Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
208/13.9TELSB-A.L1-9
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL
RECURSO
ADMISSIBILIDADE
IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/13/2015
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PARA O PRESIDENTE
Decisão: DEFERIMENTO
Sumário: Nos termos do disposto nos art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa e 401.º, n.º 1, al. b) e al. d), 2.ª parte, do C. P. Penal, e em aplicação do princípio processual comumente aceite, in dubio pro recurso, deve ser admitido o recurso de decisão do juiz de instrução interposto por interveniente em inquérito criminal que, não tendo sido constituído arguido, teve, todavia, intervenção nos autos, entregando provas relativas a atos por si praticados, por sua iniciativa e por determinação do Ministério Público, em consequência da qual requereu ao Juiz de Instrução e foi proferida a decisão recorrida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: M…., interveniente nos autos, cidadão e ministro de estado da República de …, reclama, nos termos do disposto no art.º 405.º do C. P. Penal, do despacho proferido pelo Tribunal Central de Instrução Criminal em 13/11/2014, o qual não admitiu o recurso por ele interposto de um despacho anterior, datado de 8/10/2014, que não conheceu de um requerimento por ele apresentado, estruturando-se esses despachos com fundamento, em síntese, em que o requerente, agora reclamante, não é sujeito processual, não sendo arguido, nem apresentando qualquer posição subjetiva juridicamente tutelável, pedindo que o recurso seja mandado admitir com fundamento, em síntese, em que embora nunca tenha sido constituído arguido, teve intervenção nos autos, pelo menos, como suspeito, tendo coligido provas em cumprimento de despacho do Ministério Público e tendo sido notificado do despacho de arquivamento do inquérito e de um despacho de intervenção hierárquica que ordenou a realização de outras diligências.

O despacho reclamado, a fls. 131 destes autos, não admitiu o recurso, por aplicação do disposto no art.º 401.º, n.º 1, do C. P. Penal, a contrario, com fundamento em que o recorrente “não é nestes autos um sujeito processual, nomeadamente não é arguido, nem apresenta aqui qualquer posição subjetiva juridicamente tutelável…”, tendo condenado o recorrente em taxa sancionatória excecional, nos termos dos art.ºs 521.º, n.º 2, do C. P. Penal e 531.º do C. P. Civil, por “…manifesta improcedência do requerido e da sua insistência perturbadora do andamento do processo…”.

O despacho recorrido, a fls. 77-78, não conheceu de um requerimento que lhe foi dirigido, decidindo que “…estando os autos em inquérito, não sendo o requerente um sujeito processual, ao abrigo do disposto nos art.ºs 263.º, n.º 1, 268.º e 269.º do Código de Processo Penal, declaro o Ministério Público competente para o conhecimento do requerido”.

Conhecendo.

O cerne da presente reclamação situa-se em saber se um interveniente processual em inquérito criminal que, não tendo as qualidades previstas no art.º 401.º, n.º 1, do C. P. Penal, teve, todavia, intervenção nos autos, entregando provas relativas a atos por si praticados, por sua iniciativa e por determinação do Ministério Público, em consequência dos quais requereu ao Juiz de Instrução, pode recorrer das decisões deste Juiz.

O art.º 401.º, n.º 1, do C. P. Penal, sob a epígrafe “legitimidade e interesse em agir”, confere o direito de recurso, pela positiva, dizendo que têm legitimidade para recorrer, ou seja, que podem recorrer de decisões judiciais, para além do Ministério Público (al. a)), o arguido e o assistente (al. b)), as partes civis (al. c)), aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias ou tiverem a defender um direito afetado pela decisão (al. d)).

O n.º 2 do mesmo preceito confere ou delimita o direito de recurso, agora pela negativa, dizendo que “não pode recorrer quem não tiver interesse em agir”.

Ora, esta segunda norma tanto pode interpretar-se como uma delimitação, pela negativa, do direito de recorrer conferido pelo n.º 1, fazendo acrescer a cada uma daquelas qualidades de intervenientes processuais (als. a) a c) e 1.ª parte da al. d)), o conceito de base civilista do “interesse em agir”, como interpretar-se no sentido de conferir o direito processual de recurso a todos aqueles que, em concreto, demonstrem esse mesmo “interesse em agir”.

