Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
276/25.0T8VFX-C.L1-1
Relator: PAULA CARDOSO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
VALOR DA CAUSA
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/12/2025
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário:
I- Ainda que tendo sido fixado, como valor da causa, em sede de sentença de declaração de insolvência, o valor de €1800,00, certo é que, por força do consagrado no art.º 248.º-A do CIRE, para efeitos processuais, no caso de recurso de decisões proferidas no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, o valor da causa é determinado pelo passivo a exonerar do devedor.
II- Por ser assim, não tendo sido fixado qualquer valor a tal incidente, nada obsta à admissibilidade do recurso interposto, aquele valor anteriormente fixado à causa, pois para efeitos do presente recurso deverá ser atendido, por determinação legal, o valor do passivo a exonerar (nos autos, no montante reconhecido de €41.800,11), o que poderá ser feito ope legis, e sem necessidade de decisão judicial.
III- Na fixação do rendimento indisponível para efeitos de procedimento de exoneração do passivo restante, deverá ter-se em conta as despesas que se afiguram abstratamente adequadas a assegurar uma vivência condigna da insolvente, num juízo de normalidade e experiência comum, e não as despesas que a mesma invoca como necessárias, sem prejuízo de serem atendidas despesas concretas e especiais, desde que se revelem justificadas.
IV- O montante mensal que deverá assim ser-lhe dispensado no período da cessão deverá corresponder ao mínimo necessário ao seu sustento digno e do seu agregado familiar; resultando dos autos que tal agregado é composto apenas por si, que é reformada e que vive em casa arrendada de uma amiga, afigura-se ajustado o valor fixado - de 1 (um) salário mínimo e 1/3, acrescido dos montantes que documentalmente comprove ter despendido com despesas médicas e medicamentosas - para lhe salvaguardar essa vivência condigna.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I-/ Relatório:
1. MT, com demais sinais nos autos, apresentou-se à insolvência, que foi declarada por sentença já transitada em julgado e, simultaneamente, deduziu pedido de exoneração do passivo restante.
2. Em petição inicial indicou, como valor da ação, o montante de €30.000,01 e apresentou a lista discriminada dos seus credores, tendo-se fixado na sentença declaratória de insolvência, como valor da causa, o montante de €1800,00, correspondente ao ativo declarado, sem prejuízo de ulterior atualização (art.º 15.º do CIRE).
3. O Sr. Administrador da Insolvência juntou relação de créditos reconhecidos no valor de €41.800,11 e, no relatório apresentado à luz do art.º 155.º do CIRE, pronunciou-se favoravelmente no que concerne ao despacho inicial de exoneração do passivo restante, ali considerando o valor de um Salário Mínimo Nacional (atualmente a €870,00) como ajustado para o sustento minimamente digno para a devedora e seu agregado familiar.
4. Foi proferida decisão, em 06/05/2025, que fixou o rendimento disponível para a insolvente em: 1 (um) salário mínimo e 1/3, acrescido dos montantes que documentalmente comprove ter despendido com despesas médicas e medicamentosas durante 12 (doze) meses. O apuramento dos valores a ceder no âmbito da fidúcia deve ser, em regra, mensal, salvo se o rendimento anual for inferior ao rendimento indisponível fixado pelo Tribunal vezes doze meses, caso excecional em que se deve proceder a apuramento anual. Nesta situação excecional, o apuramento mensal não acautela o mínimo de salvaguarda da dignidade de vida do agregado, sendo o rendimento excedente de alguns meses necessário para acautelar a insuficiência de receitas em outros períodos.
5. Inconformada, a insolvente interpôs recurso, que finalizou com as conclusões que aqui se sintetizam:
1- O Tribunal “a quo” não deu a devida relevância às despesas concretamente alegadas e demonstradas pela Recorrente e que resultam, igualmente, das regras da experiência comum, assim como também não valorizou a fase de elevada inflação da economia nacional, nem a consequente subida do preço dos bens essenciais e nem as consequências negativas da guerra entre a Rússia e a Ucrânia.
