Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
84/22.0JELSB.L1-5
Relator: ALDA TOMÉ CASIMIRO
Descritores: EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
IMEDIAÇÃO
CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/02/2025
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSOS PENAIS
Decisão: NÃO PROVIDOS
Sumário: Sumário:
I. A discordância do recorrente com a fundamentação/exame crítico feito pelo Tribunal, não significa que ele não existe. A fundamentação deficiente não se confunde com a falta de fundamentação.
II. A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova, quer directa quer indiciária, estando o fundamento da sua credibilidade dependente da convicção do Julgador que, sendo embora pessoal, tem que ser motivada e objectivável, na valoração de cada elemento probatório por si e na conjugação dos vários indícios, sempre de acordo com as regras da experiência.
III. A ausência de imediação determina que o Tribunal superior, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida.
IV. Na previsão do art. 40º do D.L. 15/93 de 22.01, só é admissível o consumo, ou a detenção para consumo, para o próprio.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,
Relatório
No âmbito do processo Comum (Singular) nº 84/22.0JELSB, que corre termos no Juiz 5 do Juízo Local Criminal de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foram os arguidos,
AA, nascido a ........1978, nacional de ..., filho de BB e de CC, residente, em liberdade, na ...; e
DD, nascida a ........1980 na freguesia de ..., filha de EE e de FF, residente na ...
condenados, como co-autores materiais de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos arts. 21º e 25º, alínea a), do D.L. 15/93, de 22.01, com referência à Tabela l-C anexas a esse diploma legal,
- o arguido AA, pela prática, como reincidente (arts. 75º e 76º, nº 1 do Cód. Penal), na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão;
- a arguida DD na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, subordinada a regime de prova.
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Sem se conformar com a decisão, o arguido AA interpôs o presente recurso onde pede que seja anulada a sentença recorrida e substituída por outra que devolva o processo à 1ª Instância para que proceda a uma “correcta fundamentação, com exame crítico da prova produzida”; ou que, face aos elementos constantes do processo, o absolva.
Para tanto apresenta as seguintes conclusões:
I – Vem o presente recurso interposto da Douta Sentença de 22.05.2025 do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 5 que condenou o recorrente AA pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelos artºs 21º nº 1 e 25º alª a) do D.L. nº 15/93 de 22/1, na pena de dois anos e nove meses de prisão efectiva.
II – No entanto, e salvo melhor entendimento, a referida decisão padece dos vícios de:
A) Falta de exame crítico da prova;
B) Erro na fixação da matéria de facto;
C) Errada interpretação dos arºs 21º nº 1 e 25º alª a) do D.L. 15/93 de 22/1
A) Da Falta de exame crítico da prova produzida
III – Sintetizando os factos provados atrás descritos, a Doutra Decisão recorrida considerou provado que no dia ... de ... de 2022, pelas 15h20, a DD , mediante prévio acordo e concertação de esforços com o AA, dirigiu-se ao Estabelecimento Prisional de... onde o AA se encontrava recluso, entregando aí um saco de roupa destinado ao Arguido, que continha entre outras coisas um casaco de fato de treino, em cujo interior se encontrava uma embalagem de canábis (resina) com o peso de 0,510 gramas, que se destinava ao arguido.
IV – Na sua Fundamentação, refere o Douto Tribunal recorrido que a sua convicção se estribou, no que respeita aos factos pelos quais os arguidos vinham acusados, “na prova documental constante dos autos, e nas declarações produzidas pelos arguidos pelas testemunhas GG (guarda prisional), HH (guarda prisional), II (Inspector da Polícia Judiciária) e JJ (trabalhou no estabelecimento prisional de ... de ... a ...) em audiência de discussão e julgamento.
V – Sucede que, em nosso modesto entender, o Tribunal não procedeu á análise crítica da prova produzida, não explicando porque considerou credíveis alguns depoimentos (mesmo quando contraditórios ou não confirmados por outros) e porque desvalorizou a versão dos Arguidos, e do relatório Final da PJ de fls. 56 a 59. Neste último Relatório, elaborado no final da Investigação, chegou-se á seguinte CONCLUSÃO:
“Assim, face à incapacidade de recolher informação que permitiria esclarecer a totalidade dos factos, pois existe um período temporal entre a entrega do mesmo saco por parte da DD e a verificação do mesmo, a presente investigação apenas conhece a descoberta do produto estupefaciente em momento após a visita da arguida ao recluso AA no qual foi encontrado o produto estupefaciente que se encontrava dissimulado no meio da roupa, que seria para ser entregue ao recluso AA. A razão para esta “CONCLUSÃO” resulta evidente das declarações então prestadas naquela Polícia, a Fls. 39 e 39-V pela Sra. HH, que “Recorda o facto de ter verificado o saco entregue pela suspeita DD em momento posterior á realização da visita, facto que não é o procedimento vigente mas que nesta data verificava-se uma carência grande de pessoal para atender a todas as necessidades e alguma coisa teria de ficar para segundo plano” (Fls. 39-V).
VI – Já em sede da audiência de julgamento, a Sra. Guarda Prisional HH alterou a sua versão dos acontecimentos: afinal, a DD não teria ido à visita, e a revista ao saco com roupa teria sido na presença da mesma (Depoimento com a Refª 20250319103402), o que aquela desmente. Depois de descrever procedimentos, diz que a Arguida foi levada ao graduado, mas depois de se ouvir vários graduados indicados pelo ..., nenhum confirma ter recebido a Arguida. Assim, JJ (Depoimento REFª 202505094704) não se recorda da Arguida, não teve contacto com a pessoa, e não estava presente na altura em que o saco foi revistado. Diz que a Arguida foi entregue ao Chefe KK, mas o ... não o confirma, indicando como graduado de serviço o Chefe LL (Refª 20250408102727) o qual ouvido em declarações diz não conhecer os Arguidos e que “não tenho ideia disto”.
VII – O depoimento do Sr. Guarda GG (Refª 20250319101854) também em nada contribuiu para esclarecer a situação. Conhece o AA da prisão e recorda-se da arguida DD por o ir visitar. Descreveu o trajecto dos visitantes, mencionando a passagem com os sacos pelo Raio-X. Confirma que há reclusos a trabalhar junto dos guardas que revistam os sacos, embora não estejam autorizados a tocar nos sacos antes de os guardas os revistarem. Não tem explicação para os pedaços de haxixe não terem sido detectados no Raio-X. Não viu conduzir a Arguida ao graduado de serviço. Quando foi chamado pela HH para ver o haxixe, ela mostrou-o na mão, já tinha sido retirado do saco revistado. Refere que quando a pessoa que entrega o saco para o recluso vai fazer a visita, o saco só é revistado no fim da visita (o que explica as declarações da HH na Polícia Judiciária – Fls. 39-V).
VIII – Em face de todas estas contradições e do “desaparecimento” do graduado de serviço que teria ficado com a Arguida (e cuja obrigação, nos termos da Lei, seria a de entregá-la à PSP, o que ninguém fez…) faz mais sentido o depoimento da DD (Refª 20250224114003), que de forma segura e credível descreveu a sua entrada no ..., o preenchimento da ficha de visitante, a passagem com o saco pelo Raio-X, a entrega do mesmo à Sra. Guarda, e ter ido visitar o então marido. Relata que depois da visita se veio embora, e passados dois dias o AA lhe telefonou, dizendo que não recebera o saco com a roupa, e que lhe haviam dito que havia droga no bolso do casaco de fato de treino, e só foi confrontada com esse facto na visita seguinte. Perguntada sobre como explica a presença do haxixe no bolso respondeu que “se apareceu na roupa foi porque alguém meteu lá a droga”.
