Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | ORLANDO NASCIMENTO | ||
| Descritores: | EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA ADJUDICAÇÃO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/10/2006 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | AGRAVO | ||
| Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO | ||
| Sumário: | I- A decisão prevista no artigo 50.º/4 do Código das Expropriações de 1991 constitui uma verdadeira decisão judicial com as características de conhecimento, fundamentação próprias de uma decisão judicial, não se tratando de um qualquer despacho tabelar que se limite a emprestar respeitabilidade a um acto da administração pública, impondo-se ao juiz verificar se houve declaração de utilidade pública, se foi dado cumprimento ao disposto no artigo 39.º/2 do CE (apensação de processos nas condições previstas), se os peritos que realizaram a arbitragem foram designados pelo Presidente do Tribunal da Relação. II- A lei processual admite que se excepcione o princípio do contraditório (artigo 3.º/2 do Código de Processo Civil), impondo-se, no entanto, reconhecer que a prolação da decisão de adjudicação a que alude o referido artigo 50.º/4 do Código das Expropriações de 1991 nem sequer configura violação de tal princípio não só porque o expropriado já tomou anteriormente conhecimento do processo de expropriação litigiosa, como aquela adjudicação tem a sua génese num acto de jus imperii, não visando a regulação de interesses contrapostos, antes a afirmação do interesse público originado no acto de Declaração de Utilidade Pública (D.U.P.) praticado pelo Estado na prossecução do interesse público. III- O pedido de expropriação total do prédio, nos termos do artigo 3º do Cód. das Exp. há-de referir-se necessariamente à parte restante do prédio a expropriar, não a prédio diferente, embora pertencente ao mesmo expropriado e próximo ou distante da obra pública a executar. (SC) | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa. 1. RELATÓRIO LUSUPONTE – CONCESSIONÁRIA PARA A TRAVESSIA DO TEJO, S. A., na qualidade de concessionária da obra pública “Nova Travessia Rodoviária sobre o Tejo em Lisboa”, invocando pedido de expropriação total da expropriada, organizou processo de expropriação litigiosa referente à “parcela n.º 116”, pertencente à S.[…]Lda. Essa “parcela” tem a área de 21.600 m2 e corresponde ao prédio denominado “M.[…]” ou “M.P.[…]”, que confronta a norte, a sul e a poente com o Esteiro da Hidráulica, sito na Conservatória do Registo Predial […]. Relativamente a essa e outras “parcelas” foi publicado no D. R. II Série, n.º 148, de 30/06/1997 um despacho do Secretário de Estado das Obras Públicas, datado de 27 de Junho de 1997 autorizando a Lusoponte “…nos termos dos artigos 13.º, n.º 2 e 17.º, n.º 1 do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro, a tomar posse administrativa das parcelas descriminadas no mapa em anexo, situadas na área das salinas do Samouco, descritas na matriz predial da freguesia de Alcochete, propriedade da S.[…], Ld.ª…”. Em 15/10/1997 foi realizada vistoria ad perpetuam rei memoriam. Em 20/10/1997 foi lavrado auto de posse administrativa da referida parcela. Nomeados os Árbitros, estes atribuíram ao prédio em causa o valor de 4.766.720$, que foi depositado. Recebido o processo no Tribunal Judicial do Montijo, o Mm.º Juiz proferiu despacho, com data de 05/07/1999, no qual, depois de considerar que: “alega a expropriante que a parcela n.º 116 a que se reportam os presentes autos é parte integrante de um conjunto de prédios relativamente aos quais a expropriada formulou pedido de expropriação total, na sequência de declaração de utilidade pública de expropriação das parcelas do troço de “viaduto sul” identificadas pelos n.ºs 11.1 a 13.2. Contudo, do despacho que autorizou a expropriante a tomar posse administrativa das propriedades pertencentes à S.[…] Lda., identificadas em mapa anexo ao despacho, não resulta qualquer correspondência entre os prédios aí identificados e o número da parcela ora em causa. Ressalta ainda que a parcela n.º 116 ora em causa é denominada “M.[…]” ou”M.P.[…]”, sendo que no referido mapa são discriminadas três salinas com número de artigo e descrição na Conservatória do Montijo (e não Alcochete) – M.[…], M.