Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
137/12.3PBLRS-A.L1-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
INADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/14/2013
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Sumário: I - O legislador quis regular de forma abrangente os casos em que se pode recorrer, aquando da aplicação de medidas de coacção, tendo tomado posição expressa no sentido de que apenas são recorríveis - pelo arguido ou pelo MP, agora já não apenas em beneficio do primeiro -, as decisões que aplicam, substituem ou mantêm qualquer das medidas coactivas previstas no Código.
II - A contrario, não serão recorríveis todas as demais decisões que não apliquem uma qualquer medida proposta pelo MP e as que revoguem ou declarem extinta uma medida anteriormente aplicada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I.        RELATÓRIO:

Após primeiro interrogatório judicial (art. 141.0, do CPP), o Ministério Público promoveu a aplicação ao arguido C... da  medida de coacção de prisão preventiva, ao abrigo do disposto nos arts. 191.° a 193.°, 202.°, n.° 1, al. a) e 204.°, al. c), todos do CPP, considerando fortemente indiciada a prática de um crime de violência doméstica, em concurso real com um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. p. pelas disposições conjugadas dos arts. 152.°, n.°s 1 al. b) e 2, 22.°, 23.°, 73.°, 131.° e 132.°, n.°s 1 e 2 als. b) e e), do CP, e verificando-se os perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

O arguido opôs-se a tal pretensão, requerendo a aplicação de medida não privativa da liberdade, tal como a de apresentações periódicas na esquadra da polícia mais próxima da sua área de residência.

No subsequente despacho, a Mm.a Juíza de Instrução Criminal de Loures determinou que o mesmo arguido ficasse a aguardar os ulteriores termos processuais em liberdade, sujeito a TIR, à obrigação de apresentações periódicas diárias no posto policial da área da residência e ainda à obrigação de não contactar, por qualquer meio, com a ofendida O..., determinando a fiscalização electrónica desta medida (arts. 191.°, n.° 1. 192.°. 193.°. n,' 1, 194.°, n.° 2, 196.°, 198.°, n.°s 1 e 2. 200.°, n.° 1, al. d) e 204.°. al. c), todos do CPP).

O Ministério Público, não se conformando com a não aplicação ao arguido da prisão preventiva, interpôs o presente recurso, concluindo a correspondente motivação do seguinte modo (transcrição):

1. Decorrido que foi o primeiro interrogatório judicial do arguido C..., o Ministério Público por entender como fortemente indiciados todos os factos constantes do requerimento para a sua apresentação - e que aqui se dão por integralmente reproduzidos -, que são susceptíveis de integrar a prática, em concurso real, dos crimes de homicídio qualificado na sua forma tentada e de violência doméstica na sua forma consumada, promoveu a aplicação ao arguido da medida de coacção de prisão preventiva.

2. E fê-lo por entender que resulta evidente o perigo da continuação da actividade criminosa, ao qual acresce o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

3. Os factos em causa encontram-se sustentados em todos os elementos de prova já recolhidos nos autos, os quais não foram infirmados pelas declarações prestadas pelo arguido, que se limitou a verbalizar um discurso auto-centrado, reflectindo uma personalidade dominadora e persistente e com ausência total de juízo de desvalor das condutas que cometeu e de qualquer arrependimento.

4. No dia 17 de Março de 2013, o arguido, por duas vezes, tentou atingir a ofendida com uma faca dotada de uma lâmina com, pelo menos, oito centímetros e meio de comprimento, assim como lhe disse, várias vezes, que a matava.

5. O arguido estava num local público e na presença de outras pessoas e,não obstante, não se coibiu de fazê-lo.

6. Não fosse a intervenção pronta de uma testemunha que ali se encontrava e que acabou por se cortar na faca, o arguido tinha furado o peito da ofendida.

7. Não se percebe, pois, o raciocínio constante do despacho em crise, no sentido de não dar como fortemente indiciada a tentativa de homicídio qualificado cometida pelo arguido contra O....

