Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2943/22.1T8FNC-B.L1-1
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Aceitando-se a competência internacional do tribunal português (art.ºs 59.º e 62.º do CPC) e considerando que se verifica o condicionalismo aludido no nº1 do art.º 294.º do CIRE, isto é, o devedor, pessoa singular, não tem em Portugal o seu domicílio, nem o CIP, conclui-se que o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português: o legislador permite que o interessado possa, ainda assim, instaurar o processo de insolvência em Portugal, limitando, no entanto, o seu objeto, que se restringe aos bens do devedor situados em território nacional.

2. As várias normas constantes do capítulo III, do Título XV, do CIRE não são todas coincidentes no seu campo de aplicação: a aplicação de cada uma dessas normas pressupõe sempre que estejamos perante uma insolvência transfronteiriça ou internacional, mas, em segunda linha, é necessário aferir se a hipótese que se depara ao julgador configura, ou não, uma situação subsumível à disciplina jurídica vertida no Regulamento (EU) nº 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015.

3. Centrando-nos no art.º 295.º do CIRE a aplicação das “especialidades” aí referidas pressupõe que estejamos perante uma insolvência transfronteiriça ou internacional com referência, exclusivamente, a Estados-Membros da União Europeia e em que seja aplicável a disciplina jurídica vertida no referido Regulamento, só assim se podendo compreender o sentido e alcance do regime aí fixado; efetivamente, a existência de um processo particular ou, noutra designação, de um processo territorial (nº 3 do art.º 294.º) deve ser conexionada com a existência de um processo secundário, a que se reporta o art.º 296.º, compreendendo-se que será no processo principal em que as questões alusivas ao perdão de dívida serão colocadas, sendo que só em Estados-Membros da União Europeia é que pode assegurar-se a aplicação uniforme do Direito da União, mormente quanto ao regime alusivo a tal matéria, atenta a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, cujos destinatários são os Estados-Membros (art.º 36.º da Diretiva). 
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa
  
I.RELATÓRIO
Ação
Insolvência pessoa singular.

Insolvente
LJ, residente em (…) Reino Unido.

Pedido/causa de pedir
A devedora apresentou-se à insolvência, em 31-05-2022, alegando, em síntese, que é divorciada, tendo emigrado para o Reino Unido, onde trabalha por conta de outrem, auferindo o vencimento médio mensal de 1.300 libras esterlinas (€1.523,54), tendo despesas mensais fixas que rondam o valor mensal de 1.780 libras (€2.094,00).
Contra si foi instaurado o processo de execução n.º (…) pendente no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo de Execução J1, para pagamento da quantia exequenda de €18.557,81.
Apresenta um passivo no valor de €18.557,81, tendo como único credor a exequente daquele processo, sendo que não é titular de quaisquer outros rendimentos ou bens suficientes que lhe permitam fazer face ao mesmo.
Requereu ainda a exoneração do passivo restante.

Decisão recorrida
Em 06-06-2022 foi proferida decisão com o seguinte segmento dispositivo:
“Pelo exposto, ao abrigo do art.º 28.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas:
a) Declaro a insolvência de LJ, NIF, residente em (…) Reino Unido.
b) Fixo a residência da insolvente em (…) Reino Unido.
c) Nomeio para desempenhar o cargo de administrador da insolvência a Sr.ª Dr.ª CS com domicílio profissional na Rua (…).
d) Determino que a insolvente entregue imediatamente à senhora administradora da insolvência os documentos referidos no art.º 24.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que ainda não constem dos autos.
e) Decreto a apreensão, para imediata entrega à senhora administradora da insolvência, dos elementos da contabilidade da insolvente e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos.
f) Fixo em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos.
g) Advirto os credores da insolvente de que devem comunicar prontamente à senhora administradora da insolvência as garantias reais de que beneficiem.
h) Advirto os devedores da insolvente de que as prestações a que estejam obrigados deverão ser feitas à senhora administradora da insolvência e não ao próprio insolvente.
i) Atento o facto de ser conhecido um único credor, não nomeio comissão de credores.
j) Face à previsível reduzida dimensão da massa insolvente, bem como o número reduzido de credores, prescindo da realização da assembleia de credores, prevista no art.º 156.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
k) Avoco todos os processos de execução fiscal pendentes contra a insolvente a fim de serem apensados ao presente processo, conforme determinado no art.º 180.º, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário.
l) Indefiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
*
Custas pela massa insolvente, nos termos do art.º 304.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, relegando-se para momento ulterior a fixação do valor da causa.
*
Notifique, nos termos do art.º 37.º, n.º 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
*
Cite os cinco maiores credores, nos termos do art.º 37.º, n.º 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, sendo os restantes credores e demais interessados citados editalmente, nos termos do art.º 37.º, n.º 7, do mesmo diploma.
Proceda-se à rectificação do nome do credor (…)”
*
Cite o chefe do serviço de finanças competente, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 181.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
*
Publicite e registe a sentença, nos termos do art.º 38.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
*
Todos os prazos previstos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que têm como referência a data da realização da assembleia de apreciação do relatório são, no presente processo e caso não venha a ser designada data para realização de assembleia de apreciação do relatório, contados com referência ao 45º dia subsequente à data da prolação desta sentença.
*
Notifique a senhora administradora da insolvência para, no prazo de 50 dias contados da presente sentença, apresentar o seu relatório no processo.
*
Nos termos do art.º 29.º, n.º 8, da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, dê pagamento à provisão para despesas devida à senhora administradora da insolvência, no montante de 2 UC, a suportar pelo IGFEJ, I.P”.

