Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2455/22.3T8FNC-A.L1-1
Relator: TERESA HENRIQUES
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
COMPETENCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.O critério estabelecido nos art.º 294ºa 296º do CIRE tem aplicação apenas nos casos em que o processo principal deve ser instaurado num Estado-Membro da U.E., por ser este o internacionalmente competente.
2. Encontrando-se o CIPD da insolvente localizado no R.U., não se aplica ao processo de insolvência intentado nos tribunais portugueses (dada a conexão de bens e dívidas) o disposto nos art.294º a 296º do CIRE.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I
I.A
A apelante apresentou-se à insolvência com pedido de concessão do benefício da exoneração do passivo restante (BEPR) em 09.05.2022 alegando, em síntese, que:
I) É cidadã portuguesa e tem duas filhas a seu cargo;
II) Reside habitualmente no Reino Unido, em Londres;
III) Tem dívidas contraídas em Portugal no montante global de €18.366,00;
IV) Os únicos bens que tem situam-se em Portugal, e foram adquiridos durante a vigência do seu, entretanto dissolvido, primeiro matrimónio;
V) Encontra-se desempregada desde 2020 não tendo, pois, meios para cumprir as suas obrigações;
VI) O seu rendimento é composto, exclusivamente, por uma pensão que recebe do Estado Inglês e esta é consumida pelas necessidades básicas do seu agregado familiar;
VII) Encontra-se em estado de insolvência e em condições de lhe ser atribuído o BEPR;
VIII) Os tribunais portugueses são competentes para a apreciação do pois os elementos de conexão pessoal (nacionalidade da requerente) e real (contração das dívidas e situação dos bens) ocorreram em território português;
IX) O Reino Unido não pertence à União Europeia sendo inaplicável ao caso o Regulamento (UE) 2017/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Maio de 2015.
Por sentença proferida em 17.05.2022 foi decretada a insolvência da recorrente, caracterizado o processo como sendo «particular», e indeferido liminarmente o pedido de concessão do BEPR com fundamento na inaplicabilidade dom instituto àquele tipo de processo.

I.B
A recorrente apela concluindo que:
1 - O PRESENTE RECURSO TEM POR OBJECTO O DESPACHO DE 17.05.2022, O QUAL CONVOLOU O PROCESSO DE INSOLVÊNCIA PARA PROCESSO PARTICULAR DE INSOLVÊNCIA, NOS TERMOS E PARA OS EFEITOS DO ARTIGO 294.º E 295.º DO CIRE E, COMO TAL, INDEFERIU O PEDIDO DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE FORMULADO PELA RECORRENTE POR, NO ENTENDER DO TRIBUNAL A QUO, AS DISPOSIÇÕES SOBRE A EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE NÃO SE APLICAM IN CASU, POR IMPOSIÇÃO LEGAL.
2 - A RECORRENTE NÃO SE CONFORMA COM TAL DECISÃO PORQUANTO ENTENDE QUE NÃO SE ENCONTRAM PREENCHIDOS OS PRESSUPOSTOS PARA A APLICAÇÃO, IN CASU, DAS REGRAS ATINENTES AO PROCESSO PARTICULAR DE INSOLVÊNCIA.
3 - POR CONSEGUINTE, AO DECIDIR COMO DECIDIU, O TRIBUNAL A QUO VIOLOU AS NORMAS PREVISTAS NOS ARTIGOS 237.º, 294.º A 296.º, TODOS DO CIRE.
4 - CONSIDERANDO A NATUREZA JURÍDICA DA MATÉRIA VERSADA, A QUESTÃO COLOCADA À DECISÃO DE V. EXAS. É SABER SE O TRIBUNAL A QUO PODIA CONVOLAR O PROCESSO PRINCIPAL DE INSOLVÊNCIA PARA UM PROCESSO PARTICULAR DE INSOLVÊNCIA, COM O SUBSEQUENTE INDEFERIMENTO LIMINAR DO PEDIDO DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE FORMULADO PELA RECORRENTE.