[…] - M.G. […]”, convida a expropriante a dizer o que tiver por conveniente em dez dias. Notificada, a Lusoponte por requerimento de fls. 149, informou, além do mais, que a parcela 116 corresponde ao prédio, marinha de sal, denominada “M.[…]” ou “M.P.[…]” e que a mesma se encontra, agora, descrita na Conservatória do Registo Predial […] Após, foi proferido despacho, no mesmo Tribunal, por diferente juiz, com data de 21/07/1999, adjudicando a propriedade da parcela à expropriante. Este despacho veio a ser rectificado a fls. 768 dos autos, por despacho proferido em 03/01/2001, no qual se declarou: “…devendo ler-se na decisão de adjudicação que a parcela n.º 116 é adjudicada ao Estado Português, em vez de à expropriante”. E veio, novamente, a ser rectificado por despacho de 22/04/2004 (mesma data do despacho de sustentação do agravo e da sentença recorrida) nos seguintes termos: “No despacho de adjudicação de propriedade vemos que foi referido que “por despacho de 27/02/95, publicado no D. R. n.º 68, II Série, o Sr. Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações declarou a utilidade pública com carácter de urgência da parcela n.º 11. 1 a 13. 1, sem se fazer menção a que a expropriada requereu a expropriação total e ao despacho do Secretário de Estado das Obras Públicas, havendo já, naquele momento, elementos no processo que permitem efectuar esta menção. Assim, nos termos do art.º 667.º do C. P. C, passo a rectificar o despacho de adjudicação da propriedade no sentido de nele passar a constar o seguinte: “ II – Por despacho de 27 de Fevereiro de 1995, publicado no DR, n.º 68 II série, o Sr. Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações declarou a utilidade pública com carácter de urgência da expropriação das parcelas de terreno da expropriada, localizadas na zona denominada Salinas do Samouco, tendo a expropriação da parcela n.º 116, que se mostra necessária à recuperação da área daquelas salinas, resultado do deferimento do pedido de expropriação total da expropriada, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 53.º do Cód. Das Exp., e versou as parcelas de terreno correspondentes aos prédios identificados no despacho n.º 2928-A/97, de 27.06, do Senhor Secretário de Estado da Obras Públicas, publicado no DR n.º 148/94, de 30.06.”. Inconformada com o despacho de 21/07/1999, a expropriada dele interpôs recurso, recebido como agravo, a subir com o primeiro que, depois dele, deva subir imediatamente, com efeito meramente devolutivo, pedindo a sua revogação e formulando para o efeito as seguintes conclusões: 1.ª O despacho que adjudica o direito de propriedade do imóvel, interpretou o n.º 4 do art.º 50.º do C. E, de uma forma que, ao prescindir da prévia notificação e audição da expropriada, viola o disposto no n.º 4 do art.º 20.º e art.º 62.º da Constituição, art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, bem como o disposto nos art.º 3.º e 3.º a do C. P. Civil. 2.ª O despacho em causa, assim, viola o princípio da igualdade das partes na sua vertente do direito da expropriada a intervir no processo judicial após a arbitragem e antes de lhe ter sido retirado o direito de propriedade - pelo que, face àquelas disposições legais, não podia ter sido proferido como foi. 3.ª Sem prescindir, a decisão recorrida é nula, por falta de fundamentação de facto e de direito exigível. 4.ª Ainda que não se julgue assim e se entenda que ela atendeu à DUP doc. 1 da p. i., então, nesse caso, ela baseia-se num falso pressuposto pois considera que o imóvel foi objecto da DUP doc. 1 do req. Inicial, quando, tal acto administrativo, não se refere a este. 5.ª Quanto a este, nenhuma parcela do imóvel foi objecto de DUP e, nem tão pouco foi a sua totalidade. 6.ª Só pode existir expropriação litigiosa da totalidade de um imóvel, a pedido da expropriada se, nos termos do n.º 2 do art.º 3.º e art.º 53.º do CE, existiu DUP de expropriação de uma sua parcela. 7.ª A decisão da Lusoponte, em resposta ao alegado pedido de expropriação total de imóveis da expropriada não abrangidos pela DUP parcelar doc. 1 do req. Inicial (D. R. 23.3.95), não se refere ao imóvel destes autos, nem pode ser interpretada com tal abrangência, face ao n.º 2 do art.º 3.º e art.º 53.º do CE. 8.ª O alegado pedido de expropriação total, ou resultava em transferência dos direitos de propriedade por mútuo acordo, nos termos do art.º 2.º 32.º a 36.º do CE, ou, na falta deste, não tendo existido DUP sobre parcela do imóvel ora em causa, então, por força do n.