2- As despesas com a renda para habitação, no valor comparticipado de €350,00, de valor perfeitamente aceitável, não foi devidamente ponderada pelo Tribunal “a quo”, que não podia ignorar a imprescindibilidade da despesa com habitação no contexto de uma sobrevivência condigna.
3- O Tribunal “a quo” também não podia ter desconsiderado a existência e a imprescindibilidade da despesa referente a alimentação, no valor médio mensal de €750,00, invocada pela Recorrente, perfeitamente ajustada à taxa de inflação e que se traduz num valor médio diário significativamente baixo para quatro refeições mínimas básicas por dia, sem esquecer a condição de idosa (faixa etária superior a 70 anos) da Recorrente e suas necessidades acrescidas de cuidados de alimentação, com impacto direto na saúde funcional.
4- Também as despesas referentes a higiene, vestuário e calçado, no valor médio mensal de €100,00, num contexto de inflação e de subida dos preços não foi devidamente considerada, sem esquecer que a Recorrente está a iniciar uma etapa de reforma, com a inerente alteração da sua situação socioprofissional, pelo que, em ordem a contrariar a previsível quebra de laços sociais com impacto direto na sua saúde psicológica, é fundamental que fomente a sua reinserção na vida social, o que lhe exige uma aparência física cuidada, assim como uma boa apresentação, quer em termos de higiene, quer em termos de vestuário e calçado, que naturalmente vêm acompanhadas das respetivas despesas.
5- Relativamente às despesas referentes a eletricidade, água, gás e telecomunicações, no valor médio alegado de €150,00 mensais, não se mostra nada excessiva tendo em conta que o sector da energia tem sido um dos sectores muito afetados pela escalada de preços decorrente da inflação, não podendo a pobreza energética comprometer irreversivelmente a saúde da Recorrente, designadamente a sua saúde reumática, ortopédica e respiratória.
6- Em suma, a desconsideração do valor das mencionadas despesas, é, pois, o concreto ponto de facto que a Recorrente considera incorretamente julgado (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE).
7- Estando a decisão recorrida afetada de uma errada interpretação e aplicação da lei, violando o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente consagrado, pois que o valor das despesas necessárias e atendíveis a que a Recorrente tem de fazer face todos os meses ultrapassa o montante que lhe foi conferido pelo Tribunal “a quo” como o necessário para o seu sustento minimamente digno, não sendo assim feita a devida ponderação casuística das circunstâncias particulares da devedora, pois, face à situação factual particular da Recorrente e de modo a garantir a conformidade constitucional e prosseguir o espírito da Lei, deveria ter-lhe sido atribuído, a título de rendimento indisponível, pelo menos, o montante equivalente a €1.600,00, por se mostrar ser este o montante mínimo necessário para assegurar o seu sustento minimamente digno.
Nestes termos, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o despacho recorrido, fixando-se como o montante necessário para o sustento minimamente digno da Recorrente e do seu agregado familiar:
o montante equivalente a €1.600,00; ou, caso assim não se entenda, subsidiariamente,
o montante equivalente a €1.350,00, acrescido dos montantes documentalmente comprovados com despesas médicas e medicamentosas,
Excluindo-se o referido montante da cessão ao Fiduciário. Assim se fará JUSTIÇA!».
6. Não foram apresentadas contra-alegações.
7. Recebidos os autos neste tribunal, foi cumprido o contraditório sobre o facto de o valor fixado à ação ser inferior ao valor da alçada do Tribunal da 1ª instância e ao valor da sucumbência de que dependeria a recorribilidade da decisão recorrida.
8. Após pronúncia da Recorrente, cumpre agora apreciar e decidir, com dispensa da intervenção da conferência, dada a simplicidade das questões a decidir no presente recurso, analisados que estão os autos, que será assim julgado singular e sumariamente, tal como o permitem as disposições conjugadas dos arts.º 652.º n.º 1, al. c) e 656.º, ambos do CPC.
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II-/ Da admissibilidade legal do recurso interposto:
O procedimento de exoneração do passivo restante constitui um incidente do processo de insolvência em que é deduzido, encontrando-se regulado nos artigos 235.º a 248.º do CIRE.
