Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5478/09.4TVLSB.L1-7
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: CASAMENTO
BEM IMÓVEL
BENS PRÓPRIOS
REGIME DE COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/01/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Quando estão em causa apenas os interesses dos próprios cônjuges, a falta da declaração referida na alínea c) do art. 1723º do CC pode ser substituída por qualquer meio de prova que demonstre que o bem foi adquirido apenas com dinheiro ou com bens próprios de um deles.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Ana … intentou a presente acção declarativa comum, sob a forma ordinária, contra L…, pedindo:

a) Se declare que a fracção autónoma descrita sob a letra “M”, correspondente ao 4º esquerdo do prédio nº ... da Avenida de …, era bem próprio da Autora;

b) Se rectifique a inscrição no registo predial, fazendo constar que era bem próprio da Autora;

c) Subsidiariamente, que se cancele a dita inscrição para se efectuar outra nos termos acima referidos;

d) Se declare que a fracção autónoma descrita soba a letra “K”, correspondente ao 4º direito e à arrecadação na cave «-3», bem como a quota de 1/64 avos na fracção autónoma descrita sob a letra “A”, do prédio sito no n.º …da Rua …, em …, são bem próprio da Autora;

e) Se cancele a inscrição G-dois no registo predial relativa à fracção “K” e à fracção “A”.


Para tanto alega, em síntese, que:

Por escritura pública, celebrada em 27/6/1984, a A. adquiriu a propriedade da fracção autónoma correspondente à letra “M” e a garagem nº3, do prédio sito na Av. … nº …, em …;

A totalidade do preço foi paga exclusivamente com fundos adquiridos pela A., em data anterior à do seu casamento com o R.;

Na pendência do casamento com o R., este a a Autora intervieram numa escritura pública pela qual permutaram a dita fracção “M” pela fracção “K” e a quota de 1/64 avos da fracção autónoma “A”; de um prédio sito no nº 16 da Rua …, também em …;

A aquisição da fracção “K” e da garagem veio a ser registada a favor de A. e R., como se fossem bens comuns do casal;

O empréstimo bancário contraído para financiar a permuta tem vindo a ser pago exclusivamente pela A.

Em 12/12/2002, por sentença transitada em julgado, foi decretado o divórcio entre A. e R.

2. Regularmente citado, o réu não contestou.

3. Foi proferida sentença que, julgando a acção totalmente improcedente, absolveu o réu do pedido.

4. Inconformada, apela a autora, a qual, em conclusão, diz:

1. - O Tribunal “a quo” decidiu de facto e de direito tendo como pressuposto suspeitas de simulação processual das partes, que os factos trazidos aos autos não permitem formular ou consubstanciar, pois o que dos mesmos resulta é a existência de conflitos de interesses entre as partes, o que constitui violação do disposto no art. 659º, nº 3, do C.P.C..

2. - Quanto à inexistência de litígio entre as partes nestes autos, pressuposta na douta sentença, os factos alegados pela recorrente nos arts 27º a 30º, 37º e 38º, 44º a 52º e 73º a 81º da p.i. e que constam do doc. 20, junto com a mesma, devem ser incluídos na matéria de facto dada como provada, pois demonstram que existe, efectivamente e há anos, um conflito profundo de interesses entre as partes, não só no que respeita à titularidade da propriedade das fracções em causa nestes autos, mas, também, em relação ao que o recorrido deve à recorrente, por ter sido esta e o seu património os únicos a responder por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges.

3. - Na sua douta sentença o Tribunal “a quo” limitou-se a levar à matéria de facto aqueles factos que se compaginam com as soluções jurídicas que sustentou, ignorando todos os outros factos alegados pela recorrente e que podem conduzir a soluções diferentes, violando, assim, o disposto no referido art. 511º, nº 1, do C.P.C.

4. - Ao decidir que, mesmo tendo sido alegado e não contestado, logo estar provado (cf. FP 4), que a recorrente e a sua tia acordaram que a primeira passaria a ser a arrendatária do andar e que tal acordo mereceu a concordância da senhoria, essa cedência entre vivos da posição de arrendatário habitacional não é permitida por lei (art. 1059º, nº 1, do C.C.), sendo esse mesmo acordo e a declaração de consentimento da senhoria nulos e de nenhum efeito (art. 280º, nº1, do C.C.), pelo que a ora recorrente nunca foi arrendatária da fracção da Av. de …, a douta sentença recorrida violou os arts 405º, nº 1, 1059º, nº 1 e 2, 280º, nº 1, e 424º, nº 1, do C.C.

5. - A lei não proíbe, a cessão por acto entre vivos da posição contratual de um arrendatário, mas, bem pelo contrário, permite expressamente tal cessão e regula-a, mandando aplicar-lhe os termos gerais previstos nos art. 424º e seguintes do C.C., pelo que, nos termos dos arts 1059º, nº 2 e 424º do C.C., em consequência de tal acordo e do livre consentimento da senhoria, a recorrente passou a ser arrendatária da Fracção da Av. de ….

6. - Daqui decorre que foi válido o acordo de cedência da posição de inquilina celebrado entre a recorrente e a sua tia e que válida foi também a declaração de consentimento da senhoria, e que são relevantes para a decisão de direito do caso dos autos todos os factos articulados pela recorrente nos artigos 7º, 11º, 12º, 13º, 19º a 24º, 31º, 33º e 34º, todos da p.i., pois dos mesmos resulta que a recorrente assumiu a posição de arrendatária em 1982, muito tempo antes do seu casamento com o recorrido em 06/04/84, pelo que os factos alegados nesses artigos devem ser incluídos na matéria de facto dada como provada.

7. - Não foi contestado que foi a recorrente que, logo em 1982, efectuou o pagamento das quantias referidas no facto provado nº 5, a quem, em 1983, o advogado que patrocinava os interesses dos inquilinos se passou a dirigir e a prestar contas e a quem o mesmo advogado apresentou a sua conta de despesas e honorários referentes ao período de 13/08/82 a 12/07/84, e a quem o mesmo devolveu a última renda que a recorrente já havia pago à senhoria no mês em que se celebrou a escritura de compra e venda, de onde resulta que a recorrente assumiu a posição de arrendatária desde o início da fase preambular do exercício do direito de preferência que assistia à inquilina do andar.

8. - Em consequência da cessão à recorrente da sua posição contratual de arrendatária, que ocorreu antes do casamento entre recorrente e recorrido, a tia da recorrente transmitiu para esta, com o livre consentimento da senhoria, logo de forma válida e eficaz em relação à proprietária, todos os direitos de crédito, direitos potestativos e expectativas correspondentes à posição contratual de arrendatária, o que, manifestamente, também inclui o direito de preferência da arrendatária do local, pelo que, no momento em que a recorrente exerceu efectivamente esse direito ao adquirir a fracção da Av. de …, estava a fazê-lo por força de um direito que tinha como arrendatária desde data anterior à do seu casamento com o recorrido.

9. - A recorrente nunca alegou ou afirmou que o direito de preferência lhe tinha sido transmitido isoladamente, como se pretende na douta sentença recorrida: o que alegou, defendeu e defende é que lhe foi transmitida a posição de arrendatária e, por isso, também a preferência.

10. - Ao vender a fracção da Av. de … à recorrente, a proprietária da mesma não fez qualquer liberalidade, como se pretende na douta sentença, antes se sujeitou ao direito potestativo de preferir de que a recorrente era titular, por ser a arrendatária da fracção.

11. - O que resulta dos factos provados nºs 2), 3) e 4) e, bem assim, dos factos alegados pela recorrente nos arts 7º, 11º, 12º, 13º, 19º a 24º, 31º, 33º e 34º, que não foram contestados e que devem ser levados à matéria de facto provada, por serem relevantes para uma das soluções plausíveis da questão de direito, é que a ora recorrente passou a ocupar a posição de arrendatária da fracção da Av. ... logo em 1982, portanto na fase preambular do exercício do direito de preferência pela arrendatária desse local, já sendo arrendatária no momento do seu casamento com o recorrido e no momento, posterior ao casamento, em que aquela fracção foi alienada, que foi quando aquele direito de preferência se radicou efectivamente na esfera jurídica da arrendatária dessa fracção.

12. - A recorrente, como arrendatária habitacional do local que a senhoria pretendia vender, preenchia todos os requisitos para lhe ser reconhecido esse direito ao abrigo da Lei nº 67/77, de 25/08, não se estando, no caso, perante uma operação de especulação imobiliária.

13. - Para prova de que também cumpria este requisito legal da atribuição do direito de preferência, na sua qualidade de arrendatária, a recorrente alegou na sua p.i. os factos constantes dos arts 4º, 5º, 13º (parte final), 33º e 52º, dos quais resulta que a ora recorrente já habitava na fracção da Av. de … antes de se tornar sua arrendatária de pleno direito, que continuou a habitá-la com a sua família após ter assumido essa qualidade e depois de a ter adquirido por compra no exercício do seu direito de preferência, até que em 1993, a permutou por outro imóvel também para sua habitação própria e permanente.

14. - Por isso, os factos alegados pela recorrente naqueles arts 4º, 5º, 13º (parte final), 33º e 52º da p.i., devem ser incluídos na matéria de facto provada por serem relevantes para uma das soluções plausíveis da questão de direito aqui em causa.

15. - Assim e em resultado do que antecede, ao decidir como decidiu quanto às matérias de facto e de direito em relação ao pedido de declaração de que a fracção da Av. de … constitui bem próprio da ora recorrente, por ter sido adquirida por virtude de direito próprio anterior, ou seja, por força do direito de preferência que lhe assistia, já antes do casamento, como arrendatária da Fracção, do qual absolveu o R. ora recorrido, o Tribunal “a quo” violou os arts 511º, nº 1, e 659º, nº 3, do C.P.C. e os arts 405º, nº 1, 280º, nº 1, 424º, nº 1, 1059º, nº 2, e 1722º, nº 1, alínea c), e nº 2, alínea d), do C.C.

16. - O pedido da A., ora recorrente, com fundamento nessa causa de pedir, deve ser julgado procedente por provado, ficando, em consequência, prejudicada a apreciação pelo Tribunal da questão de saber se, nos termos do disposto na alínea c) do art. 1723º do C.C., a recorrente podia ou não fazer prova de que a fracção da Av. de … era um bem próprio, por ter sido adquirida unicamente com fundos próprios da recorrente, apesar de a proveniência dos fundos não vir mencionada da escritura de aquisição (cf. facto provado nº 7 e doc 13, junto com a p.i.).

17. - No entanto e, à cautela, sempre se dirá que os motivos que levaram a que, da escritura de aquisição, não constasse a proveniência própria do dinheiro têm relevância para a apreciação da presente causa e, consequentemente, a matéria alegada pela recorrente nos arts 14º, 22º a 24º e 39º a 43º deve ser incluída na matéria de facto dada como provada, por ser relevante para uma das soluções plausíveis de direito.

18. - A filosofia do regime de comunhão de adquiridos caracteriza-se por este ser uma comunhão (propriedade colectiva de ambos os cônjuges), constituída pelos bens que entraram na esfera jurídica do casal, na constância do casamento, devido a uma real cooperação entre os cônjuges, tendo subjacente a rejeição do locupletamento à custa alheia e da exploração do esforço de outrem, por forma a evitar que o casamento se transforme num negócio, pelo que os bens que não tenham sido adquiridos em resultado de um esforço comum do casal não entram nessa comunhão, sendo a essa luz que as disposições legais relativas ao regime da comunhão de adquiridos devem ser interpretadas.

19. - A ora recorrente alegou a matéria de facto que consta dos arts 25º a 30º, 44º a 52º e 73º a 81º da p.i. precisamente para permitir que o Tribunal tivesse conhecimento de que, em caso de improcedência dos pedidos deduzidos pela ora recorrente, o que não se concede, o casamento entre esta e o recorrido, já entretanto dissolvido, se tornaria num grande negócio para o R. e um verdadeiro locupletamento à custa da ora recorrente, uma vez que depois de pagas, unicamente à custa do património próprio desta, as dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, o R. ainda pretende ser comproprietário, em partes iguais, das Fracções da R. …, que foram permutadas com a Fracção da Av. de …, ou seja, que quando cessou a relação matrimonial e depois de pagas as dívidas comuns, o património pessoal do R. seria maior do que era quando o casamento foi celebrado.

20. - É que, efectivamente, um tal negócio contraria totalmente a filosofia, as características e as preocupações essenciais quem estão subjacentes ao regime da comunhão de adquiridos, pelo que tais factos alegados pela recorrente nos arts 25º a 30º, 44º a 52º e 73º a 81º da p.i. devem também ser levados à matéria de facto provada, por forma a permitir que o Tribunal possa decidir correctamente a questão de direito submetida à sua apreciação e evitar que o faça ao arrepio daquelas filosofia, características e preocupações essenciais.

21. - Estando nestes autos em causa unicamente os interesses dos cônjuges, a presunção contida na alínea c) do art. 1723º é meramente juris tantum, pelo que nada impede que a A., ora recorrente, faça prova, por qualquer meio, de que a Fracção da Av. de … foi adquirida exclusivamente com dinheiro próprio dela, prova essa que resulta dos FP 5), 7) e 8), devendo, em consequência, ser julgado procedente e provado o pedido da A. quanto à declaração de que essa fracção era um bem próprio seu, apesar de ter sido adquirido na constância do casamento.

22. - Ao decidir absolver o recorrido do pedido de declaração de que a Fracção da Av. de … era um bem próprio da recorrente, por ter sido exclusivamente com fundos próprios da mesma, o Tribunal “a quo” violou o disposto no arts 9º e 1723º, alínea c), do C.C..

23. - A interpretação da alínea c) do art. 1723º do C.C. segundo a qual ali se prevê uma presunção jure et de jure, que inviabiliza qualquer outro meio de prova, interpretação que foi a adoptada na douta sentença, faz com essa norma viole o princípio constitucional da igualdade e constitua uma limitação excessiva ao direito à propriedade privada (arts 13º e 62º da Constituição da República Portuguesa).

24. - A Fracção da Av. ... era um bem próprio da recorrente, por ter sido adquirido na constância do matrimónio em virtude de direito próprio anterior e por o respectivo preço ter sido integralmente pago com fundos próprios da recorrente,  pelo que as Fracções da Rua … devem também ser declaradas bens próprios da mesma recorrente, uma vez que esta as adquiriu por permuta com um bem próprio seu, por subrogação real, nos termos da alínea a) do art. 1723º do C.C..

25. - O Tribunal da Relação deve fazer uso dos poderes que lhe são conferidos pela alínea a) do nº 1 do art. 712º do C.P.C. e alterar a matéria de facto dada como provada na douta sentença, incluindo nesta a matéria alegada pela ora recorrente nos art. da p.i. acima identificados nas Conclusões 2, 6, 11, 14, 17 e 20, supra, pois do processo constam todos os elementos de prova para tanto necessários.

5. Não foram apresentadas contra-alegações.

6. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

7.  Face às conclusões das alegações, no essencial, são as seguintes as questões a decidir:

- Saber se deve ser alterada a matéria de facto;

- Saber se a fracção “M” e as fracções recebidas em permuta devem ser considerados bens próprios da autora;

8. Dos factos

Pretende a recorrente que se aditem à matéria de facto, outros pontos por si alegados na petição inicial e não impugnados.

Tem, em parte, razão.

Com efeito, há matéria alegada que não foi dada como assente e cuja relevância para a decisão da causa é indiscutível.

8.1. Consequentemente, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 484º e 511º, do CPC, a factualidade provada configura-se do seguinte modo:

Foi celebrado contrato denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda” entre ME…, “na qualidade de promitente vendedora” e J… e J.L.., “na qualidade de promitentes-vendedores”, nas  condições que constam do documento de fls. 29 a 31 dos autos, designadamente: “A primeira outorgante, ME.., é dona e legítima possuidora da nua propriedade do prédio sito em Lisboa, na Avenida de …, n.º .. a …C, inscrito na matriz predial da freguesia do  … sob o artigo …º e descrito na … Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º … a folhas … do Livro B-…, cujo usufruto é pertença de MA … ”.

A tia da Autora, DC…, na qualidade de inquilina do ..º Esq. do referido prédio, recebeu uma carta, com o conteúdo que consta do corpo do documento de fls. 33 dos autos e que se dá por reproduzido, notificando-a para o exercício do direito de preferência na aquisição do prédio (art. 8º da p.i.).

Todos os inquilinos responderam à ME.., declarando a sua intenção de exercer em conjunto o seu direito de preferência, o que a sua tia também fez em nome do seu tio, LDJ…, já falecido (art. 9º da p.i.).

Uma vez que a sua tia não tinha interesse em adquirir a propriedade do andar, “cedeu a sua posição de arrendatária e preferente à Autora”, com a concordância da proprietária, ME…, e dos demais preferentes (art. 13º da p.i.).

Em 7/9/1982, a autora efectuou na conta bancária de ME.. o depósito com o n.º … da CGD no valor de Esc. 389.883$50 e, em 30/9/1982, no valor de Esc.  129.961$00, importâncias que pagou do seu bolso e correspondiam ao «sinal» e seu reforço (arts 15º, 16º e 17º, da p.i.).

Em 1982, a autora entregou ao advogado encarregado de acompanhar o processo de compra e venda um quantitativo, a título de «provisão» para cobrir o pagamento de honorários e respectivas despesas (art. 21º, da p.i.).

Em 27/8/85, a autora pagou com fundos próprios, adquiridos  antes do seu casamento com o réu, os honorários do referido advogado e as  demais despesas (art. 20º, da p.i.),

Em 6 de Abril de 1984, a Autora e o Réu casaram entre si, sem convenção antenupcial (art. 32º da p.i. e documento de fls.69).

Após o casamento e até Agosto de 1993, data em que deixaram de coabitar um com o outro, o réu habitou com a autora no 4º Esq. do prédio sito na Av. …, nº … em … (arts. 33º e 44º, p.i.).

No dia 27 de Junho de 1984 foi outorgada escritura pública denominada “Escritura de Compra e Venda” no …º Cartório Notarial de Lisboa, sendo primeira outorgante “ME… ” e décima quarta outorgante “AM…, divorciada…”, na qual, “pelas primeira e segunda outorgantes, foi dito que:

“…pelo preço global de Esc. 767.271$00, sendo Esc. 631.463$50 referentes à nua-propriedade, e Esc. 135.807$50, referentes ao usufruto, vendem à 14ª outorgante a fracção autónoma designada pela letra “M” que corresponde ao quarto andar esquerdo com a garagem número três, do prédio atrás identificado, com o rendimento colectável correspondente à fracção de Esc. 11.751$00, de que resulta o valor matricial Esc. 235$20, sendo o valor matricial referente à nua-propriedade de Esc. 188.016$00 e o valor matricial referente ao usufruto de Esc. 47.004$00, isento de sisa nos termos dói disposto no número vinte e um do artigo décimo primeiro do aludido Código da Sisa.”

E ainda que: “declaram os preços já recebidos.”

Pelos 3ºs a 19º outorgantes, inclusive, e na qualidade em que outorgam, foi dito que aceitam estas vendas nos termos exarados e o mais que consta a fls. 70 a 90 e aqui se dá por integralmente reproduzido.

Com fundos próprios adquiridos antes do seu casamento com o réu, a Autora, na data da escritura, pagou às vendedoras a quantia de Esc. 247.426$50, bem como todas as despesas inerentes à transmissão, incluindo emolumentos notariais e de registo predial (art. 37º, da pi).

O réu em nada contribuiu para o pagamento do preço da aquisição da fracção “M”, nem para o pagamento das despesas referidas no art. 37º, da p.i. (art. 38º, da p.i.).

A aquisição da referida fracção “M” está registada a favor da autora na CRP (art. 61º, da p.i. e doc nº 14 junto com a p.i.).

Em 15/11/1993, já depois de A. e R. terem deixado de coabitar, foi outorgada escritura pública denominada de “Permuta e Empréstimo com Hipoteca”, sendo primeiros outorgantes VP…  e M C…, segundos outorgantes AM.. e LF…, e terceiros outorgantes J C… e JJ…, em representação e na qualidade de procuradores da “Caixa Económica …” e ainda ÁS…, como sócio gerente e em representação de “S... – …, Limitada”.

Disseram os primeiros e segundos outorgantes:

“Que pela presente escritura, titulam a seguinte permuta, em que acordaram;

Os primeiros outorgantes (…) dão aos segundos outorgantes (…) a  fracção autónoma designada pela letra “K”, que constitui o quarto andar direito, e arrecadação na cave menos três, para habitação (…) e a sua quota de um/sessenta e quatro avos que detém na fracção autónoma designada pela letra “A”, destinada a garagem (…) ambas do prédio urbano (…) sito na Rua … (…) descrito na …Conservatória do Registo Predial de …sob o número ... (…), a que atribuíram os valores de Esc. 28.800.000$00 e Esc. 200.000$00, respectivamente (art. 57º, da p.i.)

Os segundos outorgantes (…) dão, em troca, aos primeiros outorgantes (…) a fracção autónoma designada pela letra “M”, que constitui o quarto andar esquerdo, com garagem número três, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida ..., números cinquenta e três a cinquenta e três-C, em …, freguesia de …, descrito na … Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número … (…), a que atribuíram o valor de Esc. 38.000.000$00, tendo recebido dos 1ºs outorgantes a diferença de valor dos bens permutados, ou seja, Esc. 9.000.000$00 (art. 59º, da p.i.).

Os terceiros outorgantes, em representação da Caixa Económica …, deram de empréstimo à A. e ao R. PTE 5.000.000$00, de que ambos ficaram devedores, tendo sido constituída hipoteca sobre a fracção recebida em permuta.

Esse empréstimo tem vindo a ser pago exclusivamente pela autora (art. 74, da p.i. e  doc de fls. 122 e ss).

Mais se dando por reproduzidas as restantes declarações constantes de fls. 122 a 135 dos autos.

A aquisição da fracção autónoma designada pela letra “K”, que corresponde ao 4º andar direito e arrecadação na cave menos três, e a quota de um/sessenta e quatro avos que detém na fracção autónoma designada pela letra “A”, destinada a garagem do prédio urbano sito na Rua …, nº … em …, mostram-se registadas a favor da autora (doc nº 18, junto com a p.i., a fls. 136 e ss.).

Em 12/12/2002 transitou em julgado a sentença que decretou o divórcio entre A. e R. (doc 12, da p.i. e art. 80º, da p.i.).

9. Da natureza dos bens adquiridos na constância do casamento

No regime da comunhão de adquiridos fazem parte da comunhão todos os bens ou valores que constituam o produto do trabalho dos cônjuges, bem como os bens ou valores adquiridos por qualquer dos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei, presumindo-se comuns todos os móveis relativamente aos quais existam dúvidas sobre a sua natureza comum (arts. 1724º e 1725º, do CC).

São, no entanto, considerados bens próprios de cada um dos cônjuges os bens que lhes advierem após o casamento por sucessão ou doação, os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior, designadamente no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento (art. 1722º,  do CC).

Conservam, ainda, a qualidade de bens próprios os bens sub-rogados no lugar de bens próprios de um dos cônjuges por meio de troca directa, o preço dos bens próprios alienados e os bens adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição (art. 1723º, do CC).

No caso em apreço, entendeu-se que os bens em causa (quer o que foi dado, quer o que foi recebido em permuta) são bens comuns, uma vez que nos documentos que titulam as aquisições não consta que tenham sido adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges – cf. art. 1723º, al. c), do CC.

Porém, ao contrário do que se entendeu na decisão recorrida, não estando em causa interesses de terceiros, entendemos ser de admitir a prova, por qualquer meio, de que os bens em causa revestem a natureza de bens próprios.