IX – Versão que é confirmada pelo AA (Refª 20250224112418), o qual referiu que era a primeira visita e que estava à espera da roupa, pois antes estivera na cela de admissão. Só esteve 1 mês no ..., depois foi para ...; só teve 2 visitas no ..., e nesse dia ........2022 recebeu a visita da DD. Não foi ele que pediu aquela roupa, mas como é a mais usada (fato de treino, t-shirt, ténis) foi a que ela trouxe (facto que a Arguida também confirmou). Perguntado se tinha explicação para o haxixe encontrado no bolso do casaco, respondeu que a revista na cadeia é muito rigorosa, e que os sacos passam ao Raio-X. A explicação é que quando uma pessoa entra de novo na cadeia, os reclusos faxinas combinam entre eles para meterem coisas nos sacos. O haxixe não era para ele, que nenhum interesse tinha nele, dado que deixou de consumir em 2000. Os depoimentos dos Arguidos coincidem, não havendo motivo para suspeição de os terem combinado porque neste momento se encontram, desde 2024, divorciados e não mantêm contactos entre si.
X – E se questionarmos a razão pela qual haveriam os Srs. Guardas de faltar à verdade, a resposta é simples, basta atentar no depoimento da guarda HH na PJ, onde se queixa da “falta de pessoal” para ter feito a revista do saco da arguida depois da visita, e não antes, o que não é “procedimento vigente”. Há em todo este processo uma sucessão de falhas de segurança, começando por não terem detectado a droga no Raio-X, e depois por a citada revista só ter sido feita no final da visita da arguida DD. Repare-se que o Sr. Guarda GG, a instância do MP, declara que as visitas decorrem entre as 14.30h e as 15.15h, e só pelas 15.20h a droga é detectada no casaco (F.P.C), ou seja, no final da visita da DD e tendo-se a mesma retirado, pois só assim se explica que não tenha de imediato sido entregue à PSP (dado que a Guarda Prisional não é órgão de policia criminal). Por outro lado, não consta do processo que o arguido AA tenha sofrido qualquer sanção disciplinar no ... pelo ocorrido, sinal de que nunca foi responsabilizado pelo mesmo. Considerando que a Douta Decisão recorrida não foi capaz de analisar e explicar estas discrepâncias (por exemplo, o ... nunca foi capaz de indicar, com verdade, qual o graduado de serviço a quem teria sido entregue a Arguida, apesar de sucessivos pedidos do Tribunal), porque não deu crédito nem às versões dos Arguidos nem às Conclusões do Relatório da PJ, resulta evidente que se verifica uma falta de exame crítico das provas, o que torna a decisão NULA.
B) Do erro na fixação da matéria de facto
XI – Face aos documentos constantes do processo (designadamente do Relatório da PJ de fl. 56 a 59), e aos depoimentos contraditórios entre si dos guardas prisionais ouvidos, dos depoimentos credíveis dos Arguidos, e da incapacidade do ... em identificar o tal “graduado de serviço” a quem teria sido entregue a DD, forçoso é concluir que estão incorrectamente julgados os Factos Provados A), B), C), E), F), G), J) e K).
XII – Em relação ao Facto Provado A), estamos perante uma mera “dedução” ou “presunção” do Tribunal, uma vez que se limita a falar de “comum acordo” e “concertação de esforços” entre os Arguidos, sem indicar factos ou provas concretas (telefonemas, cartas, etc) que demonstrem qualquer contacto prévio dos Arguidos, no sentido de combinarem a entrega do haxixe ao arguido AA. Quanto às “quantias monetárias” e ao “lucro” que haviam de obter com o negócio, dado que não se apurou quanto custou a droga nem por quanto seria vendida (e repare-se que estamos a falar de meia grama de haxixe) não se percebe em que consistiriam os tais “lucros”. Neste caso, estamos perante uma verdadeira omissão de pronúncia… De qualquer forma, as provas que impunham um julgamento diferente deste facto, são os depoimentos dos Arguidos, que o negam de forma consistente, o facto de o haxixe não ter sido detectado no Raio-X, e de, conforme admitiu o Sr. Guarda GG, existirem outros reclusos (vulgo “faxinas”) no mesmo local onde se realiza a revista dos sacos (e que poderiam ter introduzido o haxixe no casaco para o fazerem entrar no EP, levando-os até à zona prisional), o Relatório da PJ de Fls. 56 a 59, que não atribui responsabilidades aos Arguidos, e finalmente o facto de a DD não ter sido, comprovadamente, entregue a qualquer graduado de serviço, nem à PSP, como é prática corrente quando alguém é apanhado na visita a um EP com droga na sua posse.
XIII – O julgamento correcto deste facto levaria a que o facto Provado A) fosse apenas: “No dia ... de ... de 2022, no Estabelecimento Prisional de ..., cerca das 15;20h, foi detectado no bolso de um casaco a presença de três pedaços de haxixe, não se tendo determinado nem qual o seu proprietário, nem a forma como foi introduzido naquele EP”.
XIV – As considerações relativas ao facto provado A), pelas mesmas razões e face ás mesmas provas invocadas, são extensíveis ao facto provado B). Em relação ao facto provado C) impõem-se os mesmos considerandos, uma vez que ambos os Arguidos, de forma convincente, negaram que esse produto estupefaciente se destinasse ao AA, tendo este dado uma explicação plausível para a presença da droga no casaco, como sendo possivelmente ali colocada pelos “faxinas”. Que se teriam aproveitado da “falta de pessoal” de que a HH se queixou na PJ, e da confusão reinante naquele espaço, à hora das visitas (confirmada pelo Guarda GG). De qualquer forma, nenhuma prova foi produzida de que o AA tenha solicitado à DD que lhe levasse droga para a cadeia. E se fosse para comércio, não seria apenas meia grama!
XV – Em relação ao Facto Provado F), não é verdadeiramente um facto, mas uma mera conclusão, não alicerçada em qualquer prova. Pelo que também não pode ser contrariada por qualquer prova. O mesmo se dizendo do Facto Provado G).
XVI – Finalmente, o Facto Provado K) é contrariado pelos demais factos dados como provados. Não se pode logicamente dizer que “… o arguido revela uma especial apetência para o crime, não se inserindo socialmente…”, e logo depois considerar provado que “… é bate chapas e pintor de veículos automóveis, auferindo, mensalmente, pelo menos a quantia de €800 (... M), “… vive maritalmente com a sua companheira (MM) e “… reside em habitação camarária (...), pois ter um emprego certo, uma família e uma morada permanente são habitualmente sinónimos de estar socialmente inserido (pelo menos, nos relatórios sociais da DGRSP e nas decisões judiciais em geral).
XVII – Quanto aos demais Factos Provados, não merecem qualquer apreciação, porque na maioria se limitam a reproduzir, de forma exaustiva e desnecessária, o certificado de registo criminal do Arguido, deixando dessa forma bem claro que ele não é condenado por algum crime que tenha praticado (pois estando preso nem tinha o “domínio do facto”, nem se lhe aponta em concreto qualquer dos actos descritos no artº 21º nº 1 do DL 15/93 de 22/1), mas apenas pelo seu passado criminal.
C) Das Consequências da Falta de Exame Crítico da Prova; da errada aplicação dos artºs 21º nº 1 e 25º do DL 15/93 de 22/1
XVIII – Como se concluiu no Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.05.2025 (Proc. nº 216/20.3PDOER.L1-9, disponível em www.dgsi.pt) “… quando se lê uma motivação da decisão sobre a matéria de facto e não se consegue compreender quais os concretos meios de prova que relevaram para cada facto ou para a actuação imputada aos arguidos, não se vislumbra qualquer critério, minimamente sistematizado, por referência ao qual fossem indicadas as provas que foram determinantes da convicção do tribunal a esse respeito, tal decisão padece do vício de nulidade, nos termos das disposições conjugadas dos artºs 374, nº 2 e 379º nº 1 alª a), ambos do CPP. E este cenário constitui, por conseguinte, clara violação do direito constitucionalmente consagrado a um processo justo e equitativo, nos termos do artº 20º, nº 4 da CRP e artº 6º da CEDH”.
