Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1487/2008-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: ASSOCIAÇÃO
ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
ASSEMBLEIA GERAL
DEMISSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/30/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. Numa interpretação conforme à constituição as normas reguladoras das pessoas colectivas têm de ser entendidas como normas supletivas, salvo na medida em que imponham o respeito de princípios fundamentais, justificadores de limitação da liberdade de auto-organização.
II. É lícito os estatutos atribuírem ao Presidente da Mesa da Assembleia Geral competência para convocar a Assembleia Geral
III. Se, em princípio, o pedido de demissão só se torna eficaz com a sua aceitação, isso não impede que, perante o pedido de demissão de grande maioria dos membros dos órgãos sociais, seja logo convocada uma Assembleia Geral Eleitoral.
R.F.
Decisão Texto Integral: I – Relatório
            A… intentou acção declarativa com processo ordinário contra R… pedindo a anulação da convocatória e das deliberações tomadas na Assembleia Geral da Ré realizada a 2DEZ2000, onde se procedeu à destituição do A. de Presidente da Direcção e à eleição de novos órgãos sociais porquanto a deliberação sobre a destituição do A. não constar da ordem de trabalhos, ter sido violado o seu direito de participação na Assembleia Geral, ter inexistido aprovação por maioria dos votos expressos, não se verificarem os pressupostos para a ocorrência de eleição dos órgãos sociais, não lhe terem sido comunicados esses pressupostos e o Presidente da Mesa da Assembleia Geral estar a usurpar funções executivas, agindo em causa própria.
            A Ré contestou por impugnação.
            A final foi proferida sentença que, concluindo pela inexistência de vício susceptível de afectar quer a deliberação cuja anulação se reclamava quer a convocatória que a antecedeu, julgou a acção improcedente.
            Inconformado, apelou o A. concluindo, em síntese, por erro na decisão de facto, pela incompetência para convocar a Assembleia Geral e pela impossibilidade do objecto da Assembleia Geral.
            Não houve contra-alegação.

II – Questões a Resolver
            Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio[1].
            De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo[2].
            Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras[3].
            Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a conhecer:
            - se ocorreu erro na decisão de facto;
            - se a Assembleia Geral foi convocada por quem não detinha competência para tal;
            - se o objecto dessa Assembleia Geral era impossível.

III – Fundamentos de Facto
        Da matéria de facto apurada, elencada na sentença sob os nºs 1 a 45 (a fls 214 a 218 dos autos) o recorrente apenas questiona o facto 42.
            Assim, e relativamente a todos os outros factos eles estão definitivamente fixados, remetendo-se para a sentença recorrida, nos termos do artº 713º, nº 6, do CPC.
            Refere-se no facto 42 que “Perante a demissão de todos os membros do Conselho Fiscal e de três membros da Direcção, o Presidente da Mesa da Assembleia Geral, em carta dirigida a todos os associados, em 17/11/00, convocou-os para uma Assembleia Geral Eleitoral a ter lugar no dia 2/12/00, pelas vinte horas, na Rua …, em ..”.
            Pretende o recorrente que aí se substitua a expressão ‘demissão’ pela expressão ‘pedido de demissão’ dado que em sua opinião a demissão só se torna eficaz quando aceite, o que não ocorreu no caso.
            Sendo questão controvertida as consequências jurídicas das declarações dos membros dos órgãos sociais, afigura-se-nos adequado um maior rigor na utilização das expressões caracterizadoras da factualidade apurada; e nesse sentido, em consonância, aliás, com o referido nos pontos 35, 36, 38 e 39 do elenco factual, é mais conforme com a realidade factual (deixando o apuramentos das consequências jurídicas para a questão de direito) que se refira o ter sido pedida a demissão; e mais, que se distinga naquele momento entre os pedidos orais e escritos.
            Nesses termos decide-se alterar a factualidade elencada sob o nº 42 na sentença no seguinte sentido: “Perante a formalização por escrito do pedido de demissão de todos os membros do Conselho Fiscal e de três membros da Direcção, o Presidente da Mesa da Assembleia Geral, em carta dirigida a todos os associados, em 17/11/00, convocou-os para uma Assembleia Geral Eleitoral a ter lugar no dia 2/12/00, pelas vinte horas, na Rua …, em …”.

IV – Fundamentos de Direito
       O artº 46º da Constituição da República consagra a liberdade de associação, direito fundamental esse que engloba no seu conteúdo a liberdade de auto-organização[4].
            Numa interpretação conforme à constituição as normas reguladoras das pessoas colectivas têm de ser entendidas como normas supletivas, salvo na medida em que  imponham o respeito de princípios fundamentais, justificadores de limitação da liberdade de auto-organização.
