Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
484/12.4TYLSB-CV.L1-1
Relator: AMÉLIA SOFIA REBELO
Descritores: CASO JULGADO
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
FUNDAMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I - A autoridade do acórdão da Relação que, com fundamento em insuficiência dos factos considerados pelo tribunal recorrido, revoga o saneador sentença objeto do recurso e determina o prosseguimento dos autos para ampliação e instrução de matéria de facto controvertida, apenas veda ao juiz a quo a possibilidade de novamente conhecer de mérito da ação sem prévia produção de prova e discussão da causa em sede de audiência de julgamento, mas não interfere com os demais poderes de gestão e de tramitação do processo, que permanecem na competência da 1ª instância.
II – O despacho que, após baixa daqueles autos do recurso à primeira instância, declara a suspensão da instância com fundamento no art. 272º, nº 1 do CPC, não viola nem o caso julgado formado por aquela decisão da Relação, nem a obediência hierárquica devida a decisão superior.
III - A finalidade da insolvência – satisfação do coletivo dos credores - reflete-se na complexidade do processo que, entendido em termos amplos, abrange processo principal e apensos ‘matriciais’ especial e instrumentalmente previstos como meios processuais para o cumprimento e/ou acompanhamento e fiscalização do cumprimento daquele objetivo, como os apensos de apreensão de bens, de liquidação, e de verificação e graduação de créditos, numa relação de interação recíproca e/ou de dependência da atividade processual a desenvolver no processo principal ou noutros apensos.
IV – Do teor literal do art. 8º, nº 1 do CIRE, de per si e em confronto com o teor literal do art. 9º, nº 1, e da conjugação sistemática e prática dos princípios da plenitude/auto suficiência do processo da insolvência, da sua celeridade, e do poder discricionário (mas não arbitrário) do Administrador da Insolvência na gestão e otimização da massa insolvente, não se extraem elementos que permitam interpretar e estender o âmbito de aplicação da proibição da suspensão da instância prevista pelo art. 8º, nº 1 do CIRE para além do processo principal de insolvência e dos respetivos apensos ‘matriciais’.
V – Sob pena da possibilidade de serem prosseguidas atividades estéreis ou produzidos resultados insanavelmente contraditórios entre si e com prejuízo para os interesses tutelados pela insolvência, a proibição prevista pelo art. 8º, nº 1 do CIRE não pode incluir e arredar a possibilidade legal de suspensão da instância, com fundamento no art. 272º, nº 1 do CPC, de ação comum a correr por apenso ao processo de insolvência se essa via, de acordo com os critérios de gestão do processo previstos pelo art. 6º do CPC da banda do juiz, e da gestão dos interesses da massa insolvente da banda do Administrador da Insolvência, for a mais adequada à simplificação e agilização processual, por um lado, e à tutela ou maximização da massa insolvente e do interesse do coletivo dos credores, por outro.
VI – Cabe no âmbito dos poderes de gestão processual previstos pelo art. 6º do CPC o despacho que, invocando como fundamento a finalidade da insolvência e a tutela do interesse coletivo dos credores, decreta a suspensão da instância de ação comum apensa ao processo de insolvência até à elaboração de mapa de rateio nos autos principais para permitir aferir e conhecer do pressuposto processual do interesse em agir da autora massa insolvente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
1. Massa Insolvente de E…, SA, instaurou ação declarativa comum (CK) contra ‘Cooperativa… CRL’ pedindo seja 1) Declarado o abuso de direito da R. ao executar as garantias bancárias pelo seu valor total,//2) A R. ser condenada a pagar à A. o respectivo valor com vista o reembolso ao Banco….
2. A requerimento do Sr. Administrador da Insolvência a ação foi posteriormente apensada ao processo de insolvência de E…, SA e, após realização de audiência prévia, foi julgada improcedente por saneador sentença que, conhecendo de mérito, absolveu a ré dos pedidos.
3. Dessa sentença a autora interpôs recurso de apelação requerendo, além do mais, a sua anulação com fundamento em preterição de formalidade essencial – correspondente à audiência de julgamento para cumprimento da instrução dos autos - e o prosseguimento dos autos para produção da prova requerida, designadamente, pericial, para apuramento de vicissitudes da execução do contrato de empreitada subjacente à contratação, pela insolvente, da garantia bancária emitida e cumprida pelo credor Banco… em benefício da ré, atinentes com os defeitos que esta entendia existirem na obra aquando da sua receção provisória.
4. Por acórdão proferido em 30.06.2020 (no apenso CK), o coletivo desta secção decidiu
1. Julgar parcialmente improcedente o recurso interposto pela Recorrente e, consequentemente:
a) revogar a decisão de absolvição da R. da instância por verificação da excepção de caso julgado, no que concerne à invocada caducidade das garantias bancárias com fundamento na declaração de insolvência;
b) julgar improcedente a caducidade das garantias bancárias com o fundamento referido em a), absolvendo-se a R. do pedido no que a tal concerne e
c) no demais anular a sentença recorrida proferida para, sem prejuízo dos factos já assentes, ter lugar a ampliação e julgamento de matéria de facto, tendo como objecto os temas de prova relativos à existência, natureza, extensão e quantum dos “defeitos” da obra, da sua imputabilidade ao objecto da prestação devida executar pela insolvente em cumprimento do contrato de empreitada que celebrou com a Ré e ao objecto da garantia que celebrou com o banco, em que data ocorreu a denúncia, a existência de reconhecimento dos ditos defeitos por parte da ora Apelante, se os mesmos foram, ou não reparados e ainda o montante em que importa a reparação dos defeitos ocorridos.
5. Após baixa dos autos à primeira instância, foi proferido o seguinte despacho:
“Tomei conhecimento do acórdão que baixou do Tribunal da Relação de Lisboa.
Em obediência ao mesmo importa ampliar a matéria de facto, tendo como objeto os temas de prova relativos à existência, natureza, extensão e quantum dos defeitos da obra, da sua imputabilidade ao objeto da prestação devida executar pela insolvente em cumprimento do contrato de empreitada e ao objeto da garantia que celebrou com o banco, em que data ocorreu a denúncia, a existência de reconhecimento dos ditos defeitos por parte da ora apelante, se os mesmos foram ou não reparados e ainda o montante em que importa a reparação dos defeitos ocorridos.
É cristalino que a utilidade, ainda que residual, da apreciação de tal pedido, dependerá sempre do que sobejar das forças da massa, após o pagamento dos créditos com preferência no pagamento sobre os créditos comuns. É igualmente claro que atendendo à atual composição da massa insolvente, tal utilidade ainda não se manifesta, facto que foi constatado e assertivamente fundamentado pelo Tribunal da Relação de Lisboa em sede de apenso BY, Exma. Desembargadora relatora Amélia Sofia Rebelo, em acórdão que, tal como aqui, concedeu parcial provimento ao recurso interposto pela massa insolvente, mas não deixando de referir-se expressamente ao presente apenso nos termos que passo a transcrever:
“Não podemos também deixar de consignar que, ainda que de uma forma invertida – que, por corresponder a ação de mera apreciação negativa, torna a sua discussão ainda mais complexa -, esta e as ações comuns dos apensos CK e BX têm como pano de fundo ou relação jurídica dominante o contrato de empreitada que a Massa Insolvente, aqui Recorrente, se propôs e tomou a iniciativa de discutir judicialmente e tomar ao seu encargo, não obstante os benefícios que por elas pode almejar obter para o coletivo dos credores da insolvência não passem senão pela subtração/redução do valor de cerca de € 266.700,00 a um passivo relacionado/reconhecido nos termos do art. 129º do CIRE no montante total de € 273.753.184,53, este constituído por créditos de natureza comum (cerca de €79.552.000,00 sem condição e cerca de € 186.421.000,00 sob condição), créditos subordinados (cerca de € 234.500,00) e créditos de natureza laboral, estes no montante de cerca de € 10.223.000,00, sendo certo que, de acordo com as contas intercalares prestadas em apenso (CR), o saldo da massa insolvente cifra-se a esta data no montante de cerca de € 7.000.000,00. Para consignarmos que os sujeitos que manifesta, direta, e inevitavelmente poderão ser beneficiados com o resultado positivo destas ações resumem-se aos três Bancos credores prestadores das garantias e, na eventualidade, improvável, de o ser, só muito remota e residualmente o coletivo dos credores comuns que com aqueles concorrem (mesmo na hipótese de os credores comuns serem contemplados pelo produto da venda, o acréscimo que daquela redução do passivo resulte para cada credor será parcamente residual, e se antes não for consumido pelas despesas que a massa insolvente suportou com estas ações), sendo desde já certo e incontornável que o montante do produto da liquidação a distribuir pelos credores laborais, à frente dos credores comuns, por força da imputação/pagamento das custas e encargos do processo proporcionalmente pelo produto de cada classe de bens ou de cada bem (móveis e imóveis) resultará sempre diminuído pela afetação de receitas da massa insolvente ao pagamento dos encargos destas ações que, para além das custas e outros encargos, incluem honorários a mandatário forense.  