Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
442/14.4T8VFX-A.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: PLANO DE RECUPERAÇÃO
CONTRATOS BILATERAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: - Os créditos por obrigações de contratos bilaterais em que as contraprestações, recíprocas e sinalagmáticas, ainda não foram cumpridas, não podem ser afectados pelo plano de recuperação, no âmbito do processo especial de revitalização (PER), sem o acordo da contraparte.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:



I-RELATÓRIO:


O credor M... S.A. nos presentes autos de processo especial de revitalização (PER) de V... e T..., notificado da decisão de homologação do PER e não se conformando com tal decisão veio interpor recurso de apelação.

Formula as seguintes conclusões:

A Recorrente reclamou créditos no PER com base no incumprimento de um contrato de locação financeira celebrado entre a Recorrente e os devedores, em 30.06.2010, tendo o mesmo contrato por objecto 3 veículos agrícolas.

No momento da apresentação da reclamação de créditos, o contrato, apesar de incumprido, não fora resolvido, tendo a Recorrente expressamente reservado tal direito.

A Recorrente votou contra o Plano e requereu a sua não homologação quanto a ela, porquanto o Plano prevê a modificação de um contrato em curso e que, por um lado, tal é legalmente inadmissível, porque nada obsta a que a Recorrente resolva tal contrato se houver incumprimento das obrigações sinalagmáticas vincendas, e, por outro lado, perante o Plano a Recorrente fica numa situação previsivelmente mais desfavorável do que aquela que ocorreria na ausência do Plano, tendo o Tribunal a quo indeferido o pedido de não homologação formulado, decisão esta que agora se sindica.

No entender da Recorrente, no caso em apreço, porque estamos no âmbito de um contrato bilateral em curso, não é possível aos Requerentes, nem aos demais credores, alterar unilateralmente- isto é, sem o consentimento da contraparte – as condições contratuais em vigor entre as partes.

Em virtude da celebração do contrato de locação, a Recorrente é credora dos requerentes pelos montantes em dívida, relativos às rendas vencidas e não pagas mas, simultaneamente e até à resolução do contrato, as partes no contrato (Recorrente e Devedores) continuam vinculadas aos respectivos termos, porquanto se mantém a relação contratual entre ambos.

Assim, se por um lado, no âmbito do Plano de Revitalização é possível aos credores acordarem na redução dos créditos vencidos, alterando mesmo as respectivas formas de pagamento, deliberação esta que vincula todos os credores, tenham ou não votado a favor do PER, tenham ou não reclamado os seus créditos, por outro lado, não é possível, por via do Plano de Revitalização, vir alterar unilateralmente as condições contratuais de contrato não resolvido.

Neste caso, uma vez que a Recorrente não deu a sua anuência – votou contra o Plano-, tal é legalmente inadmissível, violando diversa interpretação os princípios que norteiam o Direito Civil, principalmente o princípio da liberdade contratual (art.º 406.º CC)

A alteração das relações contratuais em curso só é possível com a anuência das respectivas partes, ou nas circunstâncias previstas no art.º 437.º CC, ou seja, pelo juiz com recurso a equidade: nunca unilateralmente, nunca por vontade de terceiros, pelo que o plano de revitalização aprovado nos autos não deve ser homologado relativamente à Recorrente.

A proposta apresentada e homologada implica que – no que toca a um dos veículos – o contrato seja prorrogado por mais 6 anos de duração e o valor de rendas estipuladas até ao final do contrato (27.07.2015) será dividido por 48 meses, com início 18 meses após o que seria o termo do contrato: durante todo esse tempo, durante mais 60 meses do que o contratado, a Recorrente fica obrigada à contraprestação, fica obrigada a ceder o gozo da coisa, sem direito a receber a contrapartida (renda) estipulada.

Relativamente aos outros dois veículos – Chisel e Grade – o Plano aprovado estabelece uma proposta alternativa – sem dizer a quem compete a opção- sendo indeterminado e indeterminável.

Assim, no que a todos os veículos diz respeito, à Recorrente, o Plano aprovado deveria ter sido oficiosamente recusado pelo M.º Juiz a quo, ao abrigo do disposto no art.º 215.º do CIRE, aplicável ex vi artigo 17.º -F.5.

Nos termos do disposto no art.º 6.º do D.L. n.º149/95, de 24/06, com a redacção que lhe foi dada pelo D.L. n.º 285/2001, de 03/11, “[o] prazo de locação financeira de coisas móveis não deve ultrapassar o que corresponde ao período presumível de utilização económica da coisa”, retirando-se do mesmo artigo que, em caso de desconformidade do prazo com a lei, este terá de ser reduzido para o limite legal.

