Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9208/2004-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
OPOSIÇÃO
LIVRANÇA
PACTO DE PREENCHIMENTO
CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/23/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1 – A oposição à execução por meio de embargos constitui uma contra – acção do devedor à acção executiva do credor para impedir a execução, mesmo a destruir os efeitos do título executivo.
2 – Os embargos de executado introduzem no processo executivo a fase declarativa, autónoma e própria, com a particularidade do Embargante, devedor presumido da dívida exequenda, ter de afirmar e demonstrar factos impugnativos (impeditivos, modificativos ou extintivos) da própria exequibilidade do título executivo, da inexistência de causa debendi ou do direito do exequente, ou factos que, em processo normal, constituiriam matéria de excepção, os quais seriam alegados e provados pelo réu, de harmonia com o disposto no artigo 342º, n.º 2 do Código Civil.
3 – Uma vez preenchida e emitida regularmente, a livrança vale nos precisos termos que dela constam ou resultam e não podem, em regra, ser contestados com o auxílio de elementos estranhos ao título.
4 – O ónus da prova do preenchimento abusivo cabe ao obrigado cambiário, como facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito.
5 – O contrato de abertura de crédito caracteriza-se pela obrigação do banco nele interveniente ter à disposição do cliente uma soma em dinheiro, por um dado período, ou período de tempo indeterminado, que este tem possibilidade de utilizar mediante operações bancárias.
6 – Trata-se de um contrato consensual. Fica perfeito com o acordo entre as partes, sem necessidade de qualquer entrega monetária, aplicando-se-lhe, quanto à forma, as regras próprias do mútuo bancário, que exigem forma escrita.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1.
Por apenso à execução ordinária que o Banco … move contra D…, José … e António …, deduziram os presentes embargos de executado.

Para tanto, e em síntese, alegam a incompetência territorial do tribunal; que a livrança não foi apresentada a protesto por falta de pagamento, pelo que é inoponível aos avalistas; que o preenchimento dos títulos é abusivo, pois que o embargado pôs termo aos contratos de abertura de crédito existentes entre a D… e o embargado sem qualquer fundamento, determinando para o embargante um prejuízo muito elevado, não previsível, obstaculizando ao regular funcionamento da empresa; que todo o clausulado do contrato foi elaborado sem prévia negociação individual, pelo que estamos no domínio das cláusulas contratuais gerais, sendo proibida a cláusula que permite resolver o contrato sem motivo justificativo, fundado em lei ou convenção e, em consequência, nula; que houve uma compensação parcial; que os montantes pelos quais as livranças foram preenchidos estão incorrectos, pois que o embargante pede juros sobre juros, estando igualmente incorrectamente incluídos na livrança o imposto de selo e a selagem do título.

O embargado contestou, dizendo, em suma, que o tribunal é competente; que não é necessário o protesto por falta de pagamento para accionar os avalistas; que a livrança foi preenchida em conformidade com o pacto de preenchimento e de acordo com os montantes devidos; que os contratos estavam em incumprimento e que a situação económica da D… e dos avalistas já não lhes permitia saldar a dívida.
Terminou pedindo a improcedência dos presentes embargos.

Foi elaborado o despacho saneador, considerando-se ser este o tribunal competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território e decidindo-se pela oponibilidade do título aos avalistas.

Foram fixados os factos provados e elaborada a base instrutória.

Procedeu-se a julgamento, tendo o Tribunal proferido decisão sobre a matéria de facto e, em seguida, a sentença, julgando os embargos improcedentes por não provados, deles absolvendo o embargado.

Inconformados, apelaram os embargantes, formulando as seguintes conclusões:
(...).
O Apelado não contra – alegou.

2.
Tendo dispensado a audiência preliminar (artigo 508º-B), a Exc. ma Juiz, ao fixar a base instrutória, seleccionou a matéria de facto que considerou assente e a que devia constituir a base instrutória da causa.

O embargante reclamou, entretanto, contra a selecção da matéria de facto, incluída na base instrutória ou considerada assente, sendo a reclamação deferida parcialmente, conforme despacho de fls. 140, a 143, o que originou a modificação dos factos assentes bem como dos que integravam a base instrutória.