Com estes contornos, não antevemos como linear o enquadramento destas ações no âmbito da atividade de liquidação da massa insolvente, que deve reger-se pelo critério da sua otimização, sendo certo que não se enquadram na finalidade de qualquer uma das ações especifica e expressamente previstas pelo art. 82º, nº 3 do CIRE que, conforme delas ostensivamente resulta, visam a proteção dos ativos que integram a massa insolvente através do reconhecimento de direitos de crédito da massa insolvente sobre terceiros, e não a discussão/negação, sob impulso e ação da massa insolvente, de créditos sobre a insolvência que não foram discutidos pelos próprios credores, interessados diretos, e que, para além das ações de verificação ulterior de créditos (art. 146º e ss. do CIRE), têm o seu lugar próprio no apenso de reclamação de créditos. Mais se consigna que não será alheio ao supra assinalado a perspetiva pela qual a Recorrente aborda e conclui pelo abuso de direito no acionamento da garantia bancária por parte da Recorrida, que seria mais consentânea com a posição juridicamente admissível ao Banco garante, e não com a posição da Insolvente na qualidade de parte no contrato subjacente que celebrou com a Recorrida. Com efeito, como é consensual, as características jurídicas da garantia autónoma ou à primeira solicitação impedem o Banco garante de invocar as vicissitudes próprias da relação material subjacente à emissão da garantia e, em princípio, e conforme jurisprudência superior e posições doutrinárias nesse sentido - para além da caducidade da garantia pelo seu não exercício no prazo da validade da mesma (a aferir pela data ou outro evento extintivo aposto no título que corporiza a garantia), da falta de requisitos formais ou documento convencionalmente exigido, da inexistência ou objeto ilegal do contrato base -, verificando-se os respetivos pressupostos, apenas lhe resta a válvula de ‘escape’ da fraude ou abuso de direito para obstar ao acionamento e pagamento da garantia2. Porém, tanto já não sucede relativamente à contratante da garantia autónoma, no caso, à insolvente (patrimonialmente substituída pelo património autónomo massa insolvente e, em sede de representação da mesma, pelo Administrador da Insolvência) pois, na qualidade de parte contratante e de acordo com o princípio da eficácia relativa dos contratos, tem legitimidade para invocar as vicissitudes e exceções atinentes com a relação causal subjacente à contratação das garantias - no caso, o contrato de empreitada que celebrou com a Recorrida -, incluindo as que permitam concluir pela inexistência do direito desta em acionar as garantias (que, nas relações entre estas, seria apto a afastar o instituto do abuso de direito, precisamente, porque pressupõe que o direito exista). Ou seja, a insolvente e, assim, a massa insolvente, que no âmbito das relações jurídicas obrigacionais de natureza patrimonial a substitui, tem reconhecida legitimidade para invocar a inexistência do direito de acionar a garantia bancária com fundamento na inexistência do direito por ela pretendido garantir  (ou porque não se chegou a constituir, ou porque se extinguiu) e, através de sentença oponível à beneficiária da garantia, dela liberar a parte que a assumiu, com consequente extinção da obrigação de pagamento que dela emergiria para o Banco garante3.  Acresce que o imputado abuso (da Recorrida) vislumbra-se antes de mais na perspetiva do Banco garante e não da Autora/Recorrente porque, para além de esta litigar em substituição da parte outorgante no contrato base subjacente à garantia, considerando a natureza ou estatuto que detém - de património autónomo de afetação -, nem o conteúdo ou acervo patrimonial que integra a massa insolvente é alterado pelo exercício da garantia pela Recorrida, nem a posição dos demais credores relativamente ao produto da massa insolvente (mais concretamente, ao que a final resulte disponível para distribuição pelos credores da insolvência) sofreria alteração pelo facto de no processo da insolvência serem reclamado os créditos emergentes das garantias bancárias, ou, ao invés destes, os créditos por elas garantidos. Uns ou outros iriam engrossar o passivo a satisfazer pelo produto da massa insolvente que, assim, teria que ser rateado também pelos créditos, ou do Banco garante ou da Recorrida, na proporção do respetivo montante, com inevitável redução dos montantes a distribuir pelos demais credores, na hipótese (remota) de os credores comuns virem a por ele ser contemplados. Não obstante o exposto, apto a questionar o pressuposto processual, de conhecimento oficioso, do interesse em agir da massa insolvente (que se pressupõe no interesse do coletivo dos credores e não de apenas alguns deles), no rigor formal da objetividade da apreciação jurisdicional (que não consente decisões assentes em premissas ou formulações hipotéticas, antes exige um silogismo assente em fatos processualmente adquiridos), obsta ao seu conhecimento o facto de ainda não ter sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos.”
Aqui chegados, reproduz-se o despacho proferido na data de hoje no apenso BY que aqui deverá ser proferido nos mesmos termos: “impõe-se conceder à Massa Insolvente e aos credores o direito de verem julgada e apreciada a sua pretensão, mas num quadro em que esteja garantida a utilidade do pedido, designadamente, na certeza de que pagos os credores privilegiados a massa tem disponibilidade para pagar rateadamente aos credores comuns, sob pena de estar o tribunal a afetar meios e recursos em causas que, não obstante legítimas, revelar-se-ão a final inúteis. Meios que manifestamente carece. É que os autos principais têm longevidade superior a 12 anos, reclamaram créditos centenas de credores, a maior parte deles trabalhadores que à data de hoje ainda não lograram receber qualquer pagamento à ordem dos presentes autos. A complexidade dos autos, o elevado número de apensos declarativos e a incapacidade de resposta do tribunal potenciada por uma gritante insuficiência de meios humanos afetos ao Juízo de Comércio de Lisboa, devidamente reportada ao Conselho Superior da Magistratura ao longo dos anos, contribuíram, para que tal ocorresse. Insuficiência de meios que assume especial relevância num quadro de elevada pendência de processos com longevidade superior a 10 anos de que estes autos sendo exemplo, não se inserem no grupo dos mais antigos. Sem prejuízo, inserem-se no grupo de processos antigos com maior número de créditos reclamados e com maior volume de património apreendido e liquidado. Neste contexto, é urgente que o processo flua para a fase de pagamentos, sendo necessário para tal tramitar e julgar o apenso de reclamação de créditos que, consigna-se ter à data de hoje conclusão aberta.   Após o trânsito em julgado da sentença a proferir no apenso de reclamação de créditos, impor-se-á efetuar no processo principal um rateio parcial para pagamento aos credores privilegiados e/ou garantidos nos termos dos artigos 173.º, 174.º, 175.º e 178.º, todos do CIRE.  Concretizado o rateio parcial, será possível prever de acordo com o estado da liquidação à data, se a massa insolvente tem ou não meios para pagar os créditos comuns que aqui se discutem e na afirmativa, prosseguir de imediato com os presentes autos e, na negativa, questionar com critérios de atualidade por causa superveniente, o interesse em agir da massa insolvente. A ocorrência do rateio parcial e saldo remanescente da disponibilidade da massa insolvente afigura-se prejudicial.”  
Pelo exposto, sem prejuízo do determinado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, determino ao abrigo do disposto no artigo 272.º n.º 1 do Código de Processo Civil que os autos aguardem a prolação da sentença de verificação e graduação de créditos e a concretização do rateio parcial, após o que deverá ser a ré notificada para se pronunciar sobre a desistência da requerida perícia – artigo 474.º do Código de Processo Civil.”
6. Despacho que foi objeto de impugnação pela autora:
a) por cautela de patrocínio, através da arguição da sua nulidade perante o tribunal recorrido nos termos e com fundamento nos arts. 195º e 197º, nº 1 do CPC ex vi art. 148º do CIRE, alegando que o despacho impugnado viola o art. 8º, nº 1 do CIRE.
b) através do presente recurso, invocando a sua admissibilidade enquanto meio de reação contra ilegalidade ordenada por despacho e por encontrar fundamento legal expresso nos arts. 629º, nº 2, al. a) e 644º, nº 2, al. c) do CPC. Requereu a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que ordene o normal prosseguimento dos presentes autos até final, apresentando alegações que sintetizou nas seguintes conclusões:
“A. Vem o presente recurso interposto do despacho de 5.11.2020 que decretou a suspensão da instância, por acobertar nulidade processual e, ademais, por colher fundamento nos artigos 629.º/2, al. a) e 644.º/2, al. c), ambos do CPC.
B. No processo insolvencial, incluindo as ações apensas, mostra-se liminarmente proscrita a suspensão da instância, nos termos do artigo 8.º/1 CIRE (não se aplicando o CPC neste conspecto, por força da parte final do artigo 17º/1 do mesmo diploma e do princípio lex specialis…). Cfr. ac. RP 8.4.2014; proc. n.º 1168/12.9TBOAZ-N.
C. Destarte, o decretamento da suspensão da instância configura ato inválido que, por influir no exame (pronto e corretamente enquadrado) da lide e atentar contra a natureza urgente de toda a tramitação matricial e apendicular (artigo 9º CIRE), constitui nulidade processual, arguível e reparável mediante recurso.
D. Subsidiariamente e com os mesmos fundamentos normativos, o despacho sob reação enferma de erro de julgamento, que, de igual modo e ao abrigo do artigo 5.º/3 do CPC, importa, como se requer, a sua revogação hierárquica.
E. Ademais, o despacho em crise ofende o caso julgado formado pelo douto Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 30.6.2020, dado que, ao anular o despacho saneador–sentença e ordenar o prosseguimento dos autos, este Venerando Tribunal não ressalvou (porquanto não vislumbrou) motivo que pudesse obstar à pronta obediência da sua decisão pela 1.ª instância.   
F. O Tribunal a quo estriba-se em excerto de douto acórdão, proferido noutro processo, que constitui mero obiter dictum, destituído de finalidade decisória (tendo um fito de mero enquadramento e diversão argumentativa), não fundando o julgado nem surtindo impacto no dispositivo final que, com o devido respeito, vinculava, de imediato, a 1.ª instância.
G. Inexiste relação de prejudicialidade entre o presente apenso e o de reclamação de créditos. Este não constitui causa prejudicial daquele.
H. O que se visa com a lide é a recuperação do montante ilicitamente acionado pela R. junto do Banco garante para a massa insolvente, acumulando o valor desta.
I. O direito de resgate de tal quantia assiste à A. e, por conseguinte, deve ser-lhe permitido tramitar a lide onde o faz valer.
J. Atente-se que a constituição da garantia não foi gratuita para a Insolvente (tendo implicado a cativação do montante caucionado pelo Banco e o comissionamento). Ou seja, a massa insolvente já parte de uma situação de «prejuízo» patrimonial que ora pretende «debelar» ou minimizar.