8. No dia seguinte, o arguido andou a dizer para quem quis ouvir que já tinha outra faca e que ia matar a ofendida, pois a faca nova já não se iria partir e fez-lhe uma espera, cerca das 22h00 desse dia, na paragem do autocarro onde a ofendida apanha o transporte para trabalhar, enviou-lhe duas mensagens no dia 21 de Março de 2013, das quais resulta clara a sua intenção de a matar, acaso a veja com outro homem, tendo sido detido, no dia 21 de Março de 2013, na posse efectiva de uma faca com doze centímetros de lâmina.

9. O que tudo ponderado, nos faz concluir que, de facto, o arguido, no dia 17 de Março de 2013 quis matar a ofendida, mas como não o conseguiu, apenas por motivos alheios à sua vontade, continua a ser sua intenção fazê-lo assim que disponha de oportunidade para o efeito e nem que para tanto tenha de ir ao trabalho da mesma.


10. A verdadeira intenção do arguido é tirar a vida à ofendida, resolução que o mesmo já inculcou e a qual fica bastante exacerbada quando se encontra sob a influência de bebidas alcoólicas, sendo que tal, segundo as suas próprias declarações, até acontece todos os dias, pois todos os dias bebe bebidas desse teor.

11. O arguido apresenta um discurso centrado na sua pessoa, revelando uma personalidade dominadora e persistente, não revelando qualquer consciência do desvalor da acção, nem tão-pouco qualquer arrependimento, não descurando, o despacho em crise, de salientar a facilidade com que o mesmo se faz munir de facas.

12. A fundamentação que afastou a forte indiciação do crime de homicídio qualificado na forma tentada é, quanto a nós, vaga e insuficiente.

13. Contudo, ainda que assim não se entendesse - o que só se admite por mera hipótese académica -, o grau de violência demonstrado pelo arguido nos factos cuja Mma. Juiz de Instrução deu como fortemente indiciados, é mais do que suficiente para determinar a aplicação de uma medida de coacção que objectivamente impeça o arguido de contactar com a ofendida, reduzindo-se assim as possibilidades de atentar contra a vida desta, o que em liberdade se crê que venha efectivamente a suceder.

14. O facto de o arguido não ter antecedentes criminais não afasta o aludido perigo, na medida em que é por demais evidente, não só a falta de consciência do desvalor das suas acções, como também a sua indiferença quanto à possibilidade de ser preso caso prossiga nos seus intentos.

15. O arguido não tem nada a perder caso venha a ser privado da liberdade, pois o filho menor está acolhido numa instituição desde Agosto de 2012; o arguido não tem outra família alargada com quem mantenha laços e vínculos de actividade fortes; o seu trabalho é precário, pois que se encontra numa colocação promovida pelo Centro de Emprego; vivendo em condições económicas e sociais deficientes.

16. Tentar-se que o arguido altere o seu comportamento com a aplicação de outras medidas de coacção antes de lhe ser aplicada a prisão preventiva é uma decisão, no mínimo, temerária!

17. É dar-se a oportunidade a um arguido que, no passado, já demonstrou não a merecer.

18. E nada nos autos nos diz que, submetido a julgamento e pese embora sem antecedentes criminais, não venha o arguido a ser condenado em pena de prisão efectiva, atenta a gravidade dos factos que lhe são imputados, ainda que nos cinjamos apenas ao crime de violência doméstica.

19. Tem sido evidente a evolução nesse sentido que tem vindo a ser patente nas decisões, desde logo, dos Tribunais de 1.a instância, que denotam, actualmente, uma maior sensibilidade para a questão da violência doméstica e também para os homicídios que ocorrem em contexto intra-familiar.

20. A medida de coacção aplicada ao arguido de obrigação de não contactar com O..., ainda que sujeita a fiscalização electrónica, não tem a virtualidade de acautelar o forte perigo de continuação da actividade criminosa, bastando apenas uma violação da medida e apenas por parcos segundos para que o arguido consiga espetar a ofendida com uma faca e, deste modo, tirar-lhe a vida e atingi-la na sua integridade física em termos graves, tudo sucedendo num ápice antes de os agentes da autoridade, por mais lestos que sejam, terem tempo de chegar ao local.

