Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
967/20.2T8CSC.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: DIVISÃO DE COISA COMUM
MÚTUO HIPOTECÁRIO
PEDIDO RECONVENCIONAL
ADMISSIBILIDADE
DIVERSA QUALIFICAÇÃO JURIDICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. A circunstância de um dos comunheiros – num contexto em que cada comunheiro detém uma quota de 50% - suportar sozinho (ou em maior parte) as amortizações do mútuo hipotecário contraído para aquisição do imóvel não tem a virtualidade de alterar a proporção da respetiva quota, majorando-a na mesma proporção dos encargos que suporta além da metade que lhe compete.
II. Numa ação de divisão de coisa comum são de admitir pedidos reconvencionais em que a Ré peticione o pagamento dos valores que despendeu na amortização do crédito à habitação além da sua quota de 50%, bem como os valores que despendeu em obras de melhoramento além da sua quota de 50% (cf. Artigos 6º, nº1, 547º, 549º, nº1, 266º, nº2, alíneas b) e d), nº3, sendo este em conjugação com o Art. 37º, nos. 2 e 3, todos do Código de Processo Civil).
III. A circunstância da Ré, por errada qualificação jurídica, entender que tais valores devem majorar a sua quota de 50% sobre o imóvel não obsta a que o tribunal interprete tal pedido e corrija a sua qualificação jurídica, sendo reconfigurado para um crédito autónomo sem repercussão na quantificação da quota da ré, o que se determina. Ao fazer-se esta convolação, respeita-se a pretensão material de fundo da Ré: ser ressarcida dos valores que despendeu além da sua quota.
IV. Já não será de admitir pedido reconvencional em que ré pretenda ser ressarcida por um valor mensal decorrente da ocupação exclusiva pelo autor após a separação porquanto semelhante pretensão não radica no cômputo dos encargos com a coisa comum, não emerge -  em primeira linha -  da contitularidade do imóvel cuja divisão se peticiona, mas sim da relação de liquidação emergente da cessação da união de facto, não se afigurando que a apreciação conjunta da mesma seja indispensável para a justa composição do litígio base de divisão de coisa comum (cf. Artigo 7º, nº 2, do Código de Processo Civil). Esta pretensão reporta-se a uma questão distinta, qual seja a do uso da coisa comum (cf. Artigo 1406º do Código Civil).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
 PC intentou ação especial de divisão de coisa comum contra ML alegando que, desde 2005, são comproprietários de fração autónoma sita em (...), sendo que a fração é indivisível e o autor não tem interesse em manter-se na situação de indivisibilidade.
Termina requerendo que se realize conferência de interessados nos termos e para os efeitos do nº2 do artigo 929º do Código de Processo Civil, seguindo-se os ulteriores termos.
Contestando, a ré argumenta que viveram em união de facto desde 2000 até outubro de 2017. Desde a data da escritura de aquisição da fração, tem sido sempre apenas a ré a liquidar o mútuo hipotecário no total de €269.696,19, tendo ainda efetuado amortizações extraordinárias com dinheiro próprio de € 119.785, em 2.5.2005, e de € 76.000, em 2.11.2006. A estes valores, acrescem € 68.497,39 pagos pela ré a título de sinal aquando do contrato-promessa e € 48.619 por obras de melhoramento que também suportou. Mais reclama o pagamento de € 500 por cada mês que o autor ocupa o imóvel desde a separação, em novembro de 2017.
Termina nestes termos: «deve a presente ação e reconvenção serem julgadas procedentes por provadas e proceder-se à respetiva adjudicação ou venda, com a repartição do respetivo valor na proporção das respetivas contribuições, que em outubro de 2017 se cifravam em € 423.309,93, acrescidas das quantias que se apurarem em liquidação de sentença, à data da prolação da mesmo, devendo para o efeito ser ordenada a conferência de interessados prevista no nº2 do art. 929º do Código de Processo Civil , seguindo-se os ulteriores termos processuais
O autor apresentou extensa réplica em que pugnou pela inadmissibilidade da reconvenção, pela prescrição do enriquecimento sem causa, pela não verificação dos requisitos deste, pelo desrespeito das regras da compropriedade, bem como pela inexistência do crédito invocada pela Ré (fls. 27-42).
Em 23.2.2021, foi proferido despacho com o seguinte teor:
«(…)
A acção de divisão de coisa comum, comporta uma fase declarativa à qual é aplicável o processo comum, caso não se mostre possível decidir incidentalmente das questões suscitadas pelo pedido de divisão (art. 926.º, n.º 2 CPC).
