Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
508/20.1PBLRS.L1-5
Relator: SANDRA OLIVEIRA PINTO
Descritores: NULIDADE DO ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
INDICAÇÃO DOS MOTIVOS DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Sumário:
I- O dever de fundamentação em matéria de facto mostrar-se-á cumprido quando do texto da decisão se depreenda, não apenas a matéria de facto provada e não provada (sujeita a enumeração, ou seja, com indicação dos factos um a um), mas também a expressa explicitação do porquê dessa opção (decisão) tomada, o que se alcança através da indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, isto é, dando-se a conhecer as razões pelas quais se valorou ou não valorou as provas e a forma como estas foram interpretadas, impondo-se ainda, obviamente, o tratamento jurídico dos factos apurados, com subsunção dos mesmos ao direito aplicável, sendo que em caso de condenação está o tribunal obrigado, como não podia deixar de ser, à determinação motivada da pena ou penas a cominar (singulares, conjunta e acessória), posto o que deve proceder à indicação expressa da decisão final, com indicação das normas que lhe subjazem.
II- No que especificamente se reporta aos motivos de direito que fundamentam a decisão, está em causa a fundamentação de direito concebida como a conclusão com relevância jurídica do acontecimento factual reconduzida a uma norma incriminadora, a exposição dos critérios interpretativos onde o juiz se escuda para aplicar a lei. O que releva, em termos de fundamentação, é que aos destinatários da decisão seja fornecida indicação clara das razões pelas quais o tribunal entende que os factos que apurou preenchem o identificado tipo de ilícito.
III- Porque está em causa nulidade expressamente prevista enquanto tal no artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal, não é a falta em questão suscetível de retificação nos termos previstos no artigo 380º, nº 1 do mesmo diploma legal.
IV- Não é possível suprir neste Tribunal de recurso a nulidade que afeta a decisão, na medida em que se trata da total omissão de pronúncia sobre o enquadramento jurídico-penal dos factos potencialmente integradores do crime de violação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
O arguido AA, natural de ..., filho de BB e CC, nascido em ... de ... de 1981, divorciado, titular do CC nº …, residente na ..., foi julgado no processo comum coletivo nº 508/20.1PBLRS do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Criminal de Loures – Juiz 2, tendo sido condenado por acórdão datado de 23.05.2025, “pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, a) e c) e nº 2 a), do Código Penal na pena de 3 (três) anos de prisão. (…) pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, e) e nº 2, a), do Código Penal na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão. (…) pela prática de um crime de violação agravada, p. e p. pelos arts. 164º, nº 2, a), e 177º, nº 1, al. b) do código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão. (…) pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, a), do código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão. (…) em cúmulo jurídico das referidas penas, na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão”.
O arguido foi, ainda, condenado “nas penas acessórias de: a. Proibição de contactos com a vítima, pelo período de cinco anos, com efetivo afastamento da sua atual residência/local de trabalho, bem como qualquer outra em que venha a habitar, a ser fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância. b. Proibição de uso e porte de armas, pelo período de cinco anos; e c. Obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, em cinco anos”. Mais foi condenado “a pagar à ofendida DD indemnização no valor de 12.000,00€ (doze mil euros). (…) a pagar à ofendida EE indemnização no valor de 5.000,00€ (cinco mil euros)”.
Inconformado, o arguido interpôs recurso do acórdão condenatório, pedindo que, pela respetiva procedência, seja aquela decisão revogada, com a sua consequente absolvição. Da respetiva motivação extraiu as seguintes conclusões:
“1.º A sentença refere que concerne aos pontos 1 a 3 e 22 o tribunal ponderou os elementos documentais junto aos autos, o que aceita e confirma.
2.º O depoimento da Assistente DD, é um depoimento tendencioso, porque estamos a falar situações pessoais, onde teremos sempre algo a beneficiar, nunca podendo por si só ser prova de factos que foram alegados pela mesma na queixa-crime.
3.º O depoimento da testemunha FF, irmã da assistente DD, conforme foi referido em sentença, tem inconsistências, em comparação com o depoimento da Assistente DD, bem como com as outras testemunhas, pelo que não deveria ser valorado com meio de prova, conforme referido ponto 7 das motivações
4.º Ainda no ponto 9, indica a sentença que “DD em casa de seus pais, sita na ..., o arguido telefonou-lhe e disse “façam as malas e ponham-se no olho da rua”, a assistente não estava em casa, bastaria ter mudado a fechadura e a esma não entrava
5.º É referido que a testemunha GG, mãe de DD, ouviu o que o arguido disse, Em ponto algum da sentença é indicado que o telefone estaria em alta voz, como ouviu????
6.º Não foi encontrada, apreendida, ou verificada a existência de qualquer arma de fogo, nas diligencia ordenadas pelo Ministério Publico e delegadas nos OPC, pelo que, o Tribunal nunca poderia das este facto como provado;
7.º Do ponto 11 ao 14 da sentença, relativamente ao crime de violação, refere factos alegadamente ocorridos no dia .../.../2025 às 8 horas da manhã, o relatório de urgência tem a hora de admissão no ás 00:21 do dia .../.../2025, o qual não apresenta qualquer evidência da violação, não existem vestígios de esperma, nem apresenta qualquer lesão,
8.º O arguido, como descreve a sentença, admitiu ter tido relações sexuais com a assistente, e que foram consensuais, devendo o mesmo ser absolvido do crime de violação agravada
9.º A Sentença refere na motivação dos factos provados que, “…não logrando explicar porque tal haveria de ter ocorrido numa fase em que o relacionamento afetivo e físico entre os cônjuges já havia terminado há muito, como igualmente admite.”
10.º O tribunal queria do arguido uma explicação, sobre a relação sexual consensual com a esposa, quando a relação havia terminado, todos sabemos que não existe uma explicação, quantos casais, depois de terem terminado, não se envolvem sexualmente, as relações, não são lineares, tem altos e baixos, não existe um protocolo, um procedimento, as coisas acontecem por si só, não tem que existir uma razão, uma explicação.
11.º No ponto 19 da sentença, são descritas que o arguido terá proferido relativamente á filha, tais expressões, foram alicerçadas no depoimento para memória futura, mas, segundo o arguido tal não corresponde á verdade, o arguido referiu ainda, que a filha sempre foi magra, e nunca lhe referiu tais expressões.
12.º Nos pontos 23, 24, 28, 29, 30 e 31 da sentença, vem referir a intenção do arguido, na alegada pratica dos factos dos pontos supra mencionados, mas, na alínea r) dos factos não provados, vem referir que é facto não provado “Bem sabia e não podia ignorar o arguido que tais expressões eram idóneas e adequadas a fazendo-a recear tanto por sua vida como pelas vidas de sua mãe e avós maternos, causar temor e inquietação à vítima EE”, ou seja, vem indicar que relativamente a EE, nunca houve intenção do arguido de a magoar, perturbar, inquietar o amedrontar.