Nas palavras de Salvador da Costa (Os Incidentes da Instância, 2.ª edição, pág. 8) no que se refere à temática dos incidentes em geral, «O incidente processual é a ocorrência extraordinária, acidental, estranha, surgida no desenvolvimento normal da relação jurídica processual que origine um processado próprio, isto é, com o mínimo de autonomia, ou noutra perspetiva, uma intercorrência processual secundária, configurada como episódica e eventual em relação ao processo próprio da ação principal ou do recurso. O incidente verdadeiro e próprio pressupõe, pois, em regra, a existência de uma questão a resolver que se configure como acessória e secundária face ao objeto da ação ou do recurso e como ocorrência anormal e com autonomia processual em relação ao processo principal.»
Donde, o procedimento de exoneração do passivo restante constitui efetivamente um incidente no processo de insolvência, que é - pode ser - suscitado a requerimento do devedor no âmbito daquele processo de insolvência.
Ora, a admissibilidade geral dos recursos interpostos em processo de insolvência, incluindo incidentes e apensos, encontra-se regulada no art.º 14.º do CIRE, e no disposto no art.º 629.º n.º 1 do CPC, este aplicável por força do consagrado no art.º 17.º daquele diploma legal.
Da aplicação conjugada de tais preceitos resulta que o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre (mais do que os €5.000,00 previstos no art.º 44.º n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26/08) e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.
Ainda que impenda sobre as partes o dever de indicação do valor, certo é que, compete sempre ao juiz fixar, em definitivo, o “valor processual da causa”, tal como resulta do art.º 306.º do CPC, o que deverá fazer em despacho saneador ou na sentença, e, sendo interposto recurso antes dessa fixação, no despacho referido no art.º 641.º do CPC.
E é precisamente com base nesse valor que se afere a aplicação do acima citado art.º 629.º n.º 1 do CPC para efeitos de recorribilidade das decisões judiciais.
No caso específico dos processos de insolvência, o valor da ação indicado na petição inicial, em função do ativo do insolvente, pode sofrer alterações por força da tramitação que lhe é própria, podendo o valor da causa começar por corresponder ao “valor do ativo do devedor indicado na petição”, sendo depois corrigido “logo que se verifique ser diferente o valor real”, tal como resulta do preceituado no art.º 15.º do CIRE, que determina a fixação do valor da causa para efeitos processuais.
Não obstante, a aplicação do aludido normativo em sede de procedimento incidental de exoneração, levou o Tribunal Constitucional, no âmbito do proc. n.º 70/2021 de 27/01/2021, a declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral «da norma resultante das disposições conjugadas do artigo 15.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, e do n.º 1 do artigo 678.º do Código de Processo Civil, na numeração anterior à vigência da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho - ou, em alternativa, do n.º 1 do artigo 629.º do Código de Processo Civil, na numeração resultante da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho - interpretados no sentido de que, no recurso de decisões proferidas no incidente de exoneração do passivo restante em processo de insolvência, o valor da causa para efeitos de relação com a alçada do tribunal de que se recorre é determinado pelo ativo do devedor».
Na sequência da declaração de tal inconstitucionalidade, o legislador, através da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, aditou o art.º 248.º-A ao CIRE, assim consignando que «Para efeitos processuais, no caso de recurso de decisões proferidas no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, o valor da causa é determinado pelo passivo a exonerar do devedor».
Pois bem, não compete a este tribunal alterar/rever ou decidir sobre o valor da causa, que tem que estar pacífico e sedimentado nos autos com vista a aferir da admissibilidade dos recursos interpostos, a não ser que o que esteja em discussão seja, precisamente, o despacho que fixou indevidamente tal valor.
No caso dos autos, e como resulta do relatório supra, foi fixado o valor da causa, na sentença de declaração de insolvência, em €1800,00, não sendo fixado qualquer valor ao incidente de exoneração nem aquando do despacho que admitiu o recurso interposto.
O art.º 304.º n.º 1 do CPC diz-nos que o valor dos incidentes é o da causa a que respeitam, salvo se o incidente tiver realmente valor diverso do da causa, porque neste caso o valor é determinado em conformidade com os artigos anteriores.