Porém, nem todas as questões suscitadas pela divisão podem ser apreciadas e logo, cumuladas na acção especial de divisão de coisa comum, existindo, numa linguagem clara, duas correntes jurisprudenciais diversas a esse propósito.
De uma forma muito sucinta, para uma primeira corrente, a acção de divisão de coisa comum seria a acção adequada para fazer cessar a comunhão da propriedade entre os titulares desse direito, como também para fazer cessar todas as outras relação jurídicas existentes entre as partes, nomeadamente, direitos de crédito relacionados com a aquisição ou amortização dos empréstimos bancários, com vista à aquisição da coisa, mas já não créditos pecuniários não relacionados, ou relações jurídicas alheias à natureza real, como por exemplo, o crédito de alimentos.
Para uma segunda corrente, a acção de divisão de coisa comum será adequada para fazer cessar a comunicação da propriedade entre os titulares desse direito, bem como outras relações jurídicas existentes entre as partes, mas apenas no caso de terem interferência na fixação da quota dos interessados, seja por interferirem no valor material da coisa, como é o caso das benfeitorias, ou estarem ligados ao uso e fruição da coisa, como por exemplo as quotas de condomínio ou os impostos sobre o património.
Nesta divergência interpretativa, e salvo o devido respeito por melhor e mais fundamentada opinião, somos por aderir à segunda corrente, por duas ordens de razões:
A primeira porque apenas no caso de benfeitorias ou despesas necessárias à conservação e fruição da coisa comum, a lei consagra expressamente a possibilidade de os proprietários se ressarcirem posteriormente, por compensação (art. 1411.º do Cód.Civil) a qual poderá ser efectuada no âmbito da acção de divisão de coisa comum.
A segunda porque na definição do valor das quotas parcelares do direito real de propriedade, apenas são intervenientes elementos materiais ligados à própria coisa, sendo que os direitos de crédito, ainda que reconhecidos ou derivados da aquisição do imóvel, não interferem na fixação do valor da quota do direito real, sendo compensáveis posteriormente.
Nessa medida, o reconhecimento da existência de um direito de crédito de uma parte sobre a outra, não irá interferir na formação da quota de cada uma das partes na compropriedade, pelo que, salvo o devido respeito por melhor e mais fundamentada opinião, não se mostra adequada a cumulação de pedidos ou a reconvenção sobre os valores despendidos no reembolso e amortização de créditos, embora já se mostre adequada a cumulação quanto às ‘obras de melhoramento’.
De igual modo, não poderá ser aqui apreciada qualquer divisão de créditos futuros relativos ao empréstimo em vigor, ou a fixação de valores de ocupação, os quais não são adequados à presente forma de acção especial.
Pelo supra exposto, uma vez que parte do pedido reconvencional não é emergentes de qualquer facto jurídico relacionado com a melhoria, conservação ou manutenção da coisa, julgo ser de indeferir parcial e liminarmente os pedidos formulados, nos seguintes termos:
a) Indefiro liminarmente o pedido de condenação do Autor, formulado na reconvenção, quanto a todos aos valores despendidos na amortização do crédito à habitação, e a despender, bem com de qualquer quantia pela ocupação do imóvel, assim absolvendo o Autor da instância, mas admito o pedido reconvencional para condenação do Autor, na quota-parte do valor de € 48.619,00 euros, emergente de obras de melhoramento.
Custas pela Ré, a atender a final.
Registe e notifique.
II – Da divisibilidade/Indivisibilidade:
Atento a forma como as partes tomaram posição sobre a questão da indivisibilidade do imóvel nos articulados, o referido imóvel não é susceptível de divisão no estado em que se encontra, pelo que só resta considerar o imóvel indivisível em substância, nos termos do art. 209.º do Cód.Civil, o qual dispõe que “são divisíveis as coisas que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam”.
Pelo supra exposto, e em consequência:
A) Declara-se a indivisibilidade em substância do imóvel descrito nos autos, por referência ao art. 24.º da petição inicial; e
B) Fixa os quinhões de cada um em 1/2 (metade) do imóvel, acrescendo ao quinhão de cada um, o valor do crédito que possa vir a ser reconhecido no pedido reconvencional admitido.
C) Atento a discordância das partes sobre o valor do imóvel, mostra-se necessário realizar arbitramento, por um único perito, com vista à avaliação da fracção autónoma objecto da divisão pelo que determino a nomeação de perito a indicar pela Secção, o qual prestará compromisso de honra no relatório pericial, mais se solicitando os devidos preparos para a realização da diligência, a qual deverá ter lugar logo que finde a suspensão dos prazos estabelecida pelo art. 6.ºB, n.º 1 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março na redacção da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro.
