Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18262/17.2T8LSB.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: FURTO DE VEÍCULO
SEGURO
ÓNUS DA PROVA
VALOR DO BEM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- O segurado tem o ónus da prova de que o veículo foi furtado, mas para tal basta a existência de uma participação às autoridades policiais, feita em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, ou seja, que apontem para a sua verosimilhança. É depois à seguradora que cabe a prova de circunstâncias capazes de afastar a prova de primeira aparência do furto feita por aquela participação.
II- As declarações prestadas perante um averiguador pago por uma seguradora, sem a presença da parte contrária nem o controlo do juiz, não valem como elementos de prova utilizáveis no tribunal, sejam elas corporizadas por um escrito feito na sequência das mesmas ou transmitidas pelo averiguador como testemunha (art. 421 do CPC, a contrario).
III- A prova de que o valor real do veículo não coincide com o valor pelo qual ele foi segurado cabe à seguradora, como facto impeditivo do direito do autor ao recebimento do valor acordado (art. 342/1 e 2 do CC).
IV- O valor dado a um veículo automóvel para efeitos de seguro que possa ser imputado à organização de meios de uma seguradora, designadamente pela introdução de dados do veículo num sistema informático utilizado pela mesma, precedida de uma vistoria, e que é aceite pelo segurado, corresponde ao valor real do veículo e/ou pode ser considerado como sendo um valor obtido por acordo antecedido de uma perícia (um sucedâneo do acordo previsto no art. 131 da LCS), pelo que, por regra, não tem razão de ser a invocação de falta de coincidência entre o valor seguro e o valor real ou de falta de acordo quanto ao valor (sendo que essa invocação, pela seguradora, nestas circunstâncias, sempre se poderia dizer manchada pelo abuso de direito: art. 334 do CC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

T intentou a presente acção comum contra Seguradora-SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe 29.239€, acrescida de juros de mora, no dobro da taxa legal desde a data de propositura da acção até integral pagamento.
Alega para tanto, em síntese, que é proprietário de um veículo automóvel, tendo celebrado com a ré um contrato de seguro para cobertura do risco de furto ou roubo; depois disso o veículo foi-lhe furtado e a ré não lhe paga a indemnização devida.
A ré contestou impugnando a factualidade alegada pelo autor quanto à ocorrência do furto e excepcionando (embora sem a qualificar como excepção) a sobrevalorização do valor do seguro; concluiu pela absolvição do pedido.
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença julgando a acção totalmente improcedente e, em consequência absolvendo a ré do pedido.
O autor recorre desta sentença, impugnando a decisão da matéria de facto de considerar como não provada a alegação de que o veículo tinha sido furtado e, em consequência, querendo que a sentença seja revogada e substituída por outra que condene a ré a pagar ao autor o pedido.
A ré contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
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Questões que importa decidir: se o furto deve ser dado como provado e se, em consequência, a ré deve ser condenada como pedido.
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Para a decisão das questões referidas, importa antes de mais ter em conta os factos dados como provados e que são os seguintes [o desenvolvimento do ponto 3 foi feito por este acórdão, com base no contrato de seguro apresentado por ambas as partes e por isso não impugnado por nenhuma delas, ao abrigo dos arts. 663/2 e 607/4, ambos do CPC]:
1. Em 05/09/2016, foi celebrado entre o autor e a ré, um contrato de seguro automóvel, titulado pela apólice n.º 0000000, respeitante ao veículo ligeiro de passageiros, de marca Volvo, modelo S80 Diesel D3 Summum Geartronic, matrícula 00-00-00.
2. Acessoriamente ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, o autor contratou a cobertura de danos próprios, cobrindo, entre outros, actos/riscos de furto ou roubo.
3. A cobertura de furto ou roubo tem como capital seguro 29.239€.
Condição especial ‘furto ou roubo’
Cláusula 1.ª Para efeito da presente Condição Especial considera-se: FURTO OU ROUBO: O desaparecimento, destruição ou deterioração do veículo por motivo de furto, roubo ou furto de uso (tentados ou consumados).
                                                    […]
Cláusula 4.ª - Condições de funcionamento da cobertura
Ocorrendo furto ou roubo, e querendo o Segurado usar dos direitos que a presente Condição Especial lhe confere, deverá apresentar assim que possível queixa às autoridades competentes e promover as diligências ao seu alcance conducentes à descoberta do veículo e dos autores do crime.
Ocorrendo furto ou roubo que dê origem ao desaparecimento do veículo, o Segurador obriga-se ao pagamento da indemnização devida, decorridos que sejam sessenta (60) dias sobre a data da participação da ocorrência à autoridade competente, se ao fim desse período não tiver sido encontrado.
Nas condições particulares da apólice consta uma tabela de desvalorização, mês a mês, durante 10 anos, do veículo.
4. O pagamento do prémio era feito de forma anual, tendo sido pago o valor correspondente ao prémio do primeiro ano na data de celebração do referido contrato pelo montante de 779,69€.
5. A propriedade do veículo de matrícula foi registada a favor do autor em 13/12/2016.
6. No dia 19/12/2016, o autor apresentou a queixa de furto do veículo, na PSP de Lisboa, Divisão Policial de S, Esquadra de M, dando origem ao auto de denúncia NPP 00000/16.000000.
7. Na mesma data o autor entregou a participação do furto ao seu mediador de seguros R-Lda.
8. Decorridos os 60 dias sobre a data da participação do furto, e não tendo o veículo sido recuperado, a ré não procedeu ao pagamento ao autor de qualquer valor.
9. A ré enviou uma comunicação ao autor recusando o pagamento da indemnização.
10. O valor da franquia acordado era de 0€.
11. O local onde o veículo se encontrava alegadamente estacionado, é um parque de estacionamento (não pago) com extensa dimensão, ermo, sem qualquer vigilância.
12. Ao averiguador da ré o autor, no dia 31/01/2017, disse que o veículo encontrava-se estacionado junto à residência da sua namorada há cerca de 2/3 semanas, não necessitando dele por utilizar um outro veículo pertencente à sua sociedade comercial. No dia 19/12/2016, ao passar no local com o veículo da sua sociedade comercial, constatou que o veículo seguro tinha desaparecido, pelo que em seguida, se dirigiu à esquadra da PSP para participar o furto.
13. Na queixa apresentada na PSP o autor declarou que os documentos do veículo se encontravam no seu interior e que o veículo estava ali estacionado há cerca de três ou quatro semanas.
14. Na conversa com o averiguador, o autor esclareceu que tinha os documentos do veículo na sua posse, tendo-os exibido ao averiguador que os fotografou.
15. À PSP no momento da participação o autor declarou que o certificado de matrícula se encontrava dentro do veículo, tendo declarado esse documento como furtado.
16. Ao averiguador, o autor disse que o veículo era importado e que, entre viagens e legalização, pagou 25.000€, tendo a viatura cerca de 290.000 km quando foi adquirida.
17. Na conservatória do registo automóvel o veículo foi registado em nome do autor, no dia 13/12/2016, mediante a apresentação dos documentos do veículo.
18. O veículo foi importado de França pelo autor.
19. Aquando da sua entrada em Portugal contava com 391.811km.
20. Foi declarado um valor de compra de 16.000€.
21. Tendo em conta o número de quilómetros, foi legalizado com recurso ao método alternativo, tendo sido pago um valor de imposto de 2640€.
22. O veículo foi adquirido por 16.000€, sendo que o valor do imposto ascendeu a 2640€ – ou seja, o valor total gasto na compra e legalização do veículo foi de 18.640€.
23. O autor, em 05/12/2016, subscreveu uma apólice de seguro com a Logo, para um outro veículo de matrícula 11-11-11 (um Audi de 1997).
24. A propriedade do veículo de matrícula 11-11-11 foi registada a favor do autor em 05/12/2016.
25. O autor já foi tomador de diversos contratos de seguros para outros veículos, nomeadamente para os veículos de matrículas 22-22-22 (Golf I, importado de 1993), 33-33-33 (BMW serie3 Coupé, de 1992), 44-44-44 (motociclo Honda CBR de 1996), 55-55-55 (Daewoo Nexia de 1996), 11-11-11 (o já referido Audi A3 de 1997) e 66-66-66 (BMW Serie3 de 1999, importado da Alemanha).
26. Em Setembro de 2016 havia veículos em Portugal com as mesmas características, e menos quilometragem, à venda pelo valor de 24.700€.
27. Naquela data no mercado internacional, para veículos com as mesmas características, foram localizados veículos à venda por cerca de 10.000€.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
O tribunal recorrido não considerou provada a alegação de facto feita pelo autor de que “entre os dias 01 a 19/12/2016, o veículo de matrícula 00-00-00 foi furtado”.
O tribunal fundamentou assim a sua convicção para a decisão desta questão (em conjunto com outras que eram conexas; a numeração foi colocada por este TRL):
1- Os factos não provados alíneas a a d decorrem da total inexistência de qualquer elemento de prova que permitam sequer indiciar a existência do furto invocado pelo autor. Pelo contrário, todas as evidências apontam para que o furto não tenha ocorrido.
2- Em primeiro lugar o sítio onde o autor teria alegadamente estacionado o veículo é um grande parque de estacionamento, ermo, como decorre das fotografias juntas a fls. 85 e 86, e que não ficam propriamente perto de casa alguma. Pelas regras da experiência comum, alguém que acabou de adquirir um veículo, com o valor de quase 30.000€, não o deixa num parque de estacionamento, praticamente abandonado durante quase 20 dias.