K. A questão primeira dos presentes autos posiciona-se no quadro do contrato de empreitada celebrado entre a Insolvente e a R. (relação de valuta). Em consequência, está em causa, antes do mais, a responsabilidade contratual da cooperativa ante a A.
L. Por conseguinte, a presente ação beneficia o coletivo dos credores.
M. O valor recuperado será percebido pelo Banco nos termos do artigo 90.º CIRE.
N. O presente pleito é processualmente <independente> da verificação do passivo.
O. Como estamos defronte de ação que se destina a exponenciar o produto a ratear pelos credores, há que aplicar a lógica plasmada no artigo 158.º/1 CIRE: avançar “com prontidão” (sic) “independentemente da verificação do passivo”.
P. Considerando que a massa insolvente tem direito a ver reconhecida a pretensão formulada nos presentes autos – o que concretiza o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva – não são relevantes nem oponíveis aos credores, s.d.r., considerações relativas à gestão dos Tribunais, porquanto nos reportamos a direito análogo aos direitos, liberdades e garantias previstos no Titulo II da CRP. 
Q. Pelo exposto e o mais que V. Exas. doutamente suprirão, o despacho recorrido deve ser revogado e ordenado o imediato e normal prosseguimento da lide até final.
Só assim se fará JUSTIÇA!
 NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS:
• Artigos 17.º e 20.º/1 e 4 CRP;
• Artigo 6.º CEDH;
• Artigos 8.º/1, 9.º/1, 17.º/1; 90.º do CIRE;
• Artigos 2.º/2; 152.º/1, in fine; 272.º/1; 620.º/1 e 628.º do CPC;   
• Artigo 4.º/1 da LOSJ;
• Artigo 4.º/1 do EMJ.”
7. A ré-recorrida apresentou contra-alegações pedindo a improcedência o recurso, oferecendo as seguintes conclusões:
“A. No despacho recorrido, o Tribunal partiu dos seguintes pressupostos, impostos pelo acórdão anteriormente proferido no apenso BY: 
a. A necessidade de aferir a legitimidade da Recorrente em propor e fazer seguir as acções ordinárias propostas sob os apensos BY, CK e BX, face ao facto de os Bancos garantes e os restantes credores não terem contestado o pagamento das garantias à Recorrida;
b. A necessidade de ampliar a matéria de facto, para que a mesma passe a incluir os temas de prova relacionados com o incumprimento da prestação imputada à Recorrente pela Recorrida;
c. A necessidade de aferir da utilidade da apreciação do pedido de restituição das garantias face à existência, ou não, de valores a distribuir pelos credores comuns, posteriormente ao pagamento dos créditos com preferência no pagamento sobre aqueles.
B. É prejudicial ao julgamento da causa a aferição da utilidade superveniente do pedido nela formulado, bem como do interesse em agir da ora Recorrente.
C. Não havendo quaisquer quantias a repartir pelos credores comuns, não fará qualquer diferença o aumento ou diminuição da posição relativa de cada um deles face à eventual diminuição do valor global dos créditos reclamados caso, porventura, as acções contra a Recorrida viessem a ser julgadas procedentes.
D. Não foi o processo de insolvência que foi suspenso, mas sim o presente apenso, que constitui uma acção ordinária, apensa ao processo de insolvência por vontade e a pedido expresso da Recorrente.
E. Não existe uma inerência material das acções ordinárias julgadas nestes três apensos ao processo de insolvência, os quais poderiam ter continuado a correr no Tribunal Cível, onde já teriam sido certamente julgados, não fora a intenção da massa insolvente de acrescentar morosidade ao desenvolvimento do presente processo, que se traduziu num perdurar dos defeitos de construção, com consequências acrescidas pela passagem do tempo, e que aumentam o valor necessário para a reparação desses defeitos e das consequentes deficiências, directas e indirectas, causadas ao edifício. 
F. A suspensão é fundada na necessidade de se articularem dois (ou quatro) apensos do mesmo processo de insolvência, e não na de atender a qualquer evento estranho ao desenrolar do processo de insolvência, sendo necessária para evitar decisões contraditórias e diligencias inúteis no processo de insolvência.
G. É, portanto, uma suspensão com base na prejudicialidade de dois apensos, em que não se poderá entrar na apreciação do objecto processual dependente, qual seja o interesse em agir da Recorrente nos apensos, sem interferir na análise do objecto processual prejudicial, ou seja a determinação da quantia real a ratear pelos credores comuns.
H. Esta aferição de prejudicialidade deriva, antes de mais, e contrariamente ao alegado pela Recorrente, de uma imposição prescrita pelo próprio Tribunal da Relação, que ditou que se aferisse, em primeiro lugar, quais as disponibilidades financeiras reais da massa insolvente, posteriormente ao rateio da quantia arrecadada nos autos pelos credores privilegiados, para prover ao pagamento dos créditos reclamados pelos credores comuns, e determinou que essa aferição era essencial para se poder apreciar o interesse em agir da Recorrente no presente processo.
I. A Recorrente pretende impedir que esta aferição aconteça, porque, caso se determine que a quantia a distribuir é insuficiente para pagar aos credores comuns, como será provável, estas e outras duas acções serão arquivadas por inutilidade superveniente das respectivas lides.
J. Nos termos do plano de insolvência (página 12), os honorários dos mandatários da Recorrente são calculados percentualmente sobre as quantias recuperadas nos processos apensos ao processo de insolvência, com base num acordo de sucess fee de 5% sobre o valor total das garantias bancárias canceladas, saindo previamente dos valores arrecadados no presente processo, como despesas da massa insolvente, nos termos do artigo 51.º, alíneas b) e c), do CIRE.
K. A avaliação do pressuposto processual, de conhecimento oficioso, do interesse em agir da Recorrente, requer, neste caso concreto, e no entender do Tribunal da Relação, a prolação prévia da sentença de verificação e graduação de créditos, pelo que não existe violação do caso julgado formal estabelecido pelo acórdão por parte do despacho recorrido.
L. As providências cautelares foram julgadas improcedentes por ter sido judicialmente determinada a existência concreta de defeitos de construção da obra levada a cabo pela Recorrente, atempadamente reclamados pela Recorrida, bem como o reconhecimento dos mesmos na fase pós-obra, pela própria Recorrente, quer textualmente quer pela realização de reparações solicitadas pela Recorrida.
M. O facto de a Recorrente ter legitimidade para intentar a acção, ao poder questionar os pressupostos da garantia bancária, não significa que o possa fazer desacompanhada do Banco garante, havendo aqui um caso ilegitimidade activa, pois a massa insolvente não poderá tomar para si a defesa de um interesse alheio, qual seja o dos Bancos garantes, sem que estes o exerçam em nome próprio.
N. O presente apenso não visa a recuperação de um montante que ingressa na massa insolvente, pois o pedido formulado é o de que seja reembolsada a quantia paga pelo Banco garante para que a Recorrente depois lho devolva, pelo que a massa insolvente nunca iria receber, nem acumular tais quantias, pois as mesmas sempre se destinariam, caso, porventura, a Recorrente viesse a obter ganho de causa, aos próprios Bancos garantes.
O. A não ser assim, a Massa Insolvente estaria a locupletar-se com quantias que pertencem a terceiros, os Bancos emissores das garantias, o que também não é admissível.
P. Estes três apensos não se assemelham a acções de cobrança de créditos da insolvência, nem se enquadram nas acções admitidas pelo artigo 82.º, n.º 3, do CIRE. 
Q. Tendo já sido julgadas, e declaradas improcedentes, quatro providências cautelares sobre o pagamento das garantias bancárias, movidas pela Recorrente contra a Recorrida, em que se avaliaram concretamente os defeitos de construção e a garantia prestada sobre a obra, demonstra-se cabalmente o escrutínio judicial do acionamento das garantias já ocorreu, e com ganho de causa para a Recorrida, que provou ter legitimidade para o acionamento das garantias. 
R. Assim, resultam infundados os argumentos apresentados pela Recorrente, não tendo a mesma razão no recurso interposto e devendo o mesmo ser considerado improcedente, mantendo-se o despacho recorrido.”
8. Concomitantemente com o despacho de admissão do recurso, o tribunal recorrido apreciou e julgou improcedente a nulidade invocada, nos seguintes termos:
O recorrente invocou nulidade do despacho por violação do disposto no artigo 8.º e 9.º do CIRE, que proíbem a suspensão da instância do processo de insolvência e atribuem-lhe natureza urgente. Importa decidir nos termos do artigo 617.º n.º 1 do Código de Processo Civil. Quer a proibição da suspensão da instância, quer a atribuição de natureza urgente ao processo de insolvência visam o fim último previsto no artigo 1.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas: “satisfação dos credores pela (…) liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.” O despacho do tribunal visa este fim, pelo que não enferma da apontada nulidade.  Termos em que julgo improcedente a invocada nulidade.
II – OBJETO DO RECURSO
Nos termos dos arts. 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto da ação tal qual como surge configurado pelas partes e, dentro deste, pelas conclusões das alegações, de acordo com as questões por estas suscitadas. Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso e das que resultem prejudicadas pela solução da questão precedente, o recurso destina-se à apreciação da legalidade da decisão recorrida, e não ao reexame da causa ou à criação de soluções sobre questões não suscitadas e/ou não apreciadas pelo tribunal a quo e que, por isso, se apresentam como novas. Acresce que o tribunal não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações das partes, mas apenas das questões de facto e/ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos da causa, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto.
Assim, considerando o teor da decisão recorrida e as conclusões enunciadas pela recorrente, cumpre apreciar da correção da suspensão da instância por aquela decretada, o que passa pela apreciação das questões que constituem a causa de pedir do recurso, e pela ordem lógico processual das mesmas:
1 – Violação do caso julgado formado por acórdão desta Relação proferido nos autos em 30.06.2020;
2 – Violação do art. 8º, nº 1 do CIRE, por inadmissibilidade legal da suspensão da instância nestes autos;
3 – Inexistência de fundamento para a suspensão da instância decretada nos termos do art. 272º, nº 1 do CPC.
