Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
803/10.8YRLSB-4
Relator: MARIA JOÃO ROMBA
Descritores: GREVE
SERVIÇOS MÍNIMOS
SECTOR EMPRESARIAL DO ESTADO
TRIBUNAL ARBITRAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: A definição dos serviços mínimos a assegurar durante a greve - quando não estão definidos por instrumento de regulamentação colectiva, nem houve acordo entre os representantes dos trabalhadores e os empregadores abrangidos pelo aviso prévio – sempre que se trate de empresas do sector empresarial do estado, designadamente hospitais EPE, cabe ao tribunal arbitral constituído nos termos da lei específica sobre arbitragem que veio a constar do DL 259/2005, de 25/9.
(sumario elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

            O Sindicato dos Enfermeiros Portugueses interpôs recurso do acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral constituído no âmbito do processo de arbitragem obrigatória nº 13/2010-SM que, no que concerne à greve decretada pelo referido Sindicato para os dias 29 de Março a 1 de Abril de 2010, decidiu, relativamente ao Instituto Português de Oncologia de Lisboa, EPE e Instituto Português de Oncologia do Porto, EPE [1], que deveriam ser prestados durante a greve os seguintes serviços:
1. Os cuidados de enfermagem a prestar em situação de urgência nas unidades de Atendimento Permanente dos Centros de Saúde que funcionam 24 horas por dia e nos Serviços de Internamento que também funcionam 24 horas por dia, nos cuidados intensivos, no Bloco Operatório, com excepção dos Blocos Operatórios de Cirurgia Programada, na Urgência, na Hemodiálise e nos Tratamentos Oncológicos;
2. Sem prejuízo do disposto no n.° 1, no âmbito dos serviços mínimos que contemplam o tratamento oncológico, a ser assegurados no período de greve são incluídos:
a) A continuidade de tratamentos programados em curso, tais como, programas terapêuticos de quimioterapia e de radioterapia, pela realização das sessões de tratamento planeadas, bem como tratamentos com prescrição diária em regime ambulatório (por exemplo, antibioterapia ou pensos);
b) A realização de intervenções cirúrgicas ou início de tratamentos não cirúrgicos (radioterapia ou quimioterapia), em doenças oncológicas de novo, classificadas como de nível IV de prioridade na Portaria 1529/2008, de 26 de Dezembro;
c) Outras situações, designadamente, cirurgias programadas sem o carácter de prioridade definido anteriormente [alíneas a) e c)], devem ser consideradas de acordo com o plano de contingência das instituições para situações equiparáveis, designadamente:
- "tolerâncias de ponto" (anunciadas frequentemente com pouca antecedência);
- cancelamento de cirurgias no próprio dia (por inviabilidade de as efectuar no horário normal de actividade do pessoal ou do bloco operatório).
3. Os meios humanos necessários para assegurar os serviços mínimos definidos, correspondem ao número de enfermeiros igual ao que figurar para o turno da noite, no horário aprovado à data do anúncio da greve.

            O recorrente sintetiza as respectivas alegações nas seguintes conclusões:
1. As denominadas Entidades Públicas Empresariais da Saúde não se subsumem na previsão do art. 538º, n° 4, b), do Código do Trabalho (na redacção do art. 35º da Lei n° 105/2009, de 14 de Setembro) pois não são empresas do sector empresarial do Estado. Na verdade,
2- Elas estão integradas na rede de prestação de cuidados de saúde do Serviço Nacional de Saúde (cfr. art°s n° 1, e 2°, c), do "Regime Jurídico da Gestão Hospitalar", anexo, como sua parte integrante, à Lei nº 27/2002, de 8 de Novembro) e são pessoas colectivas de direito público, dotadas de autonomia administrativa, financeira e patrimonial e natureza empresarial, nos termos do Decreto-Lei nº 558/99, de 17 de Dezembro, e do art. 18º do referido “Regime Jurídico da Gestão Hospitalar". Assim,
3- O seu fim primário é a prossecução do interesse público (é dizer, a prestação de cuidados de saúde aos cidadãos que deles careçam) — e, pois, sem intuito lucrativo (o Serviço Nacional de Saúde é "universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito": art. 64º., n. 2, a), da CRP). Assim,
4- E salvo o merecido respeito, o douto acórdão recorrido, ao ancorar-se no art. 538º, nº 4, b), do Código do Trabalho (na sua actual redacção) para dele extrair a sua competência material, não fez boa interpretação e aplicação do direito aos factos e, consequentemente, não fez bom julgamento. Aliás,
5- Atenta a sua real qualificação jurídica e as finalidades de interesse público cuja prossecução está por lei posta a seu cargo, as entidades públicas empresariais da saúde, em boa hermenêutica, não são destinatárias da exclusão afirmada no arts. 3º, nº 5, da Lei nº 12-A/2008, de 27 de Fevereiro – e, consequentemente, também não estão excluídas da Lei nº 59/ 2008, de 11 de Setembro.