Por outro lado, a Recorrente demonstrou de modo inequívoco que da aprovação do Plano resulta para si uma situação previsivelmente menos favorável do que teria na ausência de qualquer plano

Com efeito, a ser homologado o plano, com a dilatação do prazo contratual e o subsequente uso dos equipamentos por mais 5 anos, sem contrapartida, a Recorrente ficará numa situação pior do que aquela em que se encontra se o Plano lhe for/fosse aplicável, pelo que a sentença homologatória do Plano aprovado pela maioria dos credores viola o disposto no artigo 216.º n.º1 a) CIRE, aplicável ex vi do artigo 17.º -F.5 do CIRE.

A sentença recorrida violou, por deficiente interpretação e aplicação, o disposto nos artigos406.º e 437.º do C.C. e 215.º e 216.º 1 a) do CIRE e artigo 6.º do D.L. 149/95, de 24/06, com a redacção que lhe foi dada pelo D.L. n.º 285/2001, de 03/11.

Nestes termos, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida, seguindo-se os ulteriores trâmites com todas as demais consequências legais.

Os Apelados apresentaram contra alegações, nas quais rebatendo os argumentos da Apelante pugnam pela confirmação da decisão recorrida.

            Cumpre apreciar e decidir:

II-OS FACTOS:

A factualidade com interesse para a decisão é a que consta do relatório, destacando-se o seguinte:

1-V... e T..., ora Apelados, intentaram processo especial de revitalização.
2-Foi nomeado administrador judicial provisório, nos termos do disposto no artigo 17.º C n.º3 a) do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas.
3-A ora Apelante reclamou créditos com base no incumprimento de um contrato de locação financeira celebrado com os devedores, em 30-06-2010,tendo o mesmo contrato por objecto três veículos agrícolas.
4-No momento da apresentação da reclamação de créditos, o contrato não tinha sido resolvido, apesar de estarem por pagas rendas já vencidas.
5-O sr. Administrador juntou lista provisória de créditos, a qual foi convertida em definitiva por não ter sido apresentada qualquer impugnação à mesma.

6-O Plano de revitalização apresentado pelos Requerentes, no que se refere à Apelante, é o seguinte:

Relativamente ao veículo Tortella Rototerra, considerado essencial para a actividade agrícola dos Requerentes:

a)Consolidação do capital em dívida e outros encargos financeiros, à data da implementação do plano proposto;
b)Carência de capital até 31/12/2016;
c)Pagamento de juros mensais;
d)Vencimento a 31/01/2021;
e)Amortização do capital em 5 prestações anuais e sucessivas, vencendo-se a primeira no dia 31/01/2017;
f)Taxa de juros aplicável – Euribor a 6 meses + spread de 2,75%
g)Manutenção das garantias existentes.

            Relativamente aos veículos Chisel e Grade:

No que diz respeito a estes veículos, considerados como não essenciais para a actividade, é proposto o pagamento de 80% do valor em dívida ou a entrega dos bens com redução em 100% de todos os montantes devidos decorrentes do leasing, referente a estes mesmos veículos, com correspondente quitação das responsabilidades decorrentes dos contratos.

7-Concluídas as negociações, foi concedido prazo para votação do plano apresentado pela devedora tendo votado credores representando 92,665% (€770.394,10) dos créditos constantes da lista definitiva de credores (€831.373,11).

8-Votaram, favoravelmente, o plano de recuperação, credores representando 81,875% dos votos expressos (€630.760,74).

9-Votaram contra, quatro credores representando 18,125% dos votos expressos ( €139.633,36).

    III-O DIREITO:

Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas, que delimitam o respectivo âmbito de cognição, as questões que importa conhecer são as seguintes:
           
1-Saber se o Plano de Revitalização aprovado, com o voto contra do ora Apelante, produz efeitos relativamente aos contratos de locação financeira celebrados, designadamente alterando as suas condições contratuais contratadas.   

Defende a Recorrente que, no caso em apreço, porque estamos no âmbito de um contrato bilateral em curso, não é possível aos Requerentes, nem aos demais credores, alterar unilateralmente – isto é, sem o consentimento da contraparte – as condições contratuais em vigor entre as partes.

            Quid juris?

O processo especial de revitalização (vulgo PER), introduzido pela Lei 16/2012, de 20 de Abril, regulado nos artigos 1º, nº2, 17º-A a 17º-I do CIRE pretendeu «(…) assumir-se como um mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente eminente mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência actual.(…)», cfr Exposição de Motivos da Proposta de Lei 39/XII, de 30 de Dezembro de 2011.