º 2 do art.º 62.º da Constituição e, art.º 1.º e n.º 2 do art.º 10.º do CE explicitam, não há título legal para a expropriação litigiosa. 9.ª A obrigação de expropriar o imóvel em causa, tal como consta da Base LXVIII DL n.º 168/94 de 15/06, não dispensa uma específica DUP, por força do n.º 2 art.º 62.º da Constituição e, art.º 1.º e n.º 2 art.º 10.º do CE – a qual, de facto, não existe. 10.ª Tal falta, configura-se como omissão de causa de pedir ou de elemento/pressuposto nuclear do processo judicial de expropriação, pelo que, face ao disposto na al. e) art.º 287.º e/0u al. e) n.º 1 art.º 288.º CPC, a decisão recorrida não só não podia adjudicar a propriedade, como devia extinguir a instância. 11.ª por se encontrarem nos autos todos os elementos que permitem a correcta apreciação das questões, deve o Tribunal “ad quem” anular a decisão e julgar extinta a instância, por falta insanável da DUP do imóvel em causa. A Lusoponte contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida. O Tribunal a quo sustentou a sua decisão, argumentando, em síntese, que a expropriação em causa resultou de um pedido de expropriação total por parte da expropriada. A Lusoponte e a expropriada interpuseram recurso da decisão arbitral, declarando esta que o fazia subsidiariamente, não prescindindo dos outros meios processuais nos quais, grosso modo, põe em causa a existência da expropriação. Teve lugar a avaliação, tendo os peritos nomeados pelo Tribunal e indicado Lusoponte apresentado relatório atribuindo ao prédio em causa o valor de 5.327.500$00 e o perito indicado pela expropriada o valor de 75.016.800$00. Foi proferida sentença julgando improcedentes os recursos e atribuindo ao prédio o valor de 12.510.700$00. Inconformadas com essa decisão, dela interpuseram recurso a Lusoponte e a expropriada, recebidos como apelação, declarando a expropriada que mantinha interesse no Agravo. A Lusoponte formulou as seguintes conclusões: 1.ª No presente processo expropriativo chegaram os Srs. Peritos – quer os nomeados pelo Tribunal quer o nomeado pela expropriante – a um consenso sobre o valor real e corrente da parcela expropriada, valor este quantificado em Esc.: 5.327.500$00. 2.ª O Tribunal a quo fixou, porém, o valor de Esc.: 12.510.700$00, tendo-se afastado do laudo maioritário dos Srs. Peritos num único factor – o preço médio ponderado de 1 kg de peixe – matéria, portanto, puramente técnica e sem fundamentos sérios que o justificasse, nomeadamente sem haver suscitado uma única questão de direito com relevância para o cálculo da indemnização, padecendo, por isso, a sentença recorrida de erro de julgamento. 3.ª A isto acresce que o único factor de divergência – o referido preço médio ponderado de 1 kg de peixe – vem fixado pelo Tribunal a quo em termos contraditórios com toda a fundamentação anteriormente plasmada na sentença em crise, padecendo, por isso, a sentença de nulidade por vício de oposição dos fundamentos com a decisão, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea c) do CPC. A expropriada formulou as seguintes conclusões: 1.ª A ora apelante mantêm o interesse no agravo, contra o despacho de adjudicação da propriedade, o qual, prioritariamente, deve apreciar-se, sem prejuízo do que a seguir se expressa. 2ª - A sentença dá como provado que: «Por despacho publicado no D.R. nº 148, II Série, suplemento de 30/06/97 foi declarada a utilidade pública da expropriação da parcela identificada com o nº 116», mas tal afirmação é falsa, não passa de um ligeireza e um equívoco do Julgador, pois, aquele acto não se refere à DUP de expropriação, carecendo, assim, a instância do pressuposto processual indispensável, e cuja falta determina a sua impossibilidade legal, o que se deve declarar para todos os efeitos, conforme art. 287º, al. c) do CPC. 3ª - A sentença julga mal a matéria de facto, em violação clara do princípio constitucional de que o valor da indemnização deve corresponder ao preço de mercado, quando não inclui na factualidade provada os preços oferecidos pela expropriante antes do processo e os praticados na mesma zona, matéria que consta dos documentos juntos pela expropriada, na p.i. do recurso, e não impugnados. 