Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2891/21.2T8ALM.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
VENDA DE IMÓVEL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/01/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Tendo sido acordado o preço da compra e venda, tendo sido acordada a forma de pagamento desse preço (na data da escritura, através do capital que a própria R., entidade bancária e simultaneamente vendedora, iria mutuar aos AA.), tendo sido determinado pela R. a desnecessidade de prévia celebração de contrato promessa de compra e venda, e tendo a mesma declarado aos AA. que “ficassem descansados que o imóvel seria para” os mesmos, mais lhes declarando que a escritura só não se realizaria de imediato porque ainda não tinha licença de utilização do imóvel, passaram os AA. a ter a legítima expectativa que iriam adquirir à R. aquele imóvel da mesma.
2. Tendo a R. obtido a documentação de que carecia para realizar a escritura e não tendo comunicado aos AA. que já estava apta a concretizar a venda do imóvel aos mesmos, nos termos que tinham ficado acordados, antes tendo vendido o imóvel a terceiro, verifica-se a violação das regras da boa fé a que estava obrigada, nos termos do art.º 227º do Código Civil.
3. Resultando da referida actuação ilícita e culposa da R. os danos de índole psicológica sofridos pelos AA., correspondentes aos sentimentos de indignação, bem como à circunstância de se sentirem enganados e defraudados pela R., na formação do contrato de compra e venda em questão, afigura-se equilibrada e respeitadora da justiça relativa das decisões judiciais a fixação de uma indemnização de € 8.000,00 por tais danos não patrimoniais.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

CR. e VM. propuseram contra Banco C. acção declarativa com forma comum, pedindo que:
a) seja decretada a execução específica da realização do contrato promessa de compra e venda e a definitiva compra e venda do bem imóvel que identificam;
b) subsidiariamente, na impossibilidade de execução específica do mesmo, que a R. seja condenada a pagar aos AA. a quantia de € 250.000,00 a título de danos morais e patrimoniais por responsabilidade pré-contratual;
c) que a R. seja condenada no pagamento dos prejuízos resultantes da dilação temporal no cumprimento da promessa, a liquidar em execução de sentença, incluindo as emergentes do presente pleito.
Alegam, em síntese, que:
- Tendo manifestado interesse em adquirir um imóvel da propriedade da R., esta informou-os que o preço da venda do mesmo era de € 125.000,00, tendo ainda informado que ficassem descansados que o imóvel seria para os AA.;
- A R. validou o crédito solicitado pelos AA. para aquisição do imóvel por esse mesmo preço e os AA. efectuaram o seguro de vida para o crédito em questão;
- A R. informou ainda os AA. que só não era logo celebrada a escritura de compra e venda porque ainda não tinha a licença de utilização do imóvel;
- Quando a A. se apercebeu que a R. já tinha a referida licença de utilização solicitou o agendamento da escritura de compra e venda, mas foi informada pela R. que já não era possível a venda, o que levou os AA. a sentirem-se indignados e enganados pela R.
Regularmente citada a R. contestou, impugnando parcialmente os factos alegados pelos AA. e concluindo pela improcedência da acção, com a sua absolvição dos pedidos.
Em audiência prévia os AA. vieram desistir do pedido principal, o que foi homologado por sentença transitada em julgado. Mais foi aí proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, sem reclamações.
Vieram entretanto os AA. reduzir o pedido para a quantia de € 60.000,00, o que foi deferido.
Teve lugar a audiência final, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a presente acção e consequentemente:
a) condeno a Ré a pagar aos Autores uma indemnização no montante de € 8.000,00 (oito mil euros).
b) custas a cargo dos Autores e Ré na proporção do decaimento”.
A R. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
I. Para que um pedido de indemnização por responsabilidade civil pré-contratual possa ter êxito, é necessário que nos termos do artigo 227º do Código Civil se prove o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano
II. Os pressupostos da responsabilidade civil pré-contratual correspondem, ponto por ponto, aos pressupostos gerais da responsabilidade civil subjectiva: ilicitude, imputabilidade, culpa, dano e nexo causal entre o facto ilícito e o dano
III. No presente caso, nenhum desses pressupostos se provou.
IV. É certo que os Autores demonstraram ter criado uma relação emocional, um “sonho de habitar no imóvel”, objecto dos presentes autos;
V. Contudo, nenhum facto pode ser apontado à Ré que tenha consubstanciado a certeza e segurança da realização de um contrato de compra e venda
VI. Em sede da audiência de discussão e julgamento, os Autores não lograram provar que a culpa da Ré quanto às expectativas que aqueles criaram relativamente à compra do imóvel em apreço.
VII. A prova desses factos, bem como, o nexo de causalidade entre o comportamento do recorrente e o dano cabia aos autores.
VIII. Resulta da prova gravada a Minutos 00:01:37 a 00:50:54, Minutos 02:07:37 a 00:50:54 e Minutos 00:48:19 a 00:50:54 que os Autores criaram uma ligação afectiva ao imóvel objecto dos presentes autos, por viverem perto do mesmo, tendo criado a expectativa de o mesmo ser seu.
IX. Tal expectativa não assenta em nenhuma informação prestada pela Ré;
X. Outrossim, apenas da vontade dos Autores, que gostavam muito do imóvel em apreço, mas que não pode ser imputável ou relacionada com qualquer conduta da Ré.
XI. Veja-se que os Autores se dirigiram a uma agência bancária, dizendo que pretendiam adquirir um determinado imóvel, limitando-se a apresentar uma proposta de venda e ficar a aguardar… tudo isto após terem conversado com um agente de execução (percebendo, portanto, que o imóvel em causa ainda se encontrava à ordem de um processo judicial…) e, mantendo, posteriormente até a convicção de que os anteriores proprietários ainda poderiam liquidar a sua dívida.
XII. Ora, não é compatível com as regras da experiência comum que as partes entendam como negociações atinentes à formação de um contrato de compra e venda de um imóvel a mera apresentação de uma proposta junto de uma agência bancária.
XIII. Também não é compreensível que se entenda que um pedido de financiamento comporte o preenchimento da convicção plena de que a concessão de tal financiamento é uma garantia da realização de um determinado contrato de compra e venda de um imóvel.
XIV. Tal confusão criaria uma insegurança no sistema jurídico injustificada
XV. Das declarações dos Autores fica expresso que não tomaram que não expressaram qualquer informação relativamente à intenção de data ou local para escritura;
XVI. Que se conformaram apenas com “ficar à espera”, atitude que não é compatível com a formalidade legal de um negócio de compra e venda de imóvel;
XVII. Não existindo qualquer facto imputado à Ré que permita explicar tal grau de confiança na realização de um negócio que, à luz de um homem medianamente informado, sempre exigiria negociações e solicitação por parte nos interessados nos negócios dos elementos essenciais do mesmo.
XVIII. Não ficaram, portanto, provados quais os factos concretos que criaram nos Autores legítimas expectativas contratuais.
XIX. E não tendo sido feita essa prova, em sede da audiência de discussão e julgamento, os factos constantes das alíneas I), J) e O) dados como provados em sede da douta sentença, devem agora receber a resposta de: - NÃO PROVADO.
XX. Por outro lado, devia ter sido dado como PROVADO o facto de que as conversas mantidas entre Autores e Ré não passaram da transmissão de informações preliminares.
 XXI. Veja-se que não foi outorgado contrato-promessa, nem, quando se colocou a hipótese de ser possível realizar escritura directa, se determinou um prazo, um local, quais os documentos que cada uma das partes teria de apresentar, os custos associados.
XXII. As partes não lograram partilhar a informação essencial para a formação de um contrato.
XXIII. Por outro lado, logo que a Ré identificou que não detinha todos os documentos necessários para escritura informou os Autores disso mesmo, retirando o imóvel de mercado. Não se vinculando, por nenhuma declaração que tenha resultado da prova produzida, à concretização do negócio de compra e venda num determinado prazo.
XXIV. A espera levada a cabo pelos Autores, não resulta de qualquer promessa ou garantia prestada pela Ré
XXV. Ora, da prova produzida teria de resultar expresso que a confiança excessiva criada pelos Autores, tinha resultado por comportamentos reiterados, promessas ou sinais por parte da Ré, que permitissem identificar o não cumprimento dos deveres de cuidado por parte desta, conducentes a criar um determinado dano aos Autores.