Este processo de revitalização tem como pressuposto substantivo a recuperabilidade do devedor e visa privilegiar, sempre que possível, a manutenção do devedor no giro comercial, gizando-se soluções eficazes de combate ao desaparecimento e desmantelamento, cfr Exposição de Motivos da Proposta de Lei supra indicada.

É um processo negocial extrajudicial do devedor com os credores, com a orientação e fiscalização do administrador judicial provisório, focalizado na obtenção de um acordo para a revitalização da empresa, permitindo que esta regularize os seus compromissos para com os seus credores de forma preventiva, isto é, antes de entrar numa situação irreversível de insolvência[1].

Como se diz e bem na decisão recorrida “o PER é um processo especialíssimo, em relação ao processo de insolvência, criado com a finalidade de proporcionar uma ferramenta legal expedita para a recuperação de uma empresa. Tem como traços característicos essenciais a celeridade e a consensualidade.”

Ora, não perdendo de vista este espírito, importa não esquecer outros princípios fundamentais da ordem jurídica que se colocam com especial acuidade no caso que ora nos ocupa que tem a ver com créditos por obrigações de contratos bilaterais em que as contraprestações, recíprocas e sinalagmáticas, ainda estão em curso.

No caso de insolvência o art.º 102.º do CIRE[2] prevê que, no caso de “qualquer contrato bilateral em que, à data da insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.” A opção pelo cumprimento pressupõe a susceptibilidade do cumprimento pontual das obrigações contratuais, por parte da massa insolvente (vide art.º 102.º n.º4). Em caso de recusa de cumprimento, deixam de existir prestações recíprocas, podendo constituir-se a favor de um das partes um crédito pecuniário sobre a outra, de acordo com as regras previstas no n.º3 do art.º 102.º.

Sucede, porém, que no PER, os contratos bilaterais não se suspendem no seu decurso, nem o administrador judicial provisório ou o devedor podem optar pela sua recusa ou cumprimento. Isto é, o devedor pode como é evidente deixar de cumprir o contrato, voluntariamente, mas as suas obrigações não se extinguem e o seu cumprimento pode ser imposto por via da acção de cumprimento e da execução ( art.º 817.º do Código Civil) e da execução específica.

Assim, no PER, mantém-se as obrigações recíprocas e sinalagmáticas. Se, como vimos a modificação unilateral do contrato não é permitida num processo de insolvência, muito menos seria admissível num processo especial de revitalização, em que nem o administrador judicial provisório, nem o devedor podem optar por recusar o cumprimento do contrato e o devedor não se encontra sequer numa situação de insolvência actual[3]. Portanto, “os créditos por obrigações de contratos bilaterais em que as contraprestações, recíprocas e sinalagmáticas, ainda não foram cumpridas, não podem ser afectados pelo plano de recuperação, sem o acordo da contraparte. Com efeito, alterar unilateralmente as obrigações de uma parte, mantendo inalteradas as da contraparte, afectaria o sinalagma contratual e redundaria numa verdadeira modificação do contrato.

A modificação dos contratos apenas é possível nos termos do art.º 437.º do Código Civil (…). Um plano não pode introduzir modificações contratuais contra a vontade das contrapartes. Também no processo de insolvência isso não pode suceder. (…) A modificação unilateral do contrato consubstanciaria a imposição ao credor, contra a sua vontade, de uma diferente relação jurídica e posição contratual, o que seria uma afronta grave e injustificável aos seus direitos[4].

Tem, pois razão a Apelante em defender que o plano que prevê uma modificação unilateral dos contratos celebrados, sem seu consentimento, não lhe pode ser aplicável.

Procede, assim, o pedido formulado no sentido de o plano de revitalização não produzir efeitos quanto aos contratos de leasing celebrados com o credor Montepio Crédito- Instituição Financeira de Crédito, S.A.

Mantém-se, porém, o demais decidido, quanto à homologação do plano de revitalização.

            IV-DECISÃO:

Face ao exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso e consequentemente alterar a decisão recorrida na parte em que julgou aplicável o Plano aos contratos de leasing celebrados com a ora Apelante.
Custas por ambas as partes na proporção de ½.


Lisboa, 10 de Setembro de 2015


Maria de Deus Correia
Maria Teresa Pardal
Carlos de Melo Marinho


[1]Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-11-2014 , disponível em www.dgsi.pt.
[2]Será deste diploma qualquer referência sem indicação de proveniência.
[3]Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, PER O processo especial de revitalização, Coimbra Editora, 2014, p.67-70.
[4]Idem,p.69