3- Nenhuma das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento afirmou ter presenciado/apercebido da sua ocorrência, pelo que, nenhum depoimento foi produzido sobre a sua efectiva ocorrência conforme alegado pelo autor.
4- As declarações do autor prestadas em audiência não mereceram qualquer credibilidade por parte do tribunal, quer pela postura nervosa e claramente evasiva nas respostas às perguntas que lhe eram feitas, quer pela manifesta contradição com a prova documental junta.
5- O autor começou por dizer nas suas declarações prestadas em audiência que estacionou o carro na sua rua, esclarecendo apenas depois que afinal foi na rua da casa da sua namorada. No que respeita à legalização da viatura referiu nas suas declarações que entregou todo o processo a um despachante o que não corresponde aos que consta de fl. 121 onde apenas o nome do autor consta. O autor não tem qualquer factura das despesas realizadas para ir buscar a viatura a França, sendo óbvio que o papel que consta de fl. 124 não é uma factura. A tribunal não soube ou conseguiu trazer uma única testemunha que viesse confirmar a viagem realizada, valor pago, despesas e diligências com vista à legalização, utilização que fazia do veículo, o sítio onde o estacionou, as características do local. Nada foi provado.
6- Quanto à desconformidade dos factos que alegou em audiência com as declarações prestadas ao Sr. perito e que constam de fl. 87 disse apenas “que se enganou”, o que não colhe face a toda a demais prova contrária produzida.
7- A testemunha do autor foi apenas F, mediador de seguro, que esclareceu apenas como foi atribuído o valor ao veículo segurado e o porquê da sua sobrevalorização decorrente do programa informático e que não é mutável.
8- Para motivar ainda inexistência de qualquer prova da real ocorrência do furto está a manifesta desconformidade entre as declarações prestadas pelo autor na PSP e ao averiguador da ré, e à circunstância inexplicada de o registo do veículo ter sido feito durante os 20 dias que o veículo esteve estacionado naquele local com uns documentos que supostamente estariam no seu interior (segundo a participação à PSP). Não tendo o autor nas declarações que prestou dito que foi ao carro naquelas semanas, ou que tenha retirado do seu interior os documentos, fica por explicar como pode proceder ao seu registo de propriedade no dia 13/12/2016. Acresce que na conversa com o averiguador, no dia 31/01/2017 o autor esclareceu que tinha os documentos do veículo na sua posse, tendo--os exibido ao averiguador que os fotografou e à PSP no momento da participação o autor declarou que o certificado de matrícula se encontrava dentro do veículo, tendo declarado esse documento como furtado.
9- Mas nas suas declarações ao averiguador também referiu que o veículo teria custado ao todo 25.000€ tendo a viatura cerca de 290.000 km quando foi adquirida, ora quer o valor despendido na aquisição da viatura quer a sua quilometragem se encontram claramente contraditados pela DAV junta a fls. 121 e 122 onde consta os 16.000€ como valor de aquisição e os 2643,14€ de imposto, os 391.811 de quilometragem e ainda pelas regras da experiência comum e pela simples consulta na internet de valores para este veículo com aquela quilometragem e antiguidade para se compreender que mesmo os 16.000€ estão claramente inflacionados, sendo manifestamente duvidoso que o autor fosse ao estrangeiro buscar um carro com quase 400.000km que no mercado internacional se encontrava por preço muito inferior.
10- Igualmente suspeito é o facto de o autor ter demorado mais de três meses a promover o registo, e tê-lo feito exactamente durante aquele período em que o autor não tinha os documentos na sua posse porque estavam no interior do veículo.
11- Já a ré, com os testemunhos, claros isentos e credíveis de RB e RS, peritos averiguadores que averiguando as circunstâncias do sinistro explicaram ao tribunal porque concluíram pela sua inexistência, e pela alegação falsa de factos pelo autor com vista à simulação do sinistro e recebimento de indemnização.
12- Em face do exposto, o tribunal julgou não provada a factualidade referente à existência do furto.
O autor diz que tal é errado pelo seguinte:
21- Em primeiro lugar diz-se que o parque onde o autor diz que estacionou o veículo não é perto de casa alguma.
22- Ora tal não é verdade!
23- Das próprias fotos juntas (doc.3 da contestação), pode-se verificar que entre o parque e um conjunto de prédios medeia, apenas, uma rua e para outro lado, com a separação, também, de uma rua, existe um vário leque de vivendas.
24- Aliás, não se entende como pode o tribunal a quo referir tal facto uma vez que o parque onde o veículo estava estacionado é utilizado pela população que que habita nos arredores.
25- Mais, refere-se na sentença que o veículo terá ficado quase 20 dias num parque de estacionamento e isso contraria as regras da experiência comum.
26- Ora, tendo em conta que o veículo se encontrava bem estacionado, o autor não tem garagem, na altura do ano que tal aconteceu é o período em que o autor tem mais trabalho, pois trabalha numa empresa de montagem de espectáculos e nessa altura tem muitas festas de Natal de empresas a preparar, não se compreende que tal facto contrarie qualquer regra de experiencia comum, muito pelo contrário.
27- Por última argumentação refere-se que nenhuma testemunha inquirida presenciou tais factos.
28- Tal argumento é completamente descabido!
29- Pois, se o referido furto não foi presenciado por ninguém como poderia o autor apresentar testemunhas sobre esses factos?
30- Se para provar o furto tivesse que existir testemunhas, seria quase impossível para um cidadão provar tal facto, a menos que se metesse uma pessoa sempre de vigia.
31- Além de que, segundo as regras da experiência comum neste tipo de furtos os assaltantes têm muito cuidado para não serem vistos.
32- Colocar as vítimas de furtos numa posição de terem de arranjar testemunhas para provar um furto colocava tais pessoas numa situação, na maioria das vezes, de provar o impossível.
33- Mais, segundo a testemunha F, mediador de seguros, afirmou que viu o veículo e que estava em perfeitas condições.
34- Posto isto, o tribunal a quo, tendo em conta toda a prova produzida quer documental quer das declarações prestadas pelo autor deveria ter dado como provado aquela alegação de facto.
35- Quanto à demais fundamentação do tribunal a quo, não é conclusiva de não ter existido o referido furto e são meras suposições baseadas até em factos que não correspondem à realidade.
36- Pois, a forma como o autor adquiriu e legalizou o veículo foram descritas por si de forma totalmente correta.
37- Uma vez que o processo de legalização de uma viatura importada antes de janeiro de 2017 poderia ser feita em nome do próprio independentemente de ser um despachante a entregar os papeis junto da Alfandega.
38- Visto que se tratava de um processo em papel podia o autor assinar todos os documentos e um despachante apenas entregar o processo na Alfandega, como foi o caso.
39- Mais, quanto às divergências em termos de km’s referidas pelo autor ao perito averiguador, em que o mesmo admitiu que se enganou, são perfeitamente plausíveis, pois o autor tinha a folha de inspecção com o n.º de km correto e tal foi entregue à ré, pelo que, caso o autor quisesse mentir sobre esse facto jamais teria feito isso.
40- Por fim, e no que respeita ao registo inicial do veículo em nome do proprietário, tal como o mesmo relatou importa ter presente o seguinte e que o tribunal a quo, certamente por desconhecimento ignorou:
41- O registo inicial foi feito on-line, conforme documentos que foram juntos aos autos.
42- Sendo que, tal registo, até por ter sido feito on-line, não poderia ter sido feito pelo mesmo.
43- Mais, para efectuar um registo inicial de propriedade, quer seja online ou presencial apenas é necessária uma declaração de compra e venda assinada, não sendo necessário mais nenhum documento, nomeadamente a DAV!
44. Pelo que, independentemente se dentro do veículo furtado estivesse a DAV (documento que o autor referiu que estava na sua participação) para efectuar o registo de propriedade tal documento não era necessário.
45- Mais uma vez o tribunal a quo na sua fundamentação utilizou argumentos que não correspondem à realidade e facilmente podem ser verificados, conforme exposto.
46- Mesmo em termos do espaço de tempo entre a legalização e emissão do documento único automóvel o presente caso não anda longe do que acontece na prática, pois,
47- Após a obtenção de matrícula nacional o processo tem de dar entrada no IMT para que os mesmos informatizem e só depois de estar informatizado é que é possível emitir o documento junto da conservatória do registo automóvel.
48- Sendo certo que o IMT, regra geral, demora cerca de 30 a 45 dias a efectuar tal informatização, mais o tempo de entrega por parte da pessoa do processo no IMT rapidamente se compreende o lapso de tempo decorrido.
49- Nunca esquecendo que um veículo importado tem atribuição de matrícula nova, ou seja, é como se tratasse de um veículo novo, e como é de conhecimento geral na compra de qualquer veículo novo o documento único automóvel demora sempre alguns meses a chegar à morada do proprietário.
50/51- Face ao exposto pode-se concluir que no caso em apreço o tribunal a quo fez uma má interpretação de toda a prova produzida, nomeadamente ao dar como não provado aquela alegação de facto que deveria ter sido dada como provada.
A ré responde o seguinte à argumentação do autor (a numeração foi colocada agora):
1- O autor pretende a alteração da matéria de facto baseada numa mera reapreciação da fundamentação da sentença, o que não só é processualmente inadmissível, como é por demais absurdo, conforme se demonstrará.