XXVI. Entende-se, portanto, que o comportamento da Ré não conduziria a criar num declaratário normal a convicção de que este iria realizar um contrato de compra e venda de imóvel.
XXVII. A responsabilidade civil pré-contratual não surge apenas na ruptura injustificada das negociações, mas é preciso verificar ainda se o facto específico da criação da expectativa e confiança merece tutela, em face da circunstância da ruptura das negociações contrariar os ditames da boa fé
XXVIII. a obrigação de indemnização depende sempre da existência dos elementos constitutivos da responsabilidade civil, o mais acertado é dizer que os pressupostos da responsabilidade civil pré-contratual correspondem, ponto por ponto, aos pressupostos gerais da responsabilidade civil subjectiva. A saber:
Existência de um facto voluntário (acção ou omissão) do agente (facto voluntário);
Carácter ilícito desse facto (facto ilícito);
Culpa do agente (facto culposo);
Dano (facto danoso)
Nexo de causalidade entre o facto e o dano (nexo de causalidade);
XXIX. Neste caso, não estamos perante uma obrigação em sentido estrito (nos termos do disposto no art. 3.º do CC), pelo que aqui a obrigação só nasce se estivermos perante uma violação culposa dos deveres nascidos da boa-fé, capazes de causar dano;
XXX. Ora, face às declarações dos Autores, não se logrou demonstrar que as suas expectativas tenham sido criadas por qualquer acto ou comportamento da Ré.
XXXI. Veja-se que, no caso dos presentes autos está em causa a prestação de informação preliminar, por parte da Ré, com vista, a eventual celebração de contrato de compra e venda de imóvel.
XXXII. Não se encontrando preenchidos os requisitos resultantes do disposto nos artigos 227º, n.º 1 e 563º do Código Civil, o tribunal a quo
XXXIII. Ao condenar a Recorrente, nos termos em que o fez, o Tribunal a quo violou, por erro de interpretação, os artigos 227º, n.º 1 e 563º do Código Civil e 607º, n.º 4 do CPC.
XXXIV. Não se entende que, portanto, justificada uma indemnização no montante de €8.000,00 (oito mil euros),
XXXV. Isto é, não se encontra justificada quais os danos que o valor em causa pretende compensar.
XXXVI. Para efeitos da obrigação de indemnização dos danos patrimoniais, a equidade funciona como critério indemnizatório supletivo, sendo o juízo de equidade um juízo relacional, afinando o equilíbrio entre os factos e a compensação, surgindo esta como uma indemnização harmoniosa
XXXVII. No tocante à determinação do quantum da indemnização do dano não patrimonial, a lei aponta nitidamente para uma valoração casuística, orientada por critérios de equidade (artº 494º do Código Civil).
XXXVIII. A condenação segundo a equidade está limitada pela prova produzida e deve respeitar os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado.
XXXIX. Não se encontrando, nesses termos, justificada a quantia determinada a título de indemnização.
Os AA. não apresentaram alegação de resposta.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem‑se com:
- A alteração da matéria de facto;
- A determinação da responsabilidade pré-contratual da R.;
- A determinação do dano dos AA.
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Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto:
A. A R. foi legítima proprietária do prédio urbano sito em Lagoa do Barro (…), Montijo.
B. No ano de 2019 os AA., ao verificarem que o bem imóvel estava devoluto de pessoas e bens, tentaram saber quem era o proprietário para o comprarem, tendo aferido que a proprietária do bem imóvel em causa, à data, era a R.
C. Entre AA. e R. não foi celebrado qualquer acordo escrito denominado de contrato promessa de compra e venda.
D. No dia 27 de Fevereiro de 2019, a R. informou os AA. que a venda seria efectuada pelo valor mínimo de € 125.000,00, com a necessária entrega de 5% desse valor a título de sinal aquando da celebração do contrato promessa de compra e venda e o restante valor seria entregue com a celebração da escritura de compra e venda.
E. A R. remeteu à A. uma carta, em substituição da emitida em 04 de Abril de 2019, válida até 04 de Fevereiro de 2020, onde lhe comunica que no seguimento da proposta de crédito imobiliário foi aprovado o financiamento dando-lhe a conhecer as características do financiamento.
F. A R. informou os AA. que não podiam realizar a escritura pública de compra e venda do bem imóvel porque ainda não tinham a licença de utilização do bem imóvel.
G. A licença de utilização foi averbada na inscrição predial do imóvel em 15 de Novembro de 2019.
H. No dia 27 de Maio de 2021 a R. vendeu o imóvel a terceiro.
I. Os AA., após várias deslocações ao balcão do Montijo da R., foram informados que ficassem descansados que o imóvel seria para os AA.
J. A R. informou os AA. que não seria celebrado contrato promessa de compra e venda porque passariam à celebração do contrato definitivo.
L. Os AA. iniciaram no ano de 2019 o pagamento do seguro de vida risco – crédito habitação do bem imóvel, sendo que posteriormente as quantias pagas a título de prémios de seguro foram-lhes restituídas pela seguradora, o que foi aceite pelos AA., sem qualquer reclamação.
M. No dia 10 de Maio de 2021, a A. deslocou-se pessoalmente ao balcão da R., sito no Montijo, onde requereu pessoalmente que fosse agendada a escritura pública de compra e venda porque já estava averbada a licença de utilização na certidão predial do bem imóvel, ao que foi informada que já não era possível a realização.
N. Os AA. ao verificarem que o imóvel havia sido vendido a terceiro ficaram bastante indignados, sentindo-se enganados pela R., dado que desde o ano de 2019 perspectivaram e aguardaram a compra do imóvel, já tendo negociado com a R. o preço e as condições de pagamento/crédito.
O. A R. defraudou as expectativas e confiança que criou nos AA. quanto à aquisição do imóvel.
P. Para além da licença a que se alude em F., ainda estavam em falta outros documentos necessários à celebração da escritura de compra e venda.
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Na sentença recorrida considerou-se como não provado que:
1. As conversas mantidas entre AA. e R. não passaram da transmissão de informações preliminares.
2. A R. não se apercebeu logo que os prémios de seguro estavam a ser cobrados.
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Da alteração da matéria de facto
Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 196-197):
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
E, mais adiante, afirma (pág. 199-200) a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 770) afirmam que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objecto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões (art. 635º)”, mais afirmando que “relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder apresentar a respectiva transcrição”.
E, do mesmo modo, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29/10/2015, relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”.
Revertendo tais considerações ao caso concreto em apreciação, há que afirmar que a R. deu cabal cumprimento ao referido ónus de especificação, quer na sua vertente primária, já que nas conclusões XIX. e XX. concretizou as alterações pretendidas (correspondentes à eliminação do elenco dos factos provados da matéria constante dos pontos I), J) e O), a par da inclusão nesse mesmo elenco de factos provados da matéria constante do ponto 1. do elenco de factos não provados), quer na sua vertente secundária, já que nas conclusões e no corpo da alegação identificou as concretas passagens da prova gravada que, no seu entender, conduzem às alterações pretendidas.
Pelo que é em relação a tais pontos da factualidade provada e não provada, e tão só em relação a estes, que incide a impugnação da R. quanto à decisão de facto.
***
O Tribunal recorrido fundamentou pela seguinte forma a decisão de facto, no que respeita aos pontos compreendidos na impugnação da R.:
Ao considerar como provada e não provada a factualidade acima descrita o Tribunal firmou a sua convicção na apreciação crítica e conjunta das declarações de parte prestadas pelos Autores, nos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas e no teor dos documentos juntos aos autos.
(…)
Ao considerar como provados os factos constantes das alíneas I) e J) o Tribunal firmou a sua convicção nas declarações de parte prestadas pelos Autores conjugadas com os depoimentos das testemunhas MR., FC. e MM.