4ª - A sentença, na parte em que adere ao relatório conjunto da maioria dos peritos faz sua a aplicação inconstitucional do art. 26 nº1 do Cód. Expropriações anterior (actual art. 27º nº 3), uma vez que, ao arrepio da ratio legis do preceito, aceita uma perícia que teve como fim, resultado e pressupostos, a avaliação da parcela para um uso possível, em detrimento do efectivo, mas obtendo uma avaliação inferior à da anterior arbitragem, onde ela se avaliou para o uso efectivo. 5ª - Com efeito, o relatório subscrito pela maioria dos peritos deve rejeitar-se, liminarmente, e na sua totalidade, por que desconsiderou e alterou os factos relativos à prática agrícola da parcela, com a implícita finalidade de obter, como conseguiu, trocando a avaliação da parcela no uso efectivo para um uso possível (piscicultura), um valor indemnizatório substancialmente inferior – aplicando, assim, o nº 1 do art. 26º do Cód. Exp. vigente então, de forma inconstitucional, e claramente aberrante. 6ª - Mesmo que não se considere assim, a sentença não supriu a nulidade da avaliação em causa, quanto à ininteligível e incontrolável – e por isso nula – falta da fundamentação legalmente devida, e especialmente exigida, no tocante à produtividade da parcela numa hipotética mas possível exploração piscícola. 7ª - Ora, considerando a matéria de facto provada, deve considerar-se correcta a jurisprudência que já se estabeleceu nesta Relação (Processo nº 9642/03 da 6ª Secção), para parcela igual, na mesma zona, e na mesma expropriação, considerando a possibilidade de uso agrícola da parcela, e fixando-se indemnização de 900$00/m2, por força do princípio constitucional da igualdade. 8ª - Em todo o caso, o valor indemnizatório do m2, determinado conforme conclusões anteriores, deve aplicar-se a toda a parcela, por ser dominante o destino económico subjacente àquelas estimativas, e não apenas a uma ou outra área. 9ª - A sentença erra nesta matéria, uma vez que não existindo duas entidades a tirarem rendimentos da parcela (um proprietário, a ora expropriada, e um inquilino inexistente), avaliar o seu rendimento para um arrendamento, de uso e para pastorícia, representa atribuir à expropriada, a indemnização que caberia a rendeiro, se tal realidade existisse. 10ª - De resto, impõe-se corrigir, também aqui, os factos provados, fixando-se que, pelo menos na área de 7.000 m2 em data anterior à data da perícia – isto é, na data do relatório ad perpetuam rei memoriam e na data da arbitragem –, tal área podia ser usada e «era adequada» à cultura arvense de sequeiro. 11ª - Em conformidade com o que antecede, deve avaliar-se esta área pelo valor de 900$00/m2, para o uso agrícola, conforme a jurisprudência já estabelecida, para a mesma zona e acima referida, ou caso contrário, deve-se fixar-lhe o mesmo valor que para o possível uso dominante da parcela. 12ª - Por outro lado, a decisão que condena a expropriada nas custas conforme o decaimento, faz interpretação da al. s) art. 6º do Cód. Custas Judiciais aplicável, contrária ao princípio constitucional da defesa plena e sem ameaça de sanções do direito fundamental de propriedade, violando desse modo, o disposto em nºs 1 e 4 do art. 20º e nº 2 art. 62º da CRP, tanto mais que não é sequer necessária a indicação do valor da indemnização peticionada, e de resto, a expropriada indicou como valor tributário o fixado pela arbitragem. 2. FUNDAMENTAÇÃO A) OS FACTOS A matéria de facto a considerar é a descrita na sentença, a fls. 1213 a 1215, para a qual remetemos, na ausência do respectivo suporte informático (1) e nos termos do disposto no art.º 713.º, n.º 6 do C. P. Civil. B) O DIREITO APLICÁVEL O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes como, aliás, dispõem os art.ºs 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 660.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso). I. O agravo. No seu recurso de agravo, interposto em 27/09/1999 (fls. 208) e admitido a 15/07/2000 e com efeito meramente devolutivo (fls. 607), a agravante suscita as seguintes questões: a) O despacho de 21/07/1999 (a fls. 201) que adjudicou à Lusoponte a propriedade do prédio dos autos, ao ser proferido sem notificação prévia à agravante violou o princípio do contraditório (conclusões 1.ª e 2.ª); b) Esse despacho é nulo por falta de fundamentação de facto e de direito (conclusão 3.ª); c) O prédio dos autos não foi objecto de Declaração de Utilidade Pública (DUP), o que se configura como omissão de um pressuposto nuclear do processo judicial de expropriação, determinante da não adjudicação da propriedade e da declaração de extinção da instância e se a agravante fez um pedido de expropriação total (conclusões 4.