III – FUNDAMENTAÇÃO
A) De Facto
Os elementos de facto relevantes para apreciação do recurso constam descritos no relatório supra, para o qual se remete.
B) De Direito
1 - Da violação do caso julgado
Como é sabido, as decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recurso e transitam em julgado logo que não sejam suscetíveis de recurso ordinário ou de reclamação, produzindo um efeito de preclusão definitiva de novo e ulterior conhecimento judicial sobre a mesma questão (cfr. arts. 627º, nº 1 e 628º do CPC). Quando assim sucede, prevê o art. 619º, nº 1 do CPC que Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º. O art. 620º, nº 1 distingue o caso julgado formal, que incide sobre As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual, e que passam a ter força obrigatória dentro do processo.
O caso julgado traduz a força obrigatória da estabilidade das sentenças ou dos despachos que recaiam sobre a relação controvertida objeto da ação ou sobre a relação processual, e tem como finalidade imediata evitar que em novo processo – por referência ao caso julgado material - ou no mesmo processo – por referência ao caso julgado formal -, o juiz possa validamente apreciar e decidir, de modo diverso, o direito, situação ou posição jurídicas já concretamente definidas por anterior decisão, vinculando o juiz à decisão proferida em primeira instância ou em via de recurso. Pressupõe assim a repetição de uma decisão sobre uma mesma questão, e visa obstar a decisões concretamente incompatíveis, produzindo um efeito de preclusão definitiva de novo e ulterior conhecimento judicial sobre a mesma questão (cfr. art. 580º, nº 2 do CPC). Mais concretamente, o caso julgado formal respeita a decisões sobre a relação jurídica processual proferidas no mesmo processo, conferindo-lhe estabilidade instrumental em relação à finalidade a que está adstrito, restrita ao processo onde foi proferida, ao qual se circunscreve aquele fenómeno da preclusão de nova decisão sobre a mesma questão.
O caso julgado manifesta-se em duas vertentes ou efeitos essenciais: um, de cariz negativo, que impede que o tribunal que a proferiu se volte a pronunciar sobre a concreta questão já decidida nos autos (sem prejuízo das alterações admitidas nos termos do art. 613º, nº 2 do CPC, restritas à retificação de erros materiais, ao suprimento de nulidades e à reforma da sentença, nos termos consagrados nos artigos 614º a 616º do CPC); outro, de cariz positivo, a autoridade de caso julgado, que vincula o tribunal à decisão anteriormente proferida. Sob a epígrafe Casos julgados contraditórios prevê o art. 625º, nº 1 do CPC que Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar. Acrescenta o nº 2 que É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.
Também é questão consensual que os limites do caso julgado são traçados pela coexistência da tríplice identidade dos elementos identificadores da relação ou situação jurídica, processual ou material, definida pela decisão: sujeitos; objeto ou pedido; e fonte, título constitutivo ou causa de pedir.  Nos termos do art. 581º, nº 2, 3 e 4 do CPC há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico, e há identidade de causa de pedir quando os factos jurídicos que fundamentam a pretensão são os mesmos. Conforme comentário de Miguel Teixeira de Sousa ao acórdão de RE de 11.05.2017[1], o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos, e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.
Alega a recorrente que, ao decretar a suspensão da instância, o tribunal recorrido ofendeu o caso julgado formado pelo dispositivo do acórdão de 30.06.2020 desta Relação que, anulando o saneador sentença, ordenou o prosseguimento dos autos para realização do julgamento sem ressalvar motivo que a tanto pudesse obstar, mais alegando que aquele abrange causas preexistentes que, ainda que não tenham sido apreciadas pela Relação, podiam tê-lo sido, ou por serem de conhecimento oficioso, ou pela via da ampliação do objeto de recurso, que no caso não foi requerida pela parte contrária.
Cumpre antes de mais consignar que, contrariamente ao que a recorrente parece pressupor (ao alegar que o caso julgado formado por decisão do tribunal superior abrange eventuais causas que, sendo preexistentes ao julgamento do recurso, pudessem ter sido apreciadas pelo Tribunal de Recurso e não foram), à parte a questão da fixação do efeito do recurso (suspensivo ou devolutivo), os poderes ou âmbito de conhecimento da Relação não abrangem a possibilidade de ordenar a suspensão da instância do processo do qual emerge o recurso que é submetido à sua apreciação; exceto se essa constituir a questão objeto da apreciação operada pela decisão recorrida e, assim, questão objeto do recurso, o que não era o caso no recurso que a recorrente interpôs do saneador-sentença proferido nos autos.
No demais, ainda que comunguem de iguais pressupostos e resultado, mais do que uma questão de caso julgado os fundamentos do recurso apontam para a questão do dever de obediência dos juízes às decisões dos tribunais superiores imposta pelos arts. 152º, nº 1 do CPC, 4º, nº 1 da Lei nº 62/2013 de 26.08 (LOSJ), e 4º, nº 1 da Lei nº 21/85 de 30.07 (EMJ); desde logo porque só entre decisões proferidas por tribunais da mesma instância pode sobrevir uma situação de conflito entre decisões, sendo que é apenas esta que o instituto do caso julgado se destina a regular. Adianta-se porém que nem um nem outro surgem ofendidos pelo despacho recorrido.
Com efeito, ao ser julgado procedente, o pedido recursivo que a recorrente formulou pela anterior apelação que nestes autos deduziu deu origem a decisão que, anulando o saneador-sentença, determinou o prosseguimento da ação para ampliação da matéria de facto e submissão da mesma a instrução nos termos determinados por acórdão de 30.06.2020. Mas tal pedido teve como fundamento ou causa de pedir, não a ilegalidade ou ausência de fundamento para a suspensão da instância da ação – que por aquela decisão sequer foi equacionada, apreciada ou decidida -, mas sim a insuficiência dos factos que foram considerados pelo tribunal recorrido para conhecer do mérito dos fundamentos da ação e da defesa, a par com a existência de factos controvertidos alegados pelas partes e necessários à boa decisão da causa. Foi com este fundamento ou por referência a esta vicissitude processual - e não com fundamento na ilegalidade ou na ausência de causa para suspensão da instância - que a Relação determinou o prosseguimento dos autos. Decisão/determinação que não interfere nem contende com os poderes de gestão e de tramitação do processo, que permanecem inalterados na competência da 1ª instância, nem sequer com a liberdade de enquadramento jurídico dos factos a operar pelo juiz do processo se ou quando conhecer do mérito da ação.
Considerando a questão que foi objeto de apreciação em sede daquele recurso, a autoridade do caso julgado formado pelo acórdão que nele foi proferido e a obediência que ao mesmo é devida pelo tribunal recorrido apenas vedou ao juiz a quo a possibilidade de, novamente, conhecer de mérito da ação sem prévia produção da prova sobre factos alegados que permanecem controvertidos, e sem prévia discussão da causa em sede de audiência de julgamento. Ora, pelo despacho recorrido a 1ª instância não conheceu do mérito da ação, nem tão pouco determinou que dele iria conhecer sem prévia instrução da causa; não contrariou o que foi determinado pelo acórdão da Relação que, em conformidade com os limites objetivos do recurso (definidos pelas conclusões de recurso e, estas, pelas questões objeto da sentença recorrida), se limitou a transmitir ao tribunal recorrido que, para conhecer do mérito da causa, se lhe impõe dar prévio cumprimento à fase da instrução que a tanto o habilite em matéria do substrato factual para o efeito necessário; ou, dito pela negativa, limitou-se a proibir ao tribunal recorrido o conhecimento de mérito da ação sem o prévio cumprimento da fase da instrução.
O que vale por afirmar a total ausência de coincidência entre as questões objeto do acórdão de 30.06.2020 e a questão objeto do despacho ora sob censura e, assim, concluir pela ausência dos pressupostos da violação do caso julgado ou do dever de obediência hierárquica a decisão superior que, de resto, consta expressamente ressalvado no dispositivo da decisão recorrida (…sem prejuízo do determinado pelo Tribunal da Relação de Lisboa…).
Com o que improcede a invocada violação do caso julgado e da obediência devida às decisões dos tribunais superiores.
2 – Da violação do art. 8º, nº 1 do CIRE
2.1. Cumpre antes de mais referir que, a par com a nulidade que por cautela de patrocínio arguiu junto do tribunal recorrido nos termos dos arts. 195º e ss. do CPC, a recorrente autonomizou e erigiu a questão da (in)admissibilidade legal da suspensão da instância da presente ação a fundamento da censura que dirige ao julgamento do despacho recorrido, despacho que esgotou o poder jurisdicional do tribunal a quo quanto à matéria por aquele apreciada, vinculando-o à decisão que proferiu (cfr. art. 613º, nº 1 do CPC). O que vale por dizer que só pela via do recurso que dirigiu ao sentido e fundamentos daquela decisão esta pode ser sindicada e modificada, e que aqui apenas cumpre apreciar dos fundamentos do recurso e não da arguição de nulidade processual, para cujo conhecimento, de resto, falecia competência ao tribunal de recurso, mantendo-se o brocardo que dita que “dos despachos reclama-se, contra as nulidades reclama-se” (cfr. arts. 200º e 627º do CPC).
2.2. A questão da legalidade/admissibilidade da decretada suspensão da instância prende-se com o facto de o ter sido em ação de processo comum tramitada por apenso a processo especial de insolvência, vicissitude processual que, pela necessidade de compatibilização da diversidade do regime processual que regula cada uma das ações – o geral, previsto pelo CPC, e o especial, previsto pelo CIRE -, impõe a apreciação da referida questão por referência à compreensão da conexão desta ação com o processo por apenso ao qual é tramitada e, esta, por referência à finalidade do processo principal e à respetiva ordenação e tramitação, processual e sistematicamente conduzidas a esse mesmo fim.