            Nesse entendimento o que o Código Civil impõe às associações é a formalização das regras de organização e funcionamento em documento de valor reforçado – estatutos -, a existência de um órgão colegial de administração e de um conselho fiscal, com número ímpar de membros, e de uma Assembleia Geral (artigos 162º, 167º e 172º do CCiv).
            No que tange à Assembleia Geral, enquanto local de expressão da vontade do conjunto dos associados, é reservada a competência para específicos actos, de particular relevância para a vida da associação e para tudo aquilo que não for atribuído aos outros órgãos (artº 172º do CCiv), sendo que essa competência deve efectivamente ser exercida, sempre que tal resulte dos estatutos ou se mostre necessária, mas no mínimo anualmente para aprovação do balanço (artº 173º do CCiv)). A sua convocação está sujeita a formalidades tendentes a tornar cognoscível a sua realização e o seu objecto; e o seu funcionamento deve assegurar a expressão da vontade maioritária e, em casos particulares, exige-se para a deliberação uma maioria qualificada (artigos 174º e 175º do CCiv).
            Debruçando-nos especificamente sobre o artº 173º do CCiv o que nele resulta injuntivo é a obrigatoriedade da convocação da Assembleia Geral para aprovação do balanço anual, nas circunstâncias fixadas nos estatutos e quando se mostrem necessárias deliberações da sua competência. A necessidade de intervenção da Assembleia Geral é aferida pela administração ou por um conjunto de associados; não regulando os estatutos esse aspecto, a lei atribui à administração o poder de convocação e quantifica o conjunto de associados necessário, para determinar a convocação e, como garantia última, atribui competência convocatória a qualquer associado quando não for exercida a competência convocatória por quem o deveria ter feito.
            Para além dos referidos aspectos o disposto no Código Civil é supletivo só sendo de aplicar na falta de disposições estatutárias sobre a matéria[5].
            Os estatutos da Ré determinam que a Assembleia Geral é convocada pela respectiva Mesa (artº 8/1), Mesa essa que é composta por três membros (8/6), competindo ao Presidente convocá-la e dirigi-la (artº 8/6). A Assembleia Geral deverá reunir obrigatoriamente uma vez por ano para aprovação do Relatório e Contas do exercício findo e do Plano de Actividades e, além disso, sempre que tal for solicitado pela Direcção, pelo Conselho Fiscal, por um conjunto de associados não inferior a 1/5 e pelo Presidente da Mesa (artº 8/7).
            Respeitando tais estatutos os aspectos que foram atrás apontados como injuntivos não se encontra qualquer razão para afastar a sua aplicação. E em face deles é inequívoco que o Presidente da Mesa da Assembleia Geral tem competência para convocar a Assembleia Geral, quer por iniciativa própria, quer por imposição estatutária no caso de haver lugar a processo eleitoral (artº 12/2 dos estatutos).
            De forma que até o próprio recorrente (embora agora se tenha convenientemente esquecido desse facto) escrevia ao Presidente da Assembleia Geral (cf. fls 56) “…convoque a realização de uma Assembleia Geral …”.
            Improcedem, pois, nessa parte, as conclusões do recorrente.

            O termo “demissão” não tem um sentido preciso, pois que tanto indica uma declaração de vontade de renunciar a um cargo ou deixar de exercer uma actividade por vontade própria (alguém que apresenta ou pede a sua demissão, que se demitiu), como uma exoneração de um cargo ou o não exercício de uma actividade por imposição externa à vontade (alguém que foi demitido).
            E em particular quando se trata de uma declaração de vontade do próprio também não se encontra definido o regime da sua eficácia, designadamente se se trata de uma mera declaração receptícia (que se torna efectiva quando chega ao conhecimento do destinatário) ou necessita de ser por este aceite.
            Tal indefinição encontra-se, desde logo, na Constituição da República quando, relativamente à renúncia do Presidente da República, determina a sua eficácia com o conhecimento da declaração pela Assembleia da República (artº 131º, nº 2), mas relativamente ao pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro a sua eficácia fica dependente da aceitação pelo Presidente da República (artº 195, nº 1, al. b)).
            O entendimento a adoptar resultará de uma ponderação em que haverá de atender a valores/princípios fundamentais – liberdade e responsabilidade individual –, às práticas sociais correntes e às normas legais.