5 - NO QUE AQUI IMPORTA, O TRIBUNAL A QUO, CONSIDERANDO QUE A RECORRENTE TEM NACIONALIDADE PORTUGUESA, DETÉM BENS NA REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA, RESIDÊNCIA HABITUAL NO REINO UNIDO, AÍ SITUANDO O CENTRO DOS SEUS PRINCIPAIS INTERESSES, ENTENDE QUE, POR IMPOSIÇÃO LEGAL, OS PRESENTES AUTOS DEVERÃO SEGUIR OS SEUS TERMOS COMO PROCESSO PARTICULAR DE INSOLVÊNCIA, ABRANGENDO APENAS OS BENS SITUADOS EM TERRITÓRIO PORTUGUÊS, FUNDAMENTANDO TAL DECISÃO NOS ARTIGOS 294º E 295.º, AMBOS DO CIRE.
6 - E QUE, ASSIM SENDO, DE ACORDO COM A ÚLTIMA NORMA CITADA, AS DISPOSIÇÕES SOBRE A EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE NÃO SE APLICAM, PELO QUE INDEFERIU LIMINARMENTE O PEDIDO DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE FORMULADO PELA RECORRENTE.
7 - ENTENDE A RECORRENTE QUE O TRIBUNAL A QUO INCORRE EM EQUÍVOCO NA COMPREENSÃO DO QUE ESTÁ PREVISTO NOS 3 ARTIGOS DO CAPÍTULO III DO TÍTULO XV DO CIRE.
8 - O PROCESSO PARTICULAR DE INSOLVÊNCIA INSERE-SE NO CAPÍTULO III DO TÍTULO XV, QUE SE INICIA NO ARTIGO 275º DO CIRE, E DIZ RESPEITO A NORMAS EM CONFLITO, DISPONDO QUE OS PROCESSOS REGULADOS NESTE CÓDIGO A QUE SE APLICA O REGULAMENTO (UE) N.º 2015/848 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 20 DE MAIO DE 2015, REGEM-SE PELA DISCIPLINA VERTIDA NAQUELE INSTRUMENTO E, EM TUDO QUANTO A NÃO CONTRARIE, PELO PRESENTE DIPLOMA E QUE AS DISPOSIÇÕES DO PRESENTE TÍTULO SÃO APLICÁVEIS APENAS NA MEDIDA EM QUE NÃO CONTRARIEM O ESTABELECIDO NO REGULAMENTO OU OUTRAS NORMAS DE DIREITO DA UNÃO EUROPEA OU EM TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS.
9 - NOS CASOS EM QUE A INSOLVÊNCIA TEM CONEXÕES COM MAIS DE UM ESTADO, EM QUE A MESMA TEM UM CARÁCTER TRANSNACIONAL, A FIXAÇÃO DA COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES; A DETERMINAÇÃO DA LEI NACIONAL APLICÁVEL; A ABRANGÊNCIA DA DECISÃO DA INSOLVÊNCIA SOBRE OS BENS SITUADOS EM OUTRO ESTADO E A EFICÁCIA/EFEITOS DE TAL DECISÃO NOUTROS ESTADOS, RESOLVEM-SE PELO RECURSO AO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO.
10 - NA ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA VIGORAM DOIS REGIMES DE DIP NESTA MATÉRIA O REGIME COMUNITÁRIO E O REGIME INTERNO, SENDO QUE O REGIME COMUNITÁRIO SE ENCONTRA PREVISTO NO REGULAMENTO (UE) 2015/848 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO DE 20 DE MAIO DE 2015 E O INTERNO RESULTA DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 59º, 62º E 63.º DO CPC.
11 - NOS PRESENTES AUTOS DE INSOLVÊNCIA, A ÚNICA CONEXÃO TRANSNACIONAL É A RESIDÊNCIA DA RECORRENTE NO REINO UNIDO, QUE CUMPRE DESDE JÁ ESCLARECER, NÃO FAZ PARTE DA UNIÃO EUROPEIA, LOGO NÃO SE PODE APLICAR O REGULAMENTO (UE) 2015/848 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO DE 20 DE MAIO DE 2015.