ª a 11.ª). Vejamos. I. 1. Quanto à primeira questão, a saber, se a agravante devia ter sido notificada previamente á prolação do despacho recorrido. Dispõe o art.º 50.º, n.º 2 do CE, em vigor à data da referida decisão (aprovado pelo Dec. Lei n.º 438/91 de 9 de Novembro) que: “Depois de devidamente instruído o processo ou de efectuado o depósito nos termos dos números anteriores, o juiz, no prazo de dois dias, adjudicará ao expropriante a propriedade e posse, salvo, quanto a esta, o caso de já ter sido conferida, e ordenará simultaneamente a notificação da decisão arbitral quer ao expropriante, quer aos diversos interessados”. Nos termos do processado especial estabelecido para a expropriação, a notificação prévia à decisão judicial não se encontra prevista como, aliás, reconhece a agravante, sendo até afastada pela notificação, a ela posterior de um acto anterior do processo de expropriação, a saber, a decisão arbitral. Assim sendo, a realização da peticionada notificação só poderia ter lugar se resultasse de norma processual superior ou que, sendo-lhe posterior, a sua aplicação fosse determinada pelos critérios gerais de interpretação. Pretende a agravante que essa norma é extraída dos princípios do contraditório, da igualdade das partes e da propriedade privada, consagrados no art.º 3.º, 3.º A do C. P. Civil e art.ºs 62.º, 17.º e 20.º, n.º 4 da Constituição. Os art.ºs 3.º e 3.º A do C. P. Civil consagram com grande amplitude os princípios do contraditório e da igualdade das partes, em processo civil, estabelecendo que a decisão sobre um concreto conflito de interesses não poderá ocorrer sem requerimento de uma das partes e chamamento da outra a deduzir oposição (n.º 1 do art.º 3.º), que essa dialéctica entre pronunciamento ou possibilidade de pronunciamento das partes e decisão se mantenha ao longo do processo (n.º 3 do art.º 3.º) e que esse equilíbrio seja substancial e não apenas formal (art.º 3.º A). Todavia, como resulta do disposto no art.º 42.º e seguintes e do art.º 39.º, n.º 1 do CE aplicável, o processo de expropriação litigiosa inicia-se com a designação dos árbitros pelo presidente do tribunal da relação (art.º 43.º) e a arbitragem é notificada tanto ao expropriante como ao expropriado (art.º 50.º n.º 4). Não vislumbramos, pois, que a prolação da decisão de adjudicação a que se reporta o art.º 50.º, n.º 4 do CE possa configurar a violação do citado princípio do contraditório. O que acontece é que o acto substancial de expropriação não é uma alteração na esfera individual do expropriante e expropriado, meramente resultante de decisão judicial proferida em processo civil, em que se apreciem os interesses de cada um em pé de igualdade, antes tendo na sua génese um acto de jus imperii, praticado pelo Estado na prossecução do interesse público (a Declaração de Utilidade Pública). E na prática deste acto não faz sentido apelar-se aos princípios processuais referidos, sem prejuízo desse acto dever ser apreciado na decisão em recurso, como a seguir veremos. Atenta a segunda das questões suscitadas pela agravante, qual seja, a inexistência de DUP que permita a expropriação do prédio dos autos, o propósito que se vislumbra na posição da agravante seria a pronúncia sobre essa questão anteriormente à prolação da decisão respectiva, de modo a que a mesma pudesse incidir também sobre ela. Esse propósito é assistido de razoabilidade evidente, pois, decorridos alguns anos, tramitado o processo de expropriação, só agora, até pelo efeito fixado ao agravo pelo Tribunal a quo, a questão pode ser objecto de decisão judicial directa (aos meios termos interlocutórios nos referiremos posteriormente). Todavia, os interesses da celeridade próprios do acto expropriativo prevalecem sobre a referida razoabilidade, sendo que o sacrifício desta se não traduz no sacrifício dos interesses do expropriado. Aliás, a existência de uma notificação prévia ao despacho recorrido, sem conteúdo definido (notificação de quê, para quê e com que efeitos), poderia, ainda, revelar-se contraproducente, acaso lhe fossem associados efeitos preclusivos quanto aos actos anteriormente praticados. Ora, ao ser notificado da decisão de adjudicação e do acto de arbitragem que lhe é anterior, o expropriado pode impugnar um e outro, como alias fez, suscitando a prolação de decisão judicial com audição prévia, nos mesmos termos do expropriante, agora despido de jus imperii. Improcedem, pois, as conclusões do agravo quanto a esta questão. I. 2. Quanto à segunda questão, a saber, se o despacho recorrido é nulo por falta de fundamentação de facto e de direito. A decisão judicial prevista no art.