13.º Tendo o Tribunal dado este facto como não provado, o crime de violência domestica contra a EE, deve ser absolvido do mesmo, por falta de elementos subjetivos, a intenção do agente
14.º Na fundamentação de direito, a sentença, não refere o crime de violação agravada, pelo qual o arguido vem condenado, existindo assim uma falta de fundamentação,
15.º “A exigência constitucional foi transposta para a nossa lei processual penal, prescrevendo o n° 5 do art.º 97° que "os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão ". Porque inexiste norma que, de forma genérica, comine a nulidade dos atos decisórios não fundamentados, eles só serão nulos nos casos em que a lei o determine expressamente, (como sucede relativamente à sentença,” conforme acórdão Tribunal Relação de Lisboa, processo 209.9TDLSB.L1
16.º Conforme acórdão do Supremo Tribunal de Justiça processo 7129/18.8BRG.G1.S1 onde foi relator o Sr. Juiz Conselheiro Oliveira Abreu “A nulidade em razão da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando que impõe ao Tribunal o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes. III. Só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil.” Aplicável por remissão do artigo 4 do Código Processo Penal,
17.º Existe uma falta absoluta de fundamentação de direito relativamente ao crime de violação agravada, nos termos do artigo 615.º Código Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 4 do Código Processo Penal, a sentença é nula;
18.º Não existindo qualquer evidência no relatório medico, ou seja, existência de lesões ou esperma, não pode o Tribunal dar como provada a existência do crime de violação agravada, pelo que o mesmo deve ser absolvido do mesmo.
19.º Não existindo intenção, conforme é referido na Sentença, nos factos não provados alínea r), deve o arguido ser absolvido do crime de violência domestica contra EE;
20.º Relativamente á moldura penal aplicável, a própria política criminal manda favorecer o tratamento penal dos agentes primários, isto porque considera, que as condições económicas e sociais e familiares do arguido, são uma mais-valia para a sua vida em sociedade, o arguido é primário, trabalha, tem uma nova companheira, está inserido social e culturalmente na sociedade, e como tal, se sofrer pena de prisão efetiva, vai perder o vinculo social e cultural, perder o seu emprego, e quem sabe a sua companheira, não existe qualquer razão valida, para que se coloque o arguido em prisão efetiva,
21.º O próprio tribunal nas condições económicas e sociais do arguido, … Aquando da entrevista neste serviço, o arguido fez-se acompanhar pela filha, EE, de 15 anos, também ofendida nos autos, tendo justificado a presença da menor no sentido de esclarecer a sua condição de pai e dar a conhecer a relação afetiva que continua a manter com a filha, mas também pelo facto da menor se encontrar a passar férias consigo. Quando abordámos a menor no sentido de perceber se a mesma estaria ali de livre vontade, obtivemos resposta emocionalmente positiva, embora fosse notório o desconforto provocado pela separação dos pais, que a obriga a conviver com condições habitacionais muito distintas, já que partilha com a progenitora um sótão existente na casa dos avós maternos.
33.º E conclui o relatório ““O arguido apresenta uma narrativa na qual estão presentes valores e normas sociais que vão de encontro ao pensamento vigente na sociedade, revelando competências pessoais e sociais e capacidade crítica face a comportamentos que se distanciam da normatividade.”.
34.º Devendo em consequência ser a decisão da qual se recorre revogada e substituída por outra que absolva o arguido/recorrente dos crimes violência domestica contra EE, e do crime de violação agravada contra DD, bem como as penas reduzidas porque o arguido conforme referido no presente recurso, bem como no relatório social, o arguido é primário, encontra-se social, familiar e culturalmente inserido na sociedade, fazendo se assim a costumada justiça.
Nestes termos, e nos demais de Direito que V.Exas., doutamente suprirão deverá o presente recurso ser julgado procedente e em consequência deverá a douta decisão proferida ser revogada e substituída por outra, absolva o arguido/recorrente dos crimes violência domestica contra EE, e do crime de violação agravada contra DD, bem como as penas reduzidas porque o arguido conforme referido no presente recurso, bem como no relatório social, o arguido é primário, encontra-se social, familiar e culturalmente inserido na sociedade.
Assim se fazendo a costumada justiça.”
*
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
O Ministério Público apresentou resposta, concluindo do seguinte modo:
“(…)
2 - Da análise das alegações de recurso e, mais concretamente, das suas conclusões, que como é consabido delimitam o objecto do recurso, constata-se que, no essencial, as questões a dirimir se reconduzem a 3 (três), a saber: 1) Da apreciação e valoração da prova /impugnação da matéria de facto; 2) Da falta de fundamentação de Direito quanto ao crime de violação agravada; 3) Da medida da pena.
3 - O arguido entende que não foi feita prova que tenha praticado o crime de crime de violência doméstica contra EE, e do crime de violação agravada contra DD, pretendendo impugnar a matéria de facto.
4 - O Recorrente limita-se a analisar as declarações da assistente DD, os depoimentos da testemunha FF e da testemunha GG, bem como as declarações prestadas para memória futura pela ofendida EE, afirmando, em síntese, que se trata de declarações tendenciosas e depoimentos pouco credíveis e, não mereciam, por conseguinte, o crédito que lhes foi atribuído.
5 - Pura e simplesmente pretende afastar a valoração de tais declarações e depoimentos das testemunhas, para concluir que tais depoimentos enfatizam múltiplas contradições e não são suficientemente credíveis e isentos para o Tribunal concluir pela prova dos factos, impondo-se, na sua opinião uma decisão diversa daquela que o Tribunal tomou, não observando, na nossa perspectiva, o preceituado no n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
6 - O Recorrente pretende impugnar a formação da convicção do Tribunal, que à luz das regras da experiência comum considerou, para além do mais, decisivas as declarações da assistente prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, e das restantes testemunhas também inquiridas nesta sede e que se encontram gravadas, e, ainda, as declarações para memória futura prestadas pela menor EE, as quais demonstraram ter vivenciado tais factos.
7 - A leitura que o Recorrente faz não abala, salvo melhor opinião, a consistência e coerência da fundamentação da matéria de facto, onde o exame crítico da prova produzida revela o raciocínio lógico-dedutivo seguido e o porquê, a medida e a extensão da credibilidade que mereceram (ou não mereceram) os aludidos meios de prova.
8 - Com efeito, a douta decisão recorrida mostra-se bem fundamentada, de facto e de direito, no que concerne à indicação dos factos provados, não provados e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção, tendo o Tribunal a quo indicado os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram e explicitado o modo que o levou a proferir a decisão no sentido da condenação do arguido, imputando-lhe os factos que preenchem os elementos objectivo e subjectivo do crime de violência doméstica em que é ofendida a EE.
9 - Em consequência, não se mostra violado o preceituado nos artigos 127º e 412º, nº 3 do Código de Processo Penal, pois inexistem factos incorrectamente julgados, não colhendo a interpretação dada pelo ora Recorrente à prova produzida, no sentido da absolvição estando em causa o crime de violência doméstica em que foi condenado, cometido contra a ofendida EE.
10 - Invoca também o Recorrente a falta de fundamentação de direito do Acórdão, no que respeita ao crime de violação agravada em que é ofendida a DD, pelo qual foi também foi condenado.
11 - O artigo 374º, nº2 do Código de Processo Penal, estabelece os requisitos da sentença, sendo que no seu nº 2 estabelece que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
12 - Por sua vez dispõe o artigo 379º, nº1, al. a) daquele diploma legal, que a sentença é nula, além do mais, quando não contiver as menções referidas no nº2 do artigo 374º. O dever de fundamentação das decisões judiciais resulta, desde logo, da imposição constitucional prevista no nº 1 do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa.
13 - A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido (“fundamentaram”) a decisão, pois que as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de processo Penal, III, pág. 289).
14 - Da leitura do acórdão recorrido, constata-se ausência de fundamentação de direito, no que respeita à condenação do recorrente pelo crime de violação agravada em que é ofendida DD, subsumível aos factos dados como provados, pontos 11 a 14, sendo que o descrito circunstancialismo poderá dificultar, no nosso entendimento, o recorrente de sindicar de forma cabal tal factualidade.