12 - E, COMO DECORRÊNCA DO FACTO DO REINO UNIDO NÃO FAZER PARTE DA UNIÃO EUROPEIA, TAMBÉM OS ARTIGOS 294.º A 296.º DO CIRE NÃO TÊM APLICAÇÃO UMA VEZ QUE OS MESMOS APENAS SÃO DE APLICAR QUANDO SE VERIFICA UMA SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA TRANSFRONTEIRIÇA OU INTERNACIONAL, OU SE|A, QUANDO O DEVEDOR TEM LIGAÇÕES COM MAIS DO QUE UM ESTADO- MEMBRO, DESIGNADAMENTE POR TER BENS OU CREDORES LOCALIZADOS EM MAIS DE UM ESTADO- MEMBRO; E QUANDO, VERIFICANDO-SE TAL SITUAÇÃO TRANSFRONTEIRIÇA, O ESTADO PORTUGUÊS NÃO É O INTERNACIONALMENTE COMPETENTE PARA O CHAMADO “PROCESSO DE INSOLVÊNCIA PRINCIPAL” - NESTE SENTIDO, VEJA-SE CARVALHO FERNANDES E JOÃO LABAREDA IN CIRE, ANOTADO, 3.ª EDIÇÃO, QUID JURIS, 2015, A PÁG.S 963/4 E O ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 12 DE JULHO DE 2018, PROCESSO N.º 2892/17.5T8VNF-A.G1.S2, DISPONÍVEL NO RESPECTIVO SÍTIO DO ITIJ.
13 - O PROCESSO PARTICULAR DE INSOLVÊNCA, INSERIDO NO CAPÍTULO III, DO TÍTULO XV, QUE RESPEITA A NORMAS EM CONFLITO, PRESSUPÕE A COMPETÊNCIA INTERNACIONAL, NOS TERMOS DO ARTIGO 3.º, N.º 1 DO CITADO REGULAMENTO, DE TRIBUNAIS DE OUTRO ESTADO-MEMBRO PARA O PROCESSO PRINCIPAL DE INSOLVÊNCA, OU SEJA, NÃO É POR DEVEDOR, A DADO PASSO, RESIDIR NO ESTRANGEIRO, QUE SÃO APLICÁVEIS OS TRÊS CITADOS ARTIGOS.
14 - ORA, NOS PRESENTES AUTOS NÃO SE PODE AFIRMAR A COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DE TRIBUNAL DE OUTRO ESTADO-MEMBRO, DESDE LOGO POR NÃO ESTARMOS SEQUER PERANTE UMA SITUAÇÃO QUE TENHA LIGAÇÕES COM MAIS DO QUE UM ESTADO-MEMBRO (ALÉM DE PORTUGAL), PORQUANTO A RECORRENTE NÃO TEM BENS OU CREDORES LOCALIZADOS, OU SEQUER RESIDÊNCIA, NOUTRO ESTADO-MEMBRO - REITERA-SE, O REINO UNIDO NÃO FAZ PARTE DA UNIÃO EUROPEIA.
15 - MAS, AINDA QUE O REINO UNIDO FIZESSE PARTE DA UNIÃO EUROPEIA E O REGULAMENTO (UE) 2015/848 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO DE 20 DE MAIO DE 2015 SE APLICASSE AOS PRESENTES AUTOS, NO CENTRO DA ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA INTERNACIONAL AOS TRIBUNAIS DOS ESTADOS-MEMBROS, ESTÁ O CONCEITO DO “CENTRO DE INTERESSES PRINCIPAIS DO DEVEDOR (CIPD)”, SENDO QUE, “NO CASO DE PESSOA SINGULAR (QUE NÃO EXERÇA UMA ATIVIDADE COMERCIAL OU PROFISSIONAL INDEPENDENTE), PRESUME-SE, ATÉ PROVA EM CONTRÁRIO, QUE O CENTRO DOS INTERESSES PRINCIPAIS É O LUGAR DE RESIDÊNCIA HABITUAL” - ARTIGO 3.º, Nº 1.
16 - PRESUNÇÃO, TODAVIA, QUE PODE SER ILIDIDA, POR EXEMPLO, SE A MAIOR PARTE DOS BENS DO DEVEDOR ESTIVER SITUADA FORA DO ESTADO-MEMBRO ONDE ESTE TEM A SUA RESIDÊNCIA HABITUAL - CFR. CONSIDERANDO 30 DO CITADO REGULAMENTO.
17 - OU SEJA, CASO PORVENTURA ESTIVÉSSEMOS PERANTE UMA INSOLVÊNCIA TRANSFRONTEIRIÇA, ENCONTRANDO-SE A TOTALIDADE DOS BENS DA RECORRENTE SITUADOS NA REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA, ISTO É, FORA DO ESTADO-MEMBRO ONDE ESTA TEM A SUA RESIDÊNCIA HABITUAL (REINO UNIDO), O TRIBUNAL A QUO ATÉ SERIA INTERNACIONALMENTE COMPETENTE, NOS TERMOS DO CITADO REGULAMENTO, PARA O PROCESSO PRINCIPAL DE INSOLVÊNCIA...