Da apreciação conjunta destes meios de prova ficou o Tribunal convicto que os Autores tinham e sempre mantiveram interesse na aquisição do imóvel. Esse interesse foi demonstrado de forma insistente à Ré através de diversas deslocações que a Autora efectuou à agência da Ré sita no Montijo. Essas deslocações foram tantas e de forma tão insistente que o funcionário da Ré, a aqui testemunha FC., lhes assegurou que estivessem descansados porque o imóvel lhes seria vendido. E tanto assim foi que o crédito requerido pelos Autores junto da Ré foi-lhes concedido, bem como iniciaram o pagamento dos prémios de seguro inerentes à aquisição do imóvel.
As deslocações e insistências dos Autores resultaram quer das próprias declarações de parte prestadas pelos Autores, como resultaram dos depoimentos das testemunhas FC. e MR., sendo que esta acompanhou a Autora por diversas vezes à agência.
Das declarações de parte dos Autores conjugadas com os depoimentos das testemunhas FC. e MM., ficou o Tribunal convicto que, não obstante terem inicialmente previsto a entrega de 5% do preço a título de sinal aquando da celebração do contrato promessa de compra e venda e que o restante valor seria entregue com a celebração da escritura de compra e venda, posteriormente por decisão da Ré a venda do imóvel passaria a realizar-se sem a celebração de contrato promessa de compra e venda e entrega de sinal, isto é, passariam logo para a celebração de escritura definitiva de compra e venda.
Com efeito, ambas as testemunhas FC. e MM. afirmaram que no caso dos presentes autos, ao invés do que era habitual, não seria celebrado contrato promessa de compra e venda com entrega de sinal, mas que se passaria directamente para a realização da escritura definitiva de compra e venda do imóvel pela Ré aos Autores.
Esta versão (que resulta dos testemunhos dos dois funcionários da Ré) foi confirmada pelos Autores que também disseram que lhes havia sido transmitido que não haveria lugar à realização de um contrato promessa de compra e venda, mas que passariam directamente à celebração do negócio definitivo.
Ficou, pois, o Tribunal convicto que a não celebração de contrato promessa de compra e venda e a não entrega de sinal ficou a dever-se em exclusivo à posição da Ré que assim o decidiu.
(…)
Quanto aos factos provados vertidos nas alíneas M), N) e O) o Tribunal estribou a sua convicção nas declarações de parte prestadas pelos Autores e nos depoimentos das testemunhas FC., MM. e RF.
Dúvidas não subsistem que a Autora, no dia 10 de Maio de 2021, deslocou-se pessoalmente ao balcão da Ré, sito no Montijo, onde requereu pessoalmente que fosse agendada a escritura pública de compra e venda porque já estava averbada a licença de utilização na certidão predial do bem imóvel, ao que foi informada que já não era possível a realização.
O Tribunal ficou convicto que os Autores, perante a informação que lhes foi prestada pelo funcionário da Ré, FC., ficaram a aguardar que o imóvel fosse novamente colocado à venda e quando tal sucedesse celebrariam a escritura de compra e venda.
Todavia, tal não sucedeu e não sucedeu devido à Ré.
Vejamos.
Inicialmente o funcionário da agência, FC., transmitiu aos serviços da Ré que tratam da gestão de vendas (área de desinvestimento de imóveis) que os Autores estavam interessados na compra. Conforme contacto da Ré através de FC. os Autores fizeram uma proposta de compra (que até foi de um valor superior ao posteriormente acordado) e essa proposta foi transmitida à área de gestão de vendas, mais precisamente à testemunha MM. que era, à data, o funcionário que tratava da venda do imóvel. O imóvel veio a ser retirado do mercado com vista à reunião da documentação necessária. Perante esta retirada, a testemunha FC., funcionário da Ré, transmitiu aos Autores que era só aguardarem o regresso do imóvel ao mercado de vendas. No entanto, quando o imóvel voltou ao mercado a Ré nada disse aos Autores e não o fez porque a testemunha MM. deixou de ter o imóvel na sua carteira de vendas e a venda passou para a testemunha RF., também funcionário da Ré na área de gestão de vendas, mas aquele não transmitiu a este que os Autores estavam interessados e que pretendiam adquirir o imóvel. Então, quando o imóvel é novamente colocado no mercado para venda, o funcionário RF. vende o imóvel a terceiro.
Perante tais factos o Tribunal ficou convencido da existência de falta de comunicação entre os funcionários da Ré, pois, se essa comunicação tivesse existido quando o imóvel voltou ao mercado de vendas, os Autores, que mantinham o interesse na compra, tê-lo-iam adquirido. Ora, não podem os Autores, por falta ou ausência de comunicação/passagem de informação na Ré, verem defraudadas as suas expectativas tal como veio a suceder. Os Autores mantiveram sempre firmes a sua pretensão e assim o foram demonstrando ao longo do tempo perante a Ré.
Da forma espontânea e consistente como Autores prestaram declarações e como as testemunhas FC., MM. e RF. depuseram, o julgador ficou convicto que as conversações mantidas com os Autores foram mais além do que a mera transmissão de informações preliminares. Repare-se que a testemunha MM. disse que a intenção e vontade da Ré era proceder desde logo à celebração de escritura de compra e venda, não havendo lugar à celebração de contrato promessa de compra e venda e pagamento de sinal.
Tudo visto, considerou o Tribunal como não provados os factos constantes do ponto 1.”.
Já a R. entende que das declarações dos AA. (na parte que transcreve) resulta que os mesmos nunca poderiam ter criado qualquer expectativa séria sobre a compra do imóvel, não obstante as conversações havidas, desde logo porque “não configuraram as regras e as formalidades legalmente exigíveis à celebração de um contrato de compra e venda de um imóvel”, não tendo, sequer, sido estabelecidos quaisquer prazos ou marcações sobre quando e onde se poderia realizar a escritura. Do mesmo modo, entende que a partir do depoimento de FC. (na parte que transcreve) não é possível identificar “qual o comportamento da Ré que tenha sido causa da ideia distorcida sobre a realidade contratual que aqueles criaram”.
Não está colocado em crise que foram os AA. (mais concretamente, a A.) quem se dirigiu à R., para que a mesma lhes vendesse o imóvel do qual era proprietária. Também não está colocado em crise que a R. os informou do preço pelo qual aceitava vender o imóvel (€ 125.000,00), na sequência da apresentação de uma proposta de aquisição. Do mesmo modo, não está colocado em crise que os AA. concordaram em adquirir o imóvel por esse preço, já que solicitaram à R. o empréstimo desse montante. E também não está colocado em crise que a R. aprovou tal empréstimo, nos termos solicitados pelos AA., como resulta claro do documento 5 junto com a P.I. (trata-se da carta identificada no ponto E. dos factos provados).
Importa ainda atentar que a carta em questão era “válida até 4/2/2020”, o que significa que a R. declarava aos AA. que a aprovação do financiamento, nos termos e com as condições aí especificadas, não sofreria alterações até à data em questão.
Nesta medida, faz todo o sentido aquilo que foi declarado pela A., no sentido de ter apresentado uma proposta de compra do imóvel à R., pelo valor de € 152.000,00, e de ter recebido como resposta da R. que esta aceitava vender o imóvel pelo preço de € 125.000,00 (o mesmo exacto valor que a R. aceitou emprestar, para aquisição do imóvel pelos AA.)
Ou seja, não só se torna credível a afirmação das circunstâncias relatadas pela A., quanto à forma como foi estipulado o preço do imóvel (€ 125.000,00), como quanto à necessidade de “fazer uma proposta de crédito” desse valor (a qual já se viu que foi concretizada e aceite pela R.), como igualmente quanto à desnecessidade de ser assinado qualquer contrato promessa de compra e venda e de os AA. entregarem 5% do valor em questão. Aliás, faz todo o sentido que a R. pudesse “prescindir” da outorga de um contrato promessa, já que era a proprietária e simultaneamente financiadora da totalidade do preço que lhe ia ser pago, assim tendo todas as garantias da integral concretização do negócio, sem carecer de receber qualquer sinal.
