Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6141/2007-7
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: ARROLAMENTO
DIVÓRCIO
TRIBUNAL DE FAMÍLIA
COMPETÊNCIA MATERIAL
INVENTÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I- Seja qual for o regime de bens, no caso de um cônjuge se ver impedido de aceder aos seus bens próprios ou aos bens de que é comproprietário com o outro cônjuge, é-lhe lícito recorrer à providência de arrolamento a que alude o artigo 427º/1 do C.P.C. /revisão de 1995-1996 como preliminar ou incidente da acção de divórcio.
II- Dada a natureza instrumental dos procedimentos cautelares relativamente à acção principal, que é neste caso a acção de divórcio proposta ou a propor, os Tribunais de Família são competentes em razão da matéria atento o disposto nos artigos 383º/1 do C.P.C. e artigo 81º, alíneas b) e c) da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro)

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I – RELATÓRIO

Pedro […] instaurou, contra Maria […], providência cautelar de arrolamento, como incidente da acção de divórcio já instaurada por forma a assegurar os bens próprios que se encontram na casa de morada de família e cujo acesso a requerida lhe vedou.

Prosseguiram os autos a tramitação legal prevista no artº427 do CPC vindo o tribunal a decretar o requerido arrolamento.

Citada a requerida, deduziu oposição infirmando os fundamentos da requerida providência e solicitando o seu levantamento.

Realizada a audiência e a produção de prova, o tribunal julgou oficiosamente verificada a excepção da incompetência da jurisdição de família para a apreciação da causa, em virtude de vigorar entre o casal o regime de separação de bens e por tal não haver lugar a inventário especial, absolvendo a requerida da instância.

O requerente interpôs recurso admitido como de agravo e efeito suspensivo e de subida imediata, o que nesta instância se manteve. 

Em remate das suas alegações o agravante conclui, em síntese, que:
- (….) A providência cautelar de arrolamento prevista no artº427 do CPC não é instrumental de processo de inventário, sendo incidental à acção de divórcio;
 - (…) O tribunal não fez o devido enquadramento legal ao caso.
No final pede a revogação do despacho e a consideração da competência do Tribunal de Família em razão matéria para apreciar da providência.

A requerida em resposta pugnou pelo acerto do julgado
 
O Sr.Juiz sustentou tabelarmente a decisão.

Atenta a simplicidade da matéria dispensaram-se os vistos e nada obsta ao conhecimento de mérito.

II-FACTOS

A matéria a considerar reconduz-se ao já constante do relatório a para a qual se remete.

III-ENQUADRAMENTO JURÍDICO

O thema decidendum é, nunca é demais frisar, delimitado pelo teor das conclusões, à margem das situações de conhecimento oficioso e outras de excepção expressa no texto legal, que do caso em apreço estão arredadas. 

Donde, o que demanda pronúncia por banda deste tribunal:

-É o Tribunal de Família o competente para apreciar da providência cautelar de arrolamento de bens próprios, incidental a processo de divórcio a correr termos?  

Passando à apreciação da questão. 

A competência judiciária em razão da matéria é questão de ordem pública e apenas decorre da lei.

A sua fixação apreciar-se-á em função da natureza da matéria a decidir, sendo que, no limite, o critério do legislador teve como padrão a atribuição da causa ao tribunal que mais vocacionado (idoneidade do juiz[1]) estiver para conhecer do objecto do pleito em concreto, buscando-se afinal a eficiência da organização judiciária.

 Quanto aos tribunais da organização judiciária comum, divide a lei em tribunais de competência genérica e tribunais de competência especializada, de acordo com o disposto nos artº72 a 77 da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, seguindo-se o estabelecido a propósito no artº211 da Constituição da República Portuguesa.

Vejamos, pois, a especificidade no que respeita à competência especializada dos tribunais de família

Artigo 81.º

Competência relativa a cônjuges e ex-cônjuges

Compete aos Tribunais de família preparar e julgar:
a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;
b) Acções de separação de pessoas e bens e de divórcio, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1773.º do Código Civil;

c) Inventários requeridos na sequência de acções de separação de pessoas e bens e de divórcio, bem como os procedimentos cautelares com aqueles relacionados;


Ora, bastaria uma leitura regular do preceito, mais concretamente, do teor da alínea c), para que o tribunal recorrido não declinasse a competência em razão da matéria.

Com efeito, sustentando-se numa espécie de silogismo alheado das regras bases da hermenêutica das normas jurídicas, concluiu que vigorando na sociedade conjugal (ainda) o regime de separação de bens, não haveria lugar a inventário especial nos termos do disposto no artº1404 do CCivil, e por consequência, não tinha o tribunal de família a intervenção que lhe é acometida na citada disposição legal.

A decisão impugnada reduziu assim ao processo de inventário a intervenção do tribunal de família sequencial de providência cautelar, (quando tal procedimento não é sequer mencionado nos autos), partindo da definição legal de inventário em casos especiais – artº1404 do CPC, olvidando o restante texto da lei, que ademais é de imediata clareza.