XIX – É o que sucede com a decisão recorrida, em que não se vislumbra porque se recusa as versões serenas e credíveis dos Arguidos (confirmadas em parte pelos guardas, quanto aos procedimentos adotados, e pelo Relatório final da PJ, quanto á sua responsabilidade) para aceitar como válidas versões dos Srs. Guardas Prisionais que pareceram mais preocupados em ocultar as falhas do sistema prisional do que contribuir para o apuramento da verdade material; com efeito, não conseguiram explicar como teria o haxixe passado pelo aparelho de Raio-X sem ser detectado, porque é que foi tardiamente detectado (após a visita, às 15;20h), quem era afinal o misterioso “graduado de serviço” que terá recebido a arguida (e que o ... não conseguiu identificar), porque é que, se foi apanhada em flagrante na posse de droga não foi entregue à PSP, nem como é que uma pessoa apanhada na posse de droga dentro de um EP, passados três dias já é autorizada novamente a entrar no mesmo (ficha de visitas de fls.342, em que se regista visita em ........2022). Nem porque é que o Arguido, se tivesse mandado vir o haxixe, se contentaria com cerca de meia grama, quando poderia encomendar muito mais. Ou que grande “lucro” teria ele com a venda de meia grama de droga! Até porque, se o critério para não se acreditar na versão do Arguido é ele ter um extenso passado criminal, o mesmo não se pode dizer da arguida DD, que não possui antecedentes criminais (Facto Provado EE). Tivesse sido feito o exame crítico da prova, e o desfecho lógico seria a absolvição dos arguidos, em obediência ao princípio “in dubeo pro reo”.
XX – Assim, e na senda do Douto Acórdão deste Tribunal acima referido, entendemos que a Douta Sentença recorrida padece do vício de falta de exame crítico da prova produzida, vício de fundamentação que conduz à nulidade da decisão, nos termos dos artºs 374º nº 2 e 379º nº 1 alª a) do CPP.
XXI – Em resposta a uma proposta de arquivamento do Inquérito por parte do Sr. Inspector Coordenador da Investigação Dr. NN, que sugeriu o envio para a Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência, atenta a quantidade ínfima de droga apreendida (Fls. 31 dos Autos), respondeu o Ministério Público que “o consumo não se presume”. Sucede que, após entrada em vigor da lei nº 55/2023 de 8/9, que deu uma nova redação ao artº 40º nº 3 do DL 15/93 de 22/1, o tráfico de droga também não se pode presumir, devendo o Tribunal provar que o mesmo se destinava ao tráfico. Em caso de legítima dúvida (sobre se se destinava a consumo ou ao tráfico) devem os arguidos ser absolvidos.
XXI – E se em relação á DD, o referido Inspector da PJ, a Fls. 60 dos Autos defende que “os elementos probatórios sustentam a imputação e comprometem a DD” (o que se entende, porque na altura ainda não tinham sido expostas as “trapalhadas” descritas em Audiência de Julgamento, e as falhas de segurança do ... no que respeita á revista de sacos das visitas), a verdade é que em relação ao AA não se faz qualquer referência.
XXII – Assim, e tendo em conta que não se produziu qualquer prova de que o mesmo Arguido tenha praticado qualquer dos actos que integram a factualidade prevista no artº 21º nº 1 e 25º alª a) do D.L. 15/93 de 22/1, a única conclusão possível é que a douta Sentença recorrida interpretou e aplicou erradamente aqueles preceitos ao condenar o Arguido, violando assim o princípio da presunção de inocência previsto no artº 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
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Também sem se conformar com a decisão, a arguida DD interpôs o presente recurso onde requer a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que a absolva.
Para o que apresenta as seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto da Sentença pela qual o Tribunal a quo julgou procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público, condenando a arguida DD da prática em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º1 e 25.º, alínea a), ambos do Decreto - Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-C, anexa ao mesmo diploma legal, numa pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspendendo-se a execução da pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão pelo período de 2 (dois) anos, subordinando-a a regime de prova
B. Mas não pode a arguida concordar com a decisão do Tribunal a quo, porquanto entende que os factos foram julgados incorretamente face à produção de prova realizada em sede de audiência e julgamento.
C. Padece a douta Sentença do Tribunal a quo dos vícios: 1. falta de exame crítico da prova; 2. erro na fixação da matéria de facto; 3. errada interpretação dos artigos 21º n.º1 e 25º al. a) do decreto-lei 15/93 de 22 de janeiro.
D. Vícios esses que consubstanciam a nulidade da sentença ora recorrida.
E. Os testemunhos prestados em sede de audiência e julgamento foram totalmente contraditórios entre si.
F. As declarações prestadas pelas testemunhas junto da Polícia Judiciária e posteriormente em sede de audiência e julgamento não conferem e são totalmente antagónicas.
G. Ao invés os depoimentos dos arguidos ora recorrentes foram totalmente espontâneos e credíveis.
H. Também não se verificam, nem foi dado como provado, o preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime de tráfico de estupefacientes
I. Desde logo quanto ao elemento objetivo e tendo em consideração a quantidade identificada, não resulta de forma clara e objetiva que a mesma pertencia à Recorrente se era para seu consumo ou para distribuição a terceiros
J. Logo aqui se percebe que a falta de preenchimento de um dos elementos do tipo criminal em análise impossibilita o preenchimento dos pressupostos de condenação.
K. Mas também em relação ao elemento subjetivo, e estando nós perante tipo crime doloso, importa desde logo provar que a Recorrente tinha conhecimento do produto em si e que pretendia, com ele efetuar qualquer tipo de cedência ou venda a terceiros, o que não sucedeu.
L. Motivo pelo qual, também sempre se dirá, que a arguida jamais agiu de forma livre, consciente ou voluntária.
M. Não obstante sempre se dirá que tendo em consideração as quantidades apreendidas o procedimento teria de ser sempre contraordenacional e não criminal.
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância pugnou para que fosse negado provimento a ambos os recursos e mantida a decisão recorrida, ainda que não tenha apresentado conclusões.
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Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer onde afirma “Analisados a sentença, o recurso e a resposta do Ministério Público aderimos integralmente ao teor desta, à qual, pela sua análise crítica dos fundamentos do recurso, e completude, nada temos a aditar, pelo que somos de parecer que o recurso não merece provimento”.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação
Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
A) Em data que não se logrou apurar anterior a ... de ... de 2022, os arguidos, de comum acordo e em concertação de esforços, elaboraram um plano, que consistia em adquirir canabis, introduzi-la no Estabelecimento Prisional de ..., onde o arguido se encontrava recluso, e aí distribuí-la pelos outros reclusos, para desta forma auferirem quantias monetárias, que se traduziriam em lucro e que seriam repartidas por ambos.
B) Assim, de acordo com o referido plano, em data não apurada, anterior ao dia ........2022, a arguida entrou na posse, de modo não concretamente apurado, de uma (1) embalagem de canabis (resina), com o peso líquido de 0,510 gramas e colocou-a/dissimulou-a no interior do bolso direito de um casaco de fato de treino, que colocou num saco com roupa que deveria ser entregue ao arguido.
C) Após, no dia ... de ... de 2022, pelas 15h20, a arguida dirigiu-se ao Estabelecimento Prisional de ..., sito na ..., e entregou aí um saco de roupa destinado ao arguido, que continha, além do mais, o referido casaco de fato de treino em cujo interior (no bolso) se encontrava: uma (1) embalagem de canabis (resina), com o peso líquido de 0,510 gramas que se destinava a ser entregue ao arguido que aí se encontrava recluso.
D) Neste mesmo dia ... de ... de 2022 este saco foi submetido a revista, tendo sido encontrada, dissimulada no interior do bolso do casaco: uma (1) embalagem de canabis (resina), com o peso líquido de 0,510 gramas.