º 50.º, n.º 4 do CE é uma verdadeira decisão judicial com as características de conhecimento, de fundamentação e decisão que lhe são próprias (art.º 158.º do C. P. Civil) e não um qualquer despacho tabelar que se limite a emprestar respeitabilidade a um acto da administração pública (2). Nessa decisão deve o Juiz, v. g., verificar se houve Declaração de Utilidade Pública, se no âmbito do actual CE foi dado cumprimento ao disposto no art.º 39.º, n.º 2 (apensação de processos nas condições previstas), se os peritos que realizaram a arbitragem foram designados pelo presidente do Tribunal da relação e decidir em conformidade com o seu conhecimento. No caso sub judice, o Tribunal a quo proferiu o despacho de fls. 201, referenciando a entidade expropriante, a Lusoponte, o prédio em expropriação, a realização de vistoria “ad perpetuam rei memoriam”, consignou que “…já foi conferida posse administrativa…” e adjudicou à expropriante “…a propriedade da supra identificada parcela”. As “insuficiências” dessa decisão encontram-se reconhecidas nos autos pelo próprio Tribunal a quo, o qual, a fls. 768, por despacho de 03/01/2001, proferido sobre requerimento da Lusoponte determinou: “…devendo ler-se na decisão de adjudicação que a parcela n.º 116 é adjudicada ao Estado Português, em vez de à expropriante”, o que fez invocando o disposto no art.º 667.º, n.º 1 do C. P. Civil. E, novamente, a fls. 1207, por despacho de 22/04/2004, invocando também o art.º 667.º do C. P. Civil, corrigiu a decisão recorrida nos seguintes termos: “No despacho de adjudicação de propriedade vemos que foi referido que “por despacho de 27/02/95, publicado no D. R. n.º 68, II Série, o Sr. Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações declarou a utilidade pública com carácter de urgência da parcela n.º 11. 1 a 13. 1, sem se fazer menção a que a expropriada requereu a expropriação total e ao despacho do Secretário de Estado das Obras Públicas, havendo já, naquele momento, elementos no processo que permitem efectuar esta menção. Assim, nos termos do art.º 667.º do C. P. C, passo a rectificar o despacho de adjudicação da propriedade no sentido de nele passar a constar o seguinte: “ II – Por despacho de 27 de Fevereiro de 1995, publicado no DR, n.º 68 II série, o Sr. Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações declarou a utilidade pública com carácter de urgência da expropriação das parcelas de terreno da expropriada, localizadas na zona denominada Salinas do Samouco, tendo a expropriação da parcela n.º 116, que se mostra necessária à recuperação da área daquelas salinas, resultado do deferimento do pedido de expropriação total da expropriada, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 53.º do Cód. Das Exp., e versou as parcelas de terreno correspondentes aos prédios identificados no despacho n.º 2928-A/97, de 27.06, do Senhor Secretário de Estado da Obras Públicas, publicado no DR n.º 148/94, de 30.06.”. De notar que esta última correcção ao despacho recorrido foi feita na mesma data do despacho de sustentação do agravo e da sentença recorrida, ou seja depois de a agravante ter suscitado no processo as questões ora em apreciação, em especial a ausência de DUP e ausência de declaração de vontade, da sua parte, no sentido de “expropriação total”. Os despachos emendatórios não foram impugnados pelo que, embora sendo pelo menos duvidoso que os mesmos se contenham dentro do espírito de rectificação de erros materiais do art.º 667.º do C. P. Civil (3), as prováveis nulidades previstas no art.º 668.º, n.º 1, al. b) e c) do C. P. Civil, encontrar-se-ão supridas (art.º 668.º, n.