15 - Entendemos, por isso, que o Tribunal a quo não deu, cumprimento ao disposto no art. 374.º, n.º 2, do CPP, padecendo, nesta parte, o acórdão de nulidade nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, assistindo razão ao recorrente, não obstante, tal se nos afigurar que constitui lapso, uma vez que o acórdão recorrido, na parte a que se refere à “E. DOSIMETRIA DAS PENAS” faz alusão à pena de prisão abstrata de 4 a 13 anos aplicável ao crime de violação agravada, pelo qual o arguido também foi condenado.
16 - O Tribunal Colectivo decide, pelos motivos melhor enunciados no acórdão, pela aplicação, respectivamente de pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão. Todavia, considerando o anteriormente referido, no que respeita ao crime de violação agravada, em que o arguido foi condenado na pena parcelar de 5 (cinco) anos de prisão e, que, quanto a este crime poderá vir a ser declarada a nulidade do acórdão recorrido, por insuficiente fundamentação de direito, de harmonia com o disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 379, com referência ao artigo 374.º, n.º 2, ambos do CPP., admite-se que a pena única em que o arguido foi condenado, possa vir a ser alterada/reduzida.
Por tudo o que se disse, parece-nos que o recurso poderá ser julgado parcialmente procedente, declarando-se a nulidade do acórdão, na parte em que condenou o arguido pela prática de um crime de violação agravada contra a assistente DD e, consequentemente, alterar/reduzir a pena única em que o mesmo foi condenado, mantendo-se no mais, o douto acórdão recorrido.
Contudo, V. Ex.ªs decidindo farão Justiça!”
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Uma vez remetidos os autos a este Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416º do Código de Processo Penal, emitiu parecer, nos seguintes termos:
“Analisadas as conclusões do recurso facilmente se constata que o recorrente não cumpriu o ónus de impugnação especificada, em obediência ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, não satisfazendo as conclusões apresentadas, a exigência da tríplice especificação legalmente imposta, nos casos de impugnação ampla.
E, por outro lado, uma leitura da motivação resulta igualmente a falência recursiva.
Na verdade, o recorrente apenas indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas não enuncia os elementos probatórios que no seu entender apontam o entendimento por si propugnado, não refere as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos, limitando-se a negar ele próprio, o que foi dito.
Por outro lado, não explica os motivos que impõem uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal que formou a sua convicção à luz das regras da experiência comum e considerou, para além do mais, decisivas as declarações da assistente prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, e das restantes testemunhas também inquiridas nesta sede e que se encontram gravadas, e, ainda, as declarações para memória futura prestadas pela menor EE, as quais demonstraram ter vivenciado tais factos.
Assim sendo, o recurso da matéria de facto afigura-se-nos manifestamente improcedente devendo ser rejeitado.
Quanto à fundamentação relativamente ao crime de violação agravada, em que é ofendida DD, subsumível aos factos dados como provados nos pontos 11 a 14 e 25, pode ler-se no acórdão “No respeitante aos pontos 11. a 14. relevou outrossim o depoimento da ofendida DD que descreveu os factos de modo desapaixonado, ainda que de modo algo emotivo, o que resulta consentâneo com a normalidade das coisas, descrevendo o ocorrido sem incorrer em incongruências. O referido pela ofendida DD mostra-se corroborado pelo arguido na parte em que admite ter tido relações sexuais com a ofendida, não obstante as repute de consensuais e localizadas na noite anterior (…).
E ainda: “Ao agir da forma descrita de 11. a 14., o arguido atuou com o propósito logrado de constranger a vítima DD a ter ato de cópula consigo, bem sabendo que a mesma não queria que o fizesse.
Quanto à fundamentação de Direito, em concreto, relativamente ao aludido crime, o acórdão refere apenas que “O crime de violação agravada perpetrado pelo arguido é punido com pena de prisão de 4 a 13 anos”, e na sua dosimetria faz constar, “Pela prática do crime de violação agravada perpetrado na pessoa de DD a pena de 5 anos de prisão” para na parte decisória concretizar “e) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de violação agravada, p. e p. pelos arts. 164º, nº 2, a), e 177º, nº 1, al. b) do código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.” E em cúmulo Jurídico: “entendemos ser de concretizar em 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão pena única aplicável ao presente cúmulo.
Salvo o devido respeito, esta fundamentação, apesar de não ser perfeita e de não seguir a sequência e o caminho escolhido para os demais crimes, permite ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial.
A não transcrição das normas constantes dos citados arts. 164º, nº 2, a), e 177º, nº 1, al. b) do CP na fundamentação de Direito constituirá, no caso concreto, apenas um erro material da sentença (cfr. Relatório/Fundamentação/Dispositivo e a vontade real do julgador), qualificável como lapso manifesto retificável (art. 380.º, n.º 1, al. b) CPP), cuja correção não implicará uma modificação essencial da decisão.
Na realidade, analisada a sentença recorrida, constata-se que nela estão indicados os factos provados e os não provados, as provas em que o Tribunal a quo se baseou para dar como assentes os factos, a análise critica dessas mesmas provas, os motivos de direito que fundamentam a condenação e a escolha da natureza da pena e a determinação da sua medida concreta. Tudo em conformidade com o disposto nos nºs 2 e 3 al. a) e b) do artº 374º do C. P. Penal. Por seu turno, a decisão recorrida também não condenou o recorrente por factos diversos daqueles descritos na acusação e não deixou de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.
Posto isto, parece-nos de concluir que o Tribunal a quo, ainda que de forma deficiente, deu cumprimento ao disposto no art. 374.º, n.º 2, do CPP e que o acórdão não padece de nulidade nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.
Em consequência, afigura-se-nos que, apesar da apontada deficiência (suscetível de correção) o douto acórdão está devidamente fundamentado e deverá improceder a pretensão do arguido, mantendo-se também as penas parcelares e única aplicadas.”
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, tendo o arguido apresentado resposta.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II. Questões a decidir
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – o acórdão proferido nos autos – as questões a examinar e decidir prendem-se com:
- erro de julgamento quanto aos factos integradores do crime de violação agravada e do crime de violência doméstica que tem como vítima a ofendida EE;
- nulidade, por falta de fundamentação, quanto ao crime de violação agravada;
- erro de direito quanto à escolha e determinação da medida da pena, reputada excessiva.
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III. Da decisão recorrida
Da decisão recorrida, com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta o seguinte (transcrevemos):
“II - Fundamentação de facto
A. Factos Provados
1. DD é filha de HH e de II.
2. O arguido e DD iniciaram relação amorosa no ano de 2004, da qual nasceu, em .../.../2010, EE, tendo o arguido e DD casado em .../.../2010.
3. O arguido, DD e a filha, residiriam na ....
4. Durante o período de coabitação, em várias ocasiões, no domicílio comum e na presença de EE, o arguido dirigiu a DD as seguintes expressões: “vaca”, “puta”, “puta do caralho”, “atrasada mental”, “hipopótamo”, “vai-te tratar”, “tu não vales nada”, “preguiçosa”, “estúpida”, “gorda”, “Popota” e “Hipopótamo”.
5. Em data não apurada, mas quando EE tinha 4 anos (2014/2015), DD fazia-se transportar em veículo automóvel conduzido pelo arguido, em local não apurado, provindos de uma superfície comercial, quando o arguido lhe disse “um dia destes espeto o carro contra a parede”, enquanto imprimia velocidade acrescida à marcha do veículo.