E essa credibilidade estende-se à afirmação das repetidas solicitações à R. (na pessoa do funcionário da agência do Montijo, o referido FC.) no sentido da realização da escritura de compra e venda, bem como às informações prestadas pela R. (através do mesmo funcionário), no sentido de ainda não se tornar possível a realização da escritura porque “faltavam documentos para o dossier estar completo”, mas que “não se preocupe que isso vai-se fazer”, bem ainda que “o banco não está aqui para enganar ninguém” e que “quanto tiver novidades, não se preocupe, que eu contacto-a”.
Essa credibilidade sai ainda reforçada pela circunstância, relatada pela A., de ter pedido à R. as chaves do imóvel para o ir visitar, uma vez que queria saber que obras seria necessário fazer no mesmo, sendo que houve duas visitas, ambas na companhia do referido FC.
Do mesmo modo, e no que respeita às declarações do A., as mesmas não se afastam, no essencial, do que foi declarado pela A., antes as corroborando, e só não apresentando o mesmo grau de detalhe porque, como resulta da conjugação de ambas as declarações, o A. estava a residir em França, só vindo a Portugal em períodos de férias, sendo por isso que foi a A. a encetar todas as diligências que foram relatadas.
Será, todavia, que a credibilidade do relatado pelos AA (sobretudo o que foi relatado pela A., com o pormenor acima referido) é susceptível de ser abalada pelo depoimento do referido FC., como pretende a R. que ocorreu?
Do depoimento testemunhal em questão resultam muitas hesitações e omissões, as quais permitem percepcionar a necessidade da testemunha não se comprometer com a versão dos AA., a bem da defesa da posição da sua entidade empregadora (recorde-se que o referido FC. é funcionário da R. desde 1999, na área comercial).
Assim, e desde logo no que respeita à forma como reagiu ao contacto da A., a testemunha FC. tentou dar a ideia de que não passou de um “mero interlocutor entre o Banco e os clientes” e de que “eu aqui intervim apenas e só como facilitador nesse negócio, criando as condições de financiamento para o cliente adquirir o imóvel”, quase fazendo esquecer que foi através do mesmo (enquanto funcionário da R. da área comercial, na agência do Montijo) que foi concretizado o pedido de financiamento que depois foi aprovado, a par da contratação dos seguros de vida e de multirriscos habitação. Do mesmo modo, tal testemunha refugiou-se em lugares comuns, como o das “démarches no sentido da aprovação do crédito” ou o da criação “da viabilidade para o negócio”, tentando fazer passar a ideia que o “banco vendedor” e o “banco financiador” actuavam como se fossem diferentes entidades, para se eximir a qualquer responsabilidade nos contactos com os AA., no que respeita à concretização da compra do imóvel pelo preço correspondente ao financiamento aprovado.
Do mesmo modo, e resultando claro que toda a comunicação da A. com a R. foi através do mesmo, enquanto funcionário da agência do Montijo, não conseguiu concretizar a forma como comunicou que ainda não era possível fazer a escritura, afirmando que “não me recordo” ou que “se foi por escrito, se foi verbal, não lhe consigo dizer”. Do mesmo modo, ainda, não conseguiu esclarecer cabalmente porque é que, depois de ter comunicado à A. “que o imóvel ia ser retirado do mercado e era tempo de suspendermos o processo”, e que ficava a aguardar “que o banco nos dissesse que havia condições para vender a casa”, não comunicou à A. que o imóvel estava novamente disponível para venda, quando assim ocorreu.
Ou seja, e respondendo à questão acima colocada, torna-se evidente que a credibilidade das declarações prestadas pelos AA. não é susceptível de ser abalada pelo depoimento do referido FC.
Do mesmo modo, os restantes depoimentos prestados, designadamente aqueles prestados por MM. e RF., ambos funcionários da R., também não são susceptíveis de abalar a credibilidade das declarações prestadas pelos AA., nos termos acima explicitados, mas antes corroboram tais declarações.
Assim, do depoimento de MM., responsável pela área geográfica onde se situa o imóvel a vender, resulta que a venda do mesmo aos AA. só não foi logo concretizada porque havia uma desconformidade entre a “licença de utilização e a restante documentação, ou seja, caderneta predial e certidão de registo predial”, o que levou a testemunha, não só a tentar encontrar um notário ou conservador que concretizasse a escritura, apesar dessa desconformidade (o que não logrou ocorrer), como igualmente a obter a prorrogação (por quatro vezes) da “manutenção do negócio” (ou seja, do acordo com os AA. para a compra do imóvel pelos mesmos, pelo preço de € 125.000,00), uma vez que “nós queríamos fazer o negócio com a dona CR”.
Do mesmo modo, resulta do depoimento de RF. que quando lhe é entregue a zona geográfica onde o imóvel se situa, o mesmo não lhe surge disponível para venda porque ainda “estava na carteira” do seu colega MM., face ao acordo existente com os AA., e que por isso não conseguia ser do seu conhecimento. E mais explicou que é quando o imóvel fica novamente apto para venda (ou seja, depois de ter sido solucionado o problema da desconformidade documental relatada, que havia originado a sua retirada de venda) que lhe surge como disponível, mas já sem a indicação do interesse dos AA., que era do conhecimento da agência do Montijo, mais concretamente do seu colega FC.. Ou seja, também aqui sai corroborada a afirmação da A., no sentido de ser a partir do referido FC. que havia de lhe ser dado conhecimento de que já se tornava possível efectuar a escritura em falta, uma vez que nunca havia falado com quem quer que fosse, para além desse funcionário da R.
Do mesmo modo, o depoimento de MS. irmã da A. que a acompanhou nas diligências efectuadas, é de molde a confirmar as declarações da mesma, no que respeita aos contactos da A. com a R., exclusivamente na pessoa do referido FC., bem como à afirmação deste que não haveria lugar à entrega de sinal e à assinatura de contrato promessa de compra e venda (como havia referido na comunicação de correio electrónico de 27/2/2019, que corresponde ao teor do documento 4 junto com a P.I.), mas antes que “é para passar directamente à escritura porque isto é muito urgente”, sem pagar o sinal de 5% aí referido.
Ou seja, é por esta via que se consegue retirar das declarações prestadas pelos AA., quando conjugadas com a restante prova documental e testemunhal, a verificação, não só da factualidade vertida nos pontos I. e J., mas igualmente de uma situação de confiança quanto à realização da escritura de compra e venda (já que apenas era necessário que a R. ultrapassasse a falta de documentos que lhes foi comunicada), naturalmente defraudada quando a R. vendeu o imóvel a terceiro, do mesmo modo não sendo possível afirmar que as trocas de declarações entre AA. e R. mais não foram que trocas de informações preliminares, desde logo tendo em atenção o tempo despendido e o grau de pormenorização das informações prestadas pela R.
Em suma, porque os excertos da prova gravada identificados pela R., quando conjugados com toda a restante prova produzida, não conduzem às alterações factuais pretendidas, improcede na sua totalidade a impugnação da R. quanto à decisão do tribunal recorrido sobre a factualidade provada e não provada, que se mantém na íntegra.
***
Da responsabilidade pré-contratual da R.
Na sentença recorrida afirmou-se a responsabilidade da R. no pagamento aos AA. de uma indemnização de € 8.000,00, com fundamento na violação culposa das regras da boa fé durante a negociação mantida com os AA. e na conclusão do negócio, pela seguinte forma:
Exigindo a responsabilidade in contrahendo a verificação cumulativa dos requisitos da responsabilidade civil, ou seja, um facto voluntário (que pode traduzir-se em acção ou omissão) do agente, o carácter ilícito desse facto, a culpa do seu autor e a verificação de um dano causalmente ligado ao facto do agente (nexo de causalidade), importa analisar e decidir, atenta a matéria de facto provada, se, no caso em apreço, se verifica, desde logo, o primeiro dos requisitos necessários para que possa afirmar‑se aquela responsabilidade, isto é, o facto voluntário ilícito.
(…)
Posto isto e subsumindo no precedentemente enunciado enquadramento jurídico a matéria que ficou apurada nestes autos, há que apurar se a Ré violou específicos deveres de conduta na fase das negociações que estabeleceu com os Autores, mormente os deveres de cuidado, bem como os de lealdade, que se lhes impunham, consubstanciado a sua conduta uma violação objectiva da boa-fé, maxime, por ruptura injustificada das negociações.