Não obstante, no recurso interposto da decisão final, o embargante voltou a impugnar, com fundamento em deficiência, o aludido despacho proferido sobre as reclamações dos factos assentes e dos controvertidos, sustentando que deviam ser aditados à matéria assente os factos (...) e incluídos na base instrutória os factos (...).

Aqui chegados, importará referir que a selecção é feita entre os factos articulados pelas partes, pois, de acordo com o princípio do dispositivo, só esses – e excepcionalmente, os introduzidos pelo juiz ao abrigo do artigo 514º e os factos complementares resultantes da instrução do processo, nos termos do artigo 264º, n.º 3 – podem (e devem) ser tidos em consideração. Esses factos são os que interessam à causa de pedir e os que fundam as excepções (artigo 264º, n.º 1), isto é, os factos principais da causa, pois, em princípio, os factos probatórios, dos quais eles se deduzem, e os factos acessórios, que permitem ou impedem que a dedução se faça, nem estão sujeitos ao ónus da alegação nem têm de ser seleccionados para a relação dos factos assentes ou para a base instrutória, dada a sua natureza instrumental (artigo 264º, n.º 2): só devem sê-lo quando constituem a base duma presunção legal ou um facto contrário ao presumido. Mas tal não impede que possam ser insertos na base instrutória factos instrumentais, em casos em que assumam especial relevância concreta para a prova dos factos principais, em que seja duvidosa a ilação que, a partir deles, possa ser tirada para esta prova ou em que constituam garantia de que o direito à prova não é severamente restringido por limitações legais como a do artigo 633º para a prova testemunhal (1).

A selecção, quer dos factos assentes quer dos controvertidos, é feita, tendo em conta as várias soluções plausíveis da questão de direito. Quer isto dizer que o juiz não pode limitá-la aos factos essenciais, ou relevantes, para a solução daquelas questões que, no seu entendimento, são pertinentes: seja qual for a sua visão da que deva ser a decisão jurídica da causa e o caminho para a atingir, o juiz tem de seleccionar também os factos que interessem a outras vias de solução possível do litígio, tidas em conta as posições assumidas pelas partes quanto à fundamentação jurídica das pretensões e excepções e as correntes doutrinárias e jurisprudenciais formadas em torno dos tipos de questão que elas levantem. Assim, desde que ambas as teses (jurídicas) sejam compreensivelmente defensáveis, [a base instrutória] deve abranger, entre os factos articulados, todos os que interessam às duas posições (2), em formulação que deve ter em consideração as normas que presidem à distribuição do ónus da prova.

Mais do que nos articulados, a distinção entre matéria de facto e matéria de direito releva na elaboração da base instrutória, que não deve conter conceitos jurídicos. Espelha-o o artigo 646º, n.º 4, ao não considerar escritas as respostas dadas a questões de direito pelo tribunal que julga a matéria de facto.

Por aplicação analógica do n.º 4 do artigo 646º, deverá ter-se igualmente por não escrita a resposta dada a um “quesito” que contenha matéria conclusiva e não factual.

Reportando-nos, ao caso dos autos, verifica-se que os recorrentes discordam da matéria assente, bem como da base instrutória.

(...)

Mas acrescentam que o que se proíbe na norma inserta na alínea b) do citado artigo 22º são as cláusulas que permitam exclusivamente a quem as predisponha a resolução do contrato sem motivo justificativo, fundado na lei ou em convenção.

Por isso, o importante é saber se a permissão ou faculdade conferida nas citadas cláusulas é atribuída a ambas as partes (por iniciativa de qualquer das partes) e não apenas a uma delas, o Banco embargado que as predispôs.

Ora a permissão ou faculdade conferida na citada cláusula 4ª é atribuída a ambas as partes (“por iniciativa de qualquer das partes) e não apenas a uma delas, o Banco embargado que as predispôs.

Não existe, pois, na concreta conformação das cláusulas, uma parte mais fraca (a que alegadamente não predispôs), que careça de maior protecção por força da posição de maior debilidade contratual em que a outra parte a tenha colocado.

Assim sendo, a citada norma da alínea b) do artigo 22º do DL 446/85, de 25 de Outubro, não nos parece aplicável aos autos.

De qualquer modo, relevante seria alegar que a resolução dos contratos foi efectuada sem manifesto motivo justificativo e sem fundamento legal, caso em que, a provar-se, poderia vir a ser determinado que tal cláusula se encontra ferida de nulidade (quod demonstrandum est).

Então e só então teria importância saber que tal cláusula não foi negociada, pois que, nesse caso, o aderente teria dois caminhos à sua frente: ou rejeitava o contrato, dando-o como totalmente nulo; ou aceitava-o privado naturalmente da cláusula alegadamente nula. (3)

Porque não foi impugnado que a resolução dos contratos tenha sido efectuada sem manifesto motivo justificativo nem fundamento legal, torna-se irrelevante especificar que todo o clausulado do contrato – quer as Condições Gerais quer as Particulares – foi elaborado sem prévia negociação individual e que à 1ª embargante e aos demais embargantes, enquanto avalistas, apenas foi dada a possibilidade de aceitar ou rejeitar tais condições, sem qualquer possibilidade de influenciar o seu conteúdo.

(...).

A inclusão deste artigo na base instrutória foi indeferida, com o fundamento de que já se mostram reproduzidos na matéria de facto assente os documentos 3 a 6.

Nesta parte, assiste razão aos recorrentes. Dar como provado o teor de um determinado documento não é, em bom rigor, a mesma coisa que dar como provada a matéria de facto que com ele se pretendeu fazer, entre outros, prova.

3.
Recorrem seguidamente os embargantes da decisão sobre a matéria de facto, defendendo que se deveria alterar as respostas dadas aos quesitos 4º (que foi especificado) e 8º (considerado não provado), passando a considerar-se provados e ao quesito 6º (considerado provado), passando a considerar-se não provado.

A matéria dos quesitos 4º e 6º foi alegada pelo embargado enquanto a matéria do quesito 8º foi alegada pelos embargantes, recaindo o ónus da prova dos quesitos 4º e 6º sobre o embargado, enquanto sobre os embargantes recaía o ónus da prova do quesito 8º.
(...)
5.
Consideram-se, deste modo, provados os seguintes factos:
1º - O Banco … deu à execução a livrança constante de fls. 13 do processo principal, em que é sacador, sendo subscritora D…, cujo valor aposto é de esc. 40.688.534$00, a data de emissão 12/11/99 e a data de vencimento 04/10/2001, tendo os embargantes aposto pelos seus respectivos punhos os seus nomes manuscritos no verso das livranças dadas à execução, sob a expressão bom por aval à firma subscritora (A).
2º - Foi celebrado entre o embargado e a D…um Contrato de Abertura de Crédito Umbrella Individual, tendo dado o seu acordo àquele contrato, aí apondo as suas assinaturas e expressão de concordância os avalistas também executados, no qual acordaram:
O banco procede à abertura de um crédito em nome do cliente até ao montante de esc. 40.000.000$00
...
A presente abertura de crédito é válida até 10/11/2002, salvo denúncia por parte do Banco, a qual se tornará eficaz mediante comunicação escrita dirigida a V. as Ex.as por carta registada com aviso de recepção, com uma antecedência mínima de 30 dias relativamente à data termo pretendida.
...
Para garantia das responsabilidades do cliente para o Banco, é entregue uma livrança subscrita pela empresa e avalizada pelos sócios, ficando o Banco expressa e irrevogavelmente autorizado a preenchê-la livremente, designadamente quanto à data da emissão, montante em dívida, data de vencimento e local de pagamento, até ao limite das responsabilidades assumidas perante o Banco, incluindo capital, juros, qualquer que seja a sua natureza, impostos, comissões e outros encargos que sejam devidos nos termos das operações realizadas ao abrigo do presente contrato, podendo ainda o banco descontar essa livrança e utilizar o seu produto para o pagamento dos seus créditos.
...
O banco poderá resolver o presente contrato ou considerar vencidas as dívidas dele emergentes, exigindo o cumprimento imediato das correspondentes obrigações:
a) – Quando não for cumprida pelo cliente qualquer obrigação...(B).
3º – A 1ª embargante tinha o financiamento bancário disperso entre o Banco…, o Banco P… e o Banco A…, através do contrato referido em 2 (C).
4º - O embargado enviou ao embargante, que a recebeu, a carta datada de 9/03/2001, (cfr. fls. 26), em que se refere a formalização da resolução do contrato ao abrigo da cláusula 4ª do mesmo (D).
5º - No extracto bancário da D… mostra-se inscrito:
1.02 1.02 TRANSF JUROS DEVEDORES DA CONTA 00000000, no valor de 253.158$00
2.01 2.01 TRANSF JUROS DEVEDORES DA CONTA 0000000, no valor de 261.734$00
3.01 3.01 TRANSF JUROS DEVEDORES DA CONTA 0000, no valor de 232.656$00
4.02 4.02 TRANSF JUROS DEVEDORES DA CONTA 00000, NO VALOR DE 257.584$00 (E).
6º - O embargado enviou ao embargante, que a recebeu, a carta datada de 24/09/2001, a fls. 29, comunicando-lhe que, em face da resolução do contrato de abertura de crédito de 12/11/1999, o montante da livrança se encontrava a pagamento na morada aí indicada concretizando-se os montantes em dívida (F).
7º - A embargada não enviou extractos relativos à contagem de juros aos embargantes (G).
8º - A 1ª Embargante jamais deixou de pagar quaisquer juros remuneratórios durante a vigência do contrato.
9º - Em 19 de Junho de 2001, a embargada utilizou o saldo credor da conta DO n.º 000000, titulada pela 1ª embargante, no montante de 1.313.735$00, para proceder à compensação do saldo da conta DO 0000000, no montante de esc. 228.927$00 (1º).
10º - Utilizou o remanescente na compensação parcial do saldo da conta corrente caucionada n.º 46315065 (2º),
11º - A qual se encontrava garantida pela livrança dada à execução e referida em 1 (3º).
12º - Em Março de 2001, a principal fornecedora da D…, a “C…”, não efectuava fornecimentos à D… e a “DL…” tinha reduzido esses fornecimentos (4º).
13º - A 1ª executada viu reduzido o seu negócio, tendo dispensado trabalhadores (5º).
14º - Encontrava-se praticamente sem actividade (6º).
15º - Nenhum dos embargantes era proprietário de qualquer património imobiliário (7º).
6.
Quanto ao mérito da decisão, sustentam os embargantes que ao embargado não assistia qualquer fundamento para dar por resolvido o contrato, pelo que, não tendo sido validamente resolvido o contrato, o preenchimento da livrança foi, efectivamente, abusivo, com a consequente inoponibilidade da execução aos Embargantes por violação do pacto de preenchimento.

Ora bem:

A oposição à execução por meio de embargos de executado constitui uma contra – acção do devedor à acção executiva do credor para impedir a execução, mesmo a destruir os efeitos do título executivo.

Consubstancia-se numa acção declarativa que se enxerta numa acção executiva, na qual o executado reveste a autoria daquele processo dirigido contra o exequente, que assume a posição de réu.

Contempla dois interesses ou antagonismos: o interesse do credor à pronta realização do seu direito, a finalidade da acção executiva; o interesse do devedor de evitar o prosseguimento de uma execução irregular ou injusta ou de assegurar a restauração dos seus direitos e estabelecer, em suma, a concretização das exigências da justiça com a execução necessariamente assente na simples aparência do direito (4).

Por oposição à confissão de dívida exequenda, os embargos podem ter por fundamento os que se encontram especificados no artigo 813º do Código de Processo Civil, na parte em que sejam aplicáveis, bem como quaisquer outros que licitamente poderiam ser deduzidos como defesa no processo de declaração (artigo 815º CPC).

Daí que se aponte ao processo de embargos o facto de o mesmo se destinar a contestar o direito do exequente, quer impugnando a própria exequibilidade do título, quer alegando factos que, em processo declarativo, constituiriam matéria de excepção (5).

Os embargos de executado introduzem, pois, no processo executivo a sobredita fase declarativa, autónoma e própria, com a particularidade do Embargante, devedor presumido da dívida exequenda, ter de afirmar e demonstrar factos impugnativos (impeditivos, modificativos ou extintivos) da própria exequibilidade do título executivo, da inexistência de causa debendi ou do direito do exequente, ou factos que, em processo normal, constituiriam matéria de excepção, os quais seriam afirmados e provados pelo réu, de harmonia com o disposto no artigo 342º, n.º 2 do Código Civil.

Posto isto, importa agora apreciar e decidir a questão que os autos suscitam.

Os títulos executivos:
A acção executiva baseia-se, necessariamente, num documento (título) que, nesta espécie de acções, corresponde à causa de pedir. O título constitui, pois, para a acção executiva um pressuposto processual específico desta (cfr. artigo 45º e seguintes do CPC).

Por norma, aponta-se ao título executivo a dupla qualidade de ser condição necessária e suficiente da acção executiva. Assim, por um lado, é condição necessária porque não pode haver acção executiva sem título executivo; por outro lado, é também condição suficiente porque basta a existência de título para promover a execução, sem necessidade de indagação, por meio de acção declarativa, acerca da existência do direito material que se pretende efectivar (6). No entanto, só neste sentido é condição suficiente, porque é necessário que estejam reunidos outros pressupostos processuais e que não ocorram os fundamentos de indeferimento liminar do requerimento inicial, previstos no artigo 811º-A do Código de Processo Civil.

Da livrança:
Os documentos que podem servir de títulos executivos estão enumerados no artigo 46º do Código de Processo Civil de um modo taxativo conforme resulta claro pela introdução no proémio do referido preceito do advérbio “apenas”.

No caso presente, o título que sustenta a execução embargada é o título de crédito que a exequente juntou aos autos principais. Aquele consubstancia-se num documento que incorpora um direito literal e autónomo, que legitima o seu titular a exercê-lo e serve de base à sua circulação. Tem como função titular e incorporar direitos de modo a permitir e facilitar a sua circulação e mobilização.

O título dado à execução consubstancia, em bom rigor, uma livrança, ou seja, é um título à ordem, sujeito a certas formalidades, pelo qual uma pessoa se compromete, para com outra, a pagar-lhe determinada importância em certa data. É uma promessa de pagamento que o emitente deve cumprir.

O ordenamento jurídico da livrança é como o da letra, ressalvada a índole particular de cada título (cfr. artigo 77º da LULL).

É admitida pela L. U. a livrança em branco, definindo-se esta como um título que se destina a ser preenchido de harmonia com o pacto ou contrato de preenchimento convencionado.

Na livrança é possível encontrar, entre outras, a literalidade (a reconstituição da obrigação faz-se pela simples inspecção do título) e a autonomia (a livrança é independente da causa debendi).

A livrança é literal. Ou seja, é sempre um documento escrito. Das palavras e algarismos nela apostos consta ou resulta o direito nela documentado. Vale isto o mesmo que dizer que o conteúdo e a extensão do direito incorporado na livrança são aqueles que dela constarem escritos. Tal circunstância permite a quem examinar o título ter conhecimento completo e preciso do direito incorporado e possibilita a sua mobilização e circulação.

Em relação à livrança, o artigo 75º da LULL prescreve os requisitos que constituem o suporte desta característica. A livrança que não observe alguns deles não produzirá efeito como tal, salvo nos casos determinados nas alíneas seguintes do artigo 76º. Uma vez preenchida e emitida regularmente, a livrança vale nos precisos termos que dela constam ou resultam e não podem, em regra, ser contestados com o auxílio de elementos estranhos ao título. Significa isto que o portador não pode exigir do subscritor o que quer que seja que não conste da livrança, tal como o obrigado não pode invocar em sua defesa algo que daí não resulte. Assim, a literalidade faz prevalecer o sentido objectivo sobre a vontade subjectiva dos seus autores ou intervenientes. Só desta forma se garante uma outra característica da livrança: circulabilidade.

No caso da livrança, a literalidade é quase absoluta, já que apenas podem ser invocados pelo obrigado excepções extra – cartulares originadas em convenções exteriores ao título que o liguem com o próprio portador – credor e não com qualquer outro dos intervenientes cambiários.

Esta conclusão leva à segunda característica apontada: a autonomia.
O direito emergente é incorporado no título autónomo, diferente, em relação ao direito não – cambiário, subjacente, que lhe deu origem. Sendo diferente do direito subjacente, o direito cartular é – lhe naturalmente autónomo e distinto no que concerne ao respectivo regime jurídico.

O direito cartular emergente do título é claramente diferente dos vários direitos subjacentes a cada um dos negócios ou actos cartulares. O direito cartular é só um enquanto que subjacentes há vários direitos, um para cada acto cambiário. E o regime do direito cartular também é diferente de qualquer dos subjacentes e rege-se pela respectiva lei uniforme.

Cada negócio cartular tem, assim, subjacente um negócio que o explica, que o justifica, que lhe constitui a causa, e que se designa negócio subjacente.

Quando entre dois intervenientes num título existe uma relação subjacente, é comum afirmar que a sua relação é imediata; quando aqueles não estão ligados por uma relação subjacente, diz-se que a sua relação é mediata. As relações imediatas, na livrança, são as relações existentes entre obrigados cambiários que se encontrem ligados por uma relação subjacente e uma convenção executiva. As relações mediatas são as que se suscitam entre obrigados cambiários que não se encontram ligados por qualquer relação subjacente ou convenção executiva.
Dispõe o artigo 17º da LULL que “as pessoas accionadas em virtude de uma letra (livrança) não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador (subscritor) ou com os portadores anteriores, a menos que o portador, ao adquirir a letra (livrança), tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”. Ou seja, e excluindo a parte final do preceito (que para o caso não releva), ao portador que se apresente a cobrar a livrança não podem ser opostas excepções fundadas nas relações extra – cartulares vigentes entre outras pessoas que não o próprio portador e a pessoa a quem ele pede o pagamento da livrança. O que significa que o demandado só pode opor ao portador excepções fundadas em relações extra – cartulares que tenha com o próprio portador.

A ratio deste preceito é evidente: tendo o portador um direito contra o demandado, emergente do título, e tendo o demandado contra o portador um outro direito, emergente de uma relação extra – cartular, esses direitos contrários compensam-se um ao outro, pelo que as excepções extra – cartulares só podem ser opostas entre pessoas que sejam sujeitos da mesma relação extra – cartular, quer dizer nas chamadas relações imediatas.

Igual conclusão se retira da análise do artigo 10º da LULL, o qual estabelece que, “se uma letra (livrança) incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”.

Daqui decorre que não pode a inobservância dos acordos realizados ser motivo de oposição ao portador, a não ser que ocorra excepção pessoal, oponível nas relações emitente/tomador (ou portador) ou que ocorra má fé ou falta grave.

O caso dos autos:
No caso concreto, os embargantes estribaram a sua oposição à execução num alegado preenchimento abusivo da livrança exequenda, alegando que, não tendo sido validamente resolvido o contrato por banda do embargado, o preenchimento da livrança foi, efectivamente, abusivo, com a consequente inoponibilidade da execução aos Embargantes por violação do pacto de preenchimento.

Do preenchimento da livrança exequenda:
Apreciando, dir-se-á que os factos provados permitem retirar a conclusão que a livrança dos autos foi entregue à embargada em branco, apenas dela constando a assinatura do subscritor e dos avalistas, ora embargantes

Está-se, assim, no domínio da livrança em branco, que é aquela a que falta algum ou alguns dos requisitos essenciais mencionados no artigo 75º da LULL, mas contém, pelo menos, a assinatura do subscritor.

A livrança em branco destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato e porque, em princípio, ninguém entrega um título dessa natureza para se fazer dele um uso livre ou indiscriminado, tal entrega é acompanhada da atribuição de poderes para esse preenchimento, ou seja, do chamado acordo ou pacto de preenchimento.

Tal acordo pode ser expresso, quando as partes estipularem certos termos concretos, ou tácito, por estar implícito nas cláusulas do negócio determinante da emissão do título, o qual deverá depois ser preenchido em conformidade com esses termos ou cláusulas, sob pena de preenchimento abusivo.

O ónus da prova desse preenchimento abusivo cabe ao obrigado cambiário, como facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito (artigo 342º, n.º 2 do Código Civil).

Isto está previsto no artigo 10º da LULL, aplicável à livrança por força do disposto no artigo 77º, para o domínio das chamadas relações mediatas, e em termos limitados, decorrentes dos princípios da literalidade e abstracção, mas, nas relações imediatas, como entre os sujeitos da relação fundamental que esteve na origem da subscrição do título, é livremente oponível a inobservância do acordo de preenchimento, por ficar a obrigação cambiária sujeita ao regime geral das obrigações, ou seja, às excepções fundadas nas relações pessoais entre aqueles sujeitos (7).

Assim, neste último domínio, o tomador da livrança pode exercer, em princípio, contra o subscritor e avalistas os direitos correspondentes ao título cambiário, tal como está preenchido e com força própria de título executivo e a esse subscritor cabe o ónus da prova do preenchimento abusivo, devendo alegar, para o efeito, as cláusulas do negócio fundamental ou os termos do pacto do preenchimento.

Em suma, quem entrega uma letra ou uma livrança em branco fica com o encargo de fazer a prova do seu preenchimento abusivo e, no caso de execução, essa prova tem de ser feita nos embargos de executado, cuja petição se destina à impugnação dos requisitos do título executivo, em termos idênticos aos da posição assumida pelo contestante em processo comum de declaração (artigos 812º e seguintes do Código de Processo Civil).

No caso vertente, a excepção do preenchimento abusivo foi deduzida no domínio das relações imediatas, pois a embargada demandou os embargantes nos autos principais na qualidade de subscritora e avalistas do título exequendo.

E a entrega da livrança em apreço ocorreu por causa e à época de um contrato de abertura de crédito ajustado entre embargante e embargada.

Caracterização da relação jurídica (contrato) subjacente à emissão do título dado à execução:

O contrato de abertura de crédito caracteriza-se pela obrigação do banco nele interveniente ter à disposição do cliente uma soma em dinheiro, por um dado período, ou período de tempo indeterminado, que este tem possibilidade de utilizar mediante operações bancárias.
Trata-se de um contrato consensual, por oposição a real quoad constitutionem: fica perfeito com o acordo entre as partes, sem necessidade de qualquer entrega monetária, aplicando-se-lhe, quanto à forma, as regras próprias do mútuo bancário, que exigem forma escrita.

Nos termos da cláusula 4ª desse contrato, previa-se a rescisão do contrato, por escrito (carta registada) e por iniciativa de qualquer das partes, tornando-se eficaz 30 dias após a data de registo da comunicação.

Ora, ficou demonstrado que, em Março de 2001, a principal fornecedora da D…, a “C…” não efectuava fornecimentos à D… e a “DL…” tinha reduzido esses fornecimentos.

A 1ª executada viu reduzido o seu negócio, tendo dispensado trabalhadores, encontrando-se praticamente sem actividade.

Nenhum dos embargantes era proprietário de qualquer património imobiliário.

Atendendo, portanto, à situação económica da D… antes da denúncia do contrato dos autos, efectuada por carta datada de 9 de Março de 2001, para produzir efeitos a partir de 9 de Abril de 2001, já a mesma apresentava dificuldades, pelo que se não vislumbra como a denúncia do contrato possa ter prejudicado os interesses da D…, obstaculizando o regular funcionamento da empresa e causando-lhe prejuízos elevados.

O que ocorre é que, antes mesmo da denúncia, a principal fornecedora da D… não efectuava fornecimentos e a DL… tinha reduzido esses fornecimentos, vendo reduzido o seu negócio, dispensando, inclusive, trabalhadores e encontrando-se já praticamente sem actividade.