6. Em data não apurada, de ... ou 2016, DD disse ao arguido que pretendia divorciar-se do mesmo, após o que, por várias vezes, o arguido disse a DD “se fores embora tiro-te a miúda e nunca mais a vais ver”, “se me deixares nunca mais vês a criança, tu não tens capacidade para tomar conta de uma criança”.
7. Em data não apurada, quando EE tinha cinco ou seis anos de idade (2015/2017), esta e seus pais encontravam-se em casa quando, em contexto de discussão, na presença de EE, o arguido apontou uma faca a DD, após o que mandou a filha para o quarto.
8. A partir do ano de 2019, em várias ocasiões, em casa, o arguido declarou a DD “dou-te um tiro na cabeça”.
9. Em ... de 2020, estando DD em casa de seus pais, sita na ..., o arguido telefonou-lhe e disse “façam as malas e ponham-se no olho da rua”, na sequência do que, GG, que ouviu o que o arguido disse, lhe pediu que se acalmasse, ao que o arguido respondeu: “vou buscar uma arma à carpintaria e vou-vos matar, seus filhos da puta”.
10. Receosa do que pudesse suceder, DD pediu a sua irmã FF que a acompanhasse a casa, nesse dia, o que esta fez.
11. No dia .../.../2020, pelas 08h00, DD dormia na cama, em casa, em decúbito lateral, quando acordou por o arguido lhe estar a despir as cuecas, na sequência do que se virou de barriga para cima e tentou afastar o arguido.
12. Não obstante, o arguido pressionou o seu corpo sobre o de DD, assim a deixando imobilizada e incapaz de lhe oferecer qualquer resistência, e de imediato penetrou-a na vagina com o pénis.
13. Enquanto tal sucedia, DD disse ao arguido para parar quieto, o que este ignorou, tendo continuado a penetrá-la.
14. Volvidos alguns momentos, o arguido afastou-se de DD e dirigiu-se à casa de banho, após o que voltou para junto de DD, que permanecia deitada, e disse-lhe “isto não aconteceu, não aconteceu nada aqui”.
15. DD, nesse dia, saiu de casa e foi viver, com EE, na casa de seus pais.
16. Entre o final de... de 2020 e .../.../2020, o arguido, por várias vezes, deslocou-se junto da casa dos pais de DD e passou à frente da mesma, repetidas vezes, ao volante de veículo automóvel.
17. Em várias ocasiões, a partir, pelo menos dos quatro anos de EE (2014/2015), designadamente em casa, o arguido desferiu pancadas com as mãos abertas, no rosto, nas costas e nas nádegas da mesma.
18. Em data não apurada, quando EE contava cerca de oito anos de idade (2018/2019), a mesma e seus pais encontravam-se em gozo de férias, em unidade hoteleira em ..., quando o arguido, irado com o comportamento de EE, que reputava desadequado, desferiu uma pancada com a mão aberta nas nádegas de sua filha, causando-lhe dores e hematomas.
19. Em várias ocasiões, designadamente na casa onde EE vivia com os pais, o arguido declarou a sua filha EE “és lontra”, “tens uma barriga que mete nojo”, “burra”, “gorda”, “estúpida”, “atrasada mental”, “baleia”, “cachalote”, “vou-te pôr num colégio interno e nunca mais vês o pai nem a mãe”, “vou atirar o Riscas pela janela”, referindo-se ao gato de estimação da filha.
20. Em data não apurada de finais de ... de 2020, encontrando-se o arguido, EE e DD em casa, na sequência de um comentário de EE, o arguido disse-lhe “para mim tu morreste”.
21. No dia .../.../2020, pelas 12h50, HH recolheu sua neta EE, junto do estabelecimento escolar que esta à altura frequentava, sito em ..., e dirigiu-se com a mesma ao domicílio comum, tripulando o respetivo veículo automóvel.
22. O casamento do arguido e de DD, foi dissolvido por divórcio a .../.../2020.
23. Ao dirigir as palavras referidas em 4., 9. e 14. a DD, teve o arguido o propósito logrado de a ofender e humilhar, bem sabendo que as mesmas eram adequadas para tal.
24. Ao dirigir as palavras referidas em 5. e 8. a DD e ao apontar-lhe a faca, como referido em 7., teve o arguido o propósito logrado de lhe causar medo e inquietação, bem sabendo que as mesmas eram adequadas para tal.
25. Ao agir da forma descrita de 11. a 14., o arguido atuou com o propósito logrado de constranger a vítima DD a ter ato de cópula consigo, bem sabendo que a mesma não queria que o fizesse.
26. O arguido sabia que as suas ações eram dirigidas a pessoa com quem vivia, com quem estava casado e que era mãe de sua filha.
27. O arguido sabia que sua filha EE estava presente nas situações referidas em 4. e 7..
28. Ao agir da forma descrita em 17. e 18., teve o arguido o propósito logrado de ofender a integridade física de EE.
29. Ao dirigir as palavras referidas em 19. e 20. a EE, teve o arguido o propósito logrado de a ofender e humilhar, bem sabendo que as mesmas eram adequadas para tal.
30. O arguido sabia que as suas ações eram dirigidas à pessoa de sua filha, com quem vivia.
31. Ao dirigir as palavras referidas em 9. a GG teve o arguido o propósito logrado de lhe causar medo e inquietação, bem sabendo que as mesmas eram adequadas para tal.
32. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal.
33. Do relatório social do arguido consta, com relevo para a decisão, que:
1 – CONDIÇÕES PESSOAIS E SOCIAIS
Face à data da dos factos, o contexto vivencial de AA regista alterações de relevo. No presente reside na morada constante nos autos, com a nova companheira, com quem tem relacionamento desde ... de 2021. Habitam um T5, apartamento que pertence ao progenitor do arguido, dono do prédio, onde vive e onde tem diversos fogos arrendados.
AA e a vítima DD, após 6 anos de namoro, contraíram matrimonio no ano de 2010. Do relacionamento resultou uma filha em comum, nascida no mesmo ano do casamento, cerimónia na qual foi batizada. Em 2020, o casal dissolveu a união marital, tendo a responsabilidades parentais ficado definidas em regime informal, mas com a guarda entregue à progenitora.
No que toca ao período de vigência da união conjugal, AA refere que os problemas relacionais só surgiram após vários anos de entendimento e que atribui a comportamentos da ex-companheira. Embora admita que algumas discussões foram pontuadas por ofensas verbais, rejeita os comportamentos de agressividade, nomeadamente agressões à sua filha e ameaças à ofendida e da sua família (sogros).
Relativamente à atual interação com a ofendida DD, AA indica que mantem contactos com a mesma (telefónicos, presenciais), sempre que que necessita de tratar de assuntos relacionados com a filha de ambos, não existindo conflitos, tensões ou animosidades. A situação descrita não foi possível confirmar, tendo em conta que não conseguimos contactar a ex-companheira.
Aquando da entrevista neste serviço, o arguido fez-se acompanhar pela filha, EE, de 15 anos, também ofendida nos autos, tendo justificado a presença da menor no sentido de esclarecer a sua condição de pai e dar a conhecer a relação afetiva que continua a manter com a filha, mas também pelo facto da menor se encontrar a passar férias consigo. Quando abordámos a menor no sentido de perceber se a mesma estaria ali de livre vontade, obtivemos resposta emocionalmente positiva, embora fosse notório o desconforto provocado pela separação dos pais, que a obriga a conviver com condições habitacionais muito distintas, já que partilha com a progenitora um sótão existente na casa dos avós maternos.