Isto porque:

O regime de comunhão de adquiridos tem em vista proteger o património comum dos cônjuges, ou seja, os bens que entraram na esfera jurídica do casal, em resultado do esforço conjugado de ambos os cônjuges ou apenas por um deles, mas com o esforço do outro, no desenvolvimento de um projecto comum.

Por outras palavras, o núcleo do património comum limita-se, conforme refere A.Varela (CC anotado) "aos bens cuja aquisição assenta numa real cooperação dos cônjuges".

Ora, a limitação decorrente do art. 1723º, al. c), do CC tem (apenas) em vista salvaguardar as expectativas de terceiros que estabelecem relações jurídicas com os cônjuges contando com a garantia de determinado património «comum», para solver as obrigações emergentes dos negócios celebrados. Mesmo Antunes Varela (ob. citada pág.378), apesar de seguir a literalidade de interpretação daquele dispositivo atenua tal posição invocando "as legítimas expectativas de terceiros".[1]

Neste contexto, estando em causa as relações interpessoais entre os cônjuges, estamos claramente fora do âmbito de protecção da citada norma, pelo que não faz sentido invocar a aludida limitação.

Consequentemente, a falta da declaração a que se refere aquele normativo, pode ser substituída por qualquer meio de prova, de modo a fazer-se a demonstração de que determinado bem custou a ganhar apenas a um deles, ou que se situa fora do esforço comum ou de cooperação, e portanto, para além da razão subjacente ao regime de comunhão de adquiridos.

Voltemos ao caso subjudice.

Tendo ficado provado que, na pendência do casamento:

A autora pagou integralmente com dinheiro próprio adquirido em data anterior à do seu casamento com o réu o preço da compra da fracção “M” do prédio sito na Av. de …, em …; (tendo inclusive a maior parte do preço sido paga dois anos antes do casamento entre ambos)

A autora entregou a referida fracção “M”, em troca da fracção “K” e de uma quota de um/sessenta e quatro avos da fracção “A”, do prédio sito na Rua …, em …, recebendo ainda, atendendo ao valor dos bens permutados, a quantia de Esc.  9.000.000$00;

É de concluir que, quer a fracção “M”, quer a fracção “K” e a parte porprocional da fracção “A” foram adquiridas com dinheiro pertencente exclusivamente à autora e, no caso da fracção “K” e de uma parte proporcional da fracção “A” com a entrega de bens próprios da autora (a supra referida fracção “M”).

Em face disso, é indiscutível que aqueles bens conservam a natureza de bens próprios da autora, por força do disposto nas alíneas a) e c), do artigo 1723º do Código Civil.

Procede, pois, o recurso.

10. Nestes termos, concedendo provimento ao recurso, acorda-se em julgar procedente a acção, declarando-se que a fracção autónoma descrita sob a letra “M”, correspondente ao 4º esquerdo do prédio nº … a …da Avenida de …, bem como a fracção autónoma descrita soba a letra “K”, correspondente ao 4º direito e à arrecadação na cave «-3» e a quota de 1/64 avos na fracção autónoma descrita sob a letra “A”, do prédio sito no n.º 16 da Rua ..., em Lisboa, são bens próprios da Autora, devendo proceder-se às competentes alterações no registo predial.

Custas da acção e da apelação pela apelante (art. 446º, nº1 e 449º, nº1, ambos do CPC).

Lisboa, 1 de Março de 2011

Maria do Rosário Morgado
Rosa Ribeiro Coelho
Maria Amélia Ribeiro
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[1] No sentido que defendemos, pode consultar-se, na doutrina, Pereira Coelho/Guilherme Oliveira "in" Curso de Direito de Família, 2ª edição, volume I, página 519 e, na jurisprudência, os acs. da Relação do Porto, de 30.3.2009, JusNet 1883/2009; do STJ de 24/1072006, JusNet 5437/2006; do STJ de 6/7/2007; do STJ de 1/7/2010, JusNet 3432/2010; do STJ de 13/7/2010, JusNet 4598/2010;