Notifique.»
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES:
A. Ficou confessado por ambas as partes que a rutura definitiva da relação ocorreu em outubro de 2017, com a saída da Apelante da casa de morada.
B. A dissolução da união de facto só foi determinada por sentença proferida pelo Juízo de Família - Juiz 4 - do Tribunal Judicial da Comarca de (...), processo n° (...), em 20.02.2020.
C. O prazo para propositura da ação de enriquecimento sem causa só pode começar a contar a partir dessa data, e quando tal assim se não entenda, nunca poderá ser fixada em data anterior a outubro de 2017, conforme confissão das partes.
D. O quinhão a atribuir a cada um dos comunhantes, deverá ter em conta a contribuição global de cada um para a sua aquisição.
E. O quinhão da Apelante deverá ser composto de acordo com todas as quantias pagas por ela para aquisição do imóvel, ou seja, pagamentos efetuados no montante de 68.497,39€, benfeitorias no montante de 48.169,00€ e prestações pagas à Entidade Bancária que à data da reconvenção totalizavam 269.696,19€.
F. O quinhão das partes deverá refletir as quantias pagas por estes na aquisição do imóvel de forma proporcional, 386.362,58€ pagos pela Apelante e 66.502,61€ pagos pelo Apelado.
Certa que, com o Mui Douto suprimento de V. Exas, será dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogarão parcialmente a Douta sentença recorrida, com o que farão a costumada Justiça!»
*
Contra-alegou o apelado propugnando pela improcedência da apelação. Interpôs ainda recurso subordinado da decisão, peticionando que o despacho impugnado seja revogado no tocante à Alínea B) do Capítulo II – “Da divisibilidade/Indivisibilidade”, na parte em que admite que à quota-parte fixada seja acrescido de qualquer outro valor.
As conclusões do recurso subordinado são as seguintes:
«14a - Tendo sido fixados os quinhões de cada uma das partes em metade do imóvel, está vedado acrescer a esse quinhão qualquer valor de um eventual crédito da Ré sobre o Autor;
15a - Desse modo, estar-se-ia a reconhecer a possibilidade de se alterar, nessa medida, a quota-parte, já fixada, de cada um dos comproprietários;
16a - Colidindo com normas imperativas;
17a - Tendo-se conhecido e decidido no despacho recorrido todas as questões suscitadas no pedido de divisão, estava processualmente vedado prosseguir a causa nos termos do processo comum para se conhecer da reconvenção na parte admitida;
18a - Julgando-se que a quota-parte da Ré não poderá ser alterada ou acrescida, nem a do Autor diminuída, a reconvenção tornar-se-á inviável, mesmo na parte admitida;
19a - Determinando a impossibilidade superveniente do pedido reconvencional; 20a - Decidindo, como decidiu, o despacho recorrido violou, designadamente, as normas dos artigos 369. °, 371.0, n.º 1, 393.0, n.º 2, 394.0, n.º 1 e 403. ° n.º 2 do CC; art.° 7. ° do CRP e artigos 266. ° e 926. ° n°s 2 e 3 do CPC.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, a questão a decidir consiste em aferir a admissibilidade dos pedidos reconvencionais, designadamente: (i) valores despendidos na amortização do crédito à habitação, (ii) quantia devida pela ocupação exclusiva do imóvel e (iii) valor despendido nas obras e melhoramento.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto relevante para a apreciação do recurso é a que consta do relatório, cujo teor se dá por reproduzido.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Autora e Ré adquiriram, em 13.1.2006, a fração autónoma descrita no artigo 1º da petição, sita em (...), declarando-se na escritura que o primeiro outorgante (vendedor) «(…) pelo preço global de trezentos e cinquenta mil euros (…) vende, aos segundos outorgantes [ora autor e ré] na proporção de metade para cada um, correspondendo a cada um o preço de centro e setenta e cinco mil euros, livre de ónus e encargos (…)». A aquisição foi registada na 1ª Conservatória do Registo Predial de (...) em 4.7.2005, bem como hipoteca voluntária para garantia do capital de € 342.909,34, tendo como sujeito ativo o (...), SA e como sujeitos passivos os ora autor e ré.
Nos termos do Artigo 1403º, nº2, do Código Civil, «Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo
Ora, do título constitutivo (escritura de compra e venda) decorre expressamente que as quotas do autor e da ré são iguais, ou seja, cada um tem uma quota de 50% sobre o imóvel, não havendo que recorrer à norma supletiva do Artigo 1403º, nº2, do Código Civil.