Ora, é precisamente essa a situação do caso de que aqui cuidamos, pois, o incidente de exoneração tem, como vimos, valor diverso do da causa, sendo determinado, por normativo especial, que, para efeitos processuais, no caso de recurso de decisões proferidas no âmbito desse incidente, o valor da causa é determinado pelo passivo a exonerar do devedor.
Não tendo sido fixado valor ao incidente da exoneração aquando do despacho de admissão do recurso intentado, e sendo certo que, por determinação legal, o mesmo fixar-se-á no valor do passivo a exonerar, nada obsta, pois, operando ope legis, e sem necessidade de decisão judicial, que o mesmo se fixe, para efeitos do recurso, no valor daquele passivo, em €41.800,11 (cfr. lista de créditos convertida em definitiva e junta aos autos como anexo ao requerimento do administrador de insolvência, datado de 31/03/2025, constante do apenso de reclamação de créditos), impondo-se assim a admissão da presente apelação (não se justificando sequer, sob pena de se praticarem atos inúteis, a baixa dos autos à 1ª Instância para fixação de um valor já determinado por lei), ainda que por razões diversas das invocadas pela Recorrente em sede de contraditório, quando ouvida sobre esta matéria.
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III-/ Fundamentação:
Na decisão que declarou a insolvência da Recorrente e na decisão agora recorrida, foi feita a ponderação da seguinte factualidade:
1- A Requerente nasceu em 2/12/54 e é viúva.
2- É reformada, aufere €700 de reforma e €1.100 de pensão de viuvez.
3- Reside com uma amiga em casa arrendada.
4- A requerente não possui património imobiliário ou mobiliário sujeito a registo de valor equiparável ao passivo.
5- Não tem outros rendimentos.
6- A requerente reconhece como seus credores os constantes da relação junta, pelos valores ali indicados, num total superior a € 50.000.
7- As causas da situação financeira e patrimonial em que se encontra prendem-se com termo de relação de longa data com companheiro que auxiliava o pagamento das dívidas.
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IV-/ Enquadramento jurídico:
Vem o presente recurso interposto da parte da sentença que, admitindo liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante, fixou à insolvente, como valor do rendimento mensal disponível, o montante de 1 (um) salário mínimo e 1/3.
Principia a Recorrente o seu recurso, como vimos, alegando que o Tribunal “a quo” não deu a devida relevância às despesas concretamente alegadas e por si demonstradas.
Não impugnou, contudo, a factualidade atendida na decisão recorrida, no sentido que a lei obriga, pois, em bom rigor, não deduziu impugnação contra a decisão da matéria de facto, não declarando, expressamente, pretender impugnar a mesma, não indicando os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados nem os meios probatórios que impunham decisão diversa, nem a decisão a ser proferida, não dando assim cumprimento ao disposto no art.º 640.º do CPC.
Seja como for, e em bom rigor, o por si alegado prende-se com “despesas médias mensais” que entende serem necessárias suportar para ter uma vida condigna, defendendo, em suma, que a decisão recorrida as desconsiderou, não as tendo em atenção no valor da retribuição que foi fixada.
Concluiu, pois, que a decisão recorrida padece de errada interpretação e aplicação da lei, na medida em que o montante correspondente a uma vez e 1/3 o salário mínimo nacional que lhe foi fixado, e que importa apenas em €1.160,00, mostra-se, claramente, insuficiente para as despesas a que tem de fazer face mensalmente e que ascendem a um total médio de €1.350,00.
Vejamos então.
Analisando o instituto da exoneração do passivo restante, previsto nos artigos 235.º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), verificamos, como escreve Catarina Serra (na obra “O Novo Regime Português da Insolvência - Uma Introdução”, págs. 73 e 74), que o mesmo tem como objetivo «a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua atividade económica».