De facto,
6- O elemento nuclear do sistema é o exercício de funções públicas e as entidades públicas empresariais da saúde actuam no desempenho da função administrativa.
7- Ao pessoal, com relação jurídica de emprego público, oriundo das unidades de saúde que deram origem às entidades públicas empresariais da saúde, foi garantida a manutenção integral do seu estatuto jurídico (art. 15º, n. 1, do Decreto-Lei n. 233/2005, de 29 de Dezembro) e por isso ele está, "ope legis" sob o regime do contrato de trabalho em funções públicas (art.. 1º, nº 1, e 2, nºs 1 e 2, da Lei nº 12-A/2008, de 27 de Fevereiro). E,
8- O regime do pessoal de enfermagem admitido pós-transformação das unidades de saúde é distinto do regime comum do contrato individual de trabalho: art. 14º, nºs 1 (este na acção do art. 19º do Decreto-Lei nº 176/2009, de 4 de Agosto) e 4, do Decreto-Lei nº 233/2005, de 29 de Dezembro, e Decreto-Lei n9 247/2009, de 22 de Setembro (este conjugadamente com o Decreto-Lei nº  248/2009, de 22 de Setembro). O que,
9- Pois, conduz à sua sediação na função pública, pois nesta está incluída qualquer actividade exercida ao serviço de uma pessoa colectiva de direito público, qualquer que seja o regime jurídico da relação de emprego – desde que distinto do regime comum do contrato individual de trabalho. Assim,
10- E salvo o merecido respeito, com o douto acórdão recorrido o Tribunal Arbitrai (que funcionou no quadro do Código do Trabalho e instrumentos complementares), ao considerar-se competente, laborou em erro na interpretação e aplicação do direito aos factos — pois para o caso de greve do pessoal de enfermagem das entidades públicas empresariais da saúde tal competência (porque de verdadeiras entidades empregadoras públicas se trata) é detida pelas Entidades referidas no art. 400º do "Regime do Contrato Trabalho em Funções Públicas" e art. 287º a 296º do seu "Regulamento".
Nestes termos, e nos melhores de direito que forem doutamente supridos, deve ser revogado o douto acórdão recorrido, com todas as suas legais consequências, como é de direito e da melhor JUSTIÇA!
            Não foram apresentadas contra-alegações.
Subidos os autos a este tribunal e apresentados ao M.P. nos termos e para os efeitos do art. 87º nº 3, a digna PGA não se pronunciou sobre o objecto do recurso por considerar o disposto no referido preceito incompatível com os deveres de representação do Ministério Público, visto que está em causa a resolução de um diferendo concernente à relação laboral existente entra os associados da recorrente e as EPE  integradas no Serviço Nacional de Saúde prosseguindo a realização de fins do Estado.

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões alegatórias do recorrente, constata-se que, no caso, o mesmo se cinge à competência do Tribunal Arbitral constituído nos termos do DL 295/2009, de 25/9 para fixar os serviços mínimos relativamente à greve convocada pelo recorrente para os dias 29 de Março a 1 de Abril transactos.
           
Apreciação.
No acórdão recorrido o Tribunal arbitral apreciou a questão da competência, que havia sido suscitada pelo ora recorrente, nos termos que passamos a transcrever:
“Nos termos do art. 21.° da Lei de Arbitragem Voluntária (Lei n.° 31/86, de 29 de Agosto), aplicável a esta arbitragem ex vi art. 505.°, n.° 4, do CT, cabe ao tribunal pronunciar-se sobre a sua própria competência.