[…]
2- Repare-se, desde logo, que o autor não contesta a resposta de não provado dada aos factos sob as alíneas b a d, os quais traduzem as alegadas circunstâncias do furto, nomeadamente a data do estacionamento do veículo, o local e a data em que terá constatado o seu desaparecimento.
3- Estranho é que o autor reconheça e aceite a falta de prova das circunstâncias do furto, por si alegadas e cuja prova lhe competia, e apenas se insurja contra a não prova deste evento… só por aqui já se vê a bizarria jurídica que seria a eventual procedência deste recurso: dar-se-ia como provada a ocorrência do furto do veículo sem que se desse como provado de onde foi o mesmo furtado, onde havia sido estacionado, quando e por quem…
4- O autor alega que não lhe poderia ser exigível a prova do desaparecimento do veículo mediante a apresentação de uma testemunha que o tivesse presenciado… ora, tal raciocínio situa-se, uma vez mais, num baixo nível argumentatório, olvidando o autor que sempre lhe caberia a prova, básica e primária, das circunstâncias do furto, o que não fez e que até aceita.
5- Todo o restante acervo argumentativo do autor coloca-se ao nível da mera discordância com a fundamentação da sentença, tentando justificar isto e aquilo e ignorando o elementar princípio da liberdade de apreciação da prova de que goza o julgador.
6- Com efeito, constata-se que o autor não aceitou a fundamentação apresentada pelo tribunal recorrido em relação a diversos pontos relevantes, como seja a importação do veículo, o seu valor, o processo de legalização, a incoerência nas declarações prestadas quanto ao paradeiro dos documentos do veículo… e porque não a aceita, tenta dar uma lição de clarividência sobre os factos, postura que em nada o beneficia e que só sublinha o desrespeito pela decisão.
7- É por demais notória a ignorância do autor a respeito das mais elementares regras de distribuição do ónus da prova: o que sucedeu foi que o tribunal recorrido deu como não provada a ocorrência do furto, facto que integrava o direito reclamado pelo autor e cuja prova, como tal, só a si cabia.
8- O autor deve aceitar que nenhuma prova produziu sobre esse furto ou sobre as circunstâncias que o rodearam e, como tal, conformar-se com a decisão de absolvição da ré que é consentânea com o fracasso daquele no cumprimento do ónus da prova.
9- Ao autor, que se apresentou em juízo reclamando o seu direito à indemnização, é que cabia, em primeira e última linha, a prova do furto, evento aleatório que desencadearia, uma vez preenchidos os demais pressupostos da responsabilidade contratual, o pagamento da indemnização, em conformidade com o disposto no art. 342 do CC.
10- Ora, decorre da fundamentação da sentença que nenhum dos factos alegados pelo autor se mostram minimamente suportado em qualquer meio de prova carreado para os autos.
11- Donde, independentemente da qualidade de prova produzida pela ré, jamais a pretensão do autor poderia proceder por via da prova por si produzida porquanto a mesma foi, nos termos da sentença recorrida, simplesmente inexistente.
12- Recai sobre o segurado, ora autor, o ónus de prova do evento – isto é, as ocorrências como factos constitutivos que são do direito de indemnização invocado, nos termos do art. 342/1 do CC.
13- A natureza fortuita do risco garantido pelo contrato está ínsita ao mesmo, pelo que a fortuitidade do evento é elemento constitutivo do direito invocado, e ao autor cabia fazer prova do mesmo.
14- Estamos, claramente, perante uma situação em que o autor não concorda com a apreciação que o tribunal recorrido fez da prova produzida.
15- O que o autor pretende pôr em causa é a convicção que o julgador criou sobre a prova que foi produzida.
16- Olvida o autor que vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, nos termos do disposto no art. 607 do CPC, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha formado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir qualquer formalidade especial para a existência ou prova do facto jurídico, caso em que esta não pode ser dispensada.
17- De acordo com este princípio, ao que se contrapõe o da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas.
18- Acresce que o princípio da livre apreciação da prova só cede perante situações de prova legal, que fundamentalmente se verificam nos casos de prova por confissão, por documentos autênticos, por certos documentos particulares e por presunções legais.
19- Por reporte ao caso concreto, repita-se que estamos cientes de que não se poderá exigir ao segurado uma prova diabólica no sentido de o mesmo apresentar alguém que tivesse presenciado o furto. Não é isso que se pretende… Mas há um limite mínimo de elementos a provar pelo segurado que, no caso em concreto, nem sequer foram aflorados…
20- Ainda que, evidentemente, não se exigisse ao autor a prova pessoal e directa do desaparecimento do veículo, existe todo um conjunto de circunstâncias, não provadas pelo autor e a que o tribunal recorrido atendeu para infirmar a ocorrência daquele furto.
21- Parece-nos óbvio que não bastará ao autor alegar, pura e simplesmente, que o veículo estava estacionado em determinado dia e que no dia seguinte já não…
22- Há exigências mínimas de prova como sejam o de arrolar alguém que confirmasse a posse do veículo ou tal estacionamento em determinado local, o que no caso era possível…
23- Mas nem isto o autor logrou provar, não trazendo ao julgamento ninguém que pudesse ter comprovado que o veículo foi estacionado no dia, hora e local participados, o que não se afigurava de grande dificuldade, tendo em conta que, em sede de declarações de parte, o autor alegou que residia com a sua namorada perto do local do estacionamento do veículo… [se o autor tivesse trazido a ex-namorada, dir-se-ia que o seu depoimento não tinha valor por ser ex-namorada; porque é que uma namorada deveria saber onde se estaciona o veículo]
24- E perante a total ausência de prova, inclusive de factos cuja prova era possível e de pouca dificuldade, não pode o autor pretender que proceda a sua pretensão apenas e só porque (i) assim o declarou em declarações de parte e (ii) se dirigiu às autoridades para participar o desaparecimento do veículo.
25- Atente-se que, sem prejuízo da liberdade de apreciação que cabe ao julgador, as declarações de parte deverão ser analisadas com alguma parcimónia, tendo em conta o interesse do declarante no desfecho da causa, e dever-se-á procurar outros meios de prova que corroborem tais declarações.
26- Ora, no caso em apreço, e no seguimento do supra exposto, o autor não produziu qualquer prova que corroborasse o por si declarar naquela sede, motivo pelo qual improcedeu a sua pretensão.
27- Donde, todas as considerações tecidas pelo autor a respeito da prova que poderia ter produzido quanto ao furto alegado também não merecem acolhimento.
28- Face a todo o exposto, parece-nos por demais evidente que o recurso apresentado mais não é do que uma tentativa inglória de o autor salvar a sua pretensão quando, na realidade, nada fez por isso em sede de julgamento, tendo menosprezado a obrigação que sobre si impendia de proceder à prova dos factos integrantes do seu direito.
Decidindo:
Quando as partes incluem num contrato de seguro a cobertura do risco do furto do bem segurado, não podem deixar de saber – principalmente a seguradora, devido à actividade que exerce – que a prova inequívoca da verificação do furto é, senão impossível, pelo menos muito difícil porque a subtracção da coisa, que caracteriza o furto (art. 203 do Código Penal), se faz, na maior das vezes, de forma subrepetícia, sem que o proprietário da coisa se dê conta de tal subtracção. Se o proprietário se desse conta da subtracção, por norma tentaria evitar a mesma, o que poderia levar a que ela não ocorresse ou que o agente que levava a cabo a subtracção reagisse com violência, o que transformaria o furto num roubo (art. 210 do CP). Nestas hipóteses, deixaria, por isso de se poder falar de furto. Ou seja, a constatação de que um crime, por ser um acto ilícito e censurável, é, na maior parte dos casos, praticado de forma oculta, vale com particular força, para o crime de furto.       
Se, por isso, se celebra um contrato de seguro incluindo aquele risco de furto, por cuja cobertura o tomador de seguro vai pagar um prémio de valor superior ao que pagaria sem essa cobertura, e se nesse contrato – como é o caso dos autos – nada se diz para restringir o conceito de furto -, então, para que o contrato não se torne uma pura forma de a seguradora cobrar mais dinheiro pelo seguro, isto é, para que ele tenha utilidade também para o tomador do seguro (conduzindo ao equilíbrio das prestações para que aponta a regra de interpretação do art. 237 do CC ou os ditames da boa fé como regra de integração dos negócios por força do art. 239 do CC, com particular aplicação no caso dos contratos com cláusulas contratuais gerais, por força dos arts. 10, 11, 15, 16, 9 e 21/-c, todos do da LCCG - DL 446/85, de 25/10, sendo que os contratos de seguro são, por norma, contratos de adesão, com cláusulas contratuais gerais), não se pode exigir que se faça a prova com toda a certeza do furto, devendo ela fazer-se por meio de indícios, entre eles o mais forte e com valor bastante, o da formalização de uma queixa junto das autoridades policiais, feita em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, ou seja, que apontem para a sua verosimilhança.
Pois que, senão, só quase nos casos de furto que tivessem sido captados por câmaras de vigilância é que o segurado poderia receber o capital acordado com a seguradora para indemnização do sinistro. Mas não foi isso que a seguradora se comprometeu a cobrir: caso contrário, bastar-lhe-ia fazer com que isso ficasse a constar do contrato – por exemplo: só os furtos ocorridos em lugares abrangidos por câmara de vídeo ou só os furtos filmados é que estão cobertos, etc - e o tomador do seguro saberia que só nessa hipótese é que seria indemnizado e só pagaria o prémio por esse risco reduzido.