Na pendência do período de cessão são assim impostas ao devedor obrigações, destacando-se a de, durante três anos (em face da alteração introduzida pela Lei n.º 9/2022 de 11/01, e que entrou em vigor no dia 11/04/2022), ceder os rendimentos disponíveis, que em cada momento serão determinados por contraposição com os rendimentos necessários a uma subsistência humana e socialmente condigna, que ao juiz cabe quantificar e fixar, constituindo estes os rendimentos que o devedor não está obrigado a ceder ao fiduciário nomeado.
Neste enquadramento, o montante mensal a fixar ao insolvente não visa assegurar o padrão de vida que possivelmente o mesmo teria antes da situação de insolvência, mas apenas assegurar-lhe uma vivência minimamente condigna, cabendo-lhe a si, por ser assim, e neste contexto, adequar-se à especial condição em que agora se encontra, ajustando, nessa medida, as suas despesas, os seus encargos e o seu nível de vida.
É o que resulta do estatuído pelo art.º 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE, ao excluir do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, durante o período de cessão, o montante “que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.
Como vemos, o legislador tem em atenção, como critério orientador, o salário mínimo nacional, consagrando, por um lado, um limite máximo para aquilo que julga ser o necessário para o sustento minimamente condigno do devedor e do seu agregado familiar (à partida, três salários mínimos nacionais), não estabelecendo, todavia, o aludido normativo, e por outro lado, um patamar mínimo para o razoavelmente necessário àquela vivência condigna. Nesta linha de pensamento, e apelando ao que subjaz ao procedimento de exoneração do passivo restante, sempre se imporia chamar à colação o princípio da dignidade da pessoa humana (art.º 1.º da Constituição da República Portuguesa, e art.º 25.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos) em ordem a fixar-se um valor que permita ao devedor e ao seu agregado familiar sobreviver de forma minimamente condigna. E, por ser assim, forçoso se torna também, na mesma ordem de raciocínio, ter como um valor mínimo indispensável a uma existência condigna o valor da remuneração mínima mensal garantida (art.º 273.º n.º 1 do Código do Trabalho).
Balizados esses valores, máximo e mínimo, será depois no caso concreto, e perante as circunstâncias de cada devedor e seu agregado, que deve ser fixado então o valor mínimo de retribuição indisponível, ou seja, daquela retribuição que o insolvente poderá contar para o seu dia a dia, ficando dispensado de a entregar ao fiduciário.
E para isso, diremos então, não interessará propriamente o valor que a devedora despende mensalmente com as suas despesas, mas sim o valor que necessita para viver com um mínimo de dignidade, sendo do senso comum que muitas das nossas despesas diárias podem ser comprimidas, devendo mesmo ser ajustadas à realidade que enfrentamos em cada momento das nossas vidas (Veja-se, neste sentido, o acórdão do Tribunal da RC de 04/02/2020, no proc. nº 2614/19.6T8LRA-C.C1 relatado por Barateiro Martins, disponível na página da dgsi).
Por ser assim, também não será muito relevante o valor dos rendimentos que a devedora aufere, pois tudo deve ser sopesado, sempre, por referência a padrões de normalidade e experiência comum, o que, de resto, está subjacente ao valor do próprio salário mínimo nacional, que procura, de alguma forma, acautelar, sem necessidade de concretizar, as despesas médias que cada um tem de suportar na sua vivência diária.
Ora, tendo por certo que, no corrente ano de 2025, o valor do salário mínimo nacional ascende a €870,00 (Decreto-Lei n.º 112/2024, de 19/12), e que foi fixado à insolvente, pela decisão recorrida, uma vez e 1/3 o salário mínimo, de rendimento indisponível, apuramos assim um total de €1.160,00, como o valor que a mesma poderá contar para a sua vida diária.
E tal valor, estamos em crer, é adequado à situação da insolvente e permite-lhe uma vivência digna, considerando que estamos perante uma pessoa de 70 anos de idade, reformada, que reside em casa de uma amiga.
Diz a mesma que não foram valorizadas as despesas que suporta com a renda para habitação, no valor de €350,00, bem como as demais despesas que afirma despender em média mensal, de €750,00 com alimentação, €100,00 com higiene, vestuário e calçado, €150,00 com eletricidade, água, gás e telecomunicações, num total global de €1350,00.
