
Custas pela Apelante.
Notifique.
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Lisboa, 2020-11-25
MANUELA BENTO FIALHO
SÉRGIO ALMEIDA
FRANCISCA MENDES
(Embora entenda que da conjugação do Artº 72º/1 do CPT com o Artº 662º/2-c) do CPC resulta a possibilidade de ampliação da matéria de facto, considero que no caso concreto tal ampliação não se justifica, atento o conteúdo do contrato de cessão da posição contratual)
Decisão Texto Integral: