Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
527/20.8PCRGR-A.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: CONDUÇÃO AO TELEMÓVEL
FILHOS MENORES A BORDO
CRIME DE EXPOSIÇÃO OU MAUS TRATOS
DEVERES DE CUIDADO E PROTECÇÃO DAS CRIANÇAS
PERÍCIA PARA EXTRACÇÃO DE VÍDEOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - Havendo indícios de que um progenitor no exercício da condução de veículo automóvel, levando a bordo da viatura dois filhos menores, em pleno andamento, com o seu telemóvel, efectuava gravações de vídeos que reproduzia em directo na rede social Facebook, pelo que terá cometido, em concurso real, com uma contraordenação estradal grave (p. e p. artigos 145.º, n.º 1, alínea n), 84.º, n.º 1, 138.º e 147.º, n.ºs 1 e 2, 1.ª parte, do Código da Estrada), o crime de exposição p. e p. pelo art. 138.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal, justifica-se, em sede investigatória, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 187.º n.ºs 1, al. a), e 4 al. a), e 269.º n.º 1 al. a), do Código de Processo Penal, que o Juiz de Instrução Criminal, a solicitação do Ministério Público, autorize e determine a realização de perícia ao referido telemóvel e concomitante extracção do seu conteúdo, no que se refere aos vídeos efectuados nos termos acima descritos, tendo-se em consideração que tais vídeos foram já retirados daquela rede social e apesar de anteriormente ter a sua autora ter consentido no visionamento, consulta, pesquisa, exame e extracção de todo o conteúdo do telemóvel que lhe havia sido apreendido, a mesma retirou esse consentimento, sendo portanto aquela perícia a única forma de investigar aquela factualidade, pois, só através do visionamento do conteúdo existente na memória do telemóvel, se podem apurar os exactos contornos dos factos, mormente a sua localização no tempo e no espaço.
II - O assinalado comportamento de condução simultânea com manuseamento de telemóvel, efectuando gravações de vídeos colocadas em directo na rede social Facebook, aumenta significativamente o perigo de acidente rodoviário colocando em risco acrescido a vida das crianças, que se encontravam a bordo do veículo, constituindo para a progenitora violação dos especiais deveres de cuidado e protecção das crianças, seus filhos e à sua guarda, a que no âmbito das suas responsabilidades parentais está obrigada como mãe, a respeitar e zelar, tendo a responsabilidade de sempre o fazer em toda e qualquer circunstância.
III – Integre a mencionada conduta o crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, como pretende o recorrente, ou o  crime de exposição p. e p. pelo art. 138.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do mesmo diploma, como entende este tribunal ad quem, sendo ambos puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos, mais concretamente para o primeiro “com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” e para o segundo “com pena de prisão de 2 a 5 anos”, sempre se mostrará preenchida a condição de admissibilidade da al. a), do n.° 1 do art. 187.°, do CPP a conjugar com n.° 4 al. a) da mesma norma adjectiva, sendo que a obtenção de tais imagens de vídeo do telemóvel – aparelho já apreendido nos autos – se revela de grande interesse para a descoberta da verdade material e/ou para a prova, e existe uma real impossibilidade de se atingirem as finalidades do processo por qualquer outro meio de obtenção prova que não a que foi requerida ao JIC pelo MºPº, pelo que atentos os princípios da adequação e da proporcionalidade teria sido de deferir ao solicitado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No âmbito do NUIPC 527/20.8PCRGR, concomitantemente com a acusação pública deduzida, em 23.12.2020, contra AA[1], para seu julgamento, imputando-lhe factos integrantes da prática de um crime de violência doméstica[2], o Ministério Público (da Procuradoria da República da Comarca dos Açores - Departamento de Investigação e Ação Penal -Secção da Ribeira Grande), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 187.º, n.ºs 1, alínea a), e 4, alínea a), e 269.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, requereu, “à Meritíssima Juíza com funções de Instrução Criminal de turno”, a realização de perícia ao telemóvel apreendido a BB e extracção do seu conteúdo, no que se refere aos vídeos por esta efectuados, enquanto conduzia, envolvendo-a e aos seus filhos menores, que transportava no veículo; gravações de vídeos que reproduzia em directo no Facebook (e entretanto apagados na sua conta daquela rede social, permanecendo apenas no telemóvel), colocando os menores em perigo, conduta investigada no âmbito do NUIPC 334/20.8T9RGR e que o Ministério Público considera susceptível de consubstanciar a prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
2. Aquela pretensão foi indeferida por despacho, da Meritíssima Juíza de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores - Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada, exarado nos autos em 29.12.2020, como Atos Jurisdicionais em Inquérito (cfr. referência Citius n.º 50727117) sendo notificado ao Magistrado do Ministério Público, por termo nos autos, em 30.12.2020.
3. Inconformado com a mencionada decisão, recorre o Ministério Público – o requerimento de interposição do recurso e a respetiva motivação, deram entrada em 03.02.2021 recorrida (cfr. referência Citius n.º 3999005) – extraindo as seguintes conclusões:
1. O Ministério Público, a 23-12-2021, promoveu, ao abrigo do disposto nos arts. 187.° n.° 1 al. a) e n.° 4 al. a) e 269.° n.° 1 al. a), ambos do CPP, a realização de perícia ao telemóvel da Arguida, considerando que
2. "I - Resulta indiciada nos autos com o NUIPC 334/20.8T9RGR, a prática de factos susceptíveis de integrarem um crime de Maus tratos p. e p. pelo art. 152.°-A, n.° 1 al. a) do CP, punido com pena de prisão até 5 anos, através do telefone, concretamente, que a Arguida BB, enquanto tripula o veículo automóvel no qual, simultaneamente, transporta os seus filhos menores, efectua gravações de vídeos que reproduz em directo na rede social Facebook, colocando os menores em perigo.
Apesar de no dia 16-9-2020, a fls. 30 do referido inquérito, BB ter consentido no visionamento, consulta, pesquisa, exame e extracção de todo o conteúdo do telemóvel que lhe foi apreendido, no dia 21-10-2020, a fls. 90 dos autos principais, a mesma retirou esse consentimento.
Os vídeos em causa já terão sido retirados daquela rede social e, assim, a única forma de investigar aquela factualidade é, pois, através do visionamento do conteúdo do telemóvel, sendo do interesse da investigação, apenas extrair os referidos vídeos de modo a se poder proceder à sua visualização e localização no tempo e no espaço, e nenhum outro conteúdo pessoal ou íntimo de BB. O recurso a este meio de obtenção de prova, que é excepcional (atenta a sistematização dos meios de prova no Cód. de Processo Penal e os princípios inerentes aos meios de obtenção de prova) e subsidiário relativamente aos restantes meios de prova, conforme decorre do disposto no art. 18.° n.° 2 da Constituição da República Portuguesa, pressupõe, antes de mais, o preenchimento de determinados requisitos que se enunciam:
I. Estar-se perante um dos crimes enunciados no catálogo constante do art. 187.° do Cód. de Processo Penal;
II. Revelar-se de grande interesse para a descoberta da verdade material ou para a prova, e
III.Impossibilidade de se atingirem as finalidades do processo por qualquer outro meio de obtenção prova (Princípios da Adequação e da Proporcionalidade).
3. Ora, no caso concreto verifica-se que:
1. O crime indiciado nos autos é o de Maus tratos, cometido através de telefone, p. e p. pelos arts. 13.°, 14.° n.° 1, 26.° 1.a parte e 152.°-A, n.° 1 do Cód. Penal é, pois, um dos crimes enquadráveis no art. 187.° n.° 1 al. a) do Cód. de Processo Penal;
II. O meio usado para o cometimento do crime foi o telemóvel apreendido neste processo;
A obtenção dos referidos vídeos é de grande interesse para a descoberta da verdade material, bem como para a aquisição da prova da prática do crime em causa.
Por outro lado, nenhum outro meio de obtenção de prova é susceptível de clarificar o crime indiciado e o seu agente, na medida em que o telemóvel é o único dispositivo que contém esse vídeo, sendo aquele o único meio de prova susceptível de atestar a identidade do autor da prática do crime indiciado, pelo que a obtenção de tal lista é não só necessária, como exigível. Acresce ainda que o recurso à obtenção do mesmo é igualmente adequado às finalidades do processo.
4. Assim, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 187.° n.° 1 al. a), n.° 4 al. a) do Cód. de Processo Penal e considerando que a realização de perícia ao referido telemóvel e concomitante extracção do seu conteúdo, no que se refere aos vídeos efectuados nos termos acima descritos, envolvendo BB e os seus filhos, e apenas estes, consubstancia matéria da exclusiva competência do Juiz de Instrução Criminal nos temos do art. 269.° n.° 1 al. a) do Cód. de Processo Penal, vão os autos à Meritíssima Juíza com funções de Instrução Criminal de turno, a quem, pelos fundamentos aduzidos, promovo que ordene a realização da referida perícia.
5. Sobre a promoção do Ministério Público, recaiu, em 29-12-2020, o seguinte despacho:
"O processo penal português admite como meio de prova as reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo eletrónico e, de modo geral, quaisquer reproduções mecânicas, desde que não tenham sido feitas de modo ilegal — quer dizer, se não constituírem um crime de gravações e fotografias ilícitas — cf. artigo 167° do CPP.
No caso dos autos requer o M.P. a obtenção de vídeo que constará na memória do telemóvel apreendido à arguida BB, que que esteve publicado na rede social facebook, mas que, entretanto, foi daí retirado, o qual constituirá a reprodução cinematográfica de uma situação que a CPCJ apelida de perigo para os filhos menores de BB, ou seja, CC, nascido a ...-...-2018, e DD, nascido a ...-...-2009, quando estavam a ser transportados num veículo em andamento pela mãe, apenas se retirando do auto de comunicação da CPCJ de fls. 2 a 6 do processo apenso 334/20.8T9RGR, que a situação de perigo consistirá na gravação de vídeo em direto em simultâneo com o ato de condução, sem mais, situação que por si só, não assume gravidade que permita o seu enquadramento na ação típica a que alude o artigo 152º-a/l/b) do C.P., consistindo, quando muito, na prática de uma contraordenação estradal. Consequentemente, face à natureza excecional desde meio de obtenção de prova, posto que representa uma forte compressão da reserva da intimidade da vida privada e da inviolabilidade dos meios de comunicação, e dado que não existe sequer princípio de prova de ação integradora de um crime de maus tratos p. e p. no artigo 152°-A do CP, tendo presente o disposto no artigo 187°/1 do CPP aplicável "ex vi" do artigo 189°/1 do mesmo diploma legal, não autorizo a recolha/captação do vídeo requerida pelo M.P.
Notifique.
(...)»
A douta decisão recorrida indeferiu a realização da referida perícia ao telemóvel da Arguida, com o que se lograria extrair o(s) vídeo(s) em causa — e nenhuns outros -, mas, ressalvando o devido o devido e merecido respeito, fê-lo de forma com a qual não nos conformamos.
6. A Meritíssima Juíza a quo, classifica de imediato a denúncia da factualidade em causa como, apenas, uma eventual contraordenação estradal, referindo que a denúncia apresentada não possuiu gravidade que possa subsumir-se a um crime de Maus tratos p. e p. no art. 152.° -A n.° 1 ai. b) do CP, sem sequer cuidar da necessidade de se proceder a qualquer acto investigatório, sustentando a sua decisão na forte compressão dos direitos da Arguida caso fosse ordenada a extracção/captação daquele ficheiro de vídeo.
7. O telemóvel em causa foi previamente apreendido pela Meritíssima Juíza com funções Instrutórias, em funções no Juízo Local Criminal da Ribeira Grande, a qual deferiu a realização de buscas domiciliárias para o efeito, sabendo que tal diligência probatória era requerida com o propósito de apurar o teor e circunstâncias das gravações imputadas à Arguida (vide despacho de 11-9-2020, com o qual se instruiu este recurso), proferido no processo 334/20.8T9RGR, tendo a Meritíssima Juíza em funções instrutória de Turno, adoptado um entendimento diverso, nos termos já descritos.
8. Nos termos dos arts. 53.° n.° 2 al. b) e 263.° n.° 1 do CPP, cabe ao Ministério Público e não à Meritíssima Juíza com funções instrutórias de turno a direcção da acção penal, sendo aquele quem poderá decidir da tempestividade e adequação das diligências probatórias em fase de inquérito
10. A Meritíssima Juíza, ao decidir como decidiu, desvalorizou a ocorrência, sem sequer cogitar que é necessário apurar a veracidade, extensão e consequências da conduta denunciada, da qual poderá resultar, eventualmente, uma situação de colocação de duas crianças menores em perigo e não apenas, como refere, quando muito, uma contraordenação estradal.
11. Uma vez na posse da referida gravação de vídeo — e caso se confirme que a mesma foi levada a cabo pela Arguida... -, o Ministério Público saberá daí extrair todas as consequências, valorando a conduta da Arguida e subsumindo-a, ou não, ao crime de  Maus tratos ou a qualquer outro. Mas se não estiver na posse do referido ficheiro, não poderá investigar a factualidade denunciada.
12. Não podemos, com o maior respeito, limitar desta forma a actividade investigatória do Ministério Público que, assim, na carência de outros elementos probatórios, fica condicionado a proferir uma decisão quase liminar de arquivamento do inquérito.
13. Na verdade, o Ministério Público é o titular da acção penal, ao qual cabe — e não à Meritíssima Juíza com funções instrutórias de turno - definir o momento em que as diligências probatórias são realizadas e o meio de prova em causa é absolutamente necessário, essencial, adequado e proporcional para a descoberta da verdade material, sendo, com o devido respeito, inaceitável que num caso como o vertente, não se defira a realização da referida perícia com a concomitante extracção de gravação de vídeo alegadamente realizada pela Ofendida.
 14. Os indícios da prática de crime não são ainda suficientes, mas já são bastantes para prosseguir a actividade investigatória através da perícia promovida, com a qual se pretende, de forma óbvia, robustecer aqueles indícios, apurar se os mesmos são suficientes, não podendo ignorar-se que, porquanto tais vídeos foram já retirados da rede social onde foram colocados, não se perspectiva outro meio de obtenção de prova.
15. Ao decidir como decidiu, a Meritíssima Juíza violou os arts. arts. 34.° n.° 4 da CRP, 53.° n.° 2 al. b), 187.° n.° 1 al. a), n.° 4 al. a) e art. 269.° n.° 1 al. a) do CPP, por interpretação e aplicação menos adequada daquelas normas e não subsumiu a realidade, consubstanciada nas exigências cautelares do caso concreto, ao direito, designadamente, aos meios de obtenção de prova.
16. Impõe-se, pois, a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por despacho que determine a realização de perícia ao telemóvel apreendido, através da qual se logre a extracção/captação de eventuais filmagens realizadas pela Arguida, enquanto tripula um veículo automóvel no qual transporta dois filhos menores, o que se pretende com o presente recurso.
V. Ex.as, porém, e como sempre, farão JUSTIÇA!(fim de transcrição).
4. Em 04.02.2021 foi proferido despacho judicial, admitindo o recurso e de sustentação da decisão recorrida (cfr. referência Citius n.º 3999005), nos seguintes termos:
“Veio o Ministério Público interpor recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa do despacho proferido em 29 de Setembro de 2020, que indeferiu a recolha/ captação do vídeo que consta da memória do telemóvel apreendido à arguida BB.
Cumpre, agora, proferir despacho nos termos do disposto no artigo 414.º do Código de Processo Penal.
Por legalmente admissível – artigos 399.º –, tempestivo – artigo 411.º, n.º 1, alínea a), do C.P.P –, apresentado por quem tem legitimidade – artigo 401.º, n.º 1, alínea a), do C.P.P –, e conter a respectiva motivação – artigo 414.º, n.º 2, do C.P.P – admito o recurso interposto pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 414.º, n.º 1 e n.º 2 a contrario, do Código Processo Penal.
O presente recurso sobe imediatamente e em separado, nos termos das disposições legais constantes dos artigos 406.º, n.º 2, 407.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, e tem efeito meramente devolutivo (artigo 408.º, n.º 1 e 2, a contrario, do Código Processo Penal.
***
Nos termos do n.º 4 do artigo 414.º do C.P.P., sustenta-se o despacho recorrido.
Com as formalidades legais instrua os autos de recurso em separado com certidão do requerimento de ref. 50661482, despacho recorrido e do recurso interposto.
Após, subam esses autos de recuso em separado ao Tribunal da Relação.
Notifique e demais D.N..”(fim de transcrição, assinalando-se ter sido manifestamente cometido na decisão recorrida um erro material de escrita ao dizer-se que o despacho revidendo foi proferido a “29 de Setembro de 2020” quando na realidade o foi a 29 de dezembro de 2020).
5. Subidos os autos, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto teve neles “Vista” e emitiu o seguinte parecer: Recurso do Ministério Público: Acompanho a motivação do recurso interposto pelo MP junto da 1ª instância(cfr. referência Citius n.º 16612216).
6. Foi cumprido, oficiosamente, o preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo havido resposta.
7. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.
8. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.° - pág. 279 e 453.° - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403.° e 412.°, n.° 1, do CPP).
A questão suscitada pelo recorrente, que deverá ser apreciada por este Tribunal Superior, é, em síntese, a de que ao decidir como decidiu, a Meritíssima Juíza violou os arts. arts. 34.° n.° 4 da CRP, 53.° n.° 2 al. b), 187.° n.° 1 al. a), n.° 4 al. a) e art. 269.° n.° 1 al. a) do CPP, por interpretação e aplicação menos adequada daquelas normas e não subsumiu a realidade, consubstanciada nas exigências cautelares do caso concreto, ao direito, designadamente, aos meios de obtenção de prova. Pelo que se impõe a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por despacho que determine a realização de perícia ao telemóvel apreendido, através da qual se logre a extracção/captação de eventuais filmagens realizadas por BB, enquanto tripula um veículo automóvel no qual transporta dois filhos menores, o que é susceptível de consubstanciar a prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
2. Antes de avançarmos importa atentar no teor do requerimento do Ministério Público sobre o qual recaiu a decisão ora recorrida e que é o seguinte:
“I -Resulta indiciada nos autos com o NUIPC 334/20.8T9RGR, a prática de factos susceptíveis de integrarem um crime de Maus tratos p. e p. pelo art. 152.º-A, n.º 1 al. a) do CP, punido com pena de prisão até 5 anos, através do telefone, concretamente, que a Arguida BB, enquanto tripula o veículo automóvel no qual, simultaneamente, transporta os seus filhos menores, efectua gravações de vídeos que reproduz em directo na rede social Facebook, colocando os menores em perigo.
Apesar de no dia 16-9-2020, a fls. 30 do referido inquérito, BB ter consentido no visionamento, consulta, pesquisa, exame e extracção de todo o conteúdo do telemóvel que lhe foi apreendido, no dia 21-10-2020, a fls. 90 dos autos principais, a mesma retirou esse consentimento.
Os vídeos em causa já terão sido retirados daquela rede social e, assim, a única forma de investigar aquela factualidade é, pois, através do visionamento do conteúdo do telemóvel, sendo do interesse da investigação, apenas extrair os referidos vídeos de modo a se poder proceder à sua visualização e localização no tempo e no espaço, e nenhum outro conteúdo pessoal ou íntimo de BB.
O recurso a este meio de obtenção de prova, que é excepcional (atenta a sistematização dos meios de prova no Cód. de Processo Penal e os princípios inerentes aos meios de obtenção de prova) e subsidiário relativamente aos restantes meios de prova, conforme decorre do disposto no art. 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, pressupõe, antes de mais, o preenchimento de determinados requisitos que se enunciam:
I. Estar-se perante um dos crimes enunciados no catálogo constante do art. 187.º do Cód. de Processo Penal;
II. Revelar-se de grande interesse para a descoberta da verdade material ou para a prova, e
III. Impossibilidade de se atingirem as finalidades do processo por qualquer outro meio de obtenção prova (Princípios da Adequação e da Proporcionalidade).
Ora, no caso concreto verifica-se que:
I. O crime indiciado nos autos é o de Maus tratos, cometido através de telefone, p. e p. pelos arts. 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte e 152.º-A, n.º 1 do Cód. Penal é, pois, um dos crimes enquadráveis no art. 187.º n.º 1 al. a) do Cód. de Processo Penal;
II. O meio usado para o cometimento do crime foi o telemóvel apreendido neste processo;
III. A obtenção dos referidos vídeos é de grande interesse para a descoberta da verdade material, bem como para a aquisição da prova da prática do crime em causa. Por outro lado, nenhum outro meio de obtenção de prova é susceptível de clarificar o crime indiciado e o seu agente, na medida em que o telemóvel é o único dispositivo que contém esse vídeo, sendo aquele o único meio de prova susceptível de atestar a identidade do autor da prática do crime indiciado, pelo que a obtenção de tal lista é não só necessária, como exigível. Acresce ainda que o recurso à obtenção do mesmo é igualmente adequado às finalidades do processo.
Assim, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 187.º n.º 1 al. a), n.º 4 al. a) do Cód. de Processo Penal e considerando que a realização de perícia ao referido telemóvel e concomitante extracção do seu conteúdo, no que se refere aos vídeos efectuados nos termos acima descritos, envolvendo BB e os seus filhos, e apenas estes, consubstancia matéria da exclusiva competência do Juiz de Instrução Criminal nos termos do art. 269.º n.º 1 al. a) do Cód. de Processo Penal, vão os autos à Meritíssima Juíza com funções de Instrução Criminal de turno, a quem, pelos fundamentos aduzidos, promovo que ordene a realização da referida perícia.” (fim de transcrição).
3. Bem como atentar no teor da decisão ora recorrida e que é o seguinte:
"O processo penal português admite como meio de prova as reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo eletrónico e, de modo geral, quaisquer reproduções mecânicas, desde que não tenham sido feitas de modo ilegal – quer dizer, se não constituírem um crime de gravações e fotografias ilícitas – cf. artigo 167º do CPP.
No caso dos autos requer o M.P. a obtenção de vídeo que constará na memória do telemóvel apreendido à arguida BB, que que esteve publicado na rede social facebook, mas que, entretanto, foi daí retirado, o qual constituirá a reprodução cinematográfica de uma situação que a CPCJ apelida de perigo para os filhos menores de BB, ou seja, CC, nascido a ...-...-2018, e DD, nascido a ...-...-2009, quando estavam a ser transportados num veículo em andamento pela mãe, apenas se retirando do auto de comunicação da CPCJ de fls. 2 a 6 do processo apenso 334/20.8T9RGR, que a situação de perigo consistirá na gravação de vídeo em direto em simultâneo com o ato de condução, sem mais, situação que por si só, não assume gravidade que permita o seu enquadramento na ação típica a que alude o artigo 152º-a/1/b) do C.P., consistindo, quando muito, na prática de uma contraordenação estradal. Consequentemente, face à natureza excecional desde meio de obtenção de prova, posto que representa uma forte compressão da reserva da intimidade da vida privada e da inviolabilidade dos meios de comunicação, e dado que não existe sequer princípio de prova de ação integradora de um crime de maus tratos p. e p. no artigo 152º-A do CP, tendo presente o disposto no artigo 187º/1 do CPP aplicável “ex vi” do artigo 189º/1 do mesmo diploma legal, não autorizo a recolha/captação do vídeo requerida pelo M.P.
Notifique." (fim de transcrição).
4. Vejamos se assiste razão ao recorrente.
Afigura-se a este tribunal ad quem, tudo apontar para a existência de sérios indícios que, em data ou datas e local ou locais a ainda serem devidamente apurados, mas seguramente há menos de três anos, BB, melhor identificada nos autos, mãe de CC, nascido a ...-...-2018, e DD, nascido a ...-...-2009, enquanto se transportava e àqueles dois menores seus filhos, num veículo automóvel, por si conduzido, efectuava, em pleno andamento, simultaneamente, com o seu telemóvel, gravações de vídeos que reproduzia em directo na rede social Facebook.
Os vídeos em causa já terão sido retirados daquela rede social e apesar de no dia 16-9-2020, a fls. 30 do inquérito n.º 334/20.8T9RGR, BB ter consentido no visionamento, consulta, pesquisa, exame e extracção de todo o conteúdo do telemóvel que lhe foi apreendido, no dia 21-10-2020, a fls. 90 dos autos principais (o presente processo 527/20.8PCRGR), a mesma retirou esse consentimento.
Assim sendo, a única forma de investigar aquela factualidade é, pois, através do visionamento do conteúdo existente na memória do telemóvel, sendo do interesse da investigação – conforme alegou e alega o Ministério Público, que é o titular do exercício da acção penal – apenas dele extrair os referidos vídeos de modo a se poder proceder à sua visualização e localização no tempo e no espaço, e nenhum outro conteúdo pessoal ou íntimo de BB.
 O Ministério Público considerando que tal conduta é susceptível de consubstanciar a prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, punido com pena de prisão até 5 anos, requereu, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 187.º n.ºs 1, al. a), e 4 al. a) do Cód. de Processo Penal a realização de perícia ao referido telemóvel e concomitante extracção do seu conteúdo, no que se refere aos vídeos efectuados nos termos acima descritos, envolvendo BB e os seus filhos, e apenas estes, para obtenção do necessário meio de prova, e sendo matéria da exclusiva competência do Juiz de Instrução Criminal, nos termos do art. 269.º n.º 1 al. a) do Cód. de Processo Penal, fê-lo a este.
O que a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal indeferiu, pelo despacho ora recorrido, por considerar que aquela conduta/situação, sem mais e por si só, “não assume gravidade que permita o seu enquadramento na ação típica a que alude o artigo 152º-a/1/b) do C.P., consistindo, quando muito, na prática de uma contraordenação estradal.
Apreciando, dirá este tribunal ad quem, por um lado, estar seguro que na subsunção dos factos ao direito, a descrita conduta de BB ora em causa, a provar-se, constitui, nos termos do artigo 145.º, n.º 1, alínea n), do Código da Estrada, uma contraordenação grave, em conjugação com os artigos 84.º, n.º 1 e 138.º, daquele código, punível com coima e com a sanção acessória de inibição de conduzir com o mínimo de um mês e o máximo de um ano (cf. artigos 138.º e 147.º, n.ºs 1 e 2, 1.ª parte, daquele código), bem como, por outro lado, não está este Coletivo da Relação de Lisboa seguro que na subsunção dos factos ao direito o mencionado comportamento integre a prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, como pretende o recorrente, antes se lhe afigurando preencher a prática de um crime de exposição p. e p. pelo art. 138.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal, porquanto BB colocou em perigo a vida dos seus filhos menores CC e DD, expondo-os em lugar que os sujeitou a uma situação de que aqueles, só por si, não podiam manifestamente defender-se, atentas as suas jovens idades e estarem confinados dentro de veículo automóvel em andamento, portanto sem qualquer domínio sobre o facto perigoso, que era conduzir ao telemóvel, filmando em directo para o Facebook, e sem dele se poderem as crianças afastar. Fazendo-o nitidamente em violação dos especiais deveres de cuidado e protecção das crianças, seus filhos e à sua guarda, a que no âmbito das suas responsabilidades parentais está obrigada como mãe, a respeitar e zelar, tendo a responsabilidade de sempre o fazer, em toda e qualquer circunstância, sem nunca os colocar em perigo e/ou risco de vida.
Aliás, como deu conta o recorrente e dá conta no seu despacho a Mmª JIC, também foi essa a posição/subsunção da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, que terá considerado que a gravação de vídeo em direto em simultâneo com o acto de condução confira uma situação de perigo para os menores, como resultará do auto de comunicação da CPCJ de fls. 2 a 6 do processo apenso 334/20.8T9RGR.
Com efeito, é proibido ao condutor, durante a marcha de veículo, a utilização ou o manuseamento de forma continuada de qualquer tipo de equipamento ou aparelho suscetível de prejudicar a condução, como é o caso, designadamente, de um telemóvel, porquanto tal representa um enorme e significativo perigo, não só em termos abstractos mas as demais das vezes concretos da ocorrência de acidente, de onde resulte à morte ou um sério perigo para a vida, quer do próprio, quer de terceiros, transportados no veículo em causa ou noutros veículos terceiros.
A atestá-lo está a circunstância da distração causada pelo uso do telemóvel, in casu ser ainda maior por não estar somente a falar mas a publicar on live no Facebook imagens por este captadas em directo, a par de ao fazê-lo ter de, em princípio, ficar com uma das mãos inoperacional para a adequada prática da condução.
A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) tem vindo a assinalar o uso do telemóvel e de outros dispositivos, como os tablets, durante a condução como os responsáveis pelo aumento de acidentes com vítimas que se regista desde 2012.
"Há uma série de aparelhos utilizados ao volante que tiram a atenção da estrada e são um factor de distracção. Ao tirar a atenção da estrada, criam-se as condições para que haja acidentes e um agravamento do número de acidentes", disse o Presidente da ANSR, no final da apresentação da "Operação Festas Seguras 2016" e de uma campanha de sensibilização rodoviária.
Desde 2012 que o número de acidentes rodoviários aumenta anualmente. De acordo com a ANSR, só durante o ano de 2016 registaram-se 121.471 acidentes, mais 4384 do que no ano anterior (2015). Segundo o Presidente da ANSR este fenómeno do agravamento do índice da sinistralidade "não é português", sendo também europeu. "A nossa interpretação é que isso decorre dos maus comportamentos actuais de utilização do telemóvel ao volante e de outros dispositivos, como tablets e painéis que existem em muitos carros.”
“Dados divulgados pela ANSR mostram que os tempos de reacção do condutor a utilizar o telemóvel são 30% mais lentos daqueles que ocorrem na condução sob o efeito de álcool com uma taxa de 0,8 gramas por litro no sangue e 50% mais lentos dos que se verificam numa situação de condução normal. Em 2015, as forças de segurança detectaram 54.027 infracções por uso de telemóvel durante a condução" (citado no acórdão deste Tribunal da Relação de 3 de outubro de 2018, relatado por Rui Teixeira, proferido no processo 242/18.2Y5LSB.L1 e disponível na JusNet).
A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), a Guarda Nacional Republicana (GNR) e a Polícia de Segurança Pública (PSP) lançaram no dia 23 de fevereiro de 2021, a Campanha de Segurança Rodoviária “Phone Off – A conduzir não uses o telemóvel” que, inserida no Plano Nacional de Fiscalização de 2021, decorreu até ao dia 1 do corrente mês.
A campanha, como se pode ler no respectivo COMUNICADO[3], teve “como objetivo alertar os condutores para as consequências negativas e mesmo fatais do uso indevido do telemóvel durante a condução.” Assinalando que: “Em 2020 foram registadas 23.038 infrações por manuseamento do telemóvel durante a condução, o que corresponde a uma média de cerca de 63 infrações por dia. Estudos científicos equiparam o uso indevido do telemóvel à condução sob o efeito do álcool, com consequências muito parecidas na atenção e na capacidade de reação. Com o intuito de reduzir este comportamento, as alterações ao Código da Estrada, em vigor desde 8 de janeiro deste ano, duplicaram os valores das coimas, tendo passado os seus limites para €250 a €1.250, com subtração de 3 pontos na carta em vez dos 2, anteriormente previstos. (…)
A ANSR, a GNR e a PSP relembram que o uso do telemóvel ao volante é perigoso e apelam a todos que evitem este comportamento:
▪ A utilização do telemóvel, durante a condução, aumenta 4 vezes o risco de ocorrência de acidente de viação;
▪ A distração ocorre quando duas tarefas mentais, conduzir e utilizar o telemóvel, são executadas ao mesmo tempo o que provoca lapsos de atenção e erros de avaliação.
▪ O uso de aparelhos eletrónicos durante a condução causa dificuldade na interpretação da sinalização e desrespeito das regras de cedência de passagem, designadamente em relação aos peões.
O Plano Nacional de Fiscalização, enquadrado no Plano Estratégico Nacional de Segurança Rodoviária – PENSE 2020, o qual tem como desígnio “Tornar a Segurança Rodoviária uma prioridade para todos os Portugueses”, prevê a realização de campanhas de sensibilização em simultâneo com operações de fiscalização em locais onde ocorrem regularmente infrações que representam um risco acrescido para a ocorrência de acidentes.
A sinistralidade rodoviária não é uma fatalidade e as suas consequências mais graves podem ser evitadas através da adoção de comportamentos seguros na estrada.” (fim de transcrição).
Seja como for, entende este tribunal ad quem que aquela contraordenação, sempre estará em concurso real, com a autoria material, na forma consumada, de ilícito penal, seja ele o crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, como pretende o recorrente, seja o crime de exposição p. e p. pelo art. 138.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do mesmo diploma, ambos puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos, mais concretamente para o primeiro “com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” e para o segundo “com pena de prisão de 2 a 5 anos”, pelo que se mostra preenchida a condição de admissibilidade da al. a), do n.° 1 do art. 187.°, do CPP a conjugar com n.° 4 al. a) da mesma norma adjectiva, sendo que a obtenção de tais imagens de vídeo do telemóvel de BB – aparelho já apreendido nos autos – se revela de grande interesse para a descoberta da verdade material e/ou para a prova, e existe uma real impossibilidade de se atingirem as finalidades do processo por qualquer outro meio de obtenção prova que não a que foi requerida ao JIC pelo MºPº, pelo que atentos os princípios da adequação e da proporcionalidade teria sido de deferir ao solicitado.
Na realidade, no caso concreto, como bem assinala o recorrente:
“O meio usado para o cometimento do crime foi o telemóvel apreendido neste processo;
A obtenção dos referidos vídeos é de grande interesse para a descoberta da verdade material, bem como para a aquisição da prova da prática do crime em causa.
Por outro lado, nenhum outro meio de obtenção de prova é susceptível de clarificar o crime indiciado e o seu agente, na medida em que o telemóvel é o único dispositivo que contém esse vídeo, sendo aquele o único meio de prova susceptível de atestar a identidade do autor da prática do crime indiciado, pelo que a obtenção de tal lista é não só necessária, como exigível. Acresce ainda que o recurso à obtenção do mesmo é igualmente adequado às finalidades do processo.” (fim de transcrição).
Destarte, tudo visto e ponderado, o recurso deve proceder.  

III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se, nessa conformidade, a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra em que a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal determine a realização de perícia ao telemóvel apreendido a BB e à extracção de eventuais filmagens por esta realizadas, apenas e tão só, no que se refere ao conteúdo dos vídeos efectuados enquanto tripula um veículo automóvel no qual transporta dois filhos menores, tudo nos termos e para os efeitos supra consignados.
Sem tributação.
Notifique nos termos legais.
(o presente acórdão foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2, do CPP)

Lisboa, 11 de março de 2021
Calheiros da Gama
Abrunhosa de Carvalho
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[1] No final da acusação o Ministério Público consignou “AA ainda não foi constituído Arguido.” e mais adiante, quase a terminar aquela peça processual, determinou: “remeta os autos à Meritíssima Juíza com funções de Instrução Criminal de turno a quem se requer a realização de 1,º interrogatório judicial do denunciado AA, na sequência da sua constituição como Arguido, para aplicação da medida de coacção diversa do TIR.”, o que foi deferido pela Mmª JIC, na 2ª parte do seu despacho de 29.12.2020, ao decidir “Para a realização de Interrogatório judicial do arguido AA, em vista à aplicação de medida de coação diversa de termo de identidade e residência, pelos factos descritos a fls. 156 a 159, indicadores da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º/1/a)/2/a) do CP, designo o dia 07-01-2021, pelas 14h00m. Notifique.”
[2]Agravado p. e p. pelos arts. 13.º, 14.ºn.º 1, 26.º 1.ª parte, 152.º n.º 1 al. a) e n.º 2 al. a) do CP.”
[3] disponível em: http://www.ansr.pt/Comunicados/Documents/082021/Lan%c3%a7amento%20Campanha%20Phone%20Off%20-%20A%20conduzir%20n%c3%a3o%20uses%20o%20telem%c3%b3vel.pdf