21. Acresce que o arguido abandonou as instalações do Tribunal sem dispor de qualquer aparelho susceptível de controlar a medida de coacção de não contactar com a ofendida, situação na qual se irá manter até ao dia em que a Direcção-Geral de Reinserção e dos Serviços Prisionais tiver diligenciado pela sua entrega e efectiva activação.

22. Quanto à medida de coacção de obrigação de apresentações diárias que foi aplicada ao arguido nada nos oferece dizer, a não ser que a consideramos praticamente improfícua quanto às necessidades cautelares que urge prevenir.

23. Também no caso se verifica o perigo de perturbação da tranquilidade e ordem públicas, conforme referido pelo Ministério Público na sua promoção e ao que a Mma. Juiz de Instrução no despacho em crise não fez qualquer alusão, patente no receio já vivido pelas testemunhas inquiridas, em especial Al..., o que sai agora reforçado, após o arguido ter tido conhecimento que o mesmo depôs nos termos plasmados nos autos.

24. Continuando o arguido a beneficiar das típicas oportunidades que lhe são concedidas pelo sistema, não só a vida e integridade física da ofendida ficam em perigo iminente, pelo que para sua segurança ao ser acolhido (como o será) em instituição, terá de abandonar o pouco que já construiu no sentido de se libertar da dependência psicológica e económica exercida pelo arguido ao longo da relação de ambos.

25. As medidas de coacção aplicadas pela Mma. Juiz de Instrução ao arguido não são suficientes, adequadas e proporcionais às necessidades cautelares que, no caso concreto, importa prevenir, e violam o disposto nos artigos 202.°, n.° 1, alínea a) e 204.°, alínea c), todos do Cód. Proc. Penal.

Termos em que deverá o presente recurso merecer provimento e, consequentemente, ser o despacho recorrido objecto de revogação, e substituído por outro que aplique ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, por ser adequada, necessária e proporcional às necessidades cautelares que o caso requer e que urge prevenir.

O arguido respondeu ao recurso, assim concluindo:

1. O Arguido acha justa as motivações da Meritissima Juiz de Instrução, do Tribunal a quo.

2. O Arguido não tem antecedentes criminais.

3. Nunca foi intenção do arguido tirar a vida à ofendida.

4. Relativamente à indiciada violência domestica, as discussões e os actos praticados foram apenas em reacção aos mesmos actos praticados pela queixosa.

5. Está socialmente e profissionalmente integrado na sociedade portuguesa.

6. Trabalha na Junta de Freguesia de Bucelas, tendo rendimentos próprios que provêm à sua subsistência normal.

7. Por tal, atendendo às disposições normativas aplicáveis, constata-se que foi feito um rigoroso Inquérito, onde foram apuradas as responsabilidades e as culpas, pelas quais ao arguido foram determinadas tais medidas de coação.

Nestes termos e nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., conclui-se que a Meritíssima Juiz do processo fez a correcta apreciação e qualificação dos factos, não tendo havido erro na determinação das normas jurídicas aplicáveis, devendo em consequência ser mantida a decisão recorrida, negando-se provimento ao recurso apresentado, pois só decidindo assim será feita JUSTIÇA.

Admitido o recurso e instruído com as peças processuais julgadas pertinentes, foi proferido despacho de sustentação da decisão impugnada.

Subidos os autos, neste Tribunal a Sr.° Procuradora-Geral Adjunta, concordando com a posição assumida pelo MP em 1.3 instância, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Cumprido o art. 417.°, n.° 2, do CPP, nada mais disse o arguido.

Porque entendo que o recurso é de rejeitar, por não ser o mesmo admissível, profere-se decisão sumária, ao abrigo do disposto nos arts. 417.°, n.° 6 al. b) e 420.°, n.° 1 al. b). do CPP.