Assim, se é certo que o segurado tem o ónus da prova de que o veículo foi furtado (neste sentido, todos os acórdãos referidos mais abaixo – depois deste § - e os por eles citados), para tal basta, no entanto, aquela queixa com aquelas características (na prática, assim aconteceu, por exemplo, no caso do ac. do TRL de 24/05/2018, proc. 2098/16.0T8SXL.L1-2, com referência a um abuso de confiança englobado na definição que foi dada de furto; tal como no caso do ac. do TRP de 21/02/2018, proc. 32/17.0T8GDM.P1; no caso do ac. do TRL de 21/12/2017, proc. 32159/16.0T8LSB.L1-6, nada mais consta dos factos provados para além da participação e o furto não foi posto em causa; tal como no caso do ac. do STJ de 14/12/2016, proc. 2604/13.2TBBCL.G1.S1; e também no caso do ac. do TRG de 11/07/2013, proc. 2135/12.8TBBRG.G1, nada mais se provou para além do alegado desaparecimento e participação às autoridades policiais).
(No mesmo sentido, vai a jurisprudência francesa, segundo um artigo de Lionel Namin, Chargé d'enseignement [= Professor] à l'Université Paris-II-Panthéon-Assas, diplômé [= salvo erro: com uma pós-graduação] de l'Institut des Assurances de Paris, publicado a 01/02/2011 em https://www.argusdelassurance.com/dossier-ja/preuve-du-vol-mode-d-emploi.48106 e intitulado preuve du vol, mode d'emploi [prova do furto, instruções de uso], onde diz: En application de l'article 1315, alinéa premier du code civil, il incombe à l'assuré de prouver que son véhicule a fait l'objet d'un vol ou d'une tentative de vol. Cette preuve peut être apportée par tout moyen. Aussi résulte-t-elle de divers indices, tels que le dépôt de plainte, l'effraction du véhicule ou de l'antivol. Toutefois, la valeur de ces indices dépend des circonstances. Tant que le véhicule n'a pas été retrouvé, seuls les enregistrements d'un système de vidéosurveillance permettraient opportunément d'établir la réalité d'un vol (Soc., 31 janvier 2001, n° 98-44.290). Ces installations étant rares sur les lieux de vol des véhicules, les tribunaux estiment généralement que le dépôt de plainte suffit (Civ. 1re, 5 décembre 1984, RGAT 85-305; Paris, 7e ch. A, 7 juin 1983, RGAT 85-305; Civ. 1re, 10 juin 1992, RGAT 92-619; Civ. 1re, 8 juillet 1997, n° 95-17.788). Pour l'assuré, il s'agit d'une démarche aisée, d'autant plus qu'elle constitue toujours le préalable indispensable au fonctionnement de cette garantie pour toutes les compagnies d'assurances. Si le dépôt de plainte doit être retenu a priori comme élément de preuve, alors que le récépissé de déclaration de vol aux autorités de police constitue uniquement une preuve de la déclaration, dans la pratique, il peut être écarté toutes les fois qu'il existe des éléments contraires. […]” [ou seja, em tradução informal deste acórdão: De acordo com o artigo 1315, primeiro parágrafo, [desde 01/10/2016 é o art. 1353] do Code Civil, cabe ao segurado provar que o veículo foi alvo de um furto ou tentativa   de furto. Esta prova pode ser produzida por qualquer meio. Também resulta de diversos indícios, como a apresentação de uma queixa, o arrombamento do veículo ou de um dispositivo anti-furto. No entanto, o valor destes indícios depende das circunstâncias. Enquanto o veículo não for encontrado, somente os registros de um sistema de vídeo-vigilância permitiriam oportunamente estabelecer a realidade de um furto […]. Sendo esses sistemas escassos nos locais de furto de veículos, os tribunais consideram geralmente que a apresentação de queixa é suficiente […]. Para o segurado, este é um procedimento fácil, especialmente porque é sempre o pré-requisito para o funcionamento desta garantia para todas as seguradoras. Se a apresentação da queixa deve ser mantida, a priori, como um elemento de prova, enquanto o recibo de declaração de furto à polícia é apenas uma prova da declaração, na prática pode ser afastada sempre que houver elementos contrários [...]").
É depois à seguradora que cabe a prova de circunstâncias capazes de afastar a prova de primeira aparência do furto feita por aquela queixa. Trata-se, pois, de atribuir àquela queixa de furto um valor de prova bastante “que cede perante a simples dúvida que o julgador, confrontado com outros elementos de prova, tenha sobre a realidade do facto por ela em princípio provado (art. 346 CC)” (a parte entre aspas pertence a Lebre de Freitas; a aplicação à matéria do caso é do acórdão).
É isto, aliás, que explica que a cláusula 4.ª do contrato de seguro preveja, como condições de funcionamento da cobertura do furto, por um lado, que o segurado deva apresentar assim que possível queixa às autoridades competentes e promover as diligências ao seu alcance conducentes à descoberta do veículo e dos autores do crime e, por outro lado, que a seguradora só se obrigue ao pagamento da indemnização decorridos que sejam 60 dias sobre a data da participação e se no fim desse período o veículo não tiver sido encontrado.
Ou seja, uma queixa às autoridades policiais, que vai desencadear uma investigação imparcial e um lapso de tempo perfeitamente suficiente (senão mesmo exagerado) para essa investigação bem como para a investigação que a seguradora entenda levar cabo, de modo a poder averiguar e provar as circunstâncias que ponham em causa a prova de primeira aparência do furto.
De resto, a qualquer seguradora, com a organização de meios de que dispõe, é extremamente fácil fazer a prova das circunstâncias – se elas se verificarem de facto - que, no caso concreto, põem em causa a prova do furto, como aliás se vê nos vários casos em que a questão se discutiu sempre de forma muito extensa (acórdão do TRL de 25/10/2018, proc. 178/17.4T8MTJ.L1, em que se secundou a fundamentação dada pelo juízo local cível do Montijo que se considerou provado o furto; ac. do TRG de 16/11/2017, proc. 216/14.2T8EPS.G1; ac. do TRG de 02/11/2017, proc. 32/17.0T8GDM.P1, em que se alterou a matéria de facto, dando-se como provado o furto, depois de ampla discussão das circunstâncias alegadas pela seguradora; sentença do julgado de paz do Porto de 29/04/2016, proc. 956/2014-JP, em que também se considerou provado o furto também depois de ampla discussão das circunstâncias alegadas pela seguradora). Ou seja, quando essas circunstâncias existem, são muito fáceis de provar. O que também resulta de a fraude ou burla provocadas pelos segurados dizerem, por regra, respeito a bens de valores elevados em que, por isso, também costumam haver meios/instrumentos que podem ser utilizados pelas seguradoras: desde localizadores instalados nos veículos, até chaves electrónicas que guardam dados de utilização que podem ser lidos, passando pelos bloqueadores de veículos.
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Sendo assim, impõem-se, para já, quatro conclusões: (i) a prova produzida pelo autor – e traduzidas nos factos provados - é suficiente para permitir que se dê como provado o furto; (ii) as considerações constantes da fundamentação da decisão da matéria de facto afastam essa prova, com base nas circunstâncias alegadas e provadas pela seguradora; (iii), por isso, as alegações do autor, ao porem em causa as considerações tecidas pela fundamentação da decisão recorrida, têm valor, se procedentes, porque afastam o valor da contraprova produzida pela ré; (iv) as conclusões (i) e (iii) põem em causa as contra-alegações da ré na parte correspondente.
A questão é pois a de saber se as razões adiantadas pelo tribunal recorrido para afastar a prova do furto resultante da participação feita pelo autor estão ou não certas.
Quanto às razões do tribunal recorrido (com referência aos números colocados):
1- Como já decorre do que se disse até aqui não é correcto dizer-se que não existe qualquer elemento de prova que permita sequer indiciar a existência do furto invocado pelo autor.
2- Os argumentos que constam deste número são aparentemente válidos e aquilo que o autor diz contra um deles, de 21 a 26, está errado: tendo em conta as fotografias juntas na contestação, referidas pelo autor, que não as impugnou, e o local que se assinala como sendo o local onde o veículo do autor ficou estacionado, vê-se que os prédios que o autor sugere ficarem perto, estão a mais de 80m de distância para a esquerda e separados por um terreno murado, e a mais de 20m para cima e, neste caso, entre eles interpõe-se uma construção não habitada e um conjunto de árvores que impedem a visão do veículo para quem está nos prédios. De resto, o autor nem sequer diz nada contra a regra de experiência referida em 2.
3- O argumento não tem relevo, por aquilo que o autor diz de 27 a 32 e que foi também dito acima por este acórdão.
4- O que daqui consta é, no essencial, uma acusação genérica sem relevo. O que importa é o que é concretizado depois. De qualquer modo, diga-se que se ouviram as declarações do autor e não se notou nenhum nervosismo especial, nem nenhuma fuga a qualquer questão, e as respostas foram quase imediatas a todas as perguntas, incluindo uma instância extensa, tendo o autor respondido sempre de forma educada e sem qualquer exasperação; o autor apenas levou um bocado mais de tempo a tentar exprimir-se, quando, depois de ter respondido a todas as perguntas da Srª juíza, esta ainda lhe disse para falar livremente sobre a questão; ora, compreende-se a hesitação do autor, porque já tinha dito tudo o que havia a dizer).
5- Diz a fundamentação da decisão: “O autor começou por dizer nas suas declarações prestadas em audiência que estacionou o carro na sua rua, esclarecendo apenas depois que afinal foi na rua da casa da sua namorada.”