Atendendo às razões do despacho, cremos que é esquecido o significado da vírgula, fazendo corresponder os procedimentos cautelares conexos exclusivamente ao processo de inventário.

E, então os procedimentos cautelares incidentais ou preliminares das acções de divórcio, e como preliminares ou incidentais das acções de separação de bens e de divórcio?! São procedimentos cautelares conexos com processos da competência especializada dos tribunais de família e essa conexão conduz, sem margem para grandes tergiversações, à competência do tribunal de família.

Na verdade, o requerente não veio pedir, com efeito, o arrolamento de bens comuns, mas dos seus bens próprios[2], como de resto o previsto no citado artº427 do CPC, mas outrossim, solicitando que sejam arrolados os bens alegadamente seus que se encontram na residência do casal, que está vedada pela requerida e, desse modo, salvaguardar a respectiva propriedade.

No caso concreto estamos perante um arrolamento que é incidental da acção de divórcio que corre entre Requerente e Requerida.

 Sendo um arrolamento instaurado como preliminar da acção de divórcio ou durante a sua pendência, como sucede nos autos, é de aplicar o disposto no art.º 427 do CPC e não é exigido para a procedência que se prove o requisito do justo receio de extravio ou dissipação de bens, porventura, prevendo que a crise matrimonial instalada entre os cônjuges em tais situações já é suficiente para por si só justificar um fundado receio de extravio de bens.

As razões de ser do arrolamento especial de bens é a de evitar que um dos cônjuges se aproprie indevidamente dos bens ou os oculte, sejam eles bens próprios ou bens comuns.

Estamos face a um “arrolamento especial”, como o próprio título indica no qual a lei prescindiu “da alegação e prova do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação, tantas as situações da vida que, sendo do presumível conhecimento do legislador, demonstram a ilicitude dos comportamentos”.[3]

Daí que, como procedimento especial o arrolamento previsto no art.º 427 do CPC, não é directamente instrumental de nenhum inventário. É incidental ou preliminar da acção de divórcio, não do processo de  inventário que, eventualmente, mas não como pressuposto necessário, se venha a instaurar.

Isto é,  “(…) a instrumentalidade imediata( do arrolamento ) verifica-se apenas quanto ao processo de divórcio ou de separação”. [4].     

Em suma, é apodíctico que, uma vez pendente a acção de divórcio no Tribunal de Família o arrolamento incidental requerido por um dos cônjuges corre necessariamente por aquele Tribunal, por apenso ao respectivo processo.
 
A lei é clara no seu texto, mas, se tal não sucedesse, prevaleceria igual solução ao constatar-se a conexão desta providência cautelar com a especialidade dos Tribunais de Família que sempre justificaria atribuir-lhe a competência para a sua apreciação e independentemente do regime de bens do casamento em dissolução. 

Por último, um ponto lateral aos argumentos do recurso, mas cremos, ainda assim, com pertinência para o caso concreto.

A singularidade da tramitação processual das providências cautelares na circunstância de ser deferido, por imposição legal ou opção judicial, o exercício do contraditório potencia o surgimento de duas decisões de sentido até diferente.

Todavia, a oposição destina-se, por definição, a que o requerido faça prova de factos não tidos em conta pelo tribunal-artº388, nº1al) b) do CPC, que, em última análise, ditarão a decisão final de manutenção, redução ou revogação da providência decretada sem audiência do requerido.  

Nos autos, o Sr.Juiz que apreciou a petição considerou verificados os pressupostos processuais para conhecer de mérito, sendo outro o Sr.Juiz a quem coube apreciar a oposição (certamente por inerência do processo de divórcio apensado).

Ora, conquanto não seja rigoroso falar em caso julgado quanto ao pressupostos da instância na primeira decisão em face do já exposto, e, também no disposto no artº102, nº1 do CPC quanto à oportunidade de conhecimento da excepção da incompetência absoluta, cumpre observar, ainda assim, que esta “alteração”é geradora de instabilidade indesejável na instância e à oportunidade da tutela dos seus interesses das partes (não se esqueça a natureza urgente do processo), que no caso, salvo melhor opinião, poderia de todo ter-se evitado.
          
Em conclusão.

- A competência material, em questão, pela natureza da relação em conflito cabe ao Tribunal de Família.

IV-DECISÃO
 Do que vem exposto decide-se, em conceder provimento ao agravo, revogar a decisão recorrida, devendo o Sr.Juiz aceitar a competência para a continuação da tramitação do processo de arrolamento.

    Sem custas.
            
 Lisboa, 12 de Julho de 2007

Isabel Salgado

Roque Nogueira
 
Pimentel Marcos  

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[1] Alberto dos Reis, in Comentário ao CPC, I, Pag.106
[2] sem prejuízo de a vigência do regime de separação de bens não precludir a existência de bens em regime de compriedade, como explicita o disposto no arº1736 do CCivil
[3]  Cfr. António Abrantes Geraldes in  Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, pag 270.

[4] Veja-se a este propósito embora de interesse lateral para a decisão no caso dos autos as três posições que existem acerca da instrumentalidade deste arrolamento e do processo de inventário in A.Abrantes Geraldes, obra citada, pag.291 e 292.