Prevê o art. 1º, nº 1 do CIRE que O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (subl. nosso).
Conforme resulta dos termos do despacho sob censura e a consulta dos autos confirma, o processo de insolvência de que estes são apenso prosseguiram para apreensão e liquidação da massa insolvente. A partir da declaração da insolvência o processo de insolvência liquidatário traduz-se numa execução universal e concursal que (conforme matriz inicialmente prevista pelo CIRE) tem como finalidade primeira a satisfação dos interesses patrimoniais do coletivo dos credores através da liquidação do património do devedor para afetação do respetivo produto ao pagamento dos créditos sobre a insolvência. Execução universal porque, conforme definição de massa insolvente que consta do art. 46º do CIRE, abrange todo o património penhorável do devedor à data da declaração da insolvência e os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo, que passa a constituir massa patrimonial sucedânea da sociedade dissolvida pela declaração da insolvência e entidade jurídica distinta desta, destinada e afeta à satisfação dos créditos sobre a insolvência depois de pagas as suas próprias dívidas (cfr. arts. 172º, nº 1 e 219º do CIRE). Concursal porque, conforme arts. 90º, 128º e 146º do CIRE, visando a liquidação do passivo global do devedor, convoca todos os credores do devedor para concorrerem ao produto que resulte daquela liquidação, na medida das forças do património do devedor e obedecendo a uma ordem de pagamentos judicialmente determinada através de decisão de verificação e de graduação dos créditos estabelecida em função da natureza de cada um deles.
Mas, na sua fase inicial - aquela que até à declaração da insolvência se caracteriza como processo inter partes de jurisdição contenciosa e natureza declarativa -, o processo de insolvência mais assume vestes de procedimento cautelar pois, para além das medidas cautelares que, sendo requeridas, podem ser decretadas até que seja apreciado o pedido (cfr. art. 31º do CIRE), proferida sentença de declaração da insolvência esta constitui título executivo para a imediata apreensão dos bens integrantes da massa insolvente (cfr. art. 149º), desempenhando simultaneamente a função de providência conservatória do património do devedor para que possa ser atingida a finalidade do processo assinalada no art. 1º. Com esse mesmo desiderato, de preservação, definição e estabilização do acervo da massa insolvente - que constitui garantia patrimonial do coletivo dos credores -, a prolação de sentença de declaração da insolvência mais fundamenta o imediato poder-dever de sustação de todas as diligências executivas ou providências requeridas por credores da insolvência que atinjam os bens da massa (art. 88 nº1 do CIRE), e de apensação, ao processo de insolvência, de todas as ações que tenham por objeto questões relativas a bens ou direitos que integram a massa insolvente (art. 85º do CIRE).
A finalidade da insolvência reflete-se na complexidade do processo que, entendido em termos amplos, abrange processo principal e apensos especial e instrumentalmente previstos como meios processuais para o cumprimento e/ou acompanhamento e fiscalização do cumprimento daquele objetivo – seja através da recuperação, seja da liquidação da devedora - como o são os apensos de apreensão de bens e de liquidação[2], e de verificação e graduação de créditos -, em interação recíproca de uns e outros ou constituindo uns pressupostos da atividade processual a desenvolver noutros ou no processo principal[3], [e]nvolvendo múltiplas atividades repartidas pela sua fase declarativa (a inicial, em que é permitida a oposição) e a executiva (Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, 2009, p. 19)[4]. Com essa complexidade, trata-se de processo especial previsto pelo CIRE que visa a composição de múltiplos interesses (publico e privados, do devedor e dos credores, e de cada um destes) e que, conforme prevê o art. 549º do CPC, é regulado em primeira linha pelas disposições próprias daquele diploma e, subsidiariamente, nos casos omissos, [p]elo Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código.
É neste contexto jurídico-processual e teleológico que pragmaticamente se impõe enquadrar a ação declarativa de processo comum instaurada e tramitada por apenso a processo de insolvência, e a questão da admissibilidade da suspensão da respetiva instância.
2.3. O tribunal recorrido decretou a suspensão da instância da ação declarativa em apenso (CK) até à concretização do rateio parcial (a realizar no processo principal), ancorando-se legalmente no art. 272º, nº 1 do CPC. Prevê esta norma que O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado. Previsão que contrasta com o art. 8º, nº 1 do CIRE que, sob a epígrafe Suspensão da instância e prejudicialidade, prevê que A instância do processo de insolvência não é passível de suspensão, excepto nos casos expressamente previstos neste Código. Argumenta a recorrente que esta proibição abrange as ações apensas ao processo de insolvência e que, nesse pressuposto, tratando-se de lei especial, afasta a aplicação subsidiária do CPC prevista pelo art. 17º, nº 1 do CPC. Entendimento que colhe conforto jurisprudencial no acórdão da Relação do Porto de 08.04.2014[5] citado pela recorrente, mas do qual nos permitimos discordar e afastar por não vislumbrarmos - no teor do art. 8º, nº 1 e na conjugação sistemática e prática do CIRE, informado pelos princípios da auto-suficiência, da celeridade do processo, do poder discricionário (mas não arbitrário) do Administrador da Insolvência na gestão e otimização da massa insolvente - elementos que permitam interpretar e estender o âmbito de aplicação daquela norma para além do processo principal de insolvência, conforme se passa a justificar.
a) De acordo com os princípios gerais de interpretação da lei previstos pelo art. 9º do Código Civil, a letra da lei é o primeiro e o ultimo elemento a considerar posto que, ainda que carecida de integração pelos elementos histórico e sistemático da norma [n]ão pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
i) Na tarefa interpretativa do âmbito objetivo da proibição prevista pelo art. 8º, nº 1, para além da respetiva epígrafe, urge então atender ao teor integral do preceito e da regulação por ele prevista, cujos termos, para além do nº 1 acima citado, se transcrevem (com sublinhados nossos):
2 - Sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 264.º, o tribunal ordena a suspensão da instância se contra o mesmo devedor correr processo de insolvência instaurado por outro requerente cuja petição inicial tenha primeiramente dado entrada em juízo.
3 - A pendência da outra causa deixa de se considerar prejudicial se o pedido for indeferido, independentemente do trânsito em julgado da decisão.
4 - Declarada a insolvência no âmbito de certo processo, deve a instância ser suspensa em quaisquer outros processos de insolvência que corram contra o mesmo devedor e considerar-se extinta com o trânsito em julgado da sentença, independentemente da prioridade temporal das entradas em juízo das petições iniciais.
Do teor literal da regra prevista pelo nº 1 resulta manifesto que a esta reporta o primeiro segmento da epígrafe do preceito – suspensão da instância.  Das regras previstas pelos nºs 2 a 4 é manifesto que estas reportam ao segundo segmento – prejudicialidade - e pretendem regular situações de coexistência de dois (ou mais) pedidos de insolvência até ao trânsito em julgado da primeira sentença de declaração de insolvência que vier a ser proferida ou, independentemente do trânsito, até que um dos pedidos seja indeferido; ou seja, provêm para situações de coexistência de dois ou mais processos – principais - de insolvência. Assim sendo, não se nos afigura curial pressupor que, na elaboração/redação do preceito, através da mesma expressão – processo de insolvência - o legislador tenha pretendido designar realidades distintas: no nº 1, para abranger processo principal e todos os seus apensos; nos nºs 2 e 4, para referir apenas o processo principal, e, igualmente, no nº 3, pois que este refere e pressupõe apenas pedidos de insolvência pendentes de apreciação e até à decisão de indeferimento de um deles. De resto, na ausência de especificação, o que surge mais consentâneo com a lógica semântica do teor da epígrafe é considerar que as duas questões por ela referenciadas – suspensão e prejudicialidade – reportam ao mesmo e único âmbito processual – o processo principal.
ii) Alcançamos a mesma conclusão no confronto com o teor literal do art. 9º. Com efeito, ainda que o art. 8º conste inserido nas Disposições Introdutórias que constituem o Título I do CIRE - e não no Título II dedicado e epigrafado de Declaração da situação de insolvência –, o certo é que, imediatamente a seguir, na redação do art. 9º, nº 1, a par com a menção a processo de insolvência o legislador expressamente acrescentou ‘incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos’. Ora, se a intenção do legislador era conferir ao art. 8º, nº 1 a mesma abrangência da regra prevista pelo art. 9º, ficariam agora por justificar as suas distintas redações. Dito de outro modo, não se nos afigura curial pressupor que, na elaboração/redação destes preceitos, através da utilização de menções distintas – num, apenas processo de insolvência, e noutro, processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos - o legislador tenha pretendido designar realidades iguais, ou seja, num e outro caso e independentemente da diferenciação operada nas redações, referir-se ao processo principal da insolvência e a todos os seus apensos. Se, conforme prevê o art. 9º, nº 3 do CC, 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador (…) soube exprimir o seu pensamento em termos adequados., teremos que conceder que ao utilizar distintas referências e/ou terminologias em duas normas sequenciais do mesmo diploma, o legislador não tinha outra intenção senão a de designar realidades distintas.
b) No âmbito das disposições gerais do CPC do art. 269º, nº 1 constam previstas as causas de suspensão da instância:
a) Quando falecer ou se extinguir alguma das partes, sem prejuízo do disposto no artigo 162.º do Código das Sociedades Comerciais;
b) Nos processos em que é obrigatória a constituição de advogado, quando este falecer ou ficar absolutamente impossibilitado de exercer o mandato. Nos outros processos, quando falecer ou se impossibilitar o representante legal do incapaz, salvo se houver mandatário judicial constituído;
c) Quando o tribunal ordenar a suspensão ou houver acordo das partes;
d) Nos outros casos em que a lei o determinar especialmente.