º 4 do C. P. Civil), o que não significa que estejam definitivamente decididas as questões que este último despacho rectificativo vislumbrou, a saber, existência ou inexistência de DUP e o pedido de expropriação total. E estas são objecto da questão seguinte. I. 3. Quanto à terceira questão, a saber, se o prédio dos autos foi (ou não) objecto de Declaração de Utilidade Pública (DUP) e se a agravante formulou um pedido de expropriação total. A única Declaração de Utilidade Pública (DUP) constante dos autos e conhecida é a que se encontra a fls. 7-9, declarada por despacho de 27/02/1995 do Senhor Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, publicado no D. R. II Série de 23/03/1995, e referindo-se ela a prédios da agravante, nela não consta o prédio dos autos. Relativamente a este prédio e outros (ou parcelas suas) foi publicado no D. R. II Série, n.º 148, de 30/06/1997 um despacho do Secretário de Estado das Obras Públicas, datado de 27 de Junho de 1997 autorizando a Lusoponte “…nos termos dos artigos 13.º, n.º 2 e 17.º, n.º 1 do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro, a tomar posse administrativa das parcelas descriminadas no mapa em anexo, situadas na área das salinas do Samouco, descritas na matriz predial da freguesia de Alcochete, propriedade da S.[…] Ld.ª…” (a fls. 137 e 138 dos autos). Como do cotejo dessa autorização de posse administrativa com os preceitos a que se reporta 8 os art.º 13.º, n.º 2 e 17.º, n.º 1 do CE) esse despacho não pode configurar-se como DUP, antes respeitando à urgência na realização de trabalhos inerentes ao projecto de obras em curso. E nem a agravante ou a agravada pretendem que tal despacho se configure como declaração de utilidade pública ou que a substitua. Apenas o despacho recorrido, na sua versão original, anterior às referidas rectificações confundiu “posse administrativa” com “Declaração de Utilidade Pública”. Essa confusão veio a ser aclarada pelo último dos despachos rectificativos acima referidos. O cerne da questão suscitada pela agravante situa-se em saber se a DUP, a única e a que acima nos referimos, se pode estender ao prédio em causa, por força de um hipotético pedido da própria agravante nesse sentido, ou seja, no sentido de a expropriação de outros prédios, de sua propriedade cuja DUP foi declarada, valer também para este ex vi do disposto no art.º 3.º , n.º 2, al. a) e b) do CE. E, conexa com esta, ou melhor, previamente a esta questão, coloca-se uma outra, a saber, se a agravante formulou um pedido de expropriação abrangendo o prédio dos autos. Comecemos pelo respectivo regime legal. Depois de estabelecer o princípio da intervenção mínima ao dispor que: “…A expropriação deve limitar-se ao necessário para a realização do seu fim…” (art.º 3.º, n.º 1, do CE), dispõe o n.º 2 do mesmo preceito que: “Quando não seja necessário expropriar mais de uma parte de um prédio, pode o proprietário requerer a expropriação total: a) Se a parte restante não assegurar, proporcionalmente, os mesmos cómodos que oferecia todo o prédio; b) Se os cómodos assegurados pela parte restante não tiverem interesse económico para a expropriado, determinado objectivamente”. Nos termos do disposto no art.º 53.º, n.º 1 e 2 do CE, quer no caso de a entidade expropriante concordar com esse requerimento, quer no caso de ser a decisão do Tribunal a determinar a expropriação da totalidade do prédio, não será necessária nova DUP. Nos termos do art.º 3.º citado, a expropriação total de um prédio, quando para os fins da expropriação seja necessário expropriar apenas parte dele, pode ter lugar a requerimento do expropriado. Importa, pois e antes de mais, saber se a agravante fez tal pedido. Pretende a agravada e o Tribunal a quo aceitou no último dos despachos rectificativos do despacho em recurso, que a agravante fez tal pedido na sua carta de fls. 10 a 42 dos autos. Ora, compulsado esse escrito dirigido à Lusoponte, podemos verificar que o mesmo contém um capítulo sob a epígrafe “PEDIDO DE EXPROPRIAÇÃO TOTAL” (FLS. 15), um outro capítulo sob a epígrafe “DOS FUNDAMENTOS PARA A EXPROPRIAÇÃO”, no qual se referem várias parcelas, terminando por requerer, sob a l. c), a fls. 40-41, que a agravada se digne “Reconhecer à requerente o direito de expropriação total das duas unidades e estabelecimentos comerciais, um de piscicultura outro de produção de sal, instalados, aquele na marinha “Restinga”, com a área de 44,3760 hectares e, este no conjunto de marinha “Providência” e demais de quadro dos 20, com a área global de 158,0240 há, conforme tudo é, justamente de direito;”. Em parte alguma desse escrito aparece identificado o prédio em causa nos autos. E em parte alguma dos autos vislumbramos a declaração inequívoca da agravante a requerer a expropriação