18 - FACE AO EXPOSTO, NÃO SE PODE CONCLUIR PELA QUALIFICAÇÃO DOS PRESENTES AUTOS COMO UM “PROCESSO PARTICULAR DE INSOLVÊNCIA”, NÃO LHE SENDO ASSIM APLICÁVEL O PREVISTO EM QUALQUER UM DOS 3 ARTIGOS DO CAPÍTULO III DO TÍTULO XV DO CIRE, E, CONCRETAMENTE, O DISPOSTO NO ARTIGO 295.º, ALÍNEA C) DO CIRE (SEGUNDO O QUAL, AO PROCESSO LIMITADO, “NÃO SÃO APLICÁVEIS AS DISPOSIÇÕES SOBRE A EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE")
19 - ASSIM, AO INDEFERIR LIMINARMENTE O PEDIDO DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE AO ABRIGO DE TAL NORMA SEM QUE ESTIVESSEM VERIFICADOS TODOS OS RESPECTIVOS PRESSUPOSTOS, A DECISÃO RECORRIDA VIOLOU OS ARTIGOS 237º E 294.º A 296º DO CIRE.
20 - ASSIM, SE A RECORRENTE NÃO RESIDE NUM ESTADO-MEMBRO DA UNIÃO EUROPEIA TERÁ DE SE APLICAR O REGIME NACIONAL (NO CASO, O PORTUGUÊS, POR INAPLICABILIDADE DO REFERIDO REGULAMENTO COMUNITÁRIO QUE DISCIPLINA A FIXAÇÃO DA COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS DOS SEUS ESTADOS-MEMBROS, EM CASO DE INSOLVÊNCIA) - CFR O CITADO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 12 DE JULHO DE 2018.
21 - NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE DOUTAMENTE V. EXAS SUPRIRÃO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER ADMITIDO E JULGADO PROCEDENTE, REVOGANDO-SE A DECISÃO RECORRIDA E SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE DEFIRA A EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE, COM A SUA TRAMITAÇÃO SUBSEQUENTE.

I.B
O objecto do recurso resume-se a saber se o processo dos autos pode ser caracterizado com processo de insolvência particular nos termos do art.º 294º CIRE com o consequente indeferimento liminar do peticionado BEPR.

II
II.A
A matéria a considerar resulta de I.A

II.B
A primeira instância caracterizou o presente processo de insolvência como
particular com a seguinte fundamentação: «Considerando que a Requerente tem nacionalidade Portuguesa, detém bens na Região Autónoma da Madeira e tem residência habitual no Reino Unido, por imposição legal, os presentes autos seguem os seus termos como processo particular de insolvência.»
E, decorrente desta qualificação indeferiu liminarmente o BEPFR requerido pela recorrente.
Insurge-se a mesma alegando que o RU não pertence à EU e esta espécie de processo é específica da execução no CIRE do Regulamento (EU) 2015/848, do Parlamento Europeu e Conselho, de 20.05.2108.
E com razão pois, à data da propositura do presente processo, 01.03.2021[1] , o R.U. já não era Estado-Membro da EU pois o período de transição tinha atingido o sue termo em 31.12.2020 (cfr. art.º 126º do ACORDO sobre a saída do Reino Unido da Grã- Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica[2] pelo que não é de aplicar ao caso em análise o citado Regulamento EU.
De acordo com o alegado no requerimento inicial, que não foi questionado, a recorrente tem bens e dívidas em Portugal, mas reside e trabalhou até 2020 no Reino Unido (RU), encontrando-se actualmente desempregada e recebendo do sistema social daquele país uma pensão.
Atento o que se acaba de expor, está-se perante um caso de insolvência transfronteiriça ou internacional que pressupõe uma situação em que o devedor tem ligações com mais do que um ordenamento jurídico, designadamente por ter domicílio, bens ou credores localizados em mais do que um Estado que pode da União Europeia.