Relativamente à primeira causa – falecimento de uma das partes - o CIRE fornece solução para os termos do prosseguimento dos autos em caso de falecimento do devedor. Conforme dispõe o art. 10º, nº 1, o processo Passa a correr contra a herança aberta por morte do devedor, que se manterá até ao encerramento do processo, e Fica suspenso pelo prazo, não prorrogável, de cinco dias, contados desde a data em que tenha ocorrido o óbito. Conforme anotado por Menezes Leitão, O facto de o processo continuar a correr contra a herança aberta por morte do devedor implica que não haja lugar a habilitação de herdeiros[6], o que permite pressupor que essa será a restrição subjacente e legalmente pretendida com o art. 10º - afastar o processamento do incidente de habilitação de herdeiros do devedor e a inerente suspensão do processo que, precisamente, tem como objeto a liquidação de património para satisfação dos créditos por ele garantidos, função que a herança continua a desempenhar.
Por não ser esse o contexto processual do objeto do presente recurso, não cumpre aqui questionar da bondade constitucional da inadmissibilidade legal, na fase declarativa inicial e inter partes do processo da insolvência, da suspensão do processo para permitir a dita habilitação e o subsequente prosseguimento da discussão do pedido de insolvência pelos sucessores de qualquer uma das partes (e o que, por referência aos direitos à defesa e à possibilidade de produção de prova ínsitos ao princípio constitucional do acesso das partes a processo equitativo e em condições de igualdade de armas, nos induz a questionar se a norma está pensada para esta fase do processo na qual, de resto, pode ser contestada a qualidade de devedor pressuposta pelo art. 10º). Mas já surge pertinente referir que existem ações tramitadas por apenso ao processo de insolvência nas quais o devedor não figura como parte (ativa ou passiva), como por exemplo, ação para impugnação de resolução extra-judicial de negócio operada pelo Administrador da Insolvência, ou ação instaurada pela massa insolvente contra terceiros, como sucede ser o caso daquela a que respeita o presente recurso. Ora, o CIRE não prevê qualquer solução para o caso de na pendência da ação falecer pessoa demandada pela massa insolvente (para, por exemplo, sobre aquela ver reconhecido direito de crédito em benefício da massa), sendo certo que - sem violação dos direitos ao contraditório, à produção da prova e à possibilidade de recurso, em suma, sem violação do direito constitucional do acesso equitativo à justiça - não vislumbramos como constitucionalmente admissível a possibilidade de o processo prosseguir sem que aos legais herdeiros seja dada a possibilidade de se habilitarem para em substituição do réu falecido na pendência da ação prosseguirem e discutirem os seus termos. Tão pouco consta do CIRE qualquer especial solução para o caso de na pendência da ação falecer o advogado constituído por uma das partes ou de aquele ficar impossibilitado de exercer o mandato, sendo certo que no mínimo deverá ser dado cumprimento à notificação prevista pelo disposto no art. 276º, nº 3 do CPC e com os efeitos aí previstos, mas sem preclusão dos prazos entretanto em curso, o que impõe seja reconhecida a sua suspensão. Conforme consta reiterado no acórdão do Tribunal Constitucional nº 248/2012 (citado pela recorrente), É certo que a natural especificidade do processo e a necessidade de celeridade não podem constitucionalmente justificar toda e qualquer solução legislativa ditada com tais objetivos. (…). Em suma, como se afirmou no já citado Acórdão n.º 178/2007, as exigências de celeridade não podem ser de tal ordem que se revelem desproporcionais e violadoras do direito de acesso aos tribunais: "O direito de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos e obtenção de uma sua tutela jurisdicional, plena e efetiva, constitui um direito ou garantia fundamental que se encontra consagrada no artigo 20.º da Constituição. Mas daí não decorre que seja um direito absoluto, de uso incondicionado. Desde logo, ele consente as restrições que caibam nos parâmetros estabelecidos nos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da CRP. Por outro lado, decorre da própria previsão constitucional que a tutela jurisdicional dos direitos e interesses legalmente protegidos seja efetuada "mediante um processo equitativo" e cujos procedimentos possibilitem uma decisão em prazo razoável e sejam "caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos" que esse direito, além do mais, está sujeito a regras ou condicionamentos procedimentais e a prazos razoáveis de ação ou de recurso.//Ponto é que esses condicionamentos, pressupostos e prazos não se revelem desnecessários, desadequados, irrazoáveis ou arbitrários, e que não diminuam a extensão e o alcance do conteúdo desse direito fundamental de acesso aos tribunais".//Aceitando-se, como princípio, que no processo de insolvência são justificáveis, em nome da celeridade, "desvios" em relação ao processo comum, a questão reside em saber se o "desvio" em causa é constitucionalmente tolerável, face ao princípio consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
De realçar que na apreciação e conclusão pela constitucionalidade do art. 8º, nº 1 levada a cabo pelo citado acórdão do Tribunal Constitucional não estava em causa a suspensão da instância de ação apensa, mas sim do processo principal de insolvência na sua fase declarativa inicial e com fundamento na pendência de causa que para o efeito foi considerada prejudicial, correspondente a ação declarativa pendente num outro tribunal para reconhecimento do direito de crédito invocado pelos requerentes para justificar a sua legitimidade para o pedido de insolvência. Fundamento que colidia com o princípio da plenitude ou auto-suficiência do processo de insolvência para apreciação de todas as questões nele suscitadas (sem sacrifício – pelo menos desproporcional às razões subjacentes à especial celeridade do processo de insolvência - dos direitos ao contraditório, à defesa e à prova, que no processo de insolvência também podem ser exercidos, conforme concluiu o Tribunal Constitucional) pelo que, independentemente da existência ou não da proibição legal prevista pelo art. 8º, nº 1, não colheria suporte legal para a decretada suspensão da instância do processo de insolvência com aquele fundamento[7].
Às descritas situações - de óbito de uma das partes ou do respetivo advogado na fase inicial do processo prévia à declaração da insolvência -, acrescem ações que correm por apenso ao processo de insolvência e cujo objeto estão numa relação de prejudicialidade, entre si ou por referência a faculdades, prorrogativas ou limitações que emergem natural ou juridicamente do contexto da insolvência,  a suscitarem e a demandarem o efetivo exercício dos poderes de gestão processual previstos pelo art. 6º do CPC. Será o caso da coexistência de uma ação para verificação ulterior de crédito prevista pelo art. 146º (VUC), com uma ação instaurada pelo mesmo autor para impugnação da resolução extra-judicial a que alude o art. 125º tendo como objeto o contrato que constitui a causa de pedir daquela ação de VUC. Não se admitindo que, a requerimento ou oficiosamente, a instância daquela ação possa ser suspensa com fundamento em causa prejudicial e até ao trânsito em julgado da decisão que venha a ser proferida na ação para impugnação da resolução, o resultado (de improcedência da ação) que nesta a massa insolvente venha eventualmente a obter em seu benefício ficará votado à inutilidade (total ou parcialmente) se, entretanto, a ação de VUC foi previamente julgada procedente com fundamento nos efeitos positivos desse mesmo contrato e o seu autor obteve decisão de verificação de crédito sobre a insolvência. Poderá também ser o caso de uma ação de VUC instaurada para reconhecimento de crédito emergente do incumprimento de contrato relativamente ao qual o Administrador da Insolvência se limite a declarar estar em processo de opção entre o cumprimento ou a recusa de cumprimento desse mesmo contrato, com os efeitos previstos pelo art. 102º, nº 1 (mas sem prejuízo do disposto no nº 2).
Cumpre aqui assinalar que na situação objeto da decisão que foi objeto do recurso apreciado pelo acórdão da Relação do Porto de 08.04.2014 citado pela recorrente, o que estava em causa era a pendência, em simultâneo, de uma ação para separação e restituição da massa insolvente de bens cuja propriedade havia sido transferida para as autoras por efeito de contrato resolvido pelo Administrador da Insolvência, com ação para impugnação dessa mesma resolução por aquelas instaurada. Contexto que permite concluir que, à data da instauração da ação de restituição, os bens por ela reivindicados não eram propriedade da insolvente e, como tal, não integravam a massa patrimonial constituída com a declaração da insolvência pois, só com o julgamento da improcedência da impugnação (ou com o decurso do prazo para a deduzir), a resolução extra-judicial adquire definitividade e produz os efeitos por ela visados, de restituição à massa dos bens que dela foram indevidamente retirados através dos negócios resolvidos, nos termos previstos pelo art. 126º, nº 1; o que vale por dizer que, até à produção em definitivo dos efeitos da resolução, falecia título à massa insolvente para proceder à apreensão daqueles bens para a massa insolvente pelo que, ainda que a ação de restituição dos bens viesse a ser julgada procedente com fundamento nos efeitos positivos daquele contrato, a posterior improcedência da impugnação da resolução operava em definitivo uma modificação na ordem jurídica apta a legitimar a subsequente apreensão daqueles bens para a massa insolvente. Porém, a questão que naquele recurso foi submetida a apreciação não foi a da indevida apreensão dos bens para a massa insolvente, mas sim a da (indevida) suspensão da instância da ação onde aquela questão foi suscitada que, assim, correspondia à única matéria que o tribunal de recurso podia conhecer.
c) A preocupação do legislador em excluir o processo de insolvência do regime das regras gerais da suspensão da instância surge justificada pela necessidade de obstar ao alongar do decurso do processo pelas mesmas razões subjacentes à sua qualificação como processo urgente. Desde logo, na fase inicial do processo, o efeito suspensivo que o pedido de insolvência produz sobre pedidos de insolvência posteriormente apresentados contra o mesmo devedor, cujo conhecimento fica paralisado até que o primeiro seja objeto de decisão, e a necessidade de com brevidade acautelar e preservar a estabilização do acervo patrimonial e interesses patrimoniais da massa insolvente através da apreensão dos bens e direitos que integram o património do devedor, e o que é possível e devido ser imediatamente cumprido no seguimento da declaração da insolvência. Desde o seu início até ao seu encerramento, o efeito estigmatizante e perturbador da pendência de processo de insolvência, pela incerteza da situação jurídica das relações patrimoniais estabelecidas e das a estabelecer entre o devedor e terceiros, e que torna premente o conhecimento do pedido de insolvência com a maior brevidade possível, e a definição da situação que do processo irá resultar para o devedor, para os seus credores, e demais stakeholders. Nas insolvências singulares acresce a urgência do devedor na sua exoneração como corolário do fim por ela visado - o designado freshstart.