In casu, a Ré criou nos Autores uma expectativa de aquisição do imóvel. Esta expectativa consistiu num primeiro momento na venda do imóvel aos Autores, pelo preço de € 125.000,00, sem a celebração de qualquer contrato promessa porque, de acordo com a vontade da Ré, seria no imediato celebrado o contrato definitivo de compra e venda, pois, a própria Ré já havia aprovado o pedido de financiamento dos Autores com vista à aquisição e os contratos de seguro exigidos também já haviam sido celebrados. Devido às várias deslocações que os Autores efectuaram à agência da Ré, foi por esta assegurado aos Autores (através de um funcionário da Ré) que o imóvel seria para os Autores. Todavia, como o imóvel não possuía licença de utilização, a Ré decidiu retirar o imóvel do mercado de vendas até que a documentação estivesse reunida para que a venda fosse possível. Como os Autores já se encontravam a pagar prémios de seguro, e disso deram conta à Ré (funcionário da agência da Ré), a Ré decidiu, o que os Autores aceitaram, por termo aos contratos com a consequente devolução das quantias pagas, pois quando o imóvel fosse novamente colocado à venda nada obstava a que os Autores procedessem a nova celebração de contrato de seguro. Mais foi referido aos Autores que era só uma questão de aguardarem que o imóvel fosse novamente colocado à venda.
O imóvel foi novamente colocado no mercado de vendas e foi vendido a terceiro que não os Autores, sendo que os Autores sempre manifestaram e mantiveram interesse na aquisição. Repare-se que a aquisição do imóvel pelos Autores não se veio a concretizar, no entender do Tribunal, decorrente de uma actuação negligente pela Ré, ou seja, quando o imóvel transita de um funcionário da Ré para outro, passando este a ser responsável pela venda, não é transmitido que os Autores tinham interesse na compra, bem como não foi transmitido todas as negociações anteriormente encetadas, o que deveria ter ocorrido, pois foi esta ausência de informação ou de transmissão da informação dentro da Ré que levou a que o imóvel fosse vendido a terceiro. Em nosso entender, perante as insistências e persistência dos Autores, quando estes constataram que o imóvel havia sido vendido a terceiro, ficaram bastante indignados, o que é facilmente compreensível, sentindo-se enganados pela Ré dado que desde o ano de 2019 perspectivaram e aguardaram a compra do imóvel, já tendo negociado com a Ré o preço e as condições de pagamento/crédito. Saliente-se que não logrou a Ré provar que as conversas mantidas entre Autores e Ré não passaram da transmissão de informações preliminares. Com efeito, a situação de facto situava-se num patamar superior à mera transmissão de informações preliminares.
Assim, é de concluir que a Ré defraudou, ainda que de forma negligente, as expectativas e confiança que criou nos Autores quanto à aquisição do imóvel.
A descrita actuação da Ré, inserida na conjuntura em que o foi, consubstancia claramente a violação dos deveres de lealdade, violando a confiança que os Autores nela depositaram (e que não foi assim tão pouca). E a mesma conduta da Ré é objectivamente apta a criar num declaratário normal a segura convicção que era sério propósito daquela vir a vender o imóvel aos Autores, que assim esperaram, factos que se mostram aptos a integrar o referido conceito de violação objectiva da boa fé.
A conduta da Ré é, pois, ilícita, porquanto atentatória daqueles indicados deveres de lealdade e de respeito pelo princípio da confiança a que estava adstrita nas negociações estabelecidas com os Autores, a cujo cumprimento estava vinculada por força do artigo 227º do Código Civil.
Conclui-se, assim, que é possível imputar exclusivamente à Ré a ruptura negocial injustificada (ou a não finalização do negócio – compra e venda do imóvel), a qual constituiu uma clara violação culposa dos deveres a que a Ré estava adstrita nas negociações com os Autores, em especial, dos mencionados deveres de lealdade.
A Ré actuou em violação objectiva da boa-fé, devendo, pois, ser responsabilizada pela reparação dos danos que causou aos Autores.
Os Autores reclamam o pagamento de uma indemnização (valor que posteriormente vieram a reduzir) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais no montante de € 60.000,00 (valor correspondente à redução operada).
Atentos os factos provados, e porque apenas estamos no âmbito da violação das legitimas expectativas e da confiança dos Autores, somos de concluir, em síntese, que se reputa justa e adequada fixar uma indemnização, atentos os critérios de equidade, no montante de € 8.000,00 (oito mil euros), para reparação dos danos ocasionados com a conduta ilícita e culposa da Ré, a qual será condenada a pagar aos Autores esse montante”.
A R. discorda desta fundamentação e da correspondente decisão condenatória porque entende, desde logo, que “da prova produzida teria de resultar expresso que a confiança excessiva criada pelos Autores, tinha resultado por comportamentos reiterados, promessas ou sinais por parte da Ré, que permitissem identificar o não cumprimento dos deveres de cuidado por parte desta, conducentes a criar um determinado dano aos Autores”.
Sucede que os referidos “comportamentos reiterados, promessas ou sinais por parte da Ré” estão perfeitamente demonstrados, como resulta da circunstância de ter sido acordado o preço da compra e venda (€ 125.000,00), de ter sido acordada a forma de pagamento desse preço (na data da escritura, através do capital que a própria R. iria mutuar aos AA.), de ter sido determinada pela R. a desnecessidade de prévia celebração de contrato promessa de compra e venda, e de ter a R. declarado aos AA. que “ficassem descansados que o imóvel seria para” os mesmos, mais lhes declarando que a escritura só não se realizaria de imediato porque ainda não tinha licença de utilização do imóvel (para além de outros documentos necessários para tanto, mas cuja pormenorização não foi transmitida aos AA.).
Ou seja, qualquer declaratário normal, colocado na posição concreta dos AA., interpretaria as declarações da R. como significando que a aquisição do imóvel pelos mesmos estava dada como certa, só não sendo imediatamente concretizada através da celebração da escritura respectiva porque a R. ainda carecia de ultrapassar alguns problemas que tinha com a documentação relativa ao imóvel.
O que é o mesmo que afirmar, ao contrário do pretendido pela R., que os AA. criaram a convicção legítima que a R. iria vender-lhes o imóvel, nos precisos termos acordados com os mesmos, não se tratando das invocadas “meras expectativas fácticas não (…) juridicamente tuteladas”, nem tão pouco de uma “mera convicção psicológica”, não assente em sinais exteriores apresentados pela R.
Dito de outra forma, os AA. passaram a ter a legítima expectativa que iriam adquirir à R. o imóvel da mesma, pelo preço de € 125.000,00, face à conduta da R., designadamente quando lhes explicou que tal aquisição só não ocorria de imediato por causa dos problemas com a licença de utilização do imóvel, mas que essa circunstância em nada fazia perigar a concretização da aquisição pelos AA., assim significando a vinculação da R. a concorrer para essa concretização, não só ultrapassando as referidas contingências documentais, mas comunicando aos AA. que as mesmas já estavam ultrapassadas e que a escritura de compra e venda (e de mútuo) já se podia realizar.
E como foi por essa forma que os AA. orientaram a sua actuação subsequente, considerando-se vinculados ao acordo de vontades que já havia sido alcançado e, nessa medida, solicitando à R. a realização da escritura, assim que tomaram conhecimento que as referidas contingências documentais já tinham sido ultrapassadas, está verificado o referido “investimento de confiança” na conclusão do negócio acordado, a par da violação do mesmo pela R., através da venda do imóvel a terceiro.
Entende a R. que como a compra e venda de imóvel se trata de um negócio formal, porque carece de ser realizado por escritura pública, só na medida em que o sentido das declarações negociais tivesse alguma correspondência em documentos trocados entre as partes é que se podia falar que algo mais havia que a prestação de informações preliminares, por parte da R., e sendo que estas eram insusceptíveis de criar nos AA. a convicção de que a escritura se realizaria.
Tal interpretação carece de qualquer sentido e nem sequer consegue ser retirada da jurisprudência mencionada pela R., que respeita a casos concretos sem quaisquer semelhanças fácticas com o caso dos autos.