De alguma imponderação legislativa, particularmente resultante da revisão do Código do Trabalho operada de modo faseado em 2009 e da introdução de um regime de trabalho em funções públicas não concatenada com aquela revisão, resultaram várias dúvidas de aplicação do regime jurídico laboral que em nada contribuem para a necessária segurança jurídica. A questão suscitada pelo sindicato é, por isso, perfeitamente justificada: a indeterminação do regime jurídico aplicável à relação laboral dos enfermeiros que prestam actividade em entidades públicas empresariais suscita legitimamente a dúvida quanto à aplicabilidade da arbitragem obrigatória prevista no Código do Trabalho (art. 538.°) e no Decreto-Lei n.° 259/2009, de 25 de Setembro.
De facto, a imponderação legislativa levou a que no mesmo ano de 2009 entrassem em vigor dois diplomas com distintas previsões de arbitragem obrigatória para definição de serviços mínimos em caso de greve: concretamente, o art. 400.° do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (Lei n.° 59/2008, de 11 de Setembro), que entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2009, e o art. 538.° do CT, que entrou em vigor a 17 de Fevereiro de 2009, não obstante a respectiva regulamentação só ter surgido em Setembro desse ano (Decreto-Lei n.° 259/2009, de 25 de Setembro). Acresce que o citado art. 538.° do CT foi alterado pela Lei n.° 105/2009, de 14 de Setembro, com eficácia retroactiva a 17 de Fevereiro de 2009. As dúvidas interpretativas deste complexo regime são óbvias. E parece dificilmente sustentável que a lei geral (CT) pretendesse derrogar o regime especial (RCTFP), não só porque foi publicada um mês após a entrada em vigor desta sem fazer menção explícita a tal revogação, como também porque o preceito do CT foi alterado em Setembro de 2009, com eficácia retroactiva a Fevereiro desse ano, sem se resolver esta incompatibilidade.
Porém, a aplicação simultânea de dois regimes jurídicos diferenciados a uma mesma greve implicaria uma dualidade de arbitragens em função do estatuto dos trabalhadores; tal dualidade, além da dificuldade burocrática, permitiria soluções distintas para casos idênticos em violação do princípio da igualdade. Por outro lado, as entidades públicas empresariais estão excluídas, enquanto empregadores, do âmbito do RCTFP, pelo que aplicar a uma greve em tais entidades este regime pressuporia uma incongruência. Deste modo, numa interpretação sistemática dos dois regimes, nas situações que possam chamar a aplicação de ambos, a consumpção aponta para a aplicação do regime geral, já instituído. Até porque a ponderação para se recorrer à arbitragem obrigatória e a consequente definição de serviços mínimos assenta em idênticos parâmetros nos dois regimes (CT e RCTFP), verificando-se que os arts 400.° do RCTPF e 538.° do CT têm uma redacção praticamente idêntica. Para duas situações jurídicas idênticas só se justifica recorrer a uma arbitragem, que é a que se encontra institucionalizada, sob pena de preterição de desenlace na definição arbitral de serviços mínimos em tais greves.
A estes argumentos de ordem técnico-jurídica, acresce uma justificação pragmática de cariz social. Estão em causa serviços mínimos para assegurar necessidades sociais impreteríveis, concretamente dos doentes de oncologia, que têm de ser fixados num período curto e a solução não se compadece com uma dupla arbitragem, pressupondo a constituição de dois tribunais arbitrais, em que um dos quais não se poderia constituir para fixar os serviços mínimos nesta greve.
Termos em que o tribunal arbitral se considera competente para definir os serviços mínimos nesta greve.”
Adiantamos desde já que tal entendimento tem a nossa inteira concordância, não merecendo acolhimento a argumentação do recorrente ao pretender imputar-lhe erro na interpretação e aplicação do direito aos factos.