Tratando-se - na expressão utilizada pelo Tribunal Constitucional - de um ‘desvio’ em relação ao regime regra do processo comum, somos porém de entender que a proibição da suspensão da instância qua tale prevista pelo art. 8º, nº 1 deve restringir-se ao processo principal e aos incidentes e apensos especialmente previstos pela lei para direta e positivamente cumprirem o objetivo da insolvência (como o são a apreensão de bens, a liquidação, a exoneração, e o pagamento aos credores). Note-se que a partir da declaração da insolvência sempre deixaria de estar na disponibilidade do devedor e do requerente da insolvência (ou de qualquer outro credor) a possibilidade de, por acordo, suspenderem a instância do processo da insolvência (ou de qualquer um dos apensos de apreensão, de liquidação, de verificação de créditos, de prestação de contas, ou qualquer outro incidente) com fundamento no art. 272º, nº 4 do CPC, pois que o acordo exige-se de todas as partes e, a partir da declaração da insolvência, o processo perde a natureza inter partes que inicialmente o caracteriza para passar a ser o processo de todos os credores da insolvência, que coletivamente são representados pelo Administrador da Insolvência, simultaneamente representante legal da massa insolvente. Ou seja, deixa de subsistir o perigo de o devedor, por si ou em concertação com outro ou outros sujeitos com intervenção em qualquer um dos seus incidentes ou ações apensas, retardarem o cumprimento da finalidade da insolvência através da suspensão da instância. Mas se tal possibilidade deixa de estar na disponibilidade do devedor e/ou de algum outro sujeito do processo da insolvência (lato senso), não deverá inviabilizar a possibilidade legal de o Administrador da Insolvência, em representação da massa insolvente e, por exemplo, o autor de uma ação de impugnação de resolução, verem deferida a suspensão da instância por motivo justificado, designadamente, por estarem em vias de chegar a acordo – ou diligenciar pela obtenção do mesmo – se essa via, de acordo com os critérios de gestão do processo previstos pelo art. 6º do CPC da banda do juiz, e da gestão dos interesses da massa insolvente da banda do Administrador da Insolvência, for a mais adequada à simplificação e agilização processual, por um lado, e à tutela ou maximização da massa insolvente, por outro. Muito menos se deverá entender como impossibilidade de o juiz sustar oficiosamente na realização ou na consumação de determinada atividade (processual ou não) num determinado apenso ou incidente com fundamento em questão ou causa prejudicial emergente do regime e características específicas da insolvência – que no cumprimento do seu objeto se caracteriza pelo cumprimento de atividades materialmente distintas, mas entre si numa lógica natural e/ou legal sequencial e de sucessiva dependência - ou do objeto de uma outra ação comum a ela apensa, conforme supra se exemplificou. Esse poder-dever do juiz - de gestão processual - não pode considerar-se arredado pelo art. 8º, nº 1, sob pena de serem prosseguidas atividades estéreis ou, inclusive, o risco maior de produção de resultados insanavelmente contraditórios entre si, com prejuízo para os interesses tutelados pela insolvência. [G]estão processual supõe a utilização, com justiça e bom senso, de todos os instrumentos à disposição dos juízes de forma a alcançar uma resolução justa, rápida e não dispendiosa do litígio[8]. Nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Sousa[9], (…) cabe ao juiz dirigir ativamente o processo para que sejam alcançados os seus objetivos fundamentais com celeridade e eficácia, obstar ao uso ilegítimo dos mecanismos processuais e evitar ou sancionar comportamentos que se revelem dilatórios. (…) Se é verdade que a natureza litigiosa do processo dificulta a prossecução de tais objetivos, não é menos certo que a consagração do dever de gestão processual se impõe ao juiz em primeiro lugar e deve por este ser refletido na tramitação processual por forma a aproximar, tanto quanto possível, o resultado alcançado dos propósitos do legislador.  
Sem embargo de, conforme resulta do já exposto, entendermos como inaplicável aos incidentes do processo de insolvência e ações apensas a possibilidade da suspensão da instância por efeito automático do acordo de partes nos termos do art. 279º, nº 4 do CPC, pelo que, ainda que as partes a requeiram com tal fundamento, deverá ser sempre objeto de apreciação judicial e deferido ou indeferido com fundamento no 272º, nº 1, ou seja, com fundamento em causa prejudicial ou outro motivo justificado, no qual, entre outros, se integra a intenção e possibilidade séria de as partes obterem acordo. Com efeito, a aplicação subsidiária da lei processual comum prevista pelo art. 17º do CPC cessa se produzir resultado contrário às disposições, características, princípios e finalidade do processo da insolvência, como urge suceder com o direito potestativo das partes à suspensão da instância nos termos reconhecidos pelo art. 279º, nº 4 do CPC, no que se impõe considerar que a partir da declaração da insolvência todos os credores assumem a qualidade de interessados diretos no resultado de todos os incidentes e de todos os apensos do processo de insolvência pois, a par com os interesses do devedor (mitigados se se tratar de insolvência liquidatária de pessoa coletiva) são sem dúvida os interesses daqueles que são (positiva ou negativamente) afetados com o resultado de qualquer incidente ou de qualquer ação tramitada por apenso, cujo objeto, pela natureza dos requisitos da competência por conexão, deverá deter a virtualidade de em concreto interferir, ou com o acervo da massa insolvente, ou com o passivo que possa vir a recair sobre a massa, com consequente afetação, por uma ou outra via, das disponibilidades da massa para satisfação dos credores da insolvência. Assim sendo, a sustação automática de qualquer incidente da insolvência ou ação tramitada por apenso nos termos e com fundamento no art. 279º, nº 4 do CPC só poderia equacionar-se mediante o acordo de todos os interessados no processo da insolvência (devedor, administrador da insolvência, e credores). Ainda assim, sempre se imporia conjugar aquela faculdade, de suspensão automática da instância por acordo das partes/interessados, com o princípio da celeridade que informa o processo de insolvência e todos os seus incidentes e apensos, principio cuja ratio legis lhes retira a disponibilidade sobre a instância dos incidentes e das ações apensas do processo da insolvência.
Termos em que concluímos pela admissibilidade da suspensão da instância decretada na ação pelo despacho recorrido com fundamento no art. 272º, nº 1 do CPC.
3 – Dos fundamentos para a suspensão da instância decretada pela decisão recorrida
Contra o mérito dos fundamentos da suspensão da instância decretada pelo despacho recorrido, e para simultânea justificação do seu interesse em agir na prossecução dos autos – portanto, independentemente do resultado do rateio a realizar - a recorrente invoca, em síntese:
i) que é a única com legitimidade processual e material para discutir a legalidade do acionamento das garantias bancárias (em crise nos apensos CK, BY e BX) com fundamento em inexistência de incumprimento da relação-base e recuperar o valor que em cumprimento da mesma foi pago à recorrida pela instituição bancária que a prestou;
ii) que a presente ação beneficia o coletivo dos credores da insolvência porque através dela visa a recuperação de um montante que ingressa na massa insolvente, sendo a distribuir nos termos do CIRE, acrescentando que se destina a exponenciar o produto a ratear pelos credores (idealmente, pagar-se-á ao Banco garante);
iii) que estas ações que instaurou contra a recorrida, beneficiária das garantias bancárias contratadas pela insolvente (apensos BY, BX e CK), enquadram-se no leque das ações do art. 82º do CIRE e não diferem das que já propôs para recuperação de créditos da insolvente e da massa insolvente e cujo produto foi depositado na respetiva conta bancária, e que, à laia do disposto no art. 158º, nº 1 do CIRE, devem prosseguir independentemente da verificação do passivo;
iv) que, por referência ao direito de ação (art. 2º, nº 2 do CPC), nos temos do art. 788º, nº 1 do Código Civil e, citando Almeida Costa e Pinto Monteiro, assiste-lhe o direito de instaurar tais ações para, depois de reembolsar o garante da importância por este paga ao beneficiário (…) reaver a referida importância, caso o credor/ beneficiário haja procedido sem fundamento., mais acrescentando que [a] instituição bancária garante não tem essa possibilidade ampla, em face do caráter autónomo da garantia prestada (tanto assim que claudicaram as lides cautelares), (…) (…) e que não permitir o exercício jurídico do direito reclamado pela A. neste processo significa legitimar tacitamente o acionamento abusivo e ilícito de garantias bancárias, sem qual quer tipo de escrutínio a partir da data em que o ordenante seja declarado insolvente… O beneficiário aciona (o que pode fazer aproveitando até a situação de maior fragilidade probatória e “desatenção” ao tráfego jurídico que resulta da declaração de insolvência) as garantias no seu valor máximo e volvidos anos, sem que a ordem jurídica de modo algum possa sindicar tal ato (recorde-se que o banco tem um catálogo constrito de exceções ao pagamento).