Também os avalistas não estavam em condições patrimoniais de suportar o pagamento da dívida, não lhes sendo conhecido qualquer património imobiliário.
Ora, a cláusula 4ª do contrato de abertura de crédito estatui a denúncia livre pelo banco, desde que comunicada com uma antecedência mínima de trinta dias relativamente à data termo.

Não se pode, assim, considerar que o preenchimento da livrança tenha sido abusivo, atendendo à situação económica dos embargantes descrita e à circunstância de só por esta via o embargado poder antecipar a cobrança do crédito, tanto mais que as contas de abertura de crédito estavam duras, isto é, não reflectiam quaisquer movimentos comerciais por parte da D… que gerassem lucros.

Acresce ter ficado por demonstrar, pela falta de prova ao artigo 9º, qualquer incorrecção do montante aposto na livrança dada à execução.

Resulta do exposto não se ter apurado qualquer violação do pacto de preenchimento.

Contra – argumentam os recorrentes que a dita cláusula é nula, pelo que, tendo o embargado denunciado o contrato nos moldes em que o fez, para assim proceder ao preenchimento da livrança, houve violação do pacto de preenchimento.

Nesse sentido, os embargantes qualificam o contrato como um contrato de adesão, pelo facto de as condições específicas dos contratos, designadamente a cláusula 4ª, terem sido elaboradas sem prévia negociação individual, pelo que se está em face de cláusulas contratuais gerais nulas em face do disposto nos artigos 22º, alínea b) e 12º do DL 446/85, de 25 de Outubro.

Será assim?

Vamos admitir, por mera hipótese, que o contrato de abertura de crédito obedecia a cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, em tais moldes que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar.
Segundo o artigo 1º do citado diploma, com a redacção que lhe foi dada pelo DL 220/95, de 31 de Agosto, as cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo presente diploma.

E as cláusulas contratuais gerais proibidas por disposição do diploma são nulas (artigo 12º).

Será importante, no entanto, salientar que a estruturação das cláusulas contratuais gerais proibidas assenta numa contraposição entre cláusulas absolutamente proibidas e cláusulas relativamente proibidas.

As cláusulas absolutamente proibidas não podem, a qualquer título, ser incluídas em contratos através do mecanismo de adesão (artigos 18º e 21 da LCCG).

As cláusulas relativamente proibidas não podem ser incluídas em tais contratos, desde que, sobre elas, incida um juízo de valor suplementar que a tanto conduza (artigos 19º e 22º).

Segundo o artigo 22º, alínea b), são relativamente proibidas as cláusulas contratuais gerais que permitam, a quem as predisponha, denunciar livremente o contrato, sem pré – aviso adequado ou resolvê-lo sem motivo justificativo, fundado na lei ou em convenção.

Mesmo a admitir a tese dos embargantes, estatuiu-se, in casu, o pré – aviso a que o banco embargado deu cumprimento, pelo que se não pode concluir que a proibição relativa seja aplicável ao caso vertente.

Em conclusão, e contrariamente ao sustentado pelos embargantes, a livrança exequenda foi preenchida com observância e estrito respeito do pacto que as partes acordaram para tal efeito, não resultando sequer dos autos a demonstração de qualquer facto que infirme tal resultado.
Soçobra, assim, a pretensão dos embargantes, razão pela qual devem ser julgados improcedentes os presentes embargos.
6.
Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirma-se a douta sentença recorrida.

Custas pelos embargantes.

Lisboa, 23 de Novembro de 2006.

Granja da Fonseca
Olindo Geraldes
Fátima Galante



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1.-Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 380-381.

2.-Antunes Varela, Manual do Processo Civil, 2ª edição, 417-418.

3.-Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 125.

4.-Anselmo de Castro, A acção executiva, singular, comum e especial, 1970, 274-275.

5.-Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, 3ª edição, 275.

6.-Anselmo de Castro, obra citada, 14.

7.-Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, III, 71 e 131 e seguintes.