Sendo os modos de aquisição da compropriedade os mesmos de aquisição da propriedade, previstos nos Artigo 1316º do Código Civil, qualquer «posterior modificação quantitativa da repartição de quotas entre os consortes corresponderá a um ato de alienação, estando sujeito às respetivas normas de forma e publicidade» - Ana Prata (Coord.), Código Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2017, p.  215. Conforme referem Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. III,  2ª ed., p. 349, «(…) a medida inicial das quotas pode ser modificada por acordo ulterior dos contitulares. O acordo de modificação está sujeito às regras de forma e de publicidade a que tem de obedecer o ato constitutivo da comunhão.» Cada comunheiro pode  dispor de toda ou parte da sua quota (Artigo 1408º, nº1, do Código Civil), pode aumentar a sua quota por inversão do título da posse e subsequente usucapião ou pode renunciar ao seu direito, acrescendo a sua quota aos restantes – cf. José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora,  2008, pp. 367-368.
Atento este regime e vigorando o princípio da tipicidade ou do numerus clausus em sede de direitos reais (cf. Artigo 1306º nº1, do Código Civil), a circunstância de um dos comunheiros – num contexto em que cada comunheiro detém uma quota de 50% - suportar sozinho (ou em maior parte) as amortizações do mútuo hipotecário contraído para aquisição do imóvel não tem a virtualidade de alterar a proporção da respetiva quota, majorando-a na mesma proporção dos encargos que suporta além da metade que lhe compete.
Com efeito, os comunheiros devem participar «nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das sua quotas» (nº1 do Artigo 1405º do Código Civil) de modo que se um comunheiro assumir unilateralmente encargos que excedam a sua quota de 50% ficará credor do outro pelo valor excedente.
Tendo o autor e a ré contraído um mútuo hipotecário para pagamento do preço da aquisição, resulta do registo junto a fls. 5-6 que os dois são sujeitos passivos da hipoteca, assumindo uma obrigação solidária nos termos do Artigo 512º , nº1, do Código Civil – neste sentido, cf.: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.2.2015, Conceição Saavedra, 4548/08 «Uma vez que a solidariedade de devedores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes se, na falta de menção expressa, se concluir que no contrato de financiamento contraído para aquisição de imóvel, em comum e partes iguais, os dois mutuários se obrigaram perante o Banco financiador, de igual forma, como a “Parte Devedora”, sem qualquer independência nas prestações, é de concluir tratar-se de uma obrigação solidária.»; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.5.2011, Manuel Bargado, 1585/10; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.1.2018, Henrique Araújo, 123/14.
 E, nos termos do  Artigo 524º do Código Civil, «O devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso conta cada um dos condevedores, na parte que a estes compete.» Este «direito de regresso é um direito próprio do seu titular, que surge ex novo com o cumprimento pelo condevedor: não existia antes: e isso quais forem as razões que o levaram a fazer o pagamento. Assim, esse direito não está sujeito ao prazo de prescrição do 498º/2» - António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, II – Das Obrigações em Geral, CIDP, Almedina, 2021, p. 511.
Assim sendo, caso a ré tenha liquidado prestações do mútuo hipotecário em valores que ultrapassem a sua quota de 50%, a mesma é credora no excedente sobre o autor.
Aqui chegados, a questão que se coloca é a de saber se tais valores alegadamente despendidos na amortização do crédito à habitação podem ser objeto de pedido reconvencional neste processo especial, bem como se podem ser reclamados em reconvenção pagamentos por ocupação do imóvel bem como por obras de melhoramento no mesmo.
Conforme se refere em Luís Filipe Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2ª ed., Almedina, 2020, pp. 105-109:
«A questão da admissibilidade da reconvenção, independentemente da verificação dos requisitos objetivos de conexão, coloca-se na medida em que «Não é admissível reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos nos. 2 e 3 do Artigo 37º, com as necessárias adaptações» (Artigo 266º, nº3, do CPC). Ou seja, o juiz pode admitir a reconvenção se houver um interesse relevante na sua apreciação naquele concreto processo especial de divisão de coisa comum ou se a apreciação conjunta das pretensões for indispensável para a justa composição do litígio. Em qualquer dos casos, o juiz deve adaptar o processado à cumulação de objetos processuais.
Para uma primeira corrente jurisprudencial mais restritiva, se, para se apreciar o pedido reconvencional, for necessário proceder a instrução e observar o contraditório, tal exige uma tramitação que não se compagina com a do processo especial de divisão de coisa comum, salvo se neste foi deduzida contestação que determine o enxerto de uma face declaratória comum. 