Como nesta segunda asserção a regra deste n.º 2 constituiria uma mera explicitação do direito já conferido pelo parte final do n.º 1, do mesmo artigo 401.º, a todos aqueles que “tiverem a defender um direito afetado pela decisão”, convenhamos que a melhor interpretação deste n.º 2 se nos afigura aquela que o toma como critério de delimitação, pela negativa, do direito processual conferido pelo n.º 1 do mesmo preceito, no sentido de que, ainda que tenha uma daquelas qualidades, o interveniente não tem o direito de recorrer se “não tiver interesse em agir”.

Todavia, nesta mesma linha de raciocínio, afigura-se-nos que, relativamente ao último fundamento da existência do direito de recorrer estabelecido pela parte final do n.º 1, do art.º 401.º, - aqueles que tiverem a defender um direito afetado pela decisão – o critério sob o n.º 2 se anula a si próprio, tanto pela positiva, como pela negativa, pois todos aqueles que tiverem a defender um direito afetado pela decisão têm, afinal, interesse em agir e demonstrado o primeiro fica demonstrado o segundo.

Procedendo à subsunção do direito processual de recurso, assim delimitado, ao caso concreto, não havendo dúvidas sobre o direito de recurso do reclamante relativamente à condenação que constitui a segunda parte do despacho reclamado, com condenação em sanção pecuniária, uma vez que o mesmo resulta claramente da 1.ª parte da al. d), do n.º 1, do art.º 401.º - aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias – já se nos afigura poderem suscitar-se dúvidas sobre se a situação do reclamante se pode reconduzir ao fundamento, residual e genérico, do direito de recurso estabelecido pela 2.ª parte do preceito, a saber, por se tratar da defesa de um direito afetado pela decisão.

Note-se que este fundamento, residual e genérico, do direito de recurso em processo penal é comum ao processo civil, no qual “as pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias” (art.º 631.º, n.º 2, do C. P. Civil).

Duas serão, todavia, as objeções a fundar o direito de recurso do reclamante na norma residual da 2.ª parte, da al. d), do n.º 1, do art.º 401.º do C. P. Penal.

A primeira é que o exercício deste direito de recurso depende da concomitante demonstração da existência de um qualquer direito, como valor juridicamente protegido, e da sua afeção pela decisão recorrida.

A segunda é a que a posição e a intervenção do reclamante nos autos apresentam evidentes semelhantes com a figura processual do arguido, como todo aquele contra quem corre inquérito criminal por suspeita fundada da prática de crime e que preste declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal (art.º 58.º, n.º 1, al. a), do C. P. Penal).

Tanto quanto demonstram indiciariamente estes autos de reclamação, foi dirigido inquérito relativamente a atos do reclamante, por suspeita de crime e o mesmo teve intervenção nos autos oferecendo provas e entregando as que lhe foram pedidas.

É certo que o reclamante não foi constituído arguido mas, substancialmente, a sua posição nos autos parece ser a de arguido, assemelha-se à de arguido, ou seja, de pessoa contra quem foi dirigido processo-crime em fase de inquérito, por suspeita da prática de crime e que já se pronunciou perante entidade com funções investigatórias, mais se aproximando desta figura processual do que da figura do suspeito, definida no art.º 1.º, al. e), do C. P. Penal, como “…toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar”.

Como destes autos de reclamação consta, o reclamante é mais que suspeito porque teve intervenção nos autos e ofereceu e entregou provas e menos que arguido, nomeadamente, porque não foi constituído como tal.