Esta contradição não tem qualquer relevo. Nas declarações do autor, as duas afirmações sucedem-se sem qualquer intervalo. O autor está a depor 1 ano e meio depois dos factos, teve mudanças na sua vida e residência e na altura também vivia em casa da (ex-)namorada. Fazer aquelas duas afirmações em sequência imediata, a segunda para corrigir a primeira, nada tem de especial. 5- Continua a fundamentação: “No que respeita à legalização da viatura referiu nas suas declarações que entregou todo o processo a um despachante o que não corresponde ao que consta de fl. 121 onde apenas o nome do autor consta.”
Não se vê porque é que o autor não pode ter assinado a fl. 121 apesar de ter entregue o processo a um despachante (que é o seu advogado). E não se vê maneira de rebater o que consta dos §§ 37 e 38 da argumentação do autor contra esta fundamentação da decisão recorrida, nem a seguradora o tentou fazer.
5- Continua a fundamentação: “O autor não tem qualquer factura das despesas realizadas para ir buscar a viatura a França, sendo óbvio que o papel que consta de fl. 124 não é uma factura. A tribunal não soube ou conseguiu trazer uma única testemunha que viesse confirmar a viagem realizada, valor pago, despesas […]”.
Note-se que a importação do veículo (que implicou todo um processo de regularização do mesmo), de França, pelo autor, é afirmação também feita pela própria ré, pelo que não se vê razão para pôr em dúvida a viagem realizada e a compra feita em França. E naturalmente que o autor teve despesas com a viagem e com a compra. Aliás, foi a autoridadade tributária e aduaneira que juntou aos autos (ofício entrado a 07/03/2018) a factura francesa (em que o autor figura como comprador), no âmbito do processo de regularização da viatura, tendo-a por isso como boa para o efeito, não se vendo, assim, razão para a pôr em causa. A ATA também juntou aos autos uma declaração, junta a esse processo de regularização, do autor, em como foi ele que trouxe o veículo de França, tendo-a, a ATA, como boa. E constando, o autor, da factura, dos documentos de importação do veículo, etc., tudo serve de corroboração de que o autor foi a França, comprou o veículo por 16.000€, trouxe o veículo para Portugal, o que implica, por pouco que fosse, despesas para o efeito. Mas mais ainda, nos pontos 18, 19, 21 e 22, dá-se como provado que o veículo foi importado de França pelo autor; aquando da sua entrada em Portugal contava com 391.811km; foi legalizado; e o veículo foi adquirido por 16.000€. Repita-se que a decisão recorrida dá expressamente como provado que o veículo foi adquirido por 16.000€ (facto 22); ou seja, a decisão recorrida não duvidou dessa compra, facto que tem relevo para muitos outros pontos, pois que naturalmente a convicção sobre o furto seria diferente se tivesse ficado em dúvida que se tivesse, realmente, pago 16.000€ pela aquisição do veículo (o que seria possível dado que o autor disse ter pago os 16.000€ em dinheiro vivo).
Assim, tudo o que é válido deste ponto da fundamentação da decisão é que o autor teve uma actividade probatória fraca, não juntando facturas de despesas nem testemunhas delas. Mas tal não tem relevo porque os factos (instrumentais) estão provados por outra forma.
5- Continua a fundamentação: “A tribunal não soube ou conseguiu trazer uma única testemunha que viesse confirmar […] despesas e diligências com vista à legalização, utilização que fazia do veículo, o sítio onde o estacionou, as características do local.”
As despesas e diligências com vista à legalização constam dos documentos juntos pela ATA e outras dos documentos juntos pelo autor no dia 21/05/2018, na audiência de julgamento. Não tem pois relevo o facto de o autor não ter trazido a tribunal testemunhas para provar tudo isto.
Quanto ao sítio onde o autor estacionou o veículo e as características do local, tem que se aceitar que não foram dados como provados, pois que a única menção (facto 11) que é feita a tal local nos factos provados vem acompanhada da expressão ‘alegadamente’. E portanto é certo que o autor não trouxe testemunhas para provar isto.
Só que, primeiro, sendo assim, é estranho que se utilizem tantas vezes as características do local onde o veículo terá alegadamente sido estacionado contra o autor, como se vê da argumentação de decisão recorrida e das contra-alegações da ré. Se não se sabe onde é que o autor estacionou o veículo, como é que se podem utilizar as características do local do estacionamento contra o autor?
Por outro lado, se se põe a hipótese de o autor estar a tentar enganar a seguradora ré, porque é que ele inventaria um local de estacionamento sujeito a tantas críticas? Qual o interesse de o autor dizer que tinha estacionado ali quando podia dizer que o tinha estacionado em qualquer outro sítio mais convincente?
Nesta parte – e é a única – a seguradora vem, nas contra-alegações, reforçar a argumentação da decisão recorrida, com o que diz em 22 e 23 transcritos acima, isto é, no essencial, que o autor podia, querendo, fazer facilmente “prova do local onde tinha estacionado o veículo, tendo em conta que, em sede de declarações de parte, o autor alegou que residia com a sua namorada perto do local do estacionamento do veículo.” Mas facilmente se imagina que se o autor o tivesse feito, a seguradora diria que esse depoimento não tinha qualquer valor porque a testemunha era (ou melhor, tinha sido) namorada do autor.
Seja como for, este argumento é válido e pode ser utilizado: o autor não trouxe uma única testemunha para provar o local onde tinha estacionado o veículo, sendo certo que não se deu como provado o local onde ele estava estacionado. Note-se, no entanto, desde já, que esta constatação retira força a um dos argumentos utilizados pela decisão recorrida contra o autor (argumento que vinha da ré).
5- Continuação da fundamentação: “a tribunal não soube ou conseguiu trazer uma única testemunha que viesse confirmar a […] utilização que fazia do veículo […].”
Mas porque é que o autor teria de fazer prova de tal utilização? E como é que saberia que a teria de fazer, já que nem indirectamente se pode retirar essa necessidade dos temas de prova enunciados e o autor não tinha alegado tal matéria?
Em suma, de tudo o que consta de 5 apenas se pode aproveitar a parte referida acima quanto à questão do estacionamento.
6- Diz-se: “Quanto à desconformidade dos factos que [o autor] alegou em audiência com as declarações prestadas ao Sr. perito e que constam de fl. 87 disse apenas “que se enganou”, o que não colhe face a toda a demais prova contrária produzida.”
Quanto às declarações prestadas aos Srs. peritos (ou melhor: averiguadores):
Diz o art. 421/1 do CPC, sobre o valor extraprocessual das provas produzidas num processo judicial: “Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.”
Ora, se isto é assim quanto a provas produzidas num processo judicial, como é que poderia valor como prova aquilo que foi dito por alguém numa inquirição não contraditória feita perante uma pessoa que está a fazer um trabalho pago por uma das partes e cujo resultado se for favorável a essa parte levará ao não pagamento de uma indemnização substancial?
Não há qualquer razão para confiar que as perguntas feitas por um averiguador, pago pela ré, no decurso de um processo particular extrajudicial, no segredo da sua inquirição informal com o autor, sem o controlo do juiz e da parte contrária, não tenham sido impertinentes, sugestivas, capciosas ou vexatórias. Pelo que o resultado desse depoimento/declarações do autor, seja qual for a forma em que se traduza, designadamente transmitido pelo depoimento do averiguador ou por algum escrito elaborado na sua sequência, não tem qualquer valor.
Neste sentido, veja-se o ac. do TRL de 15/03/2012, no proc. 662/2002.L1; também com desvalorização da prova produzida perante os averiguadores da seguradora, vejam-se os acórdãos do TRL de 25/10/2018, proc. 178/17.4T8MTJ.L1, ainda não publicado, e do TRG de 02/11/2017, proc. 32/17.0T8GDM.P1.
Assim sendo, não têm relevo as “desconformidade dos factos que [o autor] alegou em audiência com as declarações prestadas ao” averiguador da ré e é de desvalorizar totalmente aquilo que consta dos pontos 12, 14 e 16 [que, naturalmente, se mantém como provados, por não terem sido impugnados]. De qualquer modo, no decurso desta discussão da impugnação da decisão da matéria de facto, as aludidas desconformidades irão sendo tidas em conta e constatar-se-á que nenhuma delas tem relevo.
7- Será discutido/referido mais à frente.
8- Diz-se na fundamentação: “Para motivar ainda a inexistência de qualquer prova da real ocorrência do furto está a manifesta desconformidade entre as declarações prestadas pelo autor na PSP e ao averiguador da ré […]”.
Quanto às desconformidades com as declarações ao averiguador já foram analisadas. Trata-se de uma repetição. Quanto às desconformidades quanto às declarações prestados na participação à PSP trata-se de dois simples lapsos, um deles explicado pelo autor – não tinha consigo o certificado de matrícula pelo que pensou que também tinha sido furtado – e o outro perfeitamente natural: num caso diz que o furto pode ter ocorrido num período de 2/3 semanas e no outro diz que podem ter sido 3/4 semanas: o que é que tem de especial esquecer-se [ou alterar-se a forma de se referir] o período temporal preciso que ocorreu ou se mencionou 1 ano e meio antes?