E) Este produto (canabis) destinava-se a ser entregue ao arguido para posterior cedência a outros reclusos, no interior do Estabelecimento Prisional, em troca de quantias monetárias, conforme já referido.
F) Os arguidos, que actuaram em colaboração mútua, conheciam as características e a natureza estupefaciente daquele produto, bem sabendo que a sua detenção, introdução em estabelecimentos prisionais e a entrega a terceiros era proibida e criminalmente punida.
G) Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e conscientemente, querendo deter tal substância com o propósito de a ceder a terceiros no interior do Estabelecimento Prisional.
H) Sucede que, o arguido anteriormente, já sofreu condenações, transitadas em julgado, tendo sido condenado, além do mais na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º1 e 25.º, al. a), do Decreto-Lei n.º n.º15/93 de 22/01, por acórdão proferido no âmbito do processo n.º 82/19.1T9LSB, transitada em julgado em 29/09/2021, relativo a factos ocorridos em ... e ... de ... de 2020.
I) Assim sendo, anteriormente à prática dos factos em causa nos presentes autos, o arguido já havia sido julgado e condenado em pena de prisão efectiva pela prática de factos integrantes de ilícitos penais dolosos.
J) No entanto tais condenações, as solenes advertências aí feitas e o cumprimento de pena de prisão efectiva não foram suficientes para obstar a que o arguido cometesse novos ilícitos penais dolosos.
K) Também resulta dos factos descritos que o arguido revela uma especial apetência para o crime, não se inserindo socialmente, voltando a delinquir pouco tempo depois de ter sido condenado, estando claramente desenquadrado das regras de vivência em sociedade.
L) Verifica-se que, entre os factos que determinaram a última condenação do arguido e os referidos em A) a G) não mediaram cinco anos.
M) O arguido é ... auferindo, mensalmente, pelo menos a quantia de €800.
N) O arguido é divorciado, e vive maritalmente com a sua companheira, a qual trabalha num ..., auferindo, mensalmente, a quantia de €650.
O) O arguido tem sete filhos, três com 26 anos de idade e filhos de mães diferentes, um com 18 anos, um com 17 anos, um com 15 anos e um com 13 anos.
P) O arguido reside em habitação camarária ascendendo o montante mensal da renda a €150, sendo o mesmo suportado pela sua companheira.
Q) O arguido frequentou o sistema de ensino até ao 4.º ano de escolaridade.
R) A arguida é ... num ..., auferindo, mensalmente, a quantia de €748.
S) A arguida é divorciada e não tem companheiro.
T) A arguida tem três filhos com 24, 22 e 13 anos de idades, sendo os dois mais velhos independentes e o mais novo residente com a arguida, não contribuindo o arguido, pai do menor, com qualquer quantia a título de pensão de alimentos.
U) A arguida reside, com a filha com 13 anos de idade, em habitação arrendada, ascendendo o montante mensal da renda a €5.
V) A arguida frequentou o sistema de ensino até ao 12.º ano de escolaridade.
W) O arguido foi condenado, em 24/06/1999, pela prática, em 16/04/1998, de um crime de furto de uso de veículo, de um crime de danos e de dois crimes de furto, previstos e punidos pelos artigos 208.º, 203.º, 212.º e 204.º, n.º22, alínea a), do Código Penal, numa pena única de 6 anos e 6 meses de prisão e na pena acessória de expulsão pelo período de oito anos.
X) O arguido foi condenado, em 12/04/2000, pela prática, em 10/02/1998, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º e 204.º, n.º1, alíneas b) e h) e n.º2, alínea e), com referência ao artigo 202.º, alínea d), do Código Penal, numa pena de 2 anos de prisão, tendo sido perdoado um ano de prisão e substituído o remanescente da pena por igual tempo de multa.
Y) O arguido foi condenado, em 21/02/2002, pela prática, em 03/07/2000, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º1 e 24.º, alínea h), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, numa pena de 6 anos de prisão.
Z) O arguido foi condenado, em 19/11/2008, pela prática, em 18/11/2008, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, numa pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano.
AA) O arguido foi condenado, em 01/03/2011, pela prática, em 26/05/2006, de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 169.º, da Lei Orgânica 1/2001, de 14 de Agosto, numa pena de 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano.
BB) O arguido foi condenado, em 21/03/2012, pela prática, em 10/06/2011, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º1, do Decreto-Lei n.º15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-C anexa ao mesmo diploma, numa pena de 4 anos e 6 meses de prisão.
CC) O arguido foi condenado, em 09/05/2012, pela prática, em 18/05/2010, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, do Código Penal, e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291.º, n.º1, alínea b), do Código Penal, e de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, numa pena de única de 3 anos de prisão.
DD) O arguido foi condenado, em 15/04/2021, pela prática, em 2019 e 06/02/2020, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º1 e 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C anexa ao mesmo diploma, numa pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
EE) A arguida não tem averbada qualquer condenação ao respectivo certificado do registo criminal.
Na sentença recorrida deram-se como não provados os seguintes factos:
1) Que no momento descrito em B) a arguida tenha adquirido a referida embalagem.
2) Que os factos reportados à condenação indicada em H) datassem de 2018.
A sentença recorrida motivou como segue a decisão sobre a matéria de facto:
A convicção do tribunal estribou-se, no que respeita aos factos pelos quais os arguidos vinham acusados, na prova documental constante dos autos e nas declarações produzidas pelos arguidos pelas testemunhas GG (guarda prisional), HH (guarda prisional), II (inspector da Polícia Judiciária) e JJ (trabalhou no estabelecimento prisional de Lisboa de ... a ...) em audiência de discussão e julgamento.
A testemunha LL não tinha conhecimento dos factos.
A prova da factualidade descrita em A) a L) resultou do cotejo do teor do auto de notícia de fls. 2, 4, 13 e 17, do auto de entrega de fls. 3 e 15, da listagem de fls. 4 verso e 18, do print de fls. 5 e 19, do auto de teste e pesagem de fls. 6 e 21, do auto de apreensão de fls. 6 verso e 22, do exame pericial de fls. 29, da certidão de fls. 89 e seguintes (da qual constam como datas dos factos ... e 06/02/2020, pelo que o facto descrito em 2) não resultou provado), da ficha biográfica de recluso de fls. 304 e da informação do estabelecimento prisional de fls. 344 e 345 com as declarações produzidas pelos arguidos e pelas testemunhas GG, HH, II e JJ em audiência de discussão e julgamento.
Com efeito, o arguido admitiu pronta e espontaneamente que na data e hora mencionadas na acusação encontrava-se recluso no estabelecimento prisional de Lisboa há cerca de um mês, o que se mostra condizente com o teor da ficha biográfica de recluso de fls. 304 e seguintes. Mais referiu ter sido casado com a arguida desde 2017 ou 2018 (tendo a arguida confirmado ter sido no ano de 2017) e até ... ou ... de 2024 (data do divórcio – tendo a arguida confirmado que a dissolução do casamento ocorreu neste ano), sendo visitado pela mesma no estabelecimento prisional. Acrescentou ser habitual a arguida levar-lhe peças de vestuário, o que fez na data dos factos, embora o arguido não o tivesse solicitado. Negando ter actuado conforme descrito na acusação, explicitou que “é impossível passar droga na revista no estabelecimento prisional de ...” (sic) e que há “reclusos que exercem as funções de faxinas e que têm um esquema para fazerem entrar droga na cadeia” (sic).