Ainda que não possamos deixar de reconhecer razão ao recorrente quanto a parte dessa argumentação, mormente no que concerne à prossecução do interesse público como fim primário das entidades públicas empresariais - o que aliás é salientado no preâmbulo do DL 233/2005 de 29/12[2] - já o mesmo não pode ser dito quanto à pretendida exclusão das EPE do conceito de “empresa do sector empresarial do Estado” a que se refere o art. 538º nº 4 al. b) do CT (aprovado pela L. 7/2009), atento o que dispõe o art. 2º nº 1 do DL 558/99, ou seja, que “o sector empresarial do Estado integra as empresas públicas nos termos do art. 3º, e as empresas participadas.” Ora, o art. 3º nº 2 determina com toda a clareza “são também empresas públicas as entidades com natureza empresarial reguladas no capítulo III”, capítulo que é dedicado precisamente às “entidades públicas empresariais”.
Não se vislumbra que haja qualquer incompatibilidade entre as finalidades de interesse público que cabe aos hospitais EPE prosseguir e a natureza de empresas públicas que o legislador atribuiu às EPE.
          Além do mais, sendo o âmbito de aplicação objectiva da lei que aprovou o regime do contrato de trabalho em funções públicas, L. 59/2008, de 11/9, cf. respectivo art. 3º nº 1, o que se encontra definido no art. 3º da L. 12-A/2008, de 27/2 (regime de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas) e dispondo o nº 5 deste preceito que tal diploma não é aplicável às entidades públicas empresariais, por muito que possa, eventualmente, ser discutível a opção do legislador, temos sempre de partir do princípio que este consagrou as soluções mais acertadas e que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. 
Não obstante existir seguramente nos hospitais EPE pessoal de enfermagem com relação jurídica de emprego público a quem foi garantida, nos termos do art. 15º do DL 233/2005, a manutenção integral do seu estatuto jurídico (concomitantemente com outro pessoal vinculado por contrato de trabalho), não deixam por isso de ser todos eles trabalhadores de uma EPE e, como tal, de uma empresa do sector empresarial do Estado, pelo que isso não significa, de modo algum, que haja qualquer óbice à aplicação aos hospitais EPE do disposto pelo art. 538º nº 4 al. d) do CT, como foi expressamente determinado pelo legislador. Assim, a definição dos serviços mínimos a assegurar durante a greve - quando não estão definidos por instrumento de regulamentação colectiva, nem houve acordo entre os representantes dos trabalhadores e os empregadores abrangidos pelo aviso prévio – sempre que se trate de empresas do sector empresarial do estado, cabe ao tribunal arbitral constituído nos termos da lei específica sobre arbitragem (que veio a constar do DL 259/2005, de 25/9) não fazendo sentido que, simultaneamente, e para o mesmo fim, tivesse que ser accionado o colégio arbitral a que se refere o art. 400º da LCTFP e o Cap. XIX do regulamento que constitui o anexo II à dita lei, tanto mais quanto, na sua essência, tanto a constituição como o funcionamento do tribunal arbitral e do colégio arbitral são em tudo paralelos.    
A interpretação conjugada dos dois regimes impõe pois que se aplique o regime decorrente do CT e do DL 295/2009, como bem entendeu a entidade recorrida
Improcedem assim os fundamentos do recurso, sendo de conformar a decisão recorrida.

Decisão
Pelo que antecede se acorda em julgar improcedente a apelação e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 6 de Outubro de 2010

Maria João Romba
Paula Sá Fernandes
José Feteira
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[1] Únicas entidades em relação às quais, de acordo com o entendimento da Direcção Geral do Emprego e das Relações do Trabalho (que encaminhou o caso para o Conselho Económico e Social) se suscitava a necessidade de definição de serviços mínimos.
[2] De que importa salientar os seguintes excertos “…deve ser inequívoca a natureza pública das instituições do Estado prestadoras de cuidados de saúde, havendo que compatibilizar este princípio com os instrumentos de gestão mais adequados à natureza específica das suas actividades. (…) Com efeito, o modelo mais adequado à prossecução daqueles objectivos é o de entidade pública empresarial nos termos do DL 558/99, de 17/12, que redefiniu o conceito de empresa pública enquanto modalidade autónoma de organização institucional do sector público estadual.”