AA falou da excelente relação que a sua filha mantem com a sua atual companheira, ligação corroborada pela descendente. Em contexto mais reservado, o arguido referiu que a filha esta sinalizada pela CPCJ, devido a eventual agressão sexual ocorrida na escola, o que a levou a ter comportamentos desadequados, infringindo dor a si própria, por via da automutilação, situação que levou a acompanhamento psicológico.
No contacto estabelecido com o progenitor do arguido, este afirmou que a neta está frequentemente com o pai, com quem se sente feliz, já que este vive numa casa com espaço, um T5, onde a menor tem o seu quarto, ambiente distinto do espaço exíguo que partilha com a mãe. Relativamente à relação conjugal referiu que nunca presenciou ou ouviu qualquer discussão.
Profissionalmente, à data dos factos, AA tinha atividade laboral como pintor à pistola na ..., fábrica que outrora foi do progenitor, mas que atualmente lhe pertence em parceria com os dois irmãos, que são sócios e gerentes.
A ligação a este ambiente laboral acontece desde há 16 anos, pese embora o arguido se tenha afastado por duas vezes para trabalhar em contextos diferentes, cerca de 8 meses na empresa ..., nas ... e por curto espaço de tempo numa carpintaria. Estes afastamentos que tiveram sempre a ver com quezílias familiares, estão ultrapassados, tendo conseguido estabilidade laboral.
O arguido refere que o atual agregado familiar subsiste economicamente do seu salário, ordenado mínimo nacional e dos rendimentos da companheira, provenientes da sua atividade na área da .... AA referiu que por enquanto não tem encargos com renda, água e luz, custos assumidos pelo progenitor, com quem estabeleceu combinação para em troca realizar as obras de recuperação que o apartamento necessita. De despesas mensais tem cerca de 600,00€, importância referente a créditos, alimentação, internet e telefones.
Embora não tenha ficado acordado pensão de alimentos para a filha, tem gastos em vestuário, educação e saúde, tentando que nada lhe falte, sobretudo agora que entrou na adolescência, fase com outras exigências. AA refere ter nascido no seio de uma família com a vinculação significativa e positiva, referindo que sempre lhe foram transmitidos valores e princípios, sendo a sua trajetória escolar em idade normal, obtendo como escolaridade, o 12.ºano, a que se seguiu o ingresso na universidade, para frequentar o curso de ... que não conclui, optando por frequentar um curso profissional de ....
Na conversa telefónica que estabelecemos com o progenitor do arguido, este referiu, que apenas tem relação com este filho, encontrando-se de relações cortadas com os outros dois, a quem se refere como oportunistas e desonestos. Verbaliza que o filho é uma pessoa doce, tranquila e de fácil trato, muito diferente dos irmãos.
Em termos ocupacionais, AA não tem atividades estruturadas dedicando-se essencialmente ao trabalho, à família e às obras de recuperação do apartamento.
AA tem problemas de coluna, situação clínica que exige esporadicamente toma de medicação.
Em termos de características pessoais, AA tem capacidade para discernir o certo do errado, com um estilo de comunicação adequada e com exposição detalhada de aspetos referentes à situação da relação no contexto de intimidade, que nos parece condicionada por alguns estereótipos de gênero.
II – REPERCUSSÕES DA SITUAÇÃO JURÍDICO-PENAL DO ARGUIDO
AA afirmou sentir-se tranquilo relativamente às consequências do presente processo, tendo como expetativa a absolvição, já que não se revê nas acusações que lhe são imputadas, nomeadamente por nunca se ter visto envolvido em processos de natureza jurídica e particularmente desta índole.
O arguido apresenta uma narrativa na qual estão presentes valores e normas sociais que vão de encontro ao pensamento vigente na sociedade, revelando competências pessoais e sociais e capacidade crítica face a comportamentos que se distanciam da normatividade.”.
34. O arguido não tem antecedentes criminais.
B. factos não provados
Da prova produzida, resultaram não provados os seguintes factos:
a. O arguido também chamou a DD “maluca dos cornos”, “parva”, “velha seca” e “burra”, e disse-lhe que não fazia nada e que cheirava mal.
b. EE e FF, irmã de DD, também estivavam no veículo automóvel na ocasião referida em 5..
c. O arguido também dizia a DD “tu sabes bem do que eu sou capaz, vou à carpintaria, pego numa arma”, “eu não tenho nada a perder, já tenho a minha vida feita, eu vou-te comer viva”.
d. Ao longo de todo o período de coabitação, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, no domicílio comum, no contexto de discussões, o arguido projetou ao solo objetos de vária natureza, como comandos de dispositivos eletrónicos e CD´s, assim os destruindo, fazendo menção que DD presenciasse tais condutas, que sabia idóneas e adequadas a causar-lhe temor e inquietação, fazendo-a recear o que o arguido lhe pudesse fazer.
e. Aquando do referido em 9. o arguido dirigiu-se também a HH.
f. Volvidos alguns instantes, sobre o referido em 9., já no domicílio comum, o arguido, com foros de seriedade, tenha declarado a DD “eu não tenho nada a perder, a tua mãe não tem nada que se meter, eu vou matá-los, fazia isso à minha família, mais fácil é fazer à tua”.
g. Na ocasião referida em 11., ato contínuo, o arguido, com o seu pénis, envidou penetrar a vítima no respetivo ânus.
h. Na ocasião referida em 12. e 13., o arguido dizia a DD “sua puta, estás a gostar de levar com ele, tinhas saudades de levar com ele grosso, vou-te rebentar toda, vou-te partir a cona toda, está gostoso, sua puta”.
i. Por força de tal conduta do arguido, DD sofreu dores, demandando assistência hospitalar nesse mesmo dia.
j. O referido em 16. ocorreu com frequência diária.
k. O arguido também chamou a EE “barriguda” e “parva”.
l. Por força do referido em 20. EE de imediato irrompeu em pranto.
m. Nas circunstâncias referidas em 21. o arguido tripulando a sua própria viatura automóvel, de matrícula não apurada, o arguido seguiu alguns momentos no encalco da viatura da vítima EE e seu avô, fazendo sucessivas ultrapassagens a tal viatura, e posicionando sua viatura de forma perpendicular na via de trânsito, assim envidando bloquear a passagem do sobredito veículo e constranger HH, contra sua vontade, a imobilizar a marcha da viatura por si conduzida e não prosseguir o seu caminho, o que só não logrou por HH ter conseguido manobrar seu veículo de forma a contornar o veículo do arguido.
n. Num dos momentos em que deteve a marcha do respetivo veículo, na perpendicular da faixa de rodagem, o arguido, com foros de seriedade, declarou aos ocupantes da viatura tripulada por sua filha e sogro “EU VOU-VOS MATAR A TODOS”, expressões de que pelo menos a vítima EE ficou bem ciente.
o. Ao proceder da forma descrita no dia ... de ... de 2020, o arguido quis impedir que o ofendido HH prosseguisse a marcha do respetivo veículo automóvel, obrigando-o a se imobilizar contra a sua vontade, para assim o afetar na sua liberdade de determinação e de locomoção, o que só não logrou por motivos exteriores à sua vontade.
p. Bem sabia e não podia ignorar o arguido que, ao atravessar o seu veículo na via de trânsito, obstruindo a circulação, criava assim perigo de colisão entre o seu veículo e o veículo conduzido pelo ofendido HH, assim inspirando receio ao visado pela sua integridade física, procurando assim constrangê-lo a não prosseguir o seu caminho.
q. Ao proceder da forma descrita no dia ... de ... de 2020, proferindo as expressões “EU VOU-VOS MATAR A TODOS”, o arguido bem sabia e não podia ignorar que as mesmas poderiam ser escutadas por sua filha EE, como efetivamente aconteceu, resultado que previu como possível e com cuja realização se conformou.
r. Bem sabia e não podia ignorar o arguido que tais expressões eram idóneas e adequadas a causar temor e inquietação à vítima EE, fazendo-a recear tanto por sua vida como pelas vidas de sua mãe e avós maternos.