Luís de Lima Pinheiro[3], ainda que a propósito do Regulamento n.º 1346/200 (CE)[4], antecessor do vigente, afirma que :«Na ordem jurídica portuguesa vigoram dois regimes de Direito Internacional Privado nesta matéria: o regime comunitário e o regime interno. O regime comunitário consta principalmente do Reg. (CE) n.º 1346/2000, de 29/5, Relativo aos Processos de Insolvência (doravante designado Regulamento sobre insolvência). Este Regulamento entrou em vigor em 31 de Maio de 2002 (1). Contrariamente ao que a sua designação poderia sugerir, este diploma não regula o processo de insolvência, não estabelece um Direito Europeu da Insolvência. Os tribunais de cada Estado-Membro continuam a aplicar o Direito processual interno às insolvências internacionais. O Regulamento sobre insolvência regula fundamentalmente a competência internacional, a determinação do Direito aplicável e o reconhecimento de decisões estrangeiras. Trata-se, portanto, de uma fonte comunitária de Direito Internacional Privado. Isto não obsta a que o Regulamento contenha um conjunto de normas materiais unificadas complementares, quer de carácter processual quer de carácter substantivo, designadamente nos art.ºs 19. º a 24.º e 29.º a 42. º. Estas normas visam, entre outros aspectos, a coordenação entre processos instaurados em vários Estados-Membros e a adopção de medidas de publicidade. Assim, o Regulamento sobre insolvência não prejudica, em princípio, a aplicação pelos tribunais portugueses do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Em caso de conflito, prevalecem as normas do Regulamento[5], que é uma fonte do Direito hierarquicamente superior à lei ordinária na ordem jurídica interna. O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas contém ainda algumas normas de execução do Regulamento (art.ºs 271. º a 274. º)[6] ».
No caso em apreço a primeira instância declarou-se competente em toda a linha pelo que o despacho não constitui caso julgado formal pois não apreciou concretamente a questão[7].
Os factores de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses encontram-se preconizados nos art.ºs 59.º, 62.º e 63.ºCPC, sem embargo do estabelecido nas normas de direito internacional, bem como nas convenções internacionais ratificadas pelo Estado Português ( cfr. artigo 8.º da CRepP).
Ora o processo particular de insolvência, PPI, insere-se nos art.ºs 294º a 296º do Capítulo III do Título XV, este epigrafado de «Normas de conflitos» que se inicia no art.º 275º que
estipula o seguinte« Prevalência de outra normas»: « Os processos regulados neste código a que se aplica o Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015, regem-se pela disciplina vertida naquele instrumento e, em tudo quanto a não contrarie, pelo presente diploma e que as disposições do presente título são aplicáveis apenas na medida em que não contrariem o estabelecido no Regulamento ou outras normas de Direito da União Europeia ou em tratados e convenções
internacionais.»
Por outro lado, no art.º 294º estipula-se que «1 - Se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português.
- Se o devedor não tiver estabelecimento em Portugal, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação dos requisitos impostos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Código de Processo Civil.
- Sempre que seja aplicável o Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, o processo particular é designado por processo territorial de insolvência até que seja aberto um processo principal, caso em que passa a ser designado por processo secundário.»
E no art.º 296º, n.º 1, «O reconhecimento de um processo principal de insolvência estrangeiro não obsta à instauração de um processo particular, adiante designado como processo particular.»
Assim a existência de um processo particular pressupõe a existência de um processo principal, como resulta do disposto no citados art.º 294º, n.º 3 e 296º, n.º 1, e pressupõe, ainda, a competência internacional do Estado do processo principal.
É pacífico que o Regulamento procura uniformizar o Direito Internacional Privado, DIP, da Insolvência, estabelecendo, entre outras, regras respeitantes:
- à atribuição de competência internacional aos Tribunais dos Estados-Membros;
- à determinação da lei aplicável;
- ao reconhecimento de decisões estrangeiras;
- à articulação entre um processo de insolvência principal e um processo de insolvência secundário.
Nos termos do art.º 3º, n.º 1, último parágrafo, do mesmo normativo: «No caso de qualquer outra pessoa singular, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o lugar de residência habitual. Esta presunção só é aplicável se a residência habitual não tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos seis meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência.»
Assim sendo, o centro principal dos interesses da recorrente, CPID, situa-se no R.U., por aí a mesma residir, atento o disposto no citados art.º 3º, n.º 1, do Regulamento e ,ainda, art.º 82º CCiv e 7º, e o processo principal, a existir, teria sempre que ser intentado no R.U. que, como se referiu supra, já não é membro da U exoneração do passivo restante acarreta a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida (art.º 245.º, n.º  1) E.
Conclui-se assim que o «processo particular de insolvência» não se aplica ao caso
dos autos.