Designadamente, no caso apreciado no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 26/9/2006 (relatado por Luís Espírito Santo, disponível em www.dgsi.pt e mencionado pela R.), o que estava em causa era o envio de uma minuta de um contrato promessa de compra e venda de imóvel, assim sendo caracterizada a situação como revelando um acordo informal e insusceptível de gerar responsabilidade indemnizatória, mas sendo igualmente afirmado que não seria assim entendido se tal acordo fosse gerador de “expectativas de tal modo firmes quanto à irreversibilidade do acordo que o comprador interessado houvesse assumido compromissos financeiros reveladores dessa irreversibilidade com o conhecimento do vendedor; ou então se o vendedor desfizesse abrupta e injustificadamente o acordo informal sem dar ao interessado a oportunidade de, pelo menos, “cobrir” a nova oferta; ou ainda se a referência a essa nova oferta não passasse de um estratagema enganador destinado a conseguir um aumento do preço de venda que as partes tinham considerado para constar do contrato-promessa de compra e venda”.
Ora, no caso concreto dos presentes autos a situação é totalmente distinta, aproximando-se muito mais da primeira hipótese colocada do que da situação concreta aí apreciada, desde logo porque a circunstância de os AA. se terem comprometido a que fosse a R. a financiadora da aquisição do imóvel expressa a irreversibilidade do acordado entre as partes, na sua vertente económica e financeira.
Do mesmo modo, o Supremo Tribunal de Justiça afirmou já, no acórdão de 26/1/2006 (relatado por Oliveira Barros e disponível em www.dgsi.pt), que é “válido tanto para os contratos consensuais, como para os contratos formais, o dever de agir de boa fé imposto no art. 227º C.Civ. - a que subjaz clara intenção de protecção do tráfico ou comércio jurídico, necessariamente assente num princípio de confiança”, proibindo o mesmo “toda a conduta que traduza uma apreciável falta de consideração pelos interesses da contraparte”, o que afasta definitivamente a argumentação da R., neste aspecto.
Assim, fazendo uso da jurisprudência e da doutrina identificadas na sentença recorrida (cuja transcrição aqui se dispensa, por mais não representar que uma repetição inútil), e mesmo atendendo àquela jurisprudência identificada pela R. na sua alegação (como acima referido, e ainda que em termos de hipótese), sempre é possível afirmar que, no caso concreto dos autos, verifica-se a identificada conduta da R. violadora das regras da boa fé, quando ignorou aquilo que havia comunicado aos AA. e vendeu o imóvel a terceiro, assim defraudando as expectativas e a confiança que havia criado nos mesmos quanto à compra do imóvel.
Mais se pode afirmar que o conceito de boa fé assim utilizado tem um sentido marcadamente objectivo (correspondente ao “sentido vincadamente ético” que é referido por Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, volume I, 4ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 216), não emergindo da situação concreta dos AA., mas da situação psicológica em que qualquer declaratário normal ficava, se colocado na posição concreta dos AA.
Do mesmo modo, não se pode ignorar o afirmado por Mário Júlio de Almeida Costa (R.L.J., ano 116º, pág. 178), quando afirma que “vincula a referida norma (o artigo 227 do Código Civil) à observância das regras da boa fé, durante os preliminares e a formação do contrato. Infere-se que a análise da responsabilidade pré-contratual (…) pôs a descoberto um conjunto de deveres que configuram uma verdadeira “deontologia da negociação”. Esta não é apenas constituída por caracterizadas normas jurídicas, mas também pela ética das relações sociais e por práticas que se desenvolvem na actividade profissional. Impõe-se, em suma, que os negociadores, especializados ou não, actuem com a probidade e a lealdade de pessoas honestas”. O que manifestamente não corresponde à actuação da R., tal como resulta demonstrado.
Do mesmo modo, ainda, não se pode ignorar o exposto no acórdão de 21/4/2005 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Oliveira Barros e disponível em www.dgsi.pt), quando aí se conclui que “a protecção concedida pelo n. 1 do art. 227 C.Civ. supõe situações de legítima, fundada, estável, consolidada expectativa de que não haverá retrocesso, de que não é já de admitir a possibilidade de alterações substanciais, e a confiança assim justificada na conclusão formal do contrato - tal que arbitrária, injustificada, ao invés, se revelaria decisão unilateral de não contratar”.
E do mesmo modo, igualmente, há que atentar ao exposto no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/4/2017 (relatado por Abrantes Geraldes e disponível em www.dgsi.pt), quando aí se conclui que “viola as regras da boa fé e da lealdade processual, nos termos e para efeitos do art. 227º do CC, a parte que em processo negocial (…) no qual já havia sido estabelecido consenso quanto ao clausulado essencial, comunica simplesmente à contraparte que já outorgou os mesmos contratos com um terceiro com quem vinha negociando paralelamente e sem disso lhe dar conhecimento”.
Ou seja, não há como não qualificar a conduta da R. como ilícita, do mesmo modo não podendo a mesma deixar de ser qualificada como culposa, ainda que no domínio da culpa leve.
Com efeito, aquilo que transparece da factualidade provada é que a R. se “esqueceu” da existência dos AA. e do que se havia comprometido com os mesmos, no sentido da conclusão do negócio acordado, enquanto diligenciava por ultrapassar as contingências documentais verificadas, tendo sido nesse circunstancialismo que acabou por vender o imóvel a terceiro.
Tal “esquecimento” não encontra qualquer justificação, antes revelando uma conduta da R. que podia e devia ter evitado, bastando que no âmbito da sua organização interna tivesse actuado com a diligência mínima, mantendo um fluxo de informação entre todos os seus funcionários/departamentos envolvidos na alienação de património imobiliário e na concessão de financiamento destinado ao pagamento do preço respectivo do património a alienar, e que lhe permitiria que, uma vez ultrapassadas as referidas contingências documentais, constatasse que “estava na hora” de concretizar o acordado com os RR., em vez de se “esquecer” da existência dos mesmos e de ir procurar outro interessado na aquisição do imóvel.
Pelo que é tal actuação negligente da R. que permite afirmar a sua culpa na violação das regras da boa fé a que estava obrigada, no âmbito do negócio acordado com os AA.
O que equivale a afirmar que improcedem na sua totalidade as conclusões do recurso da R., quanto a esta questão da determinação da responsabilidade pré‑contratual da mesma.
***
Do dano dos AA.
Não subsistem dúvidas que a referida actuação ilícita e culposa da R. foi causa de danos de índole psicológica sofridos pelos AA., correspondentes aos sentimentos de indignação, bem como à circunstância de se sentirem enganados e defraudados pela R.
E se é certo que inexistem quaisquer danos de natureza patrimonial que tenham resultado provados, os mencionados danos de natureza não patrimonial não devem deixar de ser objecto de reparação, desde logo porque ultrapassam qualquer situação de mera incomodidade ou contrariedade, antes apresentando a gravidade que o art.º 496º do Código Civil exige para que mereçam tutela jurídica.
Com efeito, os sentimentos em questão representam a expressão psicológica do denominado interesse contratual negativo, na medida em que correspondem a danos que os AA. não teriam sofrido se não fosse a expectativa na conclusão do negócio que se frustrou.
Como ficou referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/10/2012 (relatado por Bettencourt de Faria e disponível em www.dgsi.pt), “a responsabilidade civil pré-contratual não se confunde com a responsabilidade civil contratual, nem com a responsabilidade civil extracontratual, constituindo um tertium genus de responsabilidade civil”, mais ficando referido que “neste tipo de responsabilidade a indemnização abrange o interesse contratual negativo, podendo, em casos limites e de acordo com as circunstâncias concretas do caso, incluir o interesse contratual positivo, se já existia um acordo global e faltava apenas a formalização do negócio”.
Também no acórdão de 25/2/2014 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Maria Clara Sottomayor e disponível em www.dgsi.pt) foi reconhecido que “a responsabilidade pré-contratual abrange os danos, patrimoniais e não patrimoniais, provenientes da violação de deveres de informação e de lealdade decorrentes do dever de boa fé pré-negocial”.