            Assim, como regra geral, e sem prejuízo do expressamente prescrito por normas legais ou regulamentares para casos particulares, propende-se a entender que, da mesma forma que a eleição ou designação de uma pessoa para um cargo/órgão só se torna eficaz com a sua aceitação, o seu pedido de demissão/renúncia a esse cargo/órgão só se torna eficaz com a sua aceitação.
            Mas essa regra não é absoluta e tem de ser atenuada em função do respeito de valores essenciais. É que decorrendo da liberdade individual que se não pode ser obrigado a assumir ou permanecer num cargo e da responsabilidade individual que se devem adoptar comportamentos que não lesem os interesses alheios, isso implica um especial dever de diligência por parte daquele de quem depende o acto atributivo de eficácia, equiparando-se a inércia a um comportamento tácito.
            Dessa forma é comum definirem-se períodos para que os eleitos/designados aceitem os seus lugares, sob pena de a eleição/nomeação ficar sem efeito; bem como a reacção a um pedido de demissão deve ser célere, sob pena de se entender que o silêncio equivale à sua aceitação[6].
            Aplicando esse entendimento ao caso concreto temos que com a apresentação do pedido de demissão os membros dos órgãos sociais não perderam desde logo essa sua qualidade. Mas esse pedido impunha que a pessoa colectiva, pelos seus órgãos competentes, que no caso era a Assembleia Geral, diligenciasse pela apreciação da situação, com vista à regularização do funcionamento da pessoa colectiva.
            Regularização essa que passava pela apreciação dos pedidos de demissão (quer diligenciando pela retirada dos mesmos, quer aceitando-os) e dos aspectos consequenciais dos mesmos (impossibilidade de funcionamento dos órgãos sociais e eventual eleição de novos órgãos sociais).
            Sem que, ao contrário do que defende o recorrente, tais passos tivessem de ser efectuados através de sucessivas Assembleias Gerais, pois que não se afigura necessário que as situações parcelares se encontrem definidas para a Assembleia Geral ser convocada. Basta que seja definido o quadro-geral que deve ser objecto da apreciação da Assembleia Geral para que esta seja convocada, desenvolvendo-se a apreciação da questão e as deliberações necessária no quadro do funcionamento da própria assembleia.
            Ao ser convocada para “eleição para a totalidade dos órgãos sociais da Associação – Mesa da Assembleia Geral, Direcção e Conselho Fiscal – na sequência da demissão da totalidade dos membros do Conselho Fiscal e de três membros da Direcção” a Assembleia Geral não está a ser chamada a pronunciar-se sobre algo que lhe está legalmente vedado, mas, pelo contrário, a exercer as suas competências próprias face à crise institucional declarada.
            Por último não se vislumbra em que medida eventuais actos de carácter executivo praticados pelo Presidente da Mesa da Assembleia Geral possam interferir na legalidade do funcionamento e deliberações da Assembleia Geral.
            Pelo que também nessa parte falecem as conclusões do recurso.
V – Decisão
            Termos em que na improcedência da apelação se confirma a decisão recorrida.
            Custas pelo apelante.
                                               Lisboa, 2008SET30
                                                     (Rijo Ferreira)
                                                   (Afonso Henrique)
                                                     (Torres Vouga)
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[1] - Cf. artº 684º, nº 3, e 690º CPC, bem como os acórdãos do STJ de 21OUT93 (CJ-STJ, 3/93, 81) e 23MAI96 (CJ-STJ, 2/96, 86).
[2] - Cf. acórdãos do STJ de 15ABR93 (CJ-STJ, 2/93, 62) e da RL de 2NOV95 (CJ, 5/95, 98). Cf., ainda, Amâncio Ferreira, Manual dos recursos em Processo Civil, 5ª ed., 2004, pg. 141.
[3] - Cfr artigos 713º, nº 2,, 660º, nº 2, e 664º do CPC, acórdão do STJ de 11JAN2000 (BMJ, 493, 385) e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 247.
[4] - cf. nota 8 ao artº 46º da CRP Anoptada, J:J: Canotilho / Vital Moreira, vol I, 2007.
[5] - admitindo, como facto inquestionável, a atribuição de competência convocatória ao Presidente da Mesa da Assembleia Geral veja-se António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, vol. I, Tomo III, 2004, pg 680-681 (“… a convocatória será feita pela administração, se os estatutos não conferirem competência ao presidente da assembleia geral”; “… aos casos em que ao presidente da assembleia geral caiba fazer a convocatória…”).
[6] - porventura a necessidade de aceitação do pedido de demissão mais do que um acto atributivo de eficácia é um acto meramente dilatório na medida em que perante aquele pedido ou se convence o demissionário a rever a sua posição, retirando o pedido, ou a aceitação é uma inevitabilidade.