C. motivação dos factos provados
A convicção do tribunal alicerçou-se, no que aos factos provados concerne, nos elementos de prova que abaixo se mencionam, examinados de forma crítica e conjugadamente, à luz das regras da ciência, da lógica, da experiência comum e de juízos de normalidade.
Concretamente no que concerne aos pontos 1. a 3. e 22. o tribunal ponderou os elementos documentais juntos aos autos.
No que concerne aos factos referentes a DD, que constam dos pontos 4. a 9. (primeira parte), o tribunal considerou o seu depoimento em audiência de julgamento no qual não revelou ter particular animosidade para com o arguido, não se abstendo de negar a ocorrência de factos, mesmo quando beneficiavam o arguido, ou de afirmar a ocorrência de outros, que o beneficiavam, pelo que mereceu a confiança do tribunal.
DD descreveu de modo sereno a vivência conjugal com o arguido aludindo aos conflitos entre os cônjuges, aos motivos dos mesmos, aludindo às palavras que o arguido lhe dirigia e ao modo como as mesmas a faziam sentir, de modo congruente e concordante com uma normal sensibilidade.
O referido pela ofendida DD foi corroborado pela testemunha FF, sua irmã, que frequentava amiúde o lar conjugal e que descreveu o que lhe foi dado ver e ouvir em tais ocasiões.
O depoimento desta testemunha, não obstante algumas inconsistências por comparação com o depoimento da ofendida, não resultou tendencioso nem toldado pela especial relação familiar existente, pelo que mereceu também a confiança do tribunal.
No que respeita ao ponto 9. (primeira parte), mais relevou o depoimento prestado pela ofendida GG, que não obstante ser ofendida e mãe da ofendida DD, depôs de modo objetivo e circunstanciado, sendo outrossim credível.
No respeitante aos pontos 11. a 14. relevou outrossim o depoimento da ofendida DD que descreveu os factos de modo desapaixonado, ainda que de modo algo emotivo, o que resulta consentâneo com a normalidade das coisas, descrevendo o ocorrido sem incorrer em incongruências.
O referido pela ofendida DD mostra-se corroborado pelo arguido na parte em que admite ter tido relações sexuais com a ofendida, não obstante as repute de consensuais e localizadas na noite anterior, não logrando explicar porque tal haveria de ter ocorrido numa fase em que o relacionamento afetivo e físico entre os cônjuges já havia terminado há muito, como igualmente admite.
Os factos 15. a 16. foram aferidos com base nos depoimentos prestados pelos ofendidos HH, GG e Rosário que aludiram às ocasiões em que se aperceberam da presença do arguido no local e que descreveram de modo congruente entre si.
A prova dos factos 17. a 20. adveio da ponderação conjugada das declarações para memória futura da ofendida EE, a qual, sem manifestar animosidade para com o arguido seu pai, referiu as palavras que o mesmo lhe dirigia, circunstanciando as mesmas e referindo como se sentiu quando as ouviu.
Mais descreveu a ofendida EE as ocasiões em que foi agredida pelo arguido e porque razão tal sucedeu, de modo sereno e objetivo.
O arguido admitiu ter procedido como se provou em 18., embora negando ter causado as lesões e desvalorizando o seu comportamento que reputa de educativo.
O referido pela ofendida EE foi corroborado pela ofendida DD, que depôs quanto a esta matéria de modo essencialmente coincidente, pelos ofendidos HH e GG, que recebiam amiúde o arguido e a sua família nuclear em sua casa e que se apercebiam do modo como o arguido interagia com a sua filha.
Também a testemunha FF aludiu a tal interação de modo coincidente com os restantes meios de prova produzidos quanto a esta matéria.
O ponto 21. foi julgado provado com base na conjugação do depoimento do ofendido HH com o referido pelo arguido em sede de declarações de parte, neste ponto coincidente.
Os factos concernentes ao elemento subjetivo constantes dos pontos 23. a 32. resultaram provados com base nos restantes factos provados quando conjugados com juízos de normalidade, que os revelam.
A condições de vida do arguido foram aferidas pelo relatório social junto aos autos e a ausência de antecedentes criminais aferiu-se plo CRC junto aos autos.
*
D. motivação dos factos não provados
No que aos factos não provados, o tribunal estribou-se na inexistência de prova bastante de que os mesmos tenham ocorrido.
Com efeito, trata-se de factos que o arguido não admitiu e que não foram afirmados pelos próprios ofendidos.
De especial, refira-se, quanto aos pontos m. a p. que a descrição da situação efetuada pela testemunha HH em nada se assemelha aos factos descritos na acusação. Com efeito, a testemunha descreve que o arguido, ao volante do seu veículo, se posicionou à frente da viatura conduzida pela testemunha, circulando muito devagar e não a deixando ultrapassar, o que não é de todo em todo o que é alegado, razão pela qual resultou não provado.
*
As restantes testemunhas inquiridas, não obstante se tenham revelado credíveis, não revelaram ter conhecimento dos factos, pelo que não contribuíram para a resposta do tribunal.”
*
IV. Fundamentação
Estando elencados diversos fundamentos para o recurso interposto, a respetiva apreciação deve ocorrer segundo a ordem de precedência que legal e logicamente lhes cabe, começando-se pelos que podem determinar a anulação do julgamento e eventual reenvio (vícios da decisão), seguidos daqueles que podem determinar a alteração da matéria de facto (erros de julgamento) e, finalmente, as questões de direito suscitadas, designadamente, no que se refere ao enquadramento jurídico-penal, e à escolha e determinação da medida da pena.
iv.1. Da nulidade do acórdão
Nas conclusões 14ª a 17ª do recurso interposto, sustenta o recorrente existir «uma falta absoluta de fundamentação de direito relativamente ao crime de violação agravada, nos termos do artigo 615.º Código Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 4 do Código Processo Penal, a sentença é nula».
Na resposta apresentada na 1ª instância, o Ministério Público corroborou o entendimento de que, no que se reporta ao crime de violação agravada, o acórdão seria nulo por falta de fundamentação.
Já neste Tribunal da Relação, a Exma Procuradora-Geral Adjunta defendeu que a falha detetada corresponderia, na verdade, a lapso passível de correção nos termos previstos no artigo 380º do Código de Processo Penal.
Comecemos pelos conceitos.
Em conformidade com o disposto no artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal, é nula a sentença “Que não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do artigo 374º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 389º-A e 391º”.
O artigo 374º do Código de Processo Penal, por seu turno, abrange uma ampla consignação de deveres que recaem sobre o julgador, em sede de fundamentação da convicção e de enquadramento jurídico, no que concerne a três instâncias decisórias, que constituem em grande medida a sentença que terá de ser proferida a final. Pese embora tais deveres se mostrem interligados (dada a sede em que têm de ser cumpridos, isto é, no texto decisório que põe termo à causa), a verdade é que se distinguem entre si.
Assim, determina o artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Tal preceito traduz a consagração legal da imposição constante do artigo 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, que estabelece que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são, sempre, fundamentadas (nos termos definidos por lei).