Todavia, tendo na sentença recorrida sido fixada em € 8.000,00 a medida da reparação dos danos não patrimoniais em questão, entende a R. que tal determinação não respeita a equidade nem tão pouco “os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado”.
Não sofre qualquer controvérsia que “a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido equivalente ao dano, isto é, de valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão. Trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo apenas moral, não é susceptível de equivalente” (Vaz Serra, B.M.J. nº 83, pág. 85).
Mas, do mesmo modo, importa não esquecer que, como este Tribunal da Relação de Lisboa já afirmou, no acórdão de 10/2/2022, relatado pelo ora 1º adjunto e disponível em www.dgsi.pt), “a responsabilidade civil por danos não patrimoniais assume uma dupla função: compensatória e punitiva: Compensatória, na medida em que o quantum atribuído a título de danos não patrimoniais consubstancia uma compensação, uma satisfação do lesado, na qual se atende à extensão e gravidade dos danos; Punitiva, na medida em que a lei enuncia que a determinação do montante da indemnização deve ser fixada equitativamente, atendendo ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica desta e do lesado e às demais circunstâncias do caso”.
Por outro lado, e como há muito vem referindo a doutrina, a gravidade do dano não patrimonial “há-de medir-se por um pa­drão objectivo (...) e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)” (Pires de Lima e Antunes Varela, anotação ao art.º 496º do Código Civil, in Código Civil anotado, volume I, 4ª edição, Coimbra, 1987).
Por outro lado, ainda, “está definitivamente enterrado o tempo da atribuição de indemnizações baixas, miserabilistas; hoje, os tribunais estão sensibilizados para a quantificação credível dos danos não patrimoniais - credível para o lesado e credível para a sociedade, respeitando a dignidade e o primado dos valores do ser, como acontece com a integridade física e a saúde, que o Estado garante a todos os cidadãos (art.ºs 9º, b), e 25º, nº 1, da Constituição)” (segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/5/2005, relatado por Nuno Cameira e disponível em www.dgsi.pt). Do mesmo modo, e segundo o mesmo acórdão, as “indemnizações adequadas passam com cada vez maior frequência por uma valorização mais acentuada dos bens da personalidade física, espiritual e moral atingidos pelo facto danoso, bens estes que, incindivelmente ligados à afirmação pessoal, social e profissional do indivíduo, “valem” hoje mais do que ontem; e assim, à medida que com o progresso económico e social e a globalização crescem e se tornam mais próximos toda a sorte de riscos - riscos de acidentes os mais diversos, mas também, concomitantemente, riscos de lesão do núcleo de direitos que integram o último reduto da liberdade individual, - os tribunais tendem a interpretar extensivamente as normas que tutelam os direitos de personalidade, particularmente a do art.º 70º do Código Civil”. E do mesmo modo, ainda segundo o mesmo acórdão, a “indemnização prevista no art.º 496º, nº 1, do CC, mais do que uma indemnização é uma verdadeira compensação: segundo a lei, o objectivo que lhe preside é o de proporcionar ao lesado a fruição de vantagens e utilidades que contrabalancem os males sofridos e não o de o recolocar “matematicamente” na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse ocorrido; a reparação dos prejuízos, precisamente porque são de natureza moral (e, nessa exacta medida, irreparáveis, é uma reparação indirecta)”.
Ou seja, desde logo há que não esquecer a necessidade de que “o montante a arbitrar seja significativo e se afaste do miserabilismo comum, conforme vem sendo afirmado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça” (segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/1/2016, relatado por Orlando Afonso e disponível em www.dgsi.pt).
E havendo que recorrer a juízos de equidade para a determinação da indemnização por danos não patrimoniais (face ao disposto no art.º 496º do Código Civil), a actividade do julgador passa por uma comparação jurisprudencial, por só assim lograr fixar um montante indemnizatório que se mostre equilibrado e respeitador da justiça relativa das decisões judiciais.
É manifesto que na fundamentação da sentença recorrida não está demonstrada a realização dessa comparação jurisprudencial, pelo que importa realizar a mesma em sede do presente recurso.
Assim, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 19/5/2009 (relatado por Rosa Ribeiro Coelho e disponível em www.dgsi.pt), fixou-se em € 20.000,00 a indemnização por danos não patrimoniais, devida a cada um dos aí dois autores, considerando o “abalo profundo devido ao ruir do projecto em que haviam apostado como nova actividade profissional, em troca das situações estáveis a que haviam posto termo para poderem ficar disponíveis para o seu novo objectivo”, e mais se considerando que os aí autores se sentiram “enganados pelo réu, que, com criticável negligência e leviandade, os induziu a agir na convicção de uma segurança indemonstrada do projecto; e viram afectada a sua imagem junto de terceiros”.
Já no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 19/5/2011 (relatado por Teresa Albuquerque e disponível em www.dgsi.pt), confirmou-se a indemnização de € 10.000,00 por danos não patrimoniais, fixada pela instância recorrida, considerando o “estado de grande ansiedade e angústia” em que viveram os aí autores, entre a “data em que tomaram conhecimento da existência da hipoteca [constituída pelos réus sobre o imóvel prometido vender]  – 12/4/2006- e a da realização da escritura definitiva - em 11/5/2006 (portanto, não mais de um mês, mas quase um mês)”.
Já no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/1/2014 (relatado por Anabela Luna de Carvalho e disponível em www.dgsi.pt), confirmou-se a indemnização de € 3.500,00 por danos não patrimoniais, fixada pela instância recorrida para cada um dos dois autores, considerando  o vexame, a vergonha e a humilhação sentida por cada um dos autores, pelo facto da ré instituição bancária ter comunicado ao Banco de Portugal “uma situação que, ainda, não configurava, por não preencher os requisitos legais, um verdadeiro incumprimento”, em violação dos deveres de cuidado que se lhe impunham.
Já no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 20/5/2014 (relatado por Isabel Fonseca e disponível em www.dgsi.pt), confirmou-se a indemnização de € 10.000,00 por danos não patrimoniais, fixada pela instância recorrida, considerando que “desde final de 2008 a autora vive num clima de angústia profunda, ansiedade e perturbação, por ser alvo de constantes solicitações do 1º réu [instituição bancária], no sentido da liquidação do empréstimo [que a autora não celebrou com o 1º réu] e por ver o seu bom nome e honorabilidade, postos em causa, pelo facto de ter sido comunicado o seu débito ao Banco de Portugal” em violação dos deveres de cuidado que se lhe impunham.
Já no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 28/9/2017 (relatado por Jorge Leal e disponível em www.dgsi.pt), fixou-se em € 5.000,00 a indemnização por danos não patrimoniais, considerando que o aí autor “ficou incomodado, sentiu vexame e sofreu alterações de humor, passando dias e noites irritado” pela inclusão do seu nome na base de dados de incumpridores, transmitida e comunicada ao Banco de Portugal, mas considerando igualmente que a aí ré (instituição bancária que procedeu a tal comunicação) reconheceu e corrigiu a situação em cerca de duas semanas, e considerando ainda que nessa base de dados já figurava um incumprimento do autor.
Já no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 16/5/2019 (relatado por Cristina Neves e disponível em www.dgsi.pt), fixou-se em € 2.500,00 a indemnização por danos não patrimoniais, considerando que os aí autores se sentiram “envergonhados e humilhados pelo facto de serem reputados como incumpridores, perante as instituições financeiras e bancárias, por reporte à comunicação de “crédito vencido””, já que a comunicação correcta devia ser a de “crédito renegociado”.
Por outro lado, e a respeito do ressarcimento de danos não patrimoniais decorrentes de lesões corporais, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/6/2009 (relatado por Maria dos Prazeres Pizarro Beleza e disponível em www.dgsi.pt) a indemnização foi fixada em € 40.000,00, tendo em atenção a situação de internamento em sucessivos hospitais durante tempo considerável, a existência de uma situação de incapacidade absoluta durante 12 meses, a sujeição a diversas intervenções cirúrgicas e tratamentos, prolongados no tempo, os danos físicos extensos e as sequelas irreversíveis e gravosas (ao nível da bacia e da desigualdade dos membros inferiores), bem como as sequelas emocionais.