Nesta eventualidade, em princípio, será de admitir a reconvenção.
(…)
 Assim, será admissível a reconvenção formulada em contestação em que os réus não só pedem a improcedência do pedido dos autores, como a condenação destes a reconhecer que os reconvintes são donos de todo o prédio. 
Será também admissível a reconvenção numa ação instaurada no pressuposto da indivisibilidade do prédio, vindo os requeridos arguir que o prédio se encontra já dividido em prédios distintos, divisão essa consolidada por usucapião que os réus invocam em via reconvencional. A ação prosseguirá para ser apreciado tal pedido reconvencional. (…)
Cremos que os atuais princípios da gestão processual e da adequação formal impõem uma aplicação mais ágil e flexível do regime do Artigo 266º, nº3, do CPC, sempre no intuito de maximizar a celeridade e economia processuais desde que não se postergue os demais princípios processuais, designadamente os do contraditório e da igualdade das partes.
Nessa medida, é de subscrever o entendimento de que «(…) o interesse em discutir e decidir todas as questões que, para além da divisão, envolvem os prédios dividendos, como seja a apreciação de um direito por benfeitorias invocado por um dos comproprietários, evitando dessa forma que ele se veja compelido a recorrer à propositura de uma outra ação para ver o seu direito reconhecido, para além de não beliscar qualquer daqueles princípios estruturantes, assume indiscutível relevância e que justifica plenamente a admissão da reconvenção», mesmo que a reconvenção admitida seja a única justificação para a abertura de uma fase declarativa de processo comum.  Conforme refere NUNO PISSARRA, nesta situação o que fundamenta a admissão da reconvenção não é o processamento pelo processo comum mas a excecional autorização da reconvenção à luz do nº2 do Artigo  37º do CPC.  Também foi admitida a reconvenção num contexto em que o litígio se centrava na definição da proporção em que ambos os comproprietários contribuíram para a aquisição da fração, com recurso a crédito bancário.
Sendo a formulação da reconvenção facultativa, o réu - que não tenha reconvindo no processo especial de divisão de coisa comum com tal fundamento - pode reclamar  o valor das benfeitorias em processo comum posterior.»
Na jurisprudência e com pertinência para o caso em apreço, são ainda de referir os seguintes arestos.
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4.2.2021, Teresa Pardal, 11259/18:
«Na ação de divisão de coisa comum é admissível o pedido reconvencional para serem tidos em conta os pagamentos das prestações do empréstimo bancário para aquisição do prédio objeto de divisão efetuados pelo réu, com vista à sua adjudicação, tendo em atenção que, apesar de os pedidos da ação e da reconvenção seguirem formas de processo diferente, há interesse relevante para a apreciação conjunta das pretensões, que se afigura indispensável para a composição justa do litígio, devendo ser determinado que os autos sigam os termos do processo comum ao abrigo dos artigos 37º nºs 2 e 3 e 926º nº3 do CPC.»
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17.1.2019, Albertina Pedroso, 764/18:
«II- Quando a indivisibilidade do bem comum é aceite entre as partes e o único litígio verdadeiramente existente se prende com as questões relativas à aquisição da fração autónoma em comum e na mesma proporção por ambos os comproprietários, com recurso a pedido de empréstimo bancário, que um alega ter suportado em quantia superior ao outro, o poder/dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção, em circunstâncias como as da presente lide.
III – Esta é a única interpretação que se harmoniza com os princípios que regem a lei processual civil, cada vez mais arredados de visões de pendor marcadamente formalista em detrimento da busca da garantia de uma efetiva composição do litígio que reponha a paz social quebrada com as visões antagónicas que as partes têm do caso que as divide e que são o único fundamento da demanda.»
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.1.2021, Maria Vaz Tomé, 1923/19:
« I. Na ação especial de divisão de coisa comum, em que o Requerido, apesar de deduzir contestação, confessa o pedido da Requerente, é admissível a reconvenção quando tenha sido suscitada a compensação de alegado crédito por despesas suportadas para além da quota respetiva, com o crédito de tornas que venha a ser atribuído ao Requerente, devendo a ação seguir os termos do processo comum, para que sejam decididas tais questões, só então se entrando na fase executiva do processo com a conferência de interessados.
II. No art. 266.º, n.º 3, do CPC, o legislador salvaguarda a possibilidade de o juiz autorizar a reconvenção “quando ao pedido do Requerido corresponda uma forma de processo diferente”, nos termos previstos no art. 37.º, n.os 2 e 3, do mesmo corpo de normas, “com as necessárias adaptações”.