Por sua vez, a arguida, admitindo ter-se deslocado até ao estabelecimento prisional de Lisboa para visitar o arguido (que aí se encontrava recluso pelo crime de tráfico de estupefacientes), explicitou ter entregue o saco contendo um casaco de fato de treino, umas calças de fato de treino e um par de ténis após o que, passando no raio x, entrou para a visita. Mencionando ter sido a própria a ter tomado a iniciativa de levar o saco para o arguido (negando que o mesmo lho tivesse pedido), a arguida referiu ter levado o saco e preenchido um documento referente ao conteúdo do mesmo, após o que o saco passou no raio x e a arguida desceu até à zona destinada para o entregar à guarda prisional. A arguida referiu ainda que nesse dia nada lhe foi dito sobre ter sido encontrado produto estupefaciente em peças de roupa acondicionadas no interior do saco, o que é contrariado pelos depoimentos de HH e JJ. Dois dias volvidos, recebeu um telefonema do arguido dizendo-lhe que não lhe haviam entregue o saco, tendo a arguida, na data da visita imediata, tido conhecimento do sucedido, tendo JJ explicitado ser normal no estabelecimento prisional de Lisboa ser permitida a realização de visitas a pessoas que previamente tenham sido encontradas com produto estupefaciente no interior de artigos destinados a reclusos. Confrontada com o teor de fls. 4 verso e de fls. 18, a arguida admitiu ser sua a assinatura aposta nas referidas listagens.
Perguntada, a arguida referiu ter conhecimento que o arguido foi consumidor de haxixe, o que o arguido também admitiu, tendo este último precisado que deixara de consumir antes dos factos, mais concretamente consumiu o referido produto estupefaciente entre os anos de 1998 e 2000, pelo que forçoso é concluir-se que o haxixe encontrado no âmbito dos factos sub judice não era destinado ao seu consumo. Negando ter sido a própria a colocar o produto estupefaciente no interior do saco, e confrontada sobre como é que o produto ali é encontrado, a arguida referiu que “se apareceu na roupa foi porque alguém meteu lá a droga” (sic).
Por contraponto com a versão apresentada pelos arguidos, HH relatou ao tribunal que na data e hora mencionadas na acusação, encontrando-se de serviço na secção de visitas do estabelecimento prisional de Lisboa, ali se dirigiu a arguida para entregar um saco contendo peças de vestuário destinadas ao arguido AA. Usando de firmeza, a depoente referiu que a arguida não ia visitar o arguido mas tão somente deixar o saco (o que se mostra consonante com o teor de fls. 344 e 345). Peremptória, a guarda prisional explicitou, evidenciando conhecimento dos factos, que quando alguém pretende apenas deixar sacos e não também visitar, a pessoa mostra o cartão de visitante e de cidadão na portaria e após dirige-se ao local apropriado para deixar o saco, assinando um documento em como procedeu à entrega do saco, o qual é revistado na presença da pessoa que o entrega. No caso dos autos, a arguida entregou o saco à depoente que, na presença da arguida (que tem consigo o respectivo documento de identificação e bem assim o cartão em como entregou o saco), procedeu à revista ao saco tendo encontrado, no interior do bolso direito do casaco de fato de treino que se encontrava no interior daquele, três pedaços de haxixe.
Peremptória, HH referiu ter elaborado a participação (confirmando tratar-se da de fls. 4), que, conjuntamente com o produto estupefaciente, entregou ao graduado de serviço cujo nome não logrou precisar (tendo II confirmado ter posteriormente recepcionado o produto estupefaciente e a participação, sendo tudo coincidente com o que vinha mencionado a fls. 4), após o que a depoente retornou para o seu posto de trabalho. Confrontada com o teor de fls. 4 verso, HH referiu que esta listagem se refere à entrega do saco em causa nos autos por parte da arguida que, na presença da depoente, apôs a sua assinatura à frente do nome do recluso, ora arguido, na referida listagem, tendo HH visto o documento de identificação da arguida e o respectivo cartão de visitante.
Questionada, HH mencionou nunca ter perdido de vista nem o saco nem os artigos existentes no seu interior, não sendo os mesmos deixado desatendidos no meio de um amontoado de outros objectos, pelo que a versão dos arguidos de que poderão ter sido outros reclusos com as funções de faxina a introduzirem droga no interior do estabelecimento prisional colocando-a em sacos destinados a reclusos não mereceu o convencimento do tribunal. HH referiu que o colega GG também se encontrava no local, o que este confirmou, explicitando que na data e hora mencionadas na participação de fls. 4 foi alertado pela colega HH que lhe exibiu um fato de treino e uns pacotes contendo produto estupefaciente, referindo o depoente, no que denotou isenção, não ter presenciado o momento em que a referida guarda encontrou o produto. GG referiu ter visto o saco contendo a etiqueta com o nome do recluso (que o depoente confirmou tratar-se do ora arguido) a que o mesmo se destinava e bem assim a documentação referente à pessoa que o entregara, explicitando o guarda prisional que indicava o nome da ora arguida.
Com firmeza, GG confirmou que quando uma pessoa se dirige ao estabelecimento prisional para entregar um saco destinado a um recluso, o saco passa pelo raio x existente na portaria, onde pode não ser detectado produto estupefaciente no seu interior. Questionado, o depoente referiu que não há outros reclusos a tocarem num saco destinado a um recluso antes de um guarda prisional o revistar.
JJ, prestando um depoimento espontâneo e firme, relatou ao tribunal que não se encontrava presente no momento da revista ao saco, tendo sido a guarda HH a exibir à depoente as embalagens contendo haxixe que encontrou no interior de uma peça de vestuário acondicionada no saco destinado ao arguido, então recluso. Usando de firmeza, a depoente mencionou ter visto a mulher que entregara o saco junto a HH, explicitando, no que denotou isenção, não recordar do rosto da arguida mas ter memória que a pessoa estava junto à sua colega HH, precisando, em consonância com o depoimento de HH, que a mulher não iria visitar o recluso mas tão somente deixar o saco. Questionada, JJ referiu ter visto a participação de fls. 4, elaborada pela colega HH, explicitando desconhecer porque é que a pessoa que deixou o saco é deixada ir embora, admitindo, agastada, ser este o procedimento no estabelecimento prisional de Lisboa. Confrontada com o teor de fls. 345, a depoente mencionou que este registo é realizado no próprio dia.
Do cotejo da prova produzida, e atento o modo espontâneo, firme e consonante com que as testemunhas HH, GG e JJ prestaram depoimento, os quais se mostram compatíveis com a documentação constante nos autos, tendo a arguida confirmado ter deixado o saco contendo as peças de vestuário destinadas ao arguido no estabelecimento prisional na data e hora mencionadas na acusação, não sendo verosímil que, como a própria referiu, sendo a própria quem tratava e cuidava da roupa do arguido não ter conhecimento da existência de produto estupefaciente no interior do bolso do casaco de fato de treino que acondicionou no saco para o transportar para o interior do estabelecimento prisional, sendo que as carências de meios humanos em estabelecimentos prisionais são do conhecimento geral pelo que, tendo os dados de identificação das pessoas que deixam objectos com destino a reclusos optam por não as deter no imediato, ficou o tribunal convencido da demonstração da factualidade elencada e de que os arguidos foram os respectivos autores, não tendo resultado provada a factualidade elencada em 1) e 2) por ausência de prova a tanto conducente.
Relativamente às condições sócio-económicas dos arguidos, o tribunal teve em consideração as declarações produzidas pelos mesmos as quais se revelaram verosímeis atendendo à forma espontânea e clara com que foram produzidas. Refira-se que pese embora o arguido tenha mencionado estar a contribuir com a quantia mensal de €75 a título de pensão de alimentos para os três filhos menores, certo é que a arguida referiu que o mesmo não se encontra a pagar a pensão devida à filha de 13 anos pelo que, na ausência de outros meios de prova, não resultou provado que o arguido esteja efectivamente a proceder ao referido pagamento.
No que respeita aos antecedentes criminais, o tribunal valorou os certificados do registo criminal constantes dos autos e bem assim a certidão de fls. 89 e seguintes.