Como tem jurisprudencialmente vindo a ser entendido, de modo pacífico, o dever de fundamentação da decisão traduz-se em assumir uma síntese intelectualmente honesta e suficientemente expressiva do resultado do exame contraditório sobre as distintas fontes de prova. Pela fundamentação decisória o juiz presta conta aos destinatários da sentença do veredicto que emana, denotando o seu verdadeiro perfil.2
A necessidade de fundamentação da sentença serve claros propósitos, repetidamente afirmados, como se pode ver, entre outros, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.20053: “A fundamentação da sentença consiste, pois, na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão.
As decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (Cfr. Germano Marques da Silva, “Curso de processo penal”, III, pág. 289).
A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objectivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cfr. Michele Taruffo, «Note sulla garanzia costituzionale della motivazione», in BFDUC, ano 1979, Vol. LV, págs. 31-32).”.
O dever de fundamentação em matéria de facto mostrar-se-á cumprido quando do texto da decisão se depreenda, não apenas a matéria de facto provada e não provada (sujeita a enumeração, ou seja, com indicação dos factos um a um), mas também a expressa explicitação do porquê dessa opção (decisão) tomada, o que se alcança através da indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, isto é, dando-se a conhecer as razões pelas quais se valorou ou não valorou as provas e a forma como estas foram interpretadas, impondo-se ainda, obviamente, o tratamento jurídico dos factos apurados, com subsunção dos mesmos ao direito aplicável, sendo que em caso de condenação está o tribunal obrigado, como não podia deixar de ser, à determinação motivada da pena ou penas a cominar (singulares, conjunta e acessória), posto o que deve proceder à indicação expressa da decisão final, com indicação das normas que lhe subjazem.4
A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos - para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo - cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19.12.20195 6.
Como aponta Mouraz Lopes7, “importa referir que a fundamentação tem que ter um conteúdo que exprima a justificação do que é decidido, não faltando nenhum elemento que o deva constituir. Todas as questões suscitadas perante o tribunal no âmbito do procedimento e que são objeto de tratamento jurisdicional têm que ser refletidas na decisão. Trata-se de garantir o tratamento completo («esgotado») dos aspetos fundamentais tratados na decisão, relativos à matéria de facto e às questões jurídicas que, por isso, têm que ser todos justificados [ac. STJ 23.05.2018 (Gabriel Catarino)]. A sentença tem que ser auto-suficiente (Andrés-Ibañez, 2006, p. 43). Não está em causa a quantidade da fundamentação mas sim se a fundamentação existe e se é efetuada de forma suficiente para que os seus objetivos possam ser alcançados.”
E, adverte ainda o mesmo autor8, “A fundamentação da sentença deve apreciar-se na dupla dimensão dos factos e do direito assumindo-se os factos como uma dimensão de reconstrução de acontecimentos valorados e o direito como conclusão da relevância jurídica desses acontecimentos. Ainda que possam surgir dificuldades na distinção entre «facto» e «direito», há uma dimensão prática essencial na construção da narrativa judicial que impõe que se efetue essa distinção, «ainda que [as questões de facto e de direito] estejam intimamente conectadas» (Taruffo, 2005, p. 240). O facto e o direito devem ser, por isso, concebidos como distintos ou pelo menos como distinguíveis.”
No que especificamente se reporta aos motivos de direito que fundamentam a decisão, está em causa a fundamentação de direito concebida como a conclusão com relevância jurídica do acontecimento factual reconduzida a uma norma incriminadora, a exposição dos critérios interpretativos onde o juiz se escuda para aplicar a lei9.
Não contendo a sentença todos os mencionados elementos, padecerá a mesma de omissão quanto a aspetos considerados essenciais para a respetiva fundamentação, levando a que a mesma fique inquinada da nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
Com efeito, a norma em questão “estabelece que a nulidade ocorre, inequivocamente, quando a sentença não contenha (i) a enumeração dos factos provados e não provados, (ii) a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas. A omissão integral de qualquer destes elementos estruturais da sentença torna a mesma nula. Ainda que algum deles (factos provados, factos não provados e motivação) esteja na sentença, individualizadamente, a omissão de qualquer um, fulmina a sentença de nulidade.”10
Como se expõe no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.11.202411, “A função da fundamentação é a de “…legitimar a decisão perante as partes e também coram populo, neutralizando as suspeitas de arbítrio; e, por outro lado, de emprestar à decisão os coeficientes indispensáveis de racionalidade e de objectividade, que a tornam objectivamente sindicável e controlável por terceiros, maxime pelos tribunais superiores. O consenso comunica-se também à compreensão normativa da fundamentação: ela deve assegurar a consistência lógico-racional capaz não só de tornar a decisão vinculativa no horizonte subjectivo de quem a proferiu, mas também de lhe emprestar a indispensável plausibilidade intersubjectiva em relação a terceiros. Face aos quais terá de despertar a mesma convicção, a mesma “certeza”.”.
A deficiência da fundamentação só constitui esta nulidade, quando for de tal forma relevante que impeça o conhecimento da razão para determinado facto ter sido dado como provado ou não provado, ou os raciocínios subjacentes à qualificação jurídica da conduta do arguido, ou à determinação das medidas das penas.”
No caso, lido o acórdão recorrido, vemos que inexiste qualquer menção relativa ao enquadramento jurídico dos factos no que se refere ao crime de violação agravada pelo qual o arguido veio a ser condenado.
É certo que se deram como provados os factos 11. a 14. e 25. (e como não provados os factos elencados em g. a i.), mas o Tribunal a quo nada disse quanto à respetiva relevância jurídica, não expondo, de modo algum, em que medida serão tais factos suscetíveis de integrar o crime de violação previsto e punido pelos artigos 164º, nº 2, alínea a) e 177º, nº 1, alínea b), ambos do Código Penal.
Como é evidente, não se trata apenas de não terem sido transcritas as mencionadas disposições legais incriminadoras. O que releva, em termos de fundamentação, é que aos destinatários da decisão seja fornecida indicação clara das razões pelas quais o tribunal entende que os factos que apurou preenchem o identificado tipo de ilícito.
E a questão é tanto mais relevante quanto é certo que ao arguido foi também imputada a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alíneas a) e c) e nos 2, alínea a), 4 e 5 do Código Penal (pelo qual foi condenado), sendo contemporâneos todos os factos dados como provados. Tal conjugação de circunstâncias impunha que se discutissem os fundamentos da autonomização da punição do crime de violação – já que, em tese, as ofensas sexuais podem estar compreendidas na execução do crime de violência doméstica (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª ed. atualizada, Universidade Católica Editora, 2021, pág. 647), muito embora se admita, na doutrina e na jurisprudência, que a unicidade normativo-social, tipicamente imposta, possa vir a cindir-se quando algum dos atos isolados permita a verificação do tipo social de um crime mais grave – ofensa à integridade física grave, violação, homicídio -, devendo o agente ser punido em concurso efetivo com os crimes de violência doméstica (cf., por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.11.201812).
A discussão sobre a integração jurídica dos factos é, pois, essencial para que a decisão possa cumprir a sua função enquanto manifestação do exercício da atividade jurisdicional, não podendo a sua ausência ser colmatada pela circunstância de o Tribunal ter procedido à operação de determinação da medida da pena para o crime cujo enquadramento legal não foi exposto. São aspetos diferentes da fundamentação da decisão, e a presença de um não supre a falta do outro.
Assiste, pois, razão ao recorrente, quando refere ter sido omitida tal fundamentação.
A apontada omissão determina a nulidade da decisão, por referência aos artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, sendo certo, porém, que a consequência de tal nulidade não é a absolvição do arguido, mas antes o respetivo suprimento.