Relativamente às duas objeções que acabámos de identificar, não se vislumbrando que o reclamante faça uma demonstração da existência de um seu direito concreto e da sua afeção pela decisão recorrida, para fundar o seu direito de recurso na 2.ª parte da al. d), do n.º 1, do art.º 401.º do C. P. Penal como, aliás, fazem notar o despacho recorrido, de 8/10/2014, e o despacho reclamado, de 13/11/2014, ao referirem que “o… requerente não sustenta, de qualquer forma, ao abrigo de que disposição processual apresenta o seu requerimento a este tribunal…”, afigura-se-nos que o mesmo se arroga o direito de recorrer, para defesa dos seus direitos, enquanto cidadão visado em inquérito criminal, em que não foi constituído arguido, mas no qual a sua intervenção se assemelha à intervenção própria de um arguido.

E, assim, o invocado direito de recurso, ancorando genericamente no direito constitucional de defesa em processo-crime, consagrado no art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, estrutura-se mais diretamente no art.º 401.º, n.º 1, al. b) e al. d), 2.ª parte, do C. P. Penal, entre o direito ao estatuto de arguido e a defesa de um direito afetado pela decisão.

Esta situação processual não se afigura isenta de dúvidas relativamente a este invocado direto de recurso.

A exponenciar esta situação de dúvida, o despacho recorrido, tanto quanto nos é dado verificar na análise perfunctória própria deste procedimento de reclamação, não decidiu nem deixou de decidir nenhuma das questões que lhe foi submetida, antes declarando o Ministério Público competente para decidir sobre o requerimento que a ele tribunal foi apresentado, o que se pode prefigurar como um non liquet, em face da obrigação de julgar, constitucionalmente cometida aos tribunais (art.º 202.º e sgts. da Constituição da República Portuguesa) e explicitamente prevista no art.º 8.º do C. Civil, o qual, sob a epígrafe, “Obrigação de julgar e dever de obediência à lei”, estabelece no seu n.º 1 que “O tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio”.  

Ora, esta situação de dúvida sobre o direto de recorrer, por parte do reclamante, em face do princípio processual comumente aceite, de in dubio pro recurso[1], deverá ser decidida no sentido da admissão do recurso, tanto mais quanto é certo que a admissão do recurso por via da decisão desta reclamação se configura como uma decisão provisória, suscetível de alteração pelo relator, nos termos do disposto no art.º 405.º, n.º 4, in fine, do C. P. Penal, no exercício dos poderes que lhe são cometidos pelo art.º 417.º, n.º 7, al. a), do C. P. Penal, e esta, por sua vez, suscetível de alteração pela conferência, mediante reclamação, nos termos do disposto no n.º 8, do art.º 417.º do C. P. Penal.

De fato, o princípio geral em matéria de recursos em processo penal é o estabelecido pelo art.º 399.º do C. P. Penal, nos termos do qual “É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”.

A irrecorribilidade do despacho de 8/10/2014 não é estabelecida por norma expressa que derrogue esse princípio geral, como estabelecido na parte final do preceito citado.

Perante a inexistência de norma que declaradamente afaste o direito de recurso e em situação de admissibilidade duvidosa em face dos preceitos que estabelecem a “legitimidade”, ou seja, a titularidade do direito de recurso, o recurso deve ser admitido, em aplicação do princípio in dubio pro recurso.

A admissão do recurso nestas circunstâncias apresenta a evidente vantagem processual de salvaguarda dos direitos individuais ao permitir que sobre a questão seja proferida ponderada decisão que defina a existência ou inexistência do direito de recurso, uma vez que, como referimos, a decisão que admita o recurso diretamente no tribunal recorrido ou por decisão de reclamação, nos termos do disposto no art.º 405.º do C. P. Penal, se configura como uma mera decisão provisória.

Por último importa ainda referir que a condenação em “taxa sancionatória excecional”, precisamente porque se estruturou primariamente na inexistência do direito de recorrer, seguirá o destino do despacho em que se insere e da presente reclamação, sendo agora revogada com a procedência da reclamação.

Nos termos expostos, se defere a reclamação, ordenando-se a admissão do recurso.

Custas pelo reclamante, que da reclamação retirou proveito.

Notifique.

Lisboa, 13 de janeiro de 2015.

(Orlando Nascimento – Vice-presidente)

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[1] E do princípio mais abrangente que dá pelo brocardo latino " favorablia ampliander et odiosa restringenda".