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Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
Assim, quer o recorrente AA, quer a recorrente DD, alegam:
- nulidade decorrente da falta de exame crítico da prova;
- erro na fixação da matéria de facto;
- errada interpretação dos arºs 21º nº 1 e 25º alª a) do D.L. 15/93 de 22.01
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Da nulidade por falta de exame crítico da prova
Ambos os recorrentes alegam a nulidade da sentença recorrida por falta de exame crítico por o Tribunal a quo não ter explicado porque considerou credíveis depoimentos contraditórios ou não confirmados por outros e porque desvalorizou a versão dos arguidos e do Relatório Final da PJ de fls. 56 a 59.
Em suma: discordam da convicção alcançada pelo Tribunal recorrido e contrapõem argumentos contra a análise efectuada.
Nos termos do nº 2 do art. 374º do Cód. Proc. Penal, é requisito da sentença “a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”. A existência deste vício acarreta a nulidade da sentença, nos termos do nº 1, alínea a), do art. 379º do Cód. Proc. Penal.
A necessidade de fundamentar de facto e de direito, com indicação e exame crítico das provas, não pretende vincular processualmente o Juiz a efectuar uma enumeração mecânica de todos os meios de prova, mas apenas a seleccionar e a examinar criticamente os que serviram para fundamentar a sua convicção positiva ou negativa (explicitando porque deu mais relevo a uns em detrimento de outros), ou seja, aqueles que serviram de base à selecção da matéria de facto provada e não provada. Tal matéria é a que constitui objecto de prova e é juridicamente relevante para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da medida da pena aplicável (cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 30.6.1999, BMJ nº 488, p. 272 e o Ac. da Relação de Évora de 16.3.2004 proferido no âmbito do processo nº 1160/03.1).
Ou seja, o que é necessário é explicitar porque é que o Tribunal deu determinados factos como provados ou não provados, dando a conhecer os motivos que determinaram a convicção do Julgador – neste sentido o Ac. do STJ de 30.01.2002, no Proc. nº 3063/01, refere que “o exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”.
No caso sub judice, apreciando a motivação que supra transcrevemos, verificamos que o Tribunal recorrido explicou claramente os motivos da sua convicção, não só com a súmula das declarações e dos vários depoimentos, mas também com a remissão para os documentos, sempre explicando o seu raciocínio.
Lembramos que a exposição pode ser concisa, desde que não surjam dúvidas sobre o processo lógico seguido pelo Tribunal – como é o caso, ainda que se releve que a exposição feita não é concisa, sendo pelo contrário detalhada e cuidada (nada tendo de vaga ou imprecisa).
Quanto à credibilidade merecida pelas declarações dos recorrentes, verifica-se que o Tribunal a quo explicou, concreta e fundadamente, porque é que decidiu como fez:
«Do cotejo da prova produzida, e atento o modo espontâneo, firme e consonante com que as testemunhas HH, GG e JJ prestaram depoimento, os quais se mostram compatíveis com a documentação constante nos autos, tendo a arguida confirmado ter deixado o saco contendo as peças de vestuário destinadas ao arguido no estabelecimento prisional na data e hora mencionadas na acusação, não sendo verosímil que, como a própria referiu, sendo a própria quem tratava e cuidava da roupa do arguido não ter conhecimento da existência de produto estupefaciente no interior do bolso do casaco de fato de treino que acondicionou no saco para o transportar para o interior do estabelecimento prisional (…)”.
Da análise da motivação supra transcrita não restam dúvidas de que o Tribunal a quo procedeu ao exame crítico das provas.
Não tendo ocorrido violação do direito constitucionalmente consagrado a um processo justo e equitativo (art. 20º, nº 4 da CRP e art. 6º da CEDH).
Não concordam os recorrentes com a fundamentação/exame crítico feito, mas isso não significa que ele não existe. É coisa diversa. A alegação dos recorrentes pode consubstanciar a invocação de erro de julgamento, mas não nulidade por deficiente ou falta de exame crítico.
Ademais, tal como refere José Mouraz Lopes (in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo IV, p. 798) citando o Acórdão do STJ de 13.12.2018, na nulidade por ausência de fundamentação está em causa a omissão absoluta dos dois ‘itens’ enunciados no nº 2 do art. 374º do Cód. Proc. Penal e “não comporta a ocorrência e verificação da mesma a fundamentação insuficiente ou em desacordo com a argumentação expendida pelo sujeito processual que dela discorda. A fundamentação deficiente não se confunde com a falta de fundamentação”.
Pelo exposto se conclui que improcede a nulidade invocada.
Do erro na fixação da matéria de facto
Alegam ambos os recorrentes que foram incorrectamente julgados como provados os factos como tal considerados nos pontos A), B), C), E), F), G), J) e K) – ou seja, praticamente todos os factos de que vinham acusados.
Alicerçam este segmento do recurso no Relatório da PJ de fl. 56 a 59, nos “depoimentos contraditórios entre si” dos guardas prisionais ouvidos e nas suas próprias declarações, que qualificam como credíveis.
Define o art. 124º 1 do Cód. Proc. Penal, o que vale em julgamento como prova, ali se determinando que “constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”. Neste artigo, onde se regula o tema da prova, estabelece-se que o podem ser todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou para a inexistência de qualquer crime, para a punibilidade ou não punibilidade do arguido, ou que tenham relevo para a determinação da pena. A ausência de quaisquer limitações aos factos probandos ou aos meios de prova a usar, com excepção dos expressamente previstos nos artigos seguintes ou em outras disposições legais (só não são permitidas as provas proibidas por lei ou as obtidas por métodos proibidos – arts. 125º e 126º do mesmo Cód.), é afloramento do princípio da demanda da descoberta da verdade material que continua a dominar o processo penal português (Maia Gonçalves, Cód. Proc. Penal, 12ª ed., p. 331).
A prova pode ser directa ou indirecta/indiciária (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Proc. Penal, II vol., p. 99 ss). Enquanto a prova directa se refere directamente ao tema da prova, a prova indirecta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
A prova indirecta (ou indiciária) não é um “minus” relativamente à prova directa. Pelo contrário, pois é certo que na prova indirecta intervêm a inteligência e a lógica do Julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência que vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, enquanto na prova directa intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho. No entanto, a prova indirecta exige um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, de forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis.
A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova, quer directa quer indiciária, estando o fundamento da sua credibilidade dependente da convicção do Julgador que, sendo embora pessoal, tem que ser motivada e objectivável, na valoração de cada elemento probatório por si e na conjugação dos vários indícios, sempre de acordo com as regras da experiência.
Com efeito, o art. 127º do Cód. Proc. Penal prescreve que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. É o chamado princípio da livre apreciação da prova.
Mas, de acordo com o Prof. Germano Marques da Silva (Direito Processual Penal, vol. II, p. 111) “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”.
Também o Tribunal Constitucional (Ac. nº 464/97/T, D.R., II Série, nº 9/98 de 12.1), chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da norma do art. 127º do Cód. Proc. Penal, e estribando-se nos ensinamentos dos Prof. Castanheira Neves e Figueiredo Dias, refere que “esta justiça, que conta com o sistema da prova livre (ou prova moral) não se abre, de ser assim, ao arbítrio, ao subjectivismo ou à emotividade. Esta justiça exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. Este discurso é um discurso mediante fundamentos que a ‘razão prática’ reconhece como tais (Kriele), pois que só assim a obtenção do direito do caso «está apta para o consenso». A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça”.
Ora o princípio da livre apreciação da prova está intimamente relacionado com os princípios da oralidade e da imediação. O primeiro exige que a produção da prova e a discussão, na audiência de julgamento, se realizem oralmente, de modo a que todas as provas (excepto aquelas cuja natureza não o permite) sejam apreendidas pelo Julgador por forma auditiva. O segundo, diz respeito à proximidade que o Julgador tem com os intervenientes no processo, ao contacto com todos os elementos de prova, através de uma percepção directa.