III. Traduzindo-se as diversas formas de processo - especial e comum - no único obstáculo formal à admissibilidade da reconvenção, mas não seguindo as mesmas uma tramitação manifestamente incompatível, tanto mais que é expressamente admissível a convolação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum, de acordo com o art. 37.º, n.os 2 e 3, do CPC, o Juiz pode autorizar a reconvenção, “sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa-composição do litígio”.
IV. O poder-dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção, em circunstâncias como as dos presentes autos.
 V. Está em causa o interesse em discutir e decidir todas as questões que, para além da divisão, envolvem os prédios dividendos. Importa evitar que o Requerido se veja compelido a propor uma outra ação para ver o seu direito reconhecido.»
Assim, na senda desta doutrina e jurisprudência – que se subscreve na íntegra- são de admitir pedidos reconvencionais em que a Ré peticione o pagamento dos valores que despendeu na amortização do crédito à habitação além da sua quota de 50%, bem como os valores que despendeu em obras de melhoramento além da sua quota de 50% (cf. Artigos 6º, nº1, 547º, 549º, nº1, 266º, nº2, alíneas b) e d), nº3, sendo este em conjugação com o Art. 37º, nos. 2 e 3, todos do Código de Processo Civil).
A pretensão da ré de ser ressarcida pela ocupação exclusiva do imóvel pelo autor já excede este âmbito de relações. Conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29.4.2021, Cristina Dá Mesquita, 4300/19: « (…) quando o encontro entre o “deve” e o “haver” entre as partes não se cingir à contribuição de cada um para a amortização do empréstimo e encargos inerentes, concretamente quando a reconvinda invoca também direitos de crédito sobre o reconvinte, emergentes quer da sua contribuição para as restantes despesas do agregado familiar de ambos, quer do uso exclusivo que o reconvinte faz do imóvel objeto da divisão, desde a data da separação, a controvérsia que tem por objeto o “deve e haver” de cada um dos comproprietários relativamente ao outro (…) deve ser decidida em ação de condenação em que o membro da união de facto que se considere empobrecido relativamente a bens em cuja aquisição participou peça a condenação do outro a reembolsá-lo com fundamento no enriquecimento sem causa, não se admitindo, neste caso, o pedido reconvencional.»
Com efeito, semelhante pretensão não radica no cômputo dos encargos com a coisa comum, não emerge -  em primeira linha -  da contitularidade do imóvel cuja divisão se peticiona, mas sim da relação de liquidação emergente da cessação da união de facto, não se afigurando que a apreciação conjunta da mesma seja indispensável para a justa composição do litígio base de divisão de coisa comum (cf. Artigo 7º, nº2, do Código de Processo Civil). Esta pretensão não interfere na divisão da coisa comum, reportando-se a uma questão distinta, qual seja a do uso da coisa comum (cf. Artigo 1406º do Código Civil).
Evidenciando alguma confusão terminológica e imprecisão conceitual, a apelante reporta-se nas suas conclusões a uma majoração do seu quinhão em função dos valores que pagou para a aquisição do imóvel. Nas suas palavras, «O quinhão a atribuir a cada um dos comunheiros deverá ter em conta a contribuição global de cada uma para a sua aquisição» (conclusão D). Ou seja, a apelante entende que tais valores aumentam a sua quota (o que não está correto, conforme vimos supra) e não que devem ser autonomizados, constituindo um crédito sobre o autor.
É também em função dessa imprecisão que o apelado interpôs recurso subordinado, afirmando que, desse modo, «estar-se-ia a reconhecer a possibilidade de se alterar, nessa medida, a quota-parte, já fixada, de cada um dos comproprietários» (conclusão 15ª).
A questão que daqui emerge é a da correção do pedido formulado bem como da admissibilidade da sua convolação.
Com pertinência sobre esta questão, escreve o Conselheiro manuel tomé gomes, Da Sentença Cível, pp. 43-44, o seguinte:
«Também no que respeita à fixação ou condenação em objeto diferente do pedido se tem suscitado dúvidas sobre o alcance prático deste limite, em particular nos casos em que a solução passa por uma qualificação jurídica diversa da sustentada pelo autor ou reconvinte. É o que acontece quando, por exemplo, o autor pede a resolução de um contrato com fundamento em incumprimento, mas em que se verifica que o contrato em crie é nulo por falta de forma; ou quando, por exemplo, o autor instaura uma ação de impugnação pauliana, concluindo, erradamente, pela invalidade (nulidade ou anulabilidade) do negócio impugnado, sendo que o efeito adequado é o da ineficácia relativa (…). Será que o tribunal poderá, na primeira hipótese, declarar a nulidade do contrato e decretar a respetiva consequência restituitória, ao abrigo do disposto nos artigos 286º e 289º do CC, e, na segunda hipótese, decretar a ineficácia do negócio impugnado, dando ainda provimento à pretensão do autor?