Recurso
Não se conformando com a decisão proferida quanto ao pedido de exoneração do passivo restante, a devedora apelou, formulando as seguintes conclusões:
“A douta sentença impugnada não andou bem ao indeferir o pedido de exoneração do passivo restante deduzido pela insolvente e recorrente, pelo que não interpretou nem aplicou bem as normas aplicáveis;
- Na realidade, o processo de insolvência foi aberto em Portugal, encontrando-se aqui localizado o único credor da recorrente e os seus bens, tendo neste país sido contraída a divida indicada nos presentes autos;
- O Reino Unido já não faz parte da União Europeia;
- A recorrente nasceu, cresceu e casou em Portugal, aqui conservando as suas raízes familiares e afetivas, tencionando um dia regressar a este país;
- Tem apenas a nacionalidade portuguesa, e não a de qualquer outro país estrangeiro;
- Não foi instaurado nem corre qualquer processo principal de insolvência no estrangeiro; pelo que não poderão ser aplicadas as normas do “processo particular de insolvência” enunciadas nos artigos 294.º e segs. do CIRE;
- Não se encontrando preenchidos os pressupostos de aplicação daquelas normas, a douta sentença de que se recorre violou o disposto nos artigos 237.º, 294.º, 29.º e 296.º todos do CIRE.
Requerimento:
Ao abrigo do disposto no artigo 646.º do CPC, e a fim de instruir o presente recurso, requer certidão da douta sentença impugnada, da petição inicial e da c. de nascimento da recorrente.
Nestes termos,
Roga a V. Exas. Venerandos Desembargadores, se dignem alterar a douta sentença impugnada, devendo ser revogada na parte em que indeferiu a exoneração do passivo restante e substituída por outra decisão que o defira, fazendo-se assim a habitual e costumada JUSTIÇA”
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO
Releva o circunstancialismo aludido e ainda o que a seguir se enuncia, ponderando os elementos constantes dos autos e apensos respetivos:
1. A administradora da insolvência apresentou nos autos (apenso D) o requerimento alusivo à apreensão de bens, juntando o “Auto de Apreensão de Direitos”, com o seguinte teor:
“VERBA 1
 Quinhão hereditário na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de FA – NIF da herança (…) que incide sobre os bens declarados em sede de participação de imposto de selo n.º 1587509 do Serviço de Finanças de Ribeira Brava, incidente sobre os seguintes bens, pertencendo à insolvente uma quota ideal de 3/32:
a) Prédio rústico sito em Praia, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…). 
b) Prédio urbano sito em sítio da Praia, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…).
c) Prédio urbano sito em sítio da Praia, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…).
*VERBA 2*
Seguro de capitalização “Reforma Aforro PPR” ………….€668,37.
*VERBA 3*
Valores apreendidos no âmbito do processo executivo n.º (…)€492,36.
Nada mais havendo a tratar encerra-se a presente diligência de arrolamento e apreensão de direitos lavrada em Auto”.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – art.ºs 635º e 639º do CPC – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
No caso, impõe-se apreciar se o presente processo deve ser configurado como um processo particular de insolvência, previsto no Capítulo III, do título XV do CIRE, diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem e regulado nos art.ºs 294.º a 296.º, mormente para efeitos de aferição da admissibilidade da formulação, pelo devedor, de pedido de exoneração do passivo restante.