8- Continuação da fundamentação: “a circunstância inexplicada de o registo do veículo ter sido feito durante os 20 dias que o veículo esteve estacionado naquele local com uns documentos que supostamente estariam no seu interior (segundo a participação à PSP). Não tendo o autor nas declarações que prestou dito que foi ao carro naquelas semanas, ou que tenha retirado do seu interior os documentos, fica por explicar como pode proceder ao seu registo de propriedade no dia 13/12/2016.”
Ora, se se aceitar – e nada aponta para a irrazoabilidade de se aceitar, como já referido – a explicação dada para o engano referido, esta fundamentação fica logo afastada. Para além disso, esta especulação é afastada com uma hipótese de explicação razoável dada pelo autor nas alegações, como se referirá daqui a pouco.
8- Continua a fundamentação: “Acresce que na conversa com o averiguador, no dia 31/01/2017, o autor esclareceu que tinha os documentos do veículo na sua posse, tendo-os exibido ao averiguador que os fotografou e à PSP no momento da participação o autor declarou que o certificado de matrícula se encontrava dentro do veículo, tendo declarado esse documento como furtado.”
É a segunda vez que se invocam as supostas desconformidades entre as declarações do autor e as declarações ao averiguador da seguradora. Ora, por um lado, já se disse que estas declarações não têm valor e, por outro lado, já se disse que a desconformidade em causa pode ter resultado de um simples lapso.
Em suma, tudo quanto consta de 8 gira à volta de um pequeno erro relativo ao furto do certificado de matrícula, perfeitamente natural e justificado e, para além disso, sem que se diga, sequer, qual o benefício que o autor tiraria com a mentira sobre esse furto. É, por isso, irrelevante.
9- Diz-se na fundamentação: “Mas nas suas declarações ao averiguador também referiu que o veículo teria custado ao todo 25.000€ tendo a viatura cerca de 290.000 km quando foi adquirida […]”.
É novamente a questão já tratada das desconformidades das declarações do autor no tribunal e perante o averiguador. De qualquer modo, mais à frente, dir-se-á algo quanto a isto.
9- O resto da fundamentação constante deste ponto mantém o interesse, mesmo sem esta parte inicial.
Desse resto resulta a seguinte questão:
Será de acreditar que o autor tenha comprado um veículo por 16.000€ quando, na data da compra, no mercado internacional, para veículos com as mesmas características, foram localizados veículos à venda por cerca de 10.000€ (facto 27)? Mas a pergunta não tem sentido porque o tribunal deu como provado em 18 e 22 que o veículo foi importado de França pelo autor e que foi adquirido por 16.000€. Ou seja, pode ter sido um mau negócio, mas o autor fê-lo. Qual o sentido da argumentação então? De resto o autor explicou a compra e o porquê dela – onde o comprou pôde pedir a amigos que antes disso fossem ver o veículo - e a decisão recorrida não o rebate. De resto, é da experiência comum das coisas que se encontram os mais díspares valores de venda de veículos/bens em inúmeros anúncios na internet, faltando sempre apurar a seriedade dos mesmos. Ou seja, a simples existência de anúncios, não prova que o veículo tenha qualquer valor, dado o estado em que ele se poderá encontrar. Para além disso, não se diz, no facto provado, que os veículos anunciados por 10.000€ tivessem a mesma quilometragem, o mesmo estado e o mesmo equipamento que o veículo comprado pelo autor.
Mas ainda se pode pôr outra dúvida, que subjaz a toda a argumentação da decisão recorrida embora não seja explicitada: será razoável acreditar que o autor comprou um veículo por 16.000€, que com impostos (= ISV) ficou por 18.640€, e depois o tenha segurado por 29.239€?
Ora, quanto a isto, primeiro, o custo total que o autor pagou para adquirir o veículo não foi só os 18.640€. Pois que, apesar da forma como estão descritos os factos dados como provados em 21 e 22, a verdade é que decorre claramente deles que este valor é apenas o valor da compra do veículo e do imposto. Ora, faltam uma série de outros valores, com as despesas de alfândega e de tramitação do processo (só para o cálculo do ISV há um recibo do pagamento de 200€, para além de vários outros valores em documentos) e todas as despesas que inevitavelmente o autor teve com as viagens para a compra do mesmo. 
Segundo, a própria fundamentação da decisão recorrida explica, em 7, que a testemunha F, mediador de seguro, esclareceu como foi atribuído o valor ao veículo segurado e o porquê da sua sobrevalorização decorrente do programa informático e que não é mutável. Ou seja, foi um dos elementos da organização de meios que a seguradora tem para a celebração do seguro que deu o valor ao veículo, com base nos elementos documentais em seu poder (dois documentos intitulados DAV que têm a menção explicita dos 391.811km e o valor de 16.000€) e num programa informático que não permitia outro resultado. Mais ainda, a própria decisão recorrida dá como provado, em 26, que em Setembro de 2016 havia veículos em Portugal com as mesmas características, e menos quilometragem, à venda pelo valor de 24.700€. Ora, não se diz quanta menos quilometragem, nem nada se diz quanto ao equipamento (o veículo do autor estava todo equipado) nem se sabe nada quanto ao estado de tal veículo com o valor de 24.700€. E assim, a diferença de 4000 e tal euros (muito menor do que a diferença para 16 ou 18.640€) pode estar perfeitamente justificada. De qualquer modo, repita-se, foi o sistema informático utilizado pela ré para a celebração do contrato de seguro que disse que um veículo como o do autor, com o mesmo modelo, ano, quilometragem e equipamento, valia 29.239€.
Porque a decisão recorrida faz referência a esta testemunha e se ouviu a mesma para apreciação dele e se constatou que no decurso da instância que a seguradora fez esta levantou duas questões atinentes com a que se está a discutir, passa-se a transcrever, por tópicos, o depoimento da mesma:
Tem apenas uma relação comercial com o autor; é mediador, oficialmente, desde 1982; vistoriou o carro; utilizou tabela e condições da seguradora; viu a inspecção e a DAV; foi ele que deu o valor do seguro e o autor limitou-se a aceitar; sistema automático da companhia; tabela eurotax; inserem-se os dados do carro e o sistema automaticamente dá o valor; se o autor lhe tivesse proposto segurar o veículo só por 10.000€ a testemunha não o podia fazer; só se pode dar mais 10 ou menos 10 por cento do valor dado pelo sistema; já na instância da seguradora, a testemunha diz: o averiguador  disse-lhe que não constavam nenhuns quilómetros na base de dados, mas tem [praticamente a] certeza que os colocou; aliás, crê que o sistema nem o deixa avançar sem colocar os km; não confirmou o n.º de chassis, nem o costuma confirmar; sim, confirmou o n.º de quilómetros; sim, pensa que terá falado na hipótese de diminuir o valor do capital em 10% ao autor não pediu para o baixar; a empresa do autor tem vários outros seguros consigo.
E assim, 1: se o autor estivesse de boa-fé, não teria pedido ao segurador para baixar o valor seguro nos tais 10%? Ora, a verdade é que a testemunha se limitou a responder que sim e a dizer que ‘pensava que’ à pergunta da advogada da ré. Daqui não resulta que esteja provado que o autor tenha sido de facto confrontado com a hipótese de se baixar em 10% o valor seguro. Mais, na lógica de se considerar o autor como um burlão de seguros, coloca-se a questão inversa: se ele quisesse enganar a seguradora, porque é que não teria pedido ao mediador que este aumentasse 10% ao valor seguro? É que, a aceitar-se que o mediador o informou da possibilidade da diminuição, não se vê porque é que não teria dado a informação completa.
E 2: o autor não terá enganado o mediador e apresentado um carro que não era o que foi segurado e o mediador não estará em concluio com o autor? É que ele não verificou o n.º do chassis do veículo. Mas isto são simples hipóteses, que a seguradora sugere, pondo em causa a honestidade de todos, sem mais sustento do que a especulação e a ‘confissão’ do mediador de que não conferiu o n.º do chassis. Mas ele também disse que não o costuma fazer e ter confirmado o resto dos dados, pelo que é muito pouco provável que o veículo fosse outro (o mesmo veículo, com o mesmo modelo, a mesma cor, a mesma matricula e com a mesma quilometragem).
Por fim, perante estes dados não tem sentido sugerir que o autor tentou enganar o averiguador ao referir que o veículo tinha 290.000km e tinha custado 25.000€; é que o seguro foi celebrado com a DAV em presença, que era assim do conhecimento da seguradora, e dela consta que o veículo custou 16.000€ e tem 390.000km. Ninguém com o mínimo de bom senso iria, não podendo deixar de ter conhecimento destes dados, tentar enganar um averiguador da seguradora dizendo-lhe que o veículo custou 25.000€ e tinha 290.000km. É muito mais provável que a eventual referência aos 290.000km fosse de facto um engano em que o autor incorreu e que a referência aos 25.000€ fosse para englobar tudo o que o autor entendia que o veículo lhe tinha custado para o ter na sua propriedade ou que o veículo valia em Portugal e não só para a sua compra. E a falta de prova de mais despesas não equivale à ausência das mesmas que, aliás, inevitavelmente, como se disse, tiveram que existir, mesmo que em valor inferior ao invocado pelo autor.
Em suma, considera-se que a argumentação explícita ou implícita do ponto 9 não tem valor para pôr em causa a versão do autor.
10- Quanto à demora de promover o registo.
O autor explicou a demora: falta de dinheiro e problemas de tramitação do processo, pelo que a decisão recorrida não pode dizer que o facto é suspeito sem rebater a explicação dada pelo autor. Por outro lado, não é possível rebater a argumentação do autor que consta dos §§ 40 a 49, nem a seguradora o tenta fazer.
10- Ainda: ter sido feito o registo durante aquele período em que o autor não tinha os documentos na sua posse porque estavam no interior do veículo.
É de novo a tal questão de a decisão recorrida não acreditar no que o autor diz quanto ao furto do documento, mas, por outro lado, aproveitar essa alegação para pôr em causa a credibilidade do autor. O autor explicou o engano, explicou também que o certificado de matrícula lhe foi remetido em data posterior, pelo que a dúvida, de ter sido feito o registo enquanto o certificado estava no veículo furtado, fica afastada.
11- Quanto à apreciação abstracta do valor dos depoimentos das testemunhas da ré.
Ela só teria interesse para apoiar as questões concretas que foram analisadas acima e não para este tipo de apreciação abstracta.
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Em suma, para afastar a credibilidade da versão do autor, isto é, que o veículo lhe foi furtado, podem-se aproveitar dois argumentos utilizados pelo tribunal, sendo todos os outros rebatíveis e/ou irrelevantes.
Os argumentos aproveitáveis são os seguintes: (i) o sítio onde o autor teria alegadamente estacionado o veículo é um grande parque de estacionamento, ermo, como decorre das fotografias juntas a fls. 85 e 86, e que não ficam propriamente perto de casa alguma. Pelas regras da experiência comum, alguém que acabou de adquirir um veículo, com o valor de quase 30.000€, não o deixa num parque de estacionamento, praticamente abandonado durante quase 20 dias;: (ii) o autor não trouxe testemunhas para provar o local onde estacionou o veículo e por isso não está provado onde o fez.
E a seguradora reforça esta argumentação dizendo: o autor nem tentou impugnar a decisão recorrida de considerar como não provado o que consta de b a d, ou seja, que o autor estacionou o veículo perto da residência da sua namorada, mais concretamente na Rua X, em local próprio destinado ao estacionamento de automóveis; depois fechou-o e dirigiu-se para casa da sua namorada e só deu pelo desaparecimento do mesmo no dia 19/12/2016.
Contra isto pode-se dizer desde logo que a decisão recorrida parte de um valor que o autor nunca referiu como sendo o do seu veículo, como já decorre de tudo o que antecede. E não se vê porque é que a decisão recorrida, que, por vezes, até duvida que o autor tenha comprado o carro, que não valeria mais de 10.000€, afinal agora diz que o veículo tinha o valor de 30.000€.
De qualquer modo, aceita-se que alguma estranheza resulta do facto de o autor gastar 16.000€ na compra de um veículo e mais alguns milhares de euros para fazer a compra e regularização, e depois o deixe abandonado, durante pelo menos 15 dias, num parque de estacionamento ermo. Mesmo que o valor já não seja tão elevado como o referido pela decisão recorrida e que haja pessoas mais e menos despreocupadas, não deixa de ser verdade que tal actuação não corresponde àquilo que o mais das vezes acontece, na normalidade das situações.
Importaria então considerar se esta argumentação devia levar a afastar a convicção da prova do furto. Só que, a argumentação seguinte retira a base de apoio a esta, pois que afinal não estaria sequer provado onde é que o autor teria estacionado o veículo.
Pelo que, ao fim e ao cabo há só duas questões a colocar. Primeira: o autor só pode provar o furto se tiver provado também o local onde estacionou o veículo e este desapareceu? Segunda, é razoável que o autor tenha gasto mais de 18.640€ na compra de um veículo e depois o deixe estacionado em qualquer lado e se despreocupe dele durante pelo menos 15 dias?
Quanto à primeira questão, a resposta tem de ser a mesma que aquela que vale para a prova do furto. A prova deste, isto é, do desaparecimento do veículo, resulta de forma bastante da participação dele às autoridades policiais se nada se provar que ponha em causa essa participação. Aí consta indicado o local onde o veículo ficou estacionado e se nada se se provar contra isso, não se vê porque é que essa alegação deveria ser posta em causa. O que é particularmente verdade no caso dos autos, em que essa indicação até é desfavorável ao autor, tanto que a seguradora partiu dela para argumentar contra o furto.
Quanto à segunda questão, considera-se que a estranheza provocada pela despreocupação do autor quanto ao veículo, não é suficiente, só por si, para levar à dúvida sobre o furto bastantemente indiciado pela participação do mesmo à PSP. De resto, o autor, nas suas declarações deu algumas explicações para não se ter ocupado do veículo durante aquele período – tipo de trabalho noutros locais e falta de tempo, posse de outros veículos – e não foi posto em causa quanto a isso.
Assim, com base na participação do furto feita à PSP, que apenas contém o erro de fazer a referência ao furto de um documento que afinal não foi furtado, considera-se que o furto está provado de forma bastante (art. 346 do CC), já que a seguradora não fez prova de circunstâncias suficientes para pôr em dúvida aquela prova.
Assim sendo, adita-se aos factos provados o seguinte: 28. Em data anterior à da participação de 19/12/2016, o veículo 00-00-00 foi furtado.
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Do recurso sobre matéria de direito
A sentença recorrida considerou a acção improcedente porque o autor não teria conseguido fazer a prova do furto.
O autor diz que se provou o furto ou pelo menos a participação do mesmo às autoridades e que, por isso, tendo em conta o art. 1 do regime jurídico do contrato de seguro aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04 (= LCS), e também o art. 1 do DL 214/97, de 16/08, bem como o valor por ele pago pelo seguro, a seguradora está obrigada a pagar o valor dado ao veículo segurado, por proposta da ré, no contrato de seguro celebrado entre ambos.
A ré responde que a participação do furto às autoridades não basta, é necessária a prova do furto; a participação é só uma das obrigações que o autor tinha de cumprir; não se provando o furto – e o ónus da prova dele cabia ao autor -, a seguradora não tem de pagar o valor acordado que é uma indemnização do dano.
Decidindo:
Alterada a decisão da matéria de facto, pode-se agora concluir que o veículo foi furtado, isto é, que se verificou um dos riscos coberto pelo seguro celebrado entre o autor e a ré.
A discussão fez-se a propósito da impugnação da decisão da matéria de facto, mas também podia ter sido feita nesta parte do acórdão, isto é, no recurso sobre matéria de direito.
Tivessem ficado apenas provados os factos que já vinham dados como provados, não se provando, no essencial, nenhumas das circunstâncias alegadas pela ré para desvalorizar a prova que decorria da participação, e desvalorizando-se alguns dos factos provados do modo como se fez acima, sempre os restantes factos provados permitiriam a conclusão de que se podia ter como provado o furto do veículo.
Assim sendo, a seguradora deve ser condenada a pagar a indemnização que acordou para o efeito.
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Da alegada falta de coincidência entre o valor seguro e o valor real do veículo
A seguradora, na contestação, excepcionava, no entanto, o sobresseguro, isto é, dizia que o valor do veículo (29.239€) que constava do seguro não era o valor real do veículo (16.000€).
Sem a ré lhes fazer referência expressa, estava em causa a invocação do disposto nos arts. 128 (: “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”) 130/1 (: “No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro”) e 132/1, todos da LCS (: “Se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro, é aplicável o disposto no art. 128 […]”) e a consequência de que, a ter a ré de pagar alguma coisa, o valor que devia ser pago era só o valor real e não o valor segurado.
Dos factos que constam da parte da discussão da impugnação da decisão da matéria de facto, resulta claramente que o valor pelo qual o veículo foi segurado foi dado pelo mediador de seguros utilizado pela seguradora para a celebração do contrato – parte por isso da organização de meios de que a ré se serve para o exercício da sua actividade, pelo que o risco da actuação dele sempre deveria ser arcado pela seguradora (independentemente de ele ser ou não representante da seguradora, afirmação que não se desenvolve aqui face ao que a seguir se diz, tirando interesse à questão). Deles resulta também que o valor achado pelo mediador de seguros corresponde a uma forma de cálculo que acha o valor do veículo com base em todas as suas características e em todo o seu equipamento, pelo que corresponde ao valor real do veículo e não a um valor sobreavaliado.
No entanto, tais factos não constam dos factos discriminados como provados e por isso não podem ser utilizados aqui (art. 607/3 e 4 do CPC), o que se diz para esclarecer porque é que é necessário dizer o que se segue, apesar do que já consta daquela discussão.
A prova de que o valor real do veículo não coincide com o valor pelo qual ele foi segurado cabe à seguradora, como facto impeditivo do direito do autor ao recebimento do valor acordado (art. 342/1 e 2 do CC).
Ora essa falta de coincidência não se provou. Não importa que se tenha dado como provado (em 26) que em Setembro de 2016 havia veículos em Portugal com as mesmas características, e menos quilometragem, à venda pelo valor de 24.700€, pois que não se sabe se esses veículos estavam no mesmo estado do autor e se tinham o mesmo equipamento instalado. E não importa, também, que (em 20 e 22) tenha sido dado como provado que o veículo foi adquirido por 16.000€. O valor real de um veículo é aquele que o autor teria que pagar para conseguir comprar um igual (com as mesmas características, os mesmos quilómetros, o mesmo estado e o mesmo equipamento) em Portugal e não aquele pelo qual o comprou no estrangeiro.
Tanto basta para que não se possa dizer verificado o facto impeditivo invocado pela seguradora.