Não vemos que assim seja.
Em primeiro lugar, e na verdade, nenhuma documentação foi junta aos autos relativa ao valor despendido com a renda da casa (nem sequer sabemos, por não estar documentalmente comprovado, o valor total do arrendamento suportado nem que a Recorrente entregue à amiga, com quem vive, o valor de €350,00 euros mensais para tal habitação).
Ainda que não seja sequer discutível que o encargo com a habitação – mormente em caso de arrendamento – tenha que ser contabilizado para a fixação daquele rendimento disponível, tanto mais que consubstancia uma despesa fixa e necessária que, por norma, onera o agregado familiar e não é passível de ser ajustada, certo é que nos autos apenas sabemos que a insolvente vive com uma amiga em casa arrendada.
Diz a Recorrente, como vimos, que paga pela ocupação €350,00 euros. Pois bem, ainda que tal não resulte comprovado nos autos, sendo tal valor de renda absolutamente aceitável em face dos atualmente praticados no mercado de arrendamento, não vemos que tal despesa não possa ser suportada pelo valor que à Recorrente foi fixado como rendimento indisponível.
Com efeito, pago aquele valor, a Recorrente fica com o montante €810,00 para fazer frente às restantes despesas. Despesas que, inexistindo necessidades especiais ou particulares, são perfeitamente suportadas pelo valor fixado na decisão recorrida, tratando-se das despesas que, num juízo de normalidade e experiência comum, todos suportam (alimentação, higiene, vestuário e calçado, eletricidade, água, gás e telecomunicações) sem esquecer que devem agora ser ajustadas à nova realidade da devedora.
Não estando concretizado na lei o que se deve entender por “sustento minimamente digno“, tendo o legislador optado por um conceito aberto e indeterminado, e competindo assim ao julgador, na apreciação e ponderação casuística da situação, fixar um valor ajustado às necessidades daquele sustento, não vemos qualquer justificação para alterar o rendimento fixado na decisão recorrida, sopesando toda a argumentação aduzida, por o mesmo se afigurar absolutamente adequado às circunstâncias do caso.
Ainda que seja um facto notório que o país tem assistido a uma subida generalizada dos preços dos bens e serviços consumidos pelas famílias, não podemos esquecer que a insolvente tem que ajustar a sua vida ao padrão de normalidade subjacente à realidade sócio económica do país em que vive, designadamente, aos valores dos rendimentos auferidos pela maioria das pessoas, que, de resto, ainda que de forma modesta, provêm ao seu condigno sustento, num país em que o salário mínimo ascende apenas a €870,00. Por isso mesmo, o mínimo de sobrevivência a que apela a lei não tem necessariamente que coincidir ou ser igual às despesas apresentadas pelos devedores, que podem e devem, ajustar e comprimir algumas das despesas suportadas, na ordem do sacrifício que também se impõe fazer parente os seus credores.
O próprio AI, em sede de relatório, expressou que «MT, com 70 anos de idade vive, atualmente, na casa de uma amiga, na morada já identificada. É mãe de dois filhos maiores de idade a quem prestou auxílio financeiro no início das suas vidas independentes. Conforme referido supra, a insolvente tem como domicílio o prédio sito na Rua …. , não sendo titular do mesmo imóvel, por se tratar de uma habitação arrendada, pertencente a uma amiga, com vive. Para o sustento considerado minimamente digno para a devedora e seu agregado familiar, o Administrador da Insolvência propõem o montante de um Salário Mínimo Nacional, que corresponde atualmente a € 870,00 (oitocentos e setenta euros)».
Considerando o que fica referido, a matéria de facto constante dos autos não permite concluir que a decisão que fixou o rendimento indisponível da insolvente em montante equivalente a uma vez e 1/3 o salário mínimo (€1.160,00) não se mostre adequada e compatível com o sustento minimamente digno da devedora, pelo que tem o recurso que ser julgado improcedente.
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V-/
Decisão: Perante o exposto, julga-se a presente apelação totalmente improcedente, confirmando-se, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 12/11/2025
Paula Cardoso