II.     FUNDAMENTAÇÃO:

No presente caso, o Ministério Público recorre da decisão da juíza de instrução na parte em que não aplicou a medida de coacção que havia proposto na sua douta promoção, ou seja, a prisão preventiva.

Até há pouco tempo, dispunha o art. 219.°, nos seus n.°s 1, 3 e 4, do CPP:

"1 - Só o arguido e o MP em benefício do arguido podem interpor recurso da decisão que aplicar, mantiver ou substituir medidas previstas no presente título.

2 - ...

3 - A decisão que indeferir a aplicação, revogar ou declarar extintas as medidas previstas no presente título é irrecorrível.

4 -  O recurso é julgado no prazo máximo de 30 dias a partir do momento em que os autos forem recebidos".

Perante tal normativo, a decisão ora impugnada era irrecorrível, sem quaisquer dúvidas.

Todavia, com a entrada em vigor (em 29/10) da Lei n.° 26/10, de 30/8, a redacção do aludido art. 219.° foi alterada, passando a ser a seguinte:

"1 - Da decisão que aplicar, substituir ou mantiver medidas previstas no presente título, cabe recurso a interpor pelo arguido ou pelo MP, a julgar no prazo máximo de 30 dias a contar do momento em que os autos foram recebidos.

2 - ..."

Contrariamente ao que possa parecer à primeira vista, os anteriores números 3 e 4 não foram revogados — veja-se a norma revogatória do art. 4.°, da mencionada Lei, e a nova redacção dada pela mesma ao aludido art. 219.° do CPP, na qual não constam expressamente como revogados aqueles números, diversamente do que acontece relativamente ao n.° 6 do art. 389.° e n.° 3 do art. 391.°-E, do mesmo Código, que também foram alterados -, tendo a matéria desses números sido refundida com a do n.° 1, que passou a regular também a matéria que antes constava daqueles n.°s 3 e 4.

Consequentemente, tendo em conta esse n.° 1, terá de concluir-se que o legislador quis regular de forma abrangente os casos em que se pode recorrer, aquando da aplicação de medidas de coacção, tendo tomado posição expressa no sentido de que apenas são recorríveis - pelo arguido ou pelo MP, agora já não apenas em beneficio do primeiro -, as decisões que aplicam, substituem ou mantêm qualquer das medidas coactivas previstas no Código.

A contrario, não serão recorríveis todas as demais decisões que não apliquem uma qualquer medida proposta pelo MP e as que revoguem ou declarem extinta uma medida anteriormente aplicada.

E não se venha argumentar que para tais situações vigorará a regra geral da recorribilidade de quaisquer decisões, nos termos previstos nos arts. 399.° e 400.° (este a contraio), do CPP — normas que foram, efectivamente, invocadas pelo recorrente no seu requerimento de interposição do recurso -, pois, nesse caso, seria totalmente destituída de sentido a norma do art. 219.°, n.° 1, por inútil, salvo na parte em que fixa prazo para julgamento do recurso.

Partindo-se do pressuposto de que o legislador pensou devidamente o sistema e não criou normas inúteis, só pode concluir-se que quis manter afastada a recorribilidade das demais decisões não expressamente previstas naquele n.° 1 do art. 219.°, do CPP. Se, pelo contrário, fosse intenção do legislador abrir a porta à recorribilidade de todas as decisões que se pronunciassem sobre medidas de coacção, então bastar-lhe-ia revogar os n.°s 1 e 3, do art. 219.°, passando a vigorar a regra geral do art. 399.°, do mencionado Código. Não foi este, manifestamente, o intuito do legislador.

Entendo, pois, que o recurso deve ser rejeitado, por se verificar causa que devia ter determinado a sua não admissão, face ao disposto no art. 420.°, n.° 1 al. b) e 414.°, n.° 2, do CPP.

III.     DECISÃO:

Em conformidade com o exposto, rejeita-se o presente recurso do Ministério Público, por inadmissível.

Sem custas, por delas estar isento o recorrente.

Notifique.

Lisboa, 14.05.2013

(Processado em computador e revisto pelo signatário).

José Adriano