A solução desta questão pressupõe, antes de mais, a interpretação do pedido e o entendimento de que este consiste no efeito prático-jurídico pretendido e não tanto na coloração jurídico que lhe é dada pelo autor. Na verdade, é unânime a doutrina de que o tribunal não está adstrito à qualificação jurídica dada pelas partes, já que, à luz do disposto no artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Assim sendo, se a situação se reconduzir a um mero erro de qualificação jurídica na formulação do pedido, aferido em função do contexto da pretensão, parece que nada obsta a que o tribunal decrete o efeito prático pretendido, ainda que com fundamento em base jurídica diversa. Quando muto, importará ouvir previamente as partes sobre a solução divergente, na medida em que tal se mostre necessário a evitar uma decisão-surpresa, nos termos do nº3 do artigo 3º do Código de Processo Civil.»
Na jurisprudência, merece menção o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.4.2016, Lopes do Rego, 842/10, que analisa esta questão de forma clara e pertinente, de que extratamos os seguintes passos:
«Na praxis judiciária, encontramos posições antagónicas sobre a possibilidade de convolação jurídica quanto ao pedido formulado  – opondo-se um entendimento mais rígido e formal, que dá prevalência quase absoluta à regra do dispositivo, limitando-se o juiz a conceder ou rejeitar o efeito jurídico e a específica forma de tutela pretendida pelas partes, sem em nada poder sair do respetivo âmbito; e um entendimento mais flexível que – com base, desde logo, em relevantes considerações de ordem prática – consente, dentro de determinados parâmetros, o suprimento ou correção de um deficiente enquadramento normativo do efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou requerente, admitindo-se a convolação para o decretamento do efeito jurídico ou forma de tutela jurisdicional efetivamente adequado à situação litigiosa (vejam-se, em clara ilustração desta dicotomia de entendimentos, a tese vencedora e as declarações de voto apendiculadas ao acórdão uniformizador 3/2001).
Note-se que (como salientamos no estudo O Princípio Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz no Momento da Sentença, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Lebre de Freitas, págs. 781 e segs.) a prevalência de uma visão que tende a sacralizar a regra do dispositivo, dando-lhe nesta sede uma supremacia tendencialmente absoluta, conduz a resultado profundamente lesivo dos princípios – também fundamentais em processo civil – da economia e da celeridade processuais: na verdade, a improcedência da ação inicialmente intentada e em que se formulou pretensão material juridicamente inadequada não obsta a que o autor proponha seguidamente a ação correta, em que formule o –  diferente  –  pedido juridicamente certo e adequado, por tal ação ser objetivamente diversa da inicialmente proposta (e que naufragou em consequência da errada e insuprível perspetivação e enquadramento jurídico da pretensão); ora, sendo atualmente o principal problema da justiça cível o da morosidade na tutela efetiva dos direitos dos cidadãos, não poderá deixar de causar alguma perplexidade esta inelutável necessidade de repetir em juízo uma ação reportada a um mesmo litígio substancial, fundada exatamente nos mesmos factos e meios de prova, só para corrigir uma deficiente formulação jurídica da pretensão, através da qual se visa alcançar um resultado cujo conteúdo prático e económico era inteiramente coincidente ou equiparável ao pretendido na primeira causa…
Como exemplos paradigmáticos da prevalência na jurisprudência desta visão substancialista e mais flexível das coisas, podem referir-se, desde logo, o Assento do STJ de 28/3/95 e o Acórdão uniformizador de jurisprudência 3/2001.
No primeiro daqueles arestos, entendeu-se (de forma, aliás, unânime) que quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade e se na ação tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido com fundamento no nº1 do art. 289º do CC.
(…)
Considera-se, deste modo, que o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da ação, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exata caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objeto diverso do peticionado.
Importa, todavia, estabelecer, na medida do possível, quais os parâmetros dentro dos quais se move esta possibilidade de convolação jurídica, não se podendo olvidar que – continuando a ser a regra do dispositivo pedra angular do processo civil que nos rege – o decretamento de efeito jurídico diverso do especificamente peticionado pressupõe necessariamente uma homogeneidade e equiparação prática entre o objeto do pedido e o objeto da sentença proferida, assentando tal diferença de perspetivas decisivamente e apenas numa questão de configuração jurídico-normativa da pretensão deduzida.