O mesmo já foi referido nos Acórdãos do STJ de 12.07.2028 [8], e do TRC de 17.03.2020[9] e 01.06.2020[10] .
Por outro lado, como também se referiu no recente Acórdão desta secção de 09.01.2023[11] de que se retém o essencial, remetendo-se para o mesmo dada a sua análise exaustiva do assunto
«3. Centrando-nos no art.º 295º CIRE a aplicação das «especialidades» aí referidas pressupõe que estejamos perante uma insolvência transfronteiriça ou internacional com referência, exclusivamente, a Estados-Membros da União Europeia e em que seja aplicável a disciplina jurídica vertida no referido Regulamento, só assim se podendo compreender o sentido e alcance do regime aí fixado; efetivamente, a existência de um processo particular ou, noutra designação, de um processo territorial (n.º 3 do art.º 294.º) deve ser conexionada com a existência de um processo secundário, a que se reporta o art.º 296.º, compreendendo-se que será no processo principal em que as questões alusivas ao perdão de dívida serão colocadas, sendo que só em Estados-Membros da União Europeia é que pode assegurar-se a aplicação uniforme do Direito da União, mormente quanto ao regime alusivo a tal matéria, atenta a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, cujos destinatários são os Estados-Membros (art.º 36.º da Diretiva) »
E mais adiante
«(...) a existência de um processo particular, ou, noutra designação, de um processo territorial (n.º 3 do art.º 294.º) deve ser conexionada com a existência de um processo secundário, a que se reporta o art.º 296.º [ 17 ] [ 18 ], compreendendo-se que será no processo principal em que as questões alusivas ao perdão de dívida serão colocadas, sendo que só em Estados- Membros da União Europeia é que pode assegurar-se a aplicação uniforme do Direito da União [ 19 ] [ 20 ], mormente quanto ao regime alusivo a tal matéria, atenta a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019 [ 21 ] [ 22 ], cujos destinatários são os Estados-Membros (art.º 36.º da Diretiva). Fica, assim, salvaguardada a igualdade de tratamento dos cidadãos no que concerte à possibilidade de o devedor insolvente obter um perdão de dívida (art.º 13.º da CRP) [ 23 ]; o deferimento do pedido de exoneração do passivo restante acarreta a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida (art.º 245.º, n.º 1) (....). O mesmo já não acontece quando a situação de insolvência transfronteiriça ou internacional se coloca relativamente ao Estado Português e outro Estado que se situa fora da União Europeia e/ou em que não é aplicável o Regulamento, não se vislumbrando razões para, nesses casos, relativamente ao processo que corre termos em Portugal, o devedor não poder usufruir do mesmo direito, beneficiando da mesma oportunidade de exoneração do passivo restante, se verificado o condicionalismo respetivo.»

As conclusões da recorrente procedem assim na totalidade.

III
Considerando o que se acaba de expor julga-se procedente a apelação e revoga-se o despacho impugnado que deverá ser substituído por outro que aprecie liminarmente o pedido de concessão do BEPR.
Sem custas

Lisboa, 28.02.2023
Teresa de Sousa Henriques
Isabel Brás Fonseca
Fátima Reis Silva

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[1] Relevante para a aferição dos pressupostos processuais
[2] Jornal Oficial da União Europeia, EUR-Lex de 12.11.2019, in eur-lex.europa.eu.
[3] O regulamento comunitário sobre insolvência - Uma introdução, Revista ordem advogado,A2006,VolII, in portal.oa.pt
[4] Doravante Regulamento.
[5]  Sublinhado acrescentado.
[6] Preceitos entretanto revogados pelo DL n.º79/2017,30.06,normativo que se destinou, entre outros fins, à adaptação ao Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência.»
[7] Vide Abrantes Geraldes e outros, CPC Anot, Almedina, 2018,696.
[8] Proc. n.º 2892/17.5T8VNF-A.G1.S2 (Ana Paula Boularot)
[9] Proc. n.º 3413/17.5TBLRA-B.L1 (Barateiro Martins)
[10] Proc. n.º 324/20.0T8LRA.C12 (Arlindo Oliveira) «Desde já, cumpre esclarecer que não fazendo a Suíça parte da União Europeia, não se pode aplicar in casu o Regulamento (UE) 2017/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Maio de 2015.»
[11] Proc. n.º 2943/22.1T8FNC-B.L1 (Isabel Fonseca) in www.dgsi.pt