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Não deixe de se dizer, de qualquer modo, que a falta de coincidência entre o valor segurado e o valor real do veículo raramente se pode verificar e que, por isso, o “princípio do indemnizatório” (expressão que resume, no que aqui importa, as regras dos arts. 128, 130/1 e 132/1 da LCS) não tem, por regra, aplicação a este tipo de seguros de “riscos de massa”, pois que ele pressupõe que o valor seguro não tenha sido acordado entre as partes (art. 131, n.º 1 e 2, da LCS).
Veja-se:
Se A vai segurar o risco da perda de um seu automóvel antigo, peça única de museu, e lhe dá o valor de 150.000€, a seguradora pode, sem mais, aceitar segurar o veículo por esse valor. Se o veículo se vier a perder, é razoável que a seguradora possa fazer a investigação do seu valor real e chegar à conclusão de que ele só valia 50.000€ e tentar pagar apenas esse valor real, invocando o referido princípio do indemnizatório.
A situação do seguro de um veículo automóvel normal, isto é, que não seja uma peça de museu, é completamente diferente daquela: o proprietário daquele veículo automóvel vai ter com a seguradora para segurar o risco de perda do veículo e é a seguradora que, com base numa série de dados objectivos do veículo (confirmados numa vistoria feita na hora), inseridos num sistema informático, obtém o valor pelo qual o veículo deve ser segurado. E depois o tomador do seguro aceita ou não esse valor proposto pela seguradora. Valor que é assim calculado de forma tão precisa que varia também com os extras que estão instalados no veículo e que depois vai sendo desvalorizado, mês a mês e ano a ano, conforme tabela que consta da própria apólice de seguro (é o que resulta do regime do DL 214/97, de 16/08, “diploma institui regras destinadas a assegurar uma maior transparência nos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguros.” – art. 1 – onde se prevêem tabelas de desvalorização – art. 4 do DL - que devem constar do contrato, como no caso dos autos acontece).
Ou seja, o valor do seguro do veículo corresponde ao seu valor real, dado pela seguradora e aceite pelo tomador do seguro, sendo achado por uma forma tal (e tão simples que é obtida em questão de segundos, não exigindo da seguradora quaisquer diligências especiais) que se pode dizer ter sido obtido por acordo antecedido de uma perícia (um sucedâneo do acordo previsto no art. 131 da LCS), pelo que, por regra, não tem razão de ser a invocação de falta de coincidência entre o valor seguro e o valor real ou da falta de acordo quanto ao valor (sendo que essa invocação, pela seguradora, nestas circunstâncias, sempre se poderia dizer manchada pelo abuso de direito: art. 334 do CC).  
Neste sentido, para os casos de seguros de veículos automóveis, vejam-se, por exemplo, embora com diferenças de fundamentação, os seguintes acórdãos: 
- do TRP de 15/02/2004, proc. 0420961:
II - Sendo certo que o valor seguro dos veículos deverá ser automaticamente alterado de acordo com a tabela legal, indicado pelo segurado um valor do veículo furtado, compete à seguradora provar que o valor desse veículo era inferior ao indicado;
- do TRL de 18/04/2013, proc. 2212/09.2TBACB.L1:
III. Quando o valor do interesse seguro tiver sido acordado, não se aplica o princípio indemnizatório (que aliás não será um princípio de ordem pública), excepto se o valor acordado for manifestamente infundado.
IV. Em qualquer dos casos, o princípio indemnizatório deve ser “entendido em termos materiais”, ou seja, o que interessa não é o valor venal ou de mercado do bem, mas sim o valor de substituição.
V. O ónus de alegação e prova do valor real (de substituição) do bem cabe às seguradoras.
VI. Embora para que haja um valor acordado não baste a aceitação da proposta do tomador pela seguradora, a situação normal, ao menos no seguro automóvel facultativo, será a de o valor seguro ser um valor acordado.
VII. As seguradoras não podem, sob pena de abuso de direito (art. 334 do CC) na modalidade do venire contra factum proprium, opor aos tomadores o valor real depois do sinistro ter ocorrido para evitarem sobreindemnizações, se antes de celebrarem o contrato nada fizeram para o apurar, com o que evitaria celebrar o contrato com sobresseguro (e com os inerentes sobreprémios), apesar de o poderem ter feito com facilidade, se tivessem actuado com um mínimo de diligência que a boa fé lhes impunha (art. 227 do CC).
do TRP de 13/06/2013, proc. 4438/11.0TBVNG.P1:
I - Nada impede que as partes estipulem o valor do bem objecto do contrato de seguro e, quando isso ocorrer, ainda que não tenha sido acordado que esse era o valor a indemnizar em caso de furto, o segurado não tem de provar qual o valor do bem, bastando-lhe provar, como elemento constitutivo do seu direito, que o valor do bem objecto do seguro foi fixado por acordo ou pela seguradora.
II - O segurado só tem de provar o valor do bem na data do sinistro quando o valor tenha sido indicado por ele aquando da celebração do contrato.
III - Sendo o valor fixado pelo agente da seguradora, recai sobre esta o ónus de provar que, na data do furto, o valor real do bem era inferior ao valor constante da apólice.
- do TRC de 12/01/2016, proc. 439/13.1TBFIG.C1:
No que tange ao valor do veículo.
Certo é que ele foi vendido ao Isaías por 4200€. E que nos sites atinentes vale cerca de 5500€. Mas é também certo que foi segurado pela ré por 10.500€. A ré é uma empresa credenciada no mercado e supostamente conhecedora do valor dos veículos. Se aceitou fazer o seguro por tal valor é porque considerou que ele corresponderia ao daquele específico automóvel, com as suas caraterísticas próprias. E este tinha essas caraterísticas, como seja um gerador de refrigeração para transporte de produtos alimentares ou farmacêuticos, como disse a testemunha G (...), perito averiguador de sinistros automóveis. Ademais, esta testemunha, e tal como mencionado na decisão, referiu que o valor seguro aceite por uma seguradora se rege por tabelas na sua posse. Se a ré aceitou o valor constante no contrato é porque entendeu que o estado do veículo corresponderia ao mesmo. Finalmente, é óbvio que tal valor acarretou um prémio para a segurada superior ao que derivaria de um valor inferior. È assim incongruente e inadmissível que tenha aceitado tal montante para efeitos de recebimento do prémio e se queira escapulir à sua responsabilidade em função do mesmo.
- do TRG de 16/02/2017, proc. 183/15.5T8CBT.G1:
“A postura de quem adopta um comportamento que entra em contradição com outra conduta anteriormente assumida, vulgo venire contra factum proprium, integra-se no princípio da tutela da confiança, numa linha de concretização da boa-fé que deve existir nessas relações sociais e comerciais”).
Particularmente significativo, porque nem sequer tem a ver com um caso de veículo automóvel, nem com um seguro de “riscos de massa”, veja-se ainda o ac. do STJ de 08/06/2017, proc. 7087/15.0T8STB.E1.S1, embora com um voto de vencido:
I. Embora vigore no regime do contrato de seguro de danos o princípio indemnizatório (art. 439 do Cód. Com. e art. 128 da LCS), nos termos do qual a seguradora apenas responde pelo valor do dano realmente causado, tal não afasta a possibilidade de as partes estabelecerem acordo prévio quanto ao valor do bem para esse efeito (valor estimado).
II. Verifica-se tal acordo prévio se o segurado especificou a existência, entre outros objectos de ouro e prata, de um faqueiro em prata do séc. XIX, a que atribuiu o valor individualizado de 20.000€, e tendo questionado a seguradora sobre a necessidade de se efectuar uma avaliação escrita desse bem, recebeu como resposta a dispensa dessa avaliação e a aceitação, sem reservas, desse valor.
III. Posto que se tenha provado, no âmbito da acção judicial, que o faqueiro tinha o valor de 2000€, o facto de se tratar de uma antiguidade e de a seguradora ter dispensado qualquer avaliação determina que responda pelo valor que o segurado, de boa fé, indicou.
IV. Age em abuso de direito a seguradora que, apesar de ter dispensado o segurado da entrega da avaliação do faqueiro em prata e de se ter abstido de realizar qualquer diligência tendente a confirmar o seu valor, recusa pagar a quantia indicada pelo segurado depois de ser comunicada a ocorrência de um sinistro ao fim de cerca de 7 anos, período durante o qual a seguradora arrecadou os prémios correspondentes ao valor que foi declarado.
                                 […]”
                                                     *
Juros
O autor pede o pagamento do capital com juros de mora (só desde a propositura da açcão), no dobro da taxa legal. Está a invocar, sem o dizer, os arts. 38 e segs do regime anexo ao DL 291/2007, de 21/08, relativo à regularização de sinistros por propostas razoáveis da seguradora, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Esse regime não pode ser transposto para o regime do seguro voluntário de danos próprios, pelo que os juros devidos são os legais (arts. 806/2 e 559, ambos do CC), que podiam ser contados desde a data anterior à propositura da acção (arts. 104 e 102 da LCS) se não fosse o pedido limitativo feito pelo autor (art. 609/1 do CPC).
Os juros vincendos não têm relevo para o valor da acção (art. 297/2 do CPC) e por isso para efeitos de custas do recurso.
                                                      *
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto pelo autor, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-se a mesma por este acórdão que condena a seguradora a pagar ao autor 29.239€, acrescidos dos juros de mora, à taxa legal, contados desde a data de propositura da acção até integral pagamento.
Custas, na vertente de custas de parte, pela ré (que foi quem perdeu o recurso).

Lisboa, 22/11/2018

Pedro Martins
Laurinda Gemas
Gabriela Cunha Rodrigues