Como salienta o Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, vol. I, p.233 e 234) “só os princípios da oralidade e imediação… permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles, por outro lado, permitem avaliar o mais concretamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”.
Os meios de que o Tribunal de primeira instância dispõe para a apreciação da prova são diferentes dos que o Tribunal de recurso possui, uma vez que a este estão vedados os princípios da oralidade e da imediação e é através destes que o Julgador percepciona as reacções, os titubeios, as hesitações, os tempos de resposta, os olhares, a linguagem corporal, o tom de voz, tudo o que há-de constituir o acervo conviccional da fé e credibilidade que a testemunha há-de merecer.
Isto significa que o Tribunal de recurso não pode sindicar certos meios de prova quando, para a credibilidade do testemunho, foi relevante o funcionamento do princípio da imediação, mas pode controlar a convicção do Julgador da primeira instância quando ela se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.
Relativamente aos factos provados em A), B), C) e E) é alegada a falta de prova quanto à existência de “comum acordo” e de “concertação de esforços” entre os arguidos, bem como do recebimento de “quantias monetárias” e de “lucro” a obter com o negócio.
Como supra referimos, a prova pode ser directa ou indirecta (indiciária), ou seja, não existindo prova directa do facto – o que se concede ser o caso da matéria impugnada – é possível dar como provado o facto através de outro factos que, analisados com o auxílio de regras da experiência, permitem uma ilação quanto ao tema da prova. Concretamente, estando o recorrente recluso e tendo a recorrente colocado/dissimulado uma (1) embalagem de canabis (resina), com o peso líquido de 0,510 gramas no interior do bolso direito de um casaco de fato de treino, que colocou num saco com roupa que deveria ser entregue ao recorrente (facto provado B), com o que o estupefaciente seria introduzido no EP, analisando estes factos de acordo com as regras da experiência pode concluir-se que ambos os recorrente agiram de comum acordo e concertação de esforços, e que com tais actos obteriam lucros e quantias monetárias. Efectivamente, o recorrente não assumiu em audiência que aquele estupefaciente se destinava ao seu consumo e afirmou mesmo que já não consumia estupefacientes. Ora se assim é, a canábis em questão só poderia destinar-se à venda no interior do EP e, sabendo que nesses locais é muita a procura e pouca a oferta, as quantias monetárias obtidas sempre se cifrariam em lucros, independentemente da quantidade apreendida ser pouca (aliás, e mesmo pondo de parte que sempre seria difícil introduzir no EP maior quantidade de estupefaciente – porquanto se mais for, maior é a possibilidade de detecção – se a quantidade de canábis fosse mais elevada não estaríamos a considerar um crime de tráfico de menor gravidade, mas antes um crime de tráfico agravado).
No mais se dirá que o Relatório da PJ não constitui qualquer tipo de prova, sendo um parecer de quem o redige (que não assume a qualidade de perícia) e a circunstância de existirem outros reclusos no local onde se realiza a revista dos sacos não faz surgir a dúvida de que algum deles se tenha aproximado dos sacos muito menos que se tenha aproximado de tal modo que até tenha colocado o estupefaciente dentro de um bolso do casaco – e repare-se que, como consta da motivação, a testemunha HH (que depôs com credibilidade, disse o Tribunal recorrido alicerçado na imediação “mencionou nunca ter perdido de vista nem o saco nem os artigos existentes no seu interior, não sendo os mesmos deixado desatendidos no meio de um amontoado de outros objectos, pelo que a versão dos arguidos de que poderão ter sido outros reclusos com as funções de faxina a introduzirem droga no interior do estabelecimento prisional colocando-a em sacos destinados a reclusos não mereceu o convencimento do tribunal”). Igualmente, a circunstância de a recorrente não ter sido de imediato detida não faz surgir nenhuma dúvida relevante, pois que, conforme refere a sentença a quo “sendo que as carências de meios humanos em estabelecimentos prisionais são do conhecimento geral pelo que, tendo os dados de identificação das pessoas que deixam objectos com destino a reclusos optam por não as deter no imediato, ficou o tribunal convencido da demonstração da factualidade elencada em causa”.
Relativamente aos factos provados em F) e G), são impugnados porque não se tratariam de factos, mas de conclusões não alicerçadas em prova.
Em questão estão os elementos subjectivos do tipo. No que concerne ao elemento subjectivo, há que lembrar que os factos respeitantes aos elementos volitivos e intelectuais são inferências que se retiram dos restantes factos provados, sabido que o dolo é uma realidade que não é apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum [ensina Cavaleiro Ferreira – in “Curso de Processo Penal”, Vol. II, 1981, pág. 292 – que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta, como são todos os elementos de estrutura psicológica, os relativos ao aspecto subjectivo da conduta criminosa; também Malatesta – in “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, págs. 172 e 173 – defende que, exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas (“percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita e, dessas coisas, passa-se a concluir pela sua existência”)].
Ou seja, os factos provados em F) e G) são inferências que se retiram dos factos provados nas alíneas imediatamente anteriores.
Finalmente, no que se refere ao facto provado em K), alega-se que é contrariado pelos demais factos dados como provados em M), N) e P), porquanto “Não se pode logicamente dizer que “… o arguido revela uma especial apetência para o crime, não se inserindo socialmente…”, e logo depois considerar provado que “… é bate chapas e pintor de veículos automóveis, auferindo, mensalmente, pelo menos a quantia de €800 (... M), “… vive maritalmente com a sua companheira (... N) e “… reside em habitação camarária (... P), pois ter um emprego certo, uma família e uma morada permanente são habitualmente sinónimos de estar socialmente inserido (pelo menos, nos relatórios sociais da DGRSP e nas decisões judiciais em geral)”.
Todavia, o facto provado em K) tem que ser lido no seu conjunto e com os factos provados em H), I) e J), a saber:
H) Sucede que, o arguido anteriormente, já sofreu condenações, transitadas em julgado, tendo sido condenado, além do mais na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º1 e 25.º, al. a), do Decreto-Lei n.º n.º15/93 de 22/01, por acórdão proferido no âmbito do processo n.º 82/19.1T9LSB, transitada em julgado em 29/09/2021, relativo a factos ocorridos em ... e ... de ... de 2020.
I) Assim sendo, anteriormente à prática dos factos em causa nos presentes autos, o arguido já havia sido julgado e condenado em pena de prisão efectiva pela prática de factos integrantes de ilícitos penais dolosos.
J) No entanto tais condenações, as solenes advertências aí feitas e o cumprimento de pena de prisão efectiva não foram suficientes para obstar a que o arguido cometesse novos ilícitos penais dolosos.
K) Também resulta dos factos descritos que o arguido revela uma especial apetência para o crime, não se inserindo socialmente, voltando a delinquir pouco tempo depois de ter sido condenado, estando claramente desenquadrado das regras de vivência em sociedade.
Da leitura conjugada destes factos resulta, claramente, que o facto provado de que “o arguido revela uma especial apetência para o crime, não se inserindo socialmente”, prende-se com a reiteração de condutas criminosas que indicam que ele não se consegue inserir socialmente na exacta medida em que volta a delinquir não obstante as punições. Ora se o arguido persiste no cometimento de ilícitos não é a circunstância de, quando em liberdade, viver com companheira e efectuar trabalhos de “bate chapas e pintor de veículos automóveis” (não estando provado que tem/tinha emprego certo) que permite concluir que é pessoa socialmente inserida.
Temos, assim, que o Tribunal recorrido, escudado nos princípios da oralidade e da imediação, explicou claramente o que lhe pareceu crível e concatenou as declarações e os depoimentos prestados, de uma forma crítica e lógica.