E daqui decorre que não será possível ao julgador atribuir ao autor ou requerente bens ou direitos materialmente diferentes dos peticionados, não sendo de admitir a convolação sempre que entre a pretensão formulada e a que seria adequado decretar judicialmente exista uma essencial heterogeneidade, implicando diferenças substanciais que transcendam o plano da mera qualificação jurídica.
O Ac. de 5/11/09, proferido pelo STJ no P. 308/1999.C1.S1, ilustra, de forma clara, as balizas em que é lícita esta atividade de reconfiguração ou reconstrução normativa pelo juiz da pretensão efetivamente formulada pela parte. Assim, entendeu-se que:
- Nada obstava a que se pudesse convolar do pedido de anulação de certo negócio jurídico de doação, realizada mediante intervenção de procurador, cuja legitimação assentava em procuração que havia sido anulada por se ter verificado erro dolosamente provocado, para a declaração de ineficácia do negócio jurídico em relação ao doador, decorrente da representação sem poderes, nos termos do art. 268º do CC; porém:
- Tendo-se o autor limitado a formular um pedido constitutivo de anulação do negócio jurídico de doação, já não seria, porém, lícito ao tribunal proferir sentença em que, para além do decretamento de certo valor negativo do ato (independentemente de este se configurar como invalidade ou ineficácia) se condenasse ainda  oficiosamente a parte a restituir o que obteve em consequência do negócio destruído, já que, nesse caso, a decisão acabaria por incidir sobre um objeto material – a restituição de certos bens – claramente diferenciado e destacável do objeto da pretensão formulada, situada apenas no plano da aniquilação dos efeitos do negócio.
Deste modo, tendo-se o autor limitado a formular um pedido de anulação de certo negócio jurídico, não é lícito ao tribunal proferir sentença de condenação na restituição ou entrega dos bens, consequente ao decretamento da invalidade - ou da ineficácia do negócio - por tal implicar violação do princípio de que o juiz não pode condenar em objeto diverso do pedido.
Ou seja: é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efetivamente, na sua estratégia processual, curou de formular.
O grupo de situações em que se pode admitir – e em que vem sendo mais frequentemente admitida - a reconfiguração jurídica do específico efeito peticionado pelo autor situa-se no campo dos valores negativos do ato jurídico: pretendendo o autor, em termos práticos e substanciais, a destruição dos efeitos típicos que se podem imputar ao negócio jurídico celebrado, ocorre uma deficiente perspetivação jurídica desta matéria, configurando a parte o efeito prático-jurídico pretendido – de aniquilação do valor e eficácia do negócio – no plano das nulidades quando, afinal, a lei prevê para essa situação um regime de ineficácia ou inoponibilidade; ou na invocação de um regime de anulabilidade quando o valor negativo do ato se situa no plano da nulidade, ou vice-versa.»
Ora, no caso em apreço, a ré pretende ser ressarcida dos valores das amortizações e das obras de melhoramento na parte em que suportou encargos além da sua quota de 50%. Por imprecisão terminológica e confusão conceitual, a ré entende que tais valores devem majorar a sua quota de 50% sobre o imóvel. Todavia, nos termos da análise que se acaba de fazer, tal pedido pode ser interpretado pelo tribunal e ser corrigida a sua qualificação jurídica, sendo reconfigurado para um crédito autónomo sem repercussão na quantificação da quota da ré, o que se determina. Ao fazer-se esta convolação, respeita-se a pretensão material de fundo da Ré: ser ressarcida dos valores que despendeu além da sua quota.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar:
a) Parcialmente procedente o recurso principal, revogando-se a decisão de 23.2.2021 no segmento em que não admitiu o pedido reconvencional atinente aos valores despendidos pela ré na amortização do crédito à habitação, sendo admitido tal pedido reconvencional com a precisão de que abrange apenas os valores despendidos pela ré na parte em que exceda a sua quota de 50%, critério este que se estende aos valores pagos pela ré a título de obras de melhoramento;
b) Improcedente o recurso subordinado.
Custas do recurso principal pela apelante e pelo apelado, na vertente de custas de parte, na proporção de ¼ e ¾, respetivamente (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).
Custas do recurso subordinado pelo apelante, na vertente de custas de parte.

Lisboa, 13.7.2021
Luís Filipe Sousa
Carla Câmara
José Capacete
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., 2018, p. 115.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 119.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).