Do mesmo modo, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1/6/2011 (relatado por Manuel Braz e disponível em www.dgsi.pt) a indemnização pelos danos não patrimoniais foi fixada em € 25.500,00, tendo em atenção a existência de 6 intervenções cirúrgicas, um período de internamento de cerca de 9 meses, a existência de sessões diárias de fisioterapia e um quantum doloris de grau 5, a par das lesões, sequelas e cicatrizes no membro inferior esquerdo, para além da angústia e ansiedade gerada pela sua situação de incapacidade.
Do mesmo modo, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7/6/2011 (relatado por Granja da Fonseca e disponível em www.dgsi.pt) foi confirmada a indemnização de € 25.000,00 fixada pelas instâncias recorridas, tendo em atenção uma incapacidade temporária profissional de cerca de 10 meses, os tratamentos ambulatórios a que se submeteu o lesado, designadamente extracções e intervenções dentárias, um quantum doloris fixável em grau 4, bem como as dores e angústias que sentiu e sente.
Do mesmo modo, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/6/2011 (relatado por Maia Costa e disponível em www.dgsi.pt), a indemnização pelos danos não patrimoniais foi fixada em € 25.000,00, tendo em atenção “as lesões físicas sofridas pelo demandante, em que sobressai a fractura do cotovelo esquerdo, que o obrigou a uma intervenção cirúrgica e a um período de 30 dias de incapacidade temporária geral e profissional total, seguido de um período de 177 dias de incapacidade temporária geral e profissional parcial; as dores sofridas, tendo sido fixado o “quantum doloris” no grau 5, numa escala até 7; o dano estético, constituído pela cicatriz de 14 cm, fixado no grau 3, numa escala até 7”.
E no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/4/2013 (relatado por Pereira da Silva e disponível em www.dgsi.pt) já se havia concluído que “se a lesada, com 51 anos à data do sinistro (29-08-2005), gozava de boa saúde, era bem humorada, equilibrada, saudável, alegre e trabalhadora, e em consequência do mesmo sofreu graves lesões (fractura do fémur reduzida com placa e parafusos de osteossíntese, que ainda hoje mantém, e lesão traumática do menisco externo do joelho esquerdo), que lhe impuseram a efectivação de duas intervenções cirúrgicas, com internamento por 8 dias, sendo seguida em consultas até 3-06-2006, andando com duas canadianas até Fevereiro de 2006, e uma até Maio do mesmo ano e viu a sua qualidade de vida afectada de forma irreversível (sofreu 90 dias de ITA e 189 de ITP, tem dificuldade em subir e descer escadas, falta de força no membro inferior esquerdo, dor no compartimento interno do joelho esquerdo, com atrofia muscular da coxa esquerda em 3 cms, não podendo andar muito, nem fazer as caminhadas que fazia, ou andar de bicicleta, sente dores na perna e coxeando, tornou-se impaciente, evitando sair de casa, onde faz as tarefas domésticas com acrescido esforço e ajuda de terceiros, e sentindo-se deprimida e triste com a situação), tem-se como equitativa a compensação de € 40 000, ao invés dos € 20 000, fixados na Relação”.
Já no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7/5/2014 (relatado por João Bernardo e disponível em www.dgsi.pt) concluiu-se que “relativamente a pessoa de 25 anos que:
Sofreu lesões que demandaram período longo até à estabilização;
Ficou com paralisia parcial, com parestesias nos dedos da mão esquerda, na metade esquerda dos líbios, hemilíngua e hemiface esquerda;
Passou a sentir dormência na cara e ponta dos dedos e lado esquerdo, com dificuldades em comer e mastigar principalmente do lado esquerdo;
Perdeu força na mão, braço e perna esquerdas;
Tem desequilíbrios na perna esquerda;
Abandonou o desporto e da dança;
Sofre irritabilidade, insónias, alguma perda de memória e coordenação de ideias, tendo momentos de grande depressão e ansiedade;
Ficou com duas cicatrizes de 6X2 cm na face anterior duma das pernas, não indo, por isso, à praia, nem usando calções e saias;
É adequado o montante compensatório relativo aos danos não patrimoniais de € 80.000,00”.
E no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/2/2018 (relatado por Fátima Gomes e disponível em www.dgsi.pt), foi confirmada a indemnização de € 8.000,00 fixada pelo Tribunal da Relação, entendendo-se que a mesma se mostrava adequada e proporcional à natureza e gravidade das lesões sofridas pelo lesado (fractura do maléolo tibial direito), às dores e ao sofrimento sentidos aquando do acidente e nos períodos de tratamento e convalescença (quantum doloris de grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente), ao período de convalescença e em que esteve incapacitado para as suas actividades habituais (125 dias, no total), aos tratamentos a que foi sujeito (perna engessada durante seis semanas e mais seis semanas a andar com canadianas), às sequelas que o acompanharão pelo resto da vida (dor residual no tornozelo e pé direitos), à repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de que ficou a padecer, fixada no grau 3 (numa escala de 7 graus de gravidade crescente), e aos incómodos e à tristeza decorrentes do acidente, das lesões que sofreu e das sequelas com que ficou.
Todavia, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/9/2019 (relatado por Maria do Rosário Morgado e disponível em www.dgsi.pt) concluiu-se que “resultando dos factos provados que: (i) o recorrente foi sujeito a exames médicos e vários ciclos de fisioterapia, bem como uma intervenção cirúrgica; (ii) ficou afectado com um défice funcional permanente de 32 pontos; (iii) sofreu dores quantificáveis em 5 numa escala de 7 pontos; (iv) sofreu um dano estético quantificado em 3 numa escala de 7 pontos; (v) a repercussão das sequelas sofridas nas actividades desportivas e de lazer é quantificada em 3 numa escala de 7 pontos; (vi) o recorrente sofreu um rebate em termos psicológicos, em virtude das lesões e sequelas permanentes, designadamente por não poder voltar a exercer a sua profissão habitual e/ou outra no âmbito da sua formação profissional; revela-se ajustado o montante de € 50 000,00 para compensar os danos não patrimoniais por aquele sofridos”.
Ou seja, comparando os diversos graus de gravidade e extensão dos danos não patrimoniais que resultam de lesões corporais, com os diversos graus de gravidade e extensão dos danos não patrimoniais que resultam de estados puramente psicológicos decorrentes de ofensas à honra, credibilidade e bom nome, torna-se evidente que os primeiros são valorados, na maioria das vezes, em medida superior aos segundos, situação a que não será estranha a existência de repetidas interacções médicas e medicamentosas, limitações funcionais e demais situações relacionadas com o dano corporal, seu tratamento e sequelas, todas elas indutoras de afecções múltiplas de natureza psicológica (de que os estados dolorosos são o seu expoente máximo).
Mas, do mesmo modo, importa não perder de vista que as situações acima relatadas de dano corporal e respectivas sequelas emergem de factos praticados com negligência, e não com dolo. O que igualmente sucede nos casos acima referidos em que estão em causa ofensas à honra, à credibilidade e ao bom nome.
Assim, comparando os diversos graus de gravidade e extensão dos danos não patrimoniais verificados em cada uma das decisões acima referidas com o grau de gravidade e extensão dos danos não patrimoniais sofridos pelos AA., tendo presente (como já se deixou dito) que a gravidade do dano não patrimonial “há-de medir-se por um padrão objectivo (...) e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)”, mas não esquecendo igualmente (como também já se deixou dito) a necessidade de que “o montante a arbitrar seja significativo e se afaste do miserabilismo comum, conforme vem sendo afirmado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça”, a expressão pecuniária da sua compensação deve manter-se no indicado montante de € 8.000,00, que, se foge aos padrões da proporcionalidade e da igualdade que a R. reclama, é por defeito (que este Tribunal de recurso está impedido de corrigir, em obediência ao principio do dispositivo), e não por excesso.
Ou seja, nesta parte improcedem igualmente as conclusões do recurso da R., não havendo que fazer qualquer censura à sentença recorrida.
***
DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso da R. e mantém-se a sentença recorrida.
Custas do recurso pela R.

Lisboa, 1 de Junho de 2023
António Moreira
Carlos Castelo Branco
Orlando Nascimento