Por outro lado, porque está em causa nulidade expressamente prevista enquanto tal no artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal, não é a falta em questão suscetível de retificação nos termos previstos no artigo 380º, nº 1 do mesmo diploma legal (cuja alínea a) restringe a sua aplicabilidade aos aspetos não abrangidos no artigo anterior; mais devendo dizer-se que a potencial «retificação» necessariamente importaria modificação essencial da decisão, na medida em que inevitavelmente exigiria deste Tribunal ad quem a discussão de questões não abordadas no acórdão recorrido, ou seja, questões novas).
Admitimos que a falta de fundamentação constatada resulte de lapso cometido na 1ª instância, mas tal não equivale a um lapso de escrita que possa ser corrigido por este Tribunal de recurso, nos termos previstos no nº 2 do artigo 380º do Código de Processo Penal).
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A nulidade em causa não pode deixar de ser conhecida, mesmo oficiosamente, por este Tribunal de recurso, como decorre do nº 2 do citado artigo 379º do Código de Processo Penal.
Na verdade, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13.03.200713, citando o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30.03.2005, “« … não restam dúvidas que as nulidades de sentença enumeradas no n.º 1 desse artigo [379º] são oficiosamente cognoscíveis, uma vez que têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais, estabelecendo-se no n.º 2 do mesmo que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso (cfr. Acórdão do S.T.J, de 31-05-2001, SASTJ, n.º 51, 97, citado por Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado e Comentado,13ªEdição-2002, pág. .749)
Ao alterar a redacção do nº2 do art. 379º, a Lei 58/98 de 25 de Agosto terá pretendido deixar claro o entendimento do legislador em duas matérias que tinham dividido a jurisprudência: a possibilidade de arguição da nulidade de sentença na motivação de recurso (tal como entendera o Acórdão do STJ para Fixação de Jurisprudência nº 1/94, de 2.12.93, DR I-A de 11.02.94) e o conhecimento oficioso da nulidade, ou seja, o seu conhecimento em recurso mesmo que não arguida (pois só assim constitui uma verdadeira alternativa .- arguidas ou conhecidas em recurso), contrariamente ao entendimento que obteve vencimento no Acórdão do STJ para Fixação de Jurisprudência de 6 de Maio de 1992, DR I-A de 6.8.92, o qual caducou14 por efeito da referida Lei 58/98.”
[No mesmo sentido, vd., ainda, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.201015, e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09.12.202016.]
Decorre, pois, do disposto no artigo 379º, nº 2 do Código de Processo Penal, que “As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no nº 4 do artigo 414º”.
Todavia, no caso em apreço, não é possível suprir neste Tribunal de recurso a nulidade que afeta a decisão, na medida em que se trata da total omissão de pronúncia sobre o enquadramento jurídico-penal dos factos potencialmente integradores do crime de violação, não sendo lícito que este Tribunal de recurso sobreponha a sua convicção à do julgador da 1ª instância, pois só este beneficiou da imediação e oralidade essenciais ao julgamento da causa. Impõe-se, por isso, anular a decisão, devendo ser proferido novo acórdão, em que o Tribunal a quo se pronuncie sobre todos os factos dados como provados e respetiva relevância jurídica (discutindo, designadamente, a respetiva autonomização face aos demais crimes imputados ao arguido).
Como anota Oliveira Mendes17, “Por efeito da alteração introduzida ao texto do nº 2 pela Lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro, passou a constituir um dever do tribunal de recurso o suprimento das nulidades da sentença recorrida (é o que decorre da actual letra da lei «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las…»), razão pela qual sobre o tribunal de recurso impende a obrigação de suprir as nulidades de que padeça a sentença recorrida, a menos, obviamente, que a nulidade só seja susceptível de suprimento pelo tribunal recorrido, situação que será a comum, visto que na maioria dos casos o suprimento pelo tribunal de recurso redundaria na eliminação de um grau de jurisdição.” (sublinhado nosso)
Como acima se expôs, dada a natureza da nulidade que afeta a decisão, não é possível supri-la neste Tribunal de recurso, devendo os autos ser devolvidos à 1ª instância para o efeito.
Em face do decidido, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso interposto pelo arguido AA.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA, e declarar nulo o acórdão recorrido, por falta de fundamentação, determinando a devolução dos autos ao Tribunal recorrido, a fim de proferir novo acórdão que supra a apontada nulidade.
Sem tributação.
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Lisboa, 02 de dezembro de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sandra Oliveira Pinto
Ester Pacheco dos Santos
João Grilo Amaral
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1. Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, págs. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»
2. cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.01.2014, proferido no processo nº 7/10.0TELSB.L1.S1, Relator: Conselheiro Armindo Monteiro, acessível em www.dgsi.pt.
3. No processo nº 05P662, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar, igualmente acessível em www.dgsi.pt.
4. Cf. anotação de Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed. revista, Almedina, 2021, pág. 1144
5. No processo nº 10/18.1GBFTR.E1, Relator: Desembargador João Amaro, acessível em www.dgsi.pt
6. Com este sentido, vd., entre outros, o acórdão do Tribunal Constitucional nº 27/2007, no processo nº 784/05, Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto, acessível em www.tribunalconstitucional.pt, do qual citamos: “A exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais tem uma função não apenas endoprocessual, mas também dirigida ao exterior do processo: ela visa explicitar a ponderação que integrou o juízo decisório e permitir às partes – no caso, ao arguido – o perfeito conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a possibilidade de optar pela reacção (impugnatória ou não) que entendam mais adequada à defesa dos seus direitos (e por esta via, a obrigação de fundamentação possibilita também, mediatamente, o exercício do direito ao recurso que possa caber no caso). Mas a exigência de fundamentação visa também possibilitar o próprio conhecimento pela comunidade das razões que levaram a uma determinada decisão, e, pela via da exigência de lógica ou racionalidade da fundamentação (contida na exigência de fundamentação), contribui também para a própria legitimação da actividade decisória dos Tribunais.”
7. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Almedina, 2022, pág. 763.
8. Comentário…, cit., pág. 767.
9. Mouraz Lopes, Comentário…, cit., pág. 770.
10. Mouraz Lopes, Comentário…, cit., pág. 795.
11. No processo nº 504/23.7PCLRA.C1, Relator: Desembargador João Abrunhosa, acessível em www.dgsi.pt.
12. No processo nº 574/16.4PBAGH.S1, relatado pelo Conselheiro Manuel Augusto de Matos, acessível em www.dgsi.pt.
13. No processo nº 2453/06-1, Relator: Desembargador António João Latas, também acessível em www.dgsi.pt
14. Assim, expressamente, o Ac RE de 17.10.2006, acessível em www.dgsi.pt.
No sentido do conhecimento oficioso podem ver-se ainda, por todos, os Ac STJ de 2.02.2005, CJ STJ I/p. 189 e 9.11.05, CJ STJ T. III/p. 209 e Ac RL de 13.01.2005, CJ XXX - I/p. 123.
Entre muitos outros acórdãos, das Relações e do STJ, que implicitamente entendem serem as nulidades de sentença de conhecimento oficioso, ao conhecer das mesmas sem prévia arguição, podem ver-se os Ac STJ de 16.11.05, CJ STJ T. III/p 210 e de 11.01.06, CJ STJ I/p. 160.
15. No processo nº 274/08.9JASTB.L1.S1, Relator: Conselheiro Pires da Graça, em www.dgsi.pt.
16. No processo nº 24/19.4GAVPA.G1, Relatora: Desembargadora Teresa Coimbra, também acessível em www.dgsi.pt
17. Ob. cit., pág. 1158.