do prédio em causa. Não podemos, pois, deixar de concluir que a agravante não emitiu qualquer declaração de vontade no sentido de a expropriação, cuja DUP havia sido declarada, se estender também ao prédio dois autos. Nem vislumbramos como pode a agravada pretender a existência de uma tal declaração de vontade e a aceitação dela se, até, pela existência deste processo individual, no qual não poderia ser feita a valorização (ou desvalorização) global a que se reporta a agravada, se pode verificar que não foi feita a avaliação global a que, racionalmente, conduziria a aceitação do requerimento da agravante, sendo que a sua aceitação se reportaria apenas à expropriação de mais um prédio. Ora, não é esse o escopo prosseguido pela figura da “expropriação total”. Não obstante, também o Tribunal a quo, no último despacho rectificativo, se reporta a um requerimento de expropriação total sem, contudo, identificar, a fonte dessa declaração de vontade. Trata-se, porventura, de um equívoco, nos termos do qual a expropriante e o Tribunal a quo afirmam existir um pedido de expropriação (4) que a peticionária nega ter feito. E a expropriante afirma ter aceite esse pedido sem contudo ter aceite a substância do mesmo, a saber, a avaliação do impacto global da expropriação na esfera económica da expropriada. Trata-se, aqui, de “tapar o sol com uma peneira”. É que, não existe pedido de expropriação, formulado pela agravante, relativamente ao prédio em causa nem, consequentemente, existe DUP, por extensão da declarada por despacho do Sr. Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações de 27/02/95, publicado no D. R. n.º 68, II Série, que permita a expropriação. E esta DUP é, imprescindível, seja ela declarada directamente ou resultante da extensão de uma DUP anterior, como in casu resulta, inequivocamente, do disposto na Base XXVII das Bases da Concessão constantes do Anexo I ao Dec. Lei n.º 168/94 de 15 de Junho, a qual dispõe que: “Compete ao MOPTC a prática do acto que individualize os bens a expropriar,,,, o qual deverá conter a declaração de utilidade pública com carácter de urgência…”. Mal andou, pois, o Tribunal a quo ao adjudicar a propriedade ao Estado Português na ausência dos pressupostos que tal lhe permitiam. Acresce que o art.º 3.º do CE, citado, se reporta à parte restante do prédio a expropriar e não a prédio diferente, embora pertencente ao mesmo expropriado e próximo ou distante da obra pública a executar (5), pelo que, mesmo a existir requerimento da agravada no sentido de lhe ser expropriado um outro prédio, nem assim a DUP emitida poderia abranger este novo prédio, para efeito de expropriação. Procedem, pois, as alegações da agravante quanto a esta questão devendo, em consequência, revogar-se o despacho recorrido, denegando-se a adjudicação da propriedade do prédio em causa e declarando-se extinta a instância por ausência de DUP relativamente ao prédio dos autos, com as inerentes consequências quanto à propriedade dessa prédio e aos actos processuais praticados. O conhecimento do objecto das apelações fica prejudicado pelo decidido quanto ao objecto do agravo /art.º 660.º, n.º 2 do C. P. Civil). 3. DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em dar provimento ao agravo, revogando o despacho recorrido, denegando-se a adjudicação da propriedade do prédio em causa e, em consequência, declarando-se extinta a instância. O conhecimento das apelações fica prejudicado pelo decidido quanto ao agravo. Sem custas atenta a isenção de que a agravada beneficia nestes autos. Lisboa, 10 de Outubro de 2006 Orlando Nascimento Dina Monteiro Luís Espírito Santo ________________________________ 1.-Que deveria ter acompanhado o processo, assim o Tribunal recorrido tivesse cumprido as determinações do Conselho Superior da Magistratura na matéria. 2.-Como se essa administração proferisse a decisão segurando na mão do Juiz, passe o propositado exagero. 3.-O despacho resultante das rectificações configura-se como uma decisão, assaz diversa. 4.-Interpretando coercivamente a posição da agravante no sentido de que, quer queira quer não, o que formulou foi um pedido de expropriação também do prédio em causa! 5.-O art.º 3.º, n.º 3 do actual CE, não obstante a diversidade de redacção, ao referir-se “….à parte da área não abrangida…” em vez de a “…parte de um prédio”, parece não admitir interpretação diversa. |