Ora, resulta do despacho sob censura que a questão que o tribunal a quo qualificou como motivo para a suspensão da instância não corresponde ao resultado do julgamento do apenso de verificação e graduação de créditos, mas sim - por referência ao efeito que considerou como suscetível de ser produzido pela ação na esfera do interesse do coletivo dos credores que a autora massa insolvente representa[10] - o resultado da distribuição do produto da liquidação pelos créditos sobre a insolvência, resultado a aferir pelo mapa de rateio a organizar nos autos principais. Ato que, não obstante depender de sentença de verificação e graduação de créditos (cfr. art. 173º do CIRE), ainda que já houvesse sido proferida e transitado em julgado, de acordo com os termos e a lógica do despacho recorrido sempre fundamentaria a suspensão da instância por ele decretada enquanto aquele não se mostrasse elaborado. Pelo que a lógica que subjaz ao art. 158º, nº 1 não surge aqui pertinentemente invocada na medida em que o tribunal recorrido não considerou a verificação do passivo como elemento relevante para a apreciação do pressuposto processual do interesse em agir da massa insolvente, mas sim, reitera-se, o resultado da distribuição do produto da liquidação pelos créditos sobre a insolvência.
Mais resulta dos fundamentos do despacho que a questão que na ação foi por ele considerada como dependente do resultado do rateio não contende, nem com os fundamentos ou mérito da ação, nem com a legitimidade processual e material da massa insolvente para o pedido, mas sim com o pressuposto processual inominado do seu interesse em agir em função do efeito útil da ação; mais propriamente, com as condições para aferir da sua verificação (pela positiva ou pela negativa).
Cumpre também realçar que não cabe aqui conhecer do mérito de decisão do tribunal recorrido sobre o interesse processual em agir da massa insolvente, precisamente porque esta (ainda) não foi proferida e, não o tendo sido, não poderia constituir, como não constitui, objeto do presente recurso, o qual incide sobre despacho que se ‘limitou’ a decretar a suspensão da instância, precisamente, porque à data em que foi proferido os autos não reuniam condições que lhe permitissem aferir da verificação daquele pressuposto processual. Assim, o tribunal a quo suscitou a questão do interesse em agir da autora, mas não a apreciou ou decidiu; antes relegou a sua apreciação para momento ulterior por considerar que a mesma está dependente do resultado do rateio ainda não realizado, constituindo este o fundamento da suspensão da instância decretada pelo tribunal que, assim, e considerando que aquele constitui pressuposto processual de conhecimento oficioso, não pode deixar de ser considerado motivo com relevância suficiente para justificar a suspensão da instância nos termos e para os efeitos do art. 272º, nº 1 do CPC, e abrigado pelos poderes de gestão do processo atribuídos pelo art. 6º do CPC. Conforme foi considerado por acórdão da Relação de Guimarães de 07.02.2012[11], Necessariamente que o preenchimento deste conceito – motivo justificado - ficará a cargo do juiz do processo, não podendo deixar de se considerar que esta segunda parte do n.º 1 do artigo 279.º do CPC confere ao juiz grande liberdade no uso do poder que lhe é concedido, devendo ele orientar-se, claro está, por critérios de utilidade e conveniência processual.//A este propósito escreve Lebre de Freitas, in «Código de Processo Civil Anotado», volume 1.º, Coimbra Editora, 1999, pág. 503, que “o tribunal pode também ordenar, discricionariamente, a suspensão da instância, quando ocorra outro motivo justificado e não se verifique nenhuma das circunstâncias do n.º 2”. Nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Sousa, a suspensão pode [s]er oficiosamente determinada se acaso o juiz for confrontado com uma situação que mereça esse tratamento.[12]
Acresce que, invocando a finalidade da insolvência e como interesse a tutelar o do coletivo dos credores a aferir numa relação de alternatividade de acordo com o resultado já produzido (na liquidação) e do a produzir (rateio parcial) na insolvência, a suspensão da instância decretada pelo despacho recorrido tem subjacente uma composição equilibrada entre o sacrifício do princípio da celeridade ditado pela natureza urgente do processo (art. 9º do CIRE) e os princípios da economia processual e da proibição da prática de atividade judiciárias inútil, composição que, de resto, não põe em causa o princípio do acesso aos tribunais e do direito à ação, tanto mais que o despacho recorrido não detém a virtualidade de produzir a extinção da instância. Conforme consta sumariado pelo acórdão da Relação do Porto de 25.03.2019[13], II - Não decorre da lei qual o que se deva entender que ocorre (outro) “motivo justificado”, permitindo concluir que se confere ao juiz uma margem lata de liberdade de acção, podendo ordenar a suspensão quando entenda que há utilidade ou conveniência processual em que a instância se suspenda.//III - Esse poder conferido pelo n.º1, do art.º 272.º, não tem carácter discriminatório; é um poder legal limitado.//IV - O seu exercício pressupõe a existência do indicado “motivo justificado”, ou seja, suficientemente ponderoso para justificar a suspensão da marcha normal do processo, que se mostre conveniente e contribua para a justa resolução do litígio e, naturalmente, que não prejudique o princípio da igualdade das partes.//V - O exercício desse poder, mormente na valoração do “motivo justificado”, não deve fazer-se à margem de princípios processuais basilares, nomeadamente: da cooperação, previsto no artigo 7.º n.º1; de gestão processual, previsto no artigo 6.º n.º1; e, da boa-fé processual, previsto no artigo 8.º.//VI - Na integração do conceito “motivo justificado para a suspensão da instância”, deve entender-se que a lei não toma em consideração, propriamente, os prejuízos ou vantagens (de um ponto de vista subjectivo) das partes, mas apenas do ponto de vista processual, devendo o juiz ponderar as vantagens e os inconvenientes da suspensão para obter a justa composição do litígio.[14]
Em suma, em causa e como questão fundamento equacionada pela decisão recorrida para a decretada suspensão da instância, está o conhecimento ex officio do pressuposto processual do interesse em agir, sendo que, orientado pelo fim do processo – tutela do coletivo dos credores –, afigura-se-nos indiscutível caber ao tribunal diligenciar pelas condições processuais que permitam a sua apreciação, dever que com o despacho aqui sob censura o tribunal a quo se limitou a cumprir. Donde, caso não se continue a prosseguir esta visão radical, entendida esta, sobretudo, num conservador sentido etimológico de regresso às raízes, através do reforço do papel director do juiz, poderemos desembocar num cenário já anunciado para um futuro próximo em que a lei finalmente soçobrará, substituída pelos contratos e em que a própria justiça cederá lugar, exangue, aos discretos escritórios alcatifados onde tudo (sobretudo, aquilo que vale a pena) se dirime em privadíssimas arbitragens.[15]

IV – Decisão
Em face de todo o exposto, os juízes desta secção acordam em julgar a apelação improcedente, com consequente manutenção da decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo da recorrente, massa insolvente.

Lisboa, 22.06.2021
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
Fernando Barroso Cabanelas
_______________________________________________________
[1] Proc. nº 442/16.0T8FAR.E1, disponível em https://blogippc.blogspot.com
[2] Sem prejuízo da possibilidade legal de sustação no cumprimento destas atividades por determinação dos credores nos termos do art. 156º, nº 3 ou por efeito legalmente previsto nos termos do art. 225º, num e outro caso em ordem à prossecução da recuperação do devedor, se essa for a vontade deste e a opção dos credores.
[3] Pela lógica natural das coisas, não se inicia a liquidação sem prévia apreensão dos bens e/ou identificação dos direitos patrimoniais que integram a massa e, por imposição legal, sem prévio trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência (cfr. arts. 40º, nº 3, 42º, nº 3 e 158º, nº 1); à parte a medida excecional temporária prevista pela Lei 75/21 27.11, também não é legalmente possível organizar mapa de rateio – parcial ou final – sem prévio trânsito em julgado da sentença de verificação de créditos (cfr. art. 173º), nem, pela natureza das coisas, é possível organizar nos autos principais o mapa de rateio final sem prévio apuramento do resultado da liquidação, dependendo este, por sua vez, da prévia determinação e fixação da remuneração variável do AI a que haja lugar e, esta, da prévia prestação e julgamento das contas da liquidação (entendida esta com a amplitude das funções previstas pelo art. 55º, nº 1).
[4] Citação extraída do acórdão do Tribunal Constitucional nº 248/2012, de 22.05.2012, citado pela recorrente.
[5] Processo nº 1168/12.9TBOAZ-N.P, disponível na página da dgsi.
[6] CIRE Anotado, 11ª ed., p. 72.
[7] Note-se que foi neste princípio - da auto-suficiência do processo de insolvência e da concentração do exercício dos direitos de crédito no processo de insolvência – que se ancorou o acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014, de 08.05.2013, pelo qual se fixou que Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.
[8] Citação de Schwarzer e Hirsch por José Igreja Matos, em A gestão Processual: Um Radical Regresso às Origens, Julgar nº 10, 2010, p. 123.
[9] GPS, ob. cit., p. 34.
[10] (…) redução do valor de cerca de € 266.700,00 a um passivo relacionado/reconhecido nos termos do art. 129º do CIRE no montante total de € 273.753.184,53, este constituído por créditos de natureza comum (cerca de €79.552.000,00 sem condição e cerca de € 186.421.000,00 sob condição), créditos subordinados (cerca de € 234.500,00) e créditos de natureza laboral, estes no montante de cerca de € 10.223.000,00, sendo certo que, de acordo com as contas intercalares prestadas em apenso (CR), o saldo da massa insolvente cifra-se a esta data no montante de cerca de € 7.000.000,00.
[11] Proc. nº 1566/08.2TBVCT-A.G1, disponível na página da dgsi.
[12] CPC Anotado, GPS, Vol. I, 2ª ed., p. 333.
[13] Proc. nº 2369/18.1T8MTS-A.P1, disponível na página da dgsi.
[14] No mesmo sentido, acórdão da RG de 07.02.2012, proc. nº 1566/08.2TBVCT-A.G1 (disponível na pág. da dgsi): 1 - O tribunal pode ordenar, discricionariamente, a suspensão da instância, quando ocorra outro motivo justificado, para além da pendência de causa prejudicial.//2 – Neste caso o juiz goza de grande liberdade, devendo sempre orientar-se por critérios de utilidade e conveniência processual.
[15] José Igreja Matos, texto citado, p. 136-137.