De referir que se tem vindo a entender que a ausência de imediação determina que o Tribunal superior, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, nos termos previstos pelo art. 412º, n.º 3, al. b) do Cód. Proc. Penal, mas já não quando permitirem outra decisão. Ou seja, a convicção da primeira instância, só pode ser posta em causa quando se demonstrar ser a mesma inadmissível em face das regras da lógica e da experiência comum.
Significa isto que o recorrente não pode pretender substituir a convicção alcançada pelo Tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, sendo imperioso demonstrar que as provas indicadas impõem uma outra convicção (neste sentido cfr. o acórdão do STJ de 25.03.2010, Proc. 427/08.0TBSTB. E1.S1, pesquisado em www.dgsi.pt ).
No caso, analisados os registos da audiência de julgamento, não podemos deixar de aceitar a posição do Julgador a quo, que de modo algum aponta para uma apreciação arbitrária da prova, sendo, pelo contrário, todos os elementos probatórios suficientes para se concluir como fez o Tribunal recorrido.
Da integração jurídica
Pretendem os recorrentes que ficando provado que a arguida dissimulou na roupa a entregar ao arguido canábis, nunca a respectiva conduta poderia integrar a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, devendo ser antes qualificada como uma contraordenação em face da quantidade em causa, não havendo motivos para considerar mais do que uma detenção para consumo.
Na previsão do art. 40º do D.L. 15/93 de 22.01, só é admissível o consumo, ou a detenção para consumo, para o próprio. Logo, tendo a arguida cedido o estupefaciente ao arguido, independentemente da quantidade em causa, ou mesmo do destino a jusante, sempre teria que considerar-se que a sua conduta integra a prática de um crime de tráfico de estupefaciente.
Por seu turno o arguido, que cometeu os factos em co-autoria com a arguida (como resulta provado), cometeu também ele um crime de tráfico de estupefacientes (e nunca admitiu que o estupefaciente apreendido se destinava ao seu consumo).
Assim, forçoso é concluir pela correcta subsunção jurídica.
* * *
Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar ambos os recursos improcedentes e confirmam a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça, devida por cada um, em 4 (quatro) UCs.
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Lisboa, 2.12.2025
(processado e revisto pela relatora)
Alda Tomé Casimiro
Ana Cristina Cardoso
Paulo Barreto, que apresenta a seguinte declaração de voto
Do acórdão consta o seguinte: “Os meios de que o Tribunal de primeira instância dispõe para a apreciação da prova são diferentes dos que o Tribunal de recurso possui, uma vez que a este estão vedados os princípios da oralidade e da imediação e é através destes que o Julgador percepciona as reacções, os titubeios, as hesitações, os tempos de resposta, os olhares, a linguagem corporal, o tom de voz, tudo o que há-de constituir o acervo conviccional da fé e credibilidade que a testemunha há-de merecer.Isto significa que o Tribunal de recurso não pode sindicar certos meios de prova quando, para a credibilidade do testemunho, foi relevante o funcionamento do princípio da imediação, mas pode controlar a convicção do Julgador da primeira instância quando ela se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.
Não concordo.
Efectivamente, durante muito tempo não interessava no recurso da matéria de facto como decidiriam os juízes do tribunal da Relação se tivessem efectuado o julgamento em primeira instância, pois tal recurso tinha apenas a finalidade de proceder à apreciação da decisão proferida na 1ª instância, apreciação essa limitada ao exame (controlo) dos elementos probatórios valorados pelo tribunal recorrido e feita à luz das regras da lógica e da experiência, mas sempre sem colidir com os fundamentos da decisão que só a imediação e a oralidade permitiam atingir - imediação e oralidade que não estão presentes no julgamento do recurso, porque aos juízes do tribunal superior apenas são facultados registos (em suporte magnético). Por isso, ao tribunal superior cumpria verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respectiva produção, nomeadamente, no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório e publicidade, verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. E só em caso de inexistência de provas, para se decidir num determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório (nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica) cometida na respectiva valoração feita na decisão da primeira instância, esta podia ser modificada, nos termos do artigo 431º do Código de Processo Penal.
Felizmente, na busca de um efectivo recurso da matéria de facto, hoje já não é assim. O tribunal da Relação tem que criar a sua própria convicção e não se limitar a apreciar se a convicção do tribunal a quo respeitou as regras probatórias. Claro que limitado aos pontos indicados pelo recorrente.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 26.06.2019, disponível em dgsi.pt., “obviamente que o legislador ao estabelecer o recurso sobre matéria de facto sabe que o tribunal de recurso não se encontra presente no julgamento e por isso o estabelece nas condições em que o fez permitindo, ainda assim, uma apreciação global da prova com base no registo da mesma; a falta de imediação por parte do tribunal de recurso, e nos termos em que esses recursos se mostram concedidos, não assume qualquer relevância; (...); o relevante é que do processo constavam todas as provas e elementos necessário a que o tribunal de recurso pudesse apreciar toda a prova existente e formar a sua convicção”.
E ainda Ana Maria Barata de Brito, “Os poderes de cognição das Relações em matéria de facto em processo penal”, Estudo de 2012, disponível em http://www.tre.mj.pt/docs/ESTUDOS%20%20MAT%20CRIMINAL/O%20conhec_Relacoes_materia%20de%20facto.pdf:“ Se a capacidade de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação sofre limitações decorrentes da falta de imediação – cumpre, então, questionar: a que falta (de imediação) nos referimos? A uma privação total, como genericamente se parece afirmar? E quais as consequências dessa privação, ou em reverso, qual o plus concretamente acrescido por via da imediação? Mesmo para além dos casos de renovação da prova (art. 430º CPP), as Relações não estão totalmente desprovidas de imediação. Têm-na desde logo, e aqui na exacta medida do juiz de julgamento, relativamente a todas as provas reais (no sentido de todas as outras provas, não pessoais: documentos, exames, perícias, apreensões, vigilâncias…). Têm-na relativamente à prova gravada/escutada – por via do acesso directo à documentação da prova, potenciado com o fim das transcrições que até 2007 mediatizavam o acesso. Ou seja, mesmo relativamente à prova pessoal existe uma imediação parcial. A prova pessoal ou oral revela-se, ao que aqui interessa, em duas componentes: de voz e de imagem. O tribunal ad quem fica privado da relação de proximidade com a imagem da pessoa que intervém no julgamento, na qualidade de arguido, testemunha ou declarante. Mas dispõe do acesso directo à voz do autor dos relatos, e pode apreender tudo o que, no processo comunicacional, é transmissível através da voz (gravada). Não deve falar-se por isso de uma total ausência de imediação, mesmo na parte referente à prova pessoal”.
Sabendo-se que os poderes do tribunal da Relação em matéria processual penal são muito limitados relativamente aos do processo civil - falta uma norma equivalente ao art.º 662.º, do Código de Processo Civil -, e até a renovação da prova está restringida aos vícios do art.º 410.º n.º 2, como determina o art.º 430.º, n.º 1, do CPP, a documentação da prova é o elemento fundamental para a apreciação do recurso da matéria de facto.
Tudo visto e aqui chegados, pelo actual estado da arte em matéria de impugnação da matéria de facto em processo penal, muito por força da jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo na consagração de um processo equitativo, em que se exige que o tribunal da Relação crie a sua própria convicção, cave a fundo na prova, embora ainda limitado pelo quadro legal, a documentação da prova é a peça fundamental. E, se estivermos a pensar em prova pessoal, é de gravação da prova que se trata.
Do exposto decorre que este tribunal ad quem, ouvindo a prova gravada, deve formar a sua própria convicção.
Porém, no caso concreto, como se refere no acórdão, não se vislumbra fundamento para altear a matéria de facto. Como exaustivamente consta do acórdão, com uma apreciação crítica sobre cada facto impugnado, a prova produzida foi bem apreciada pelo Tribunal a quo.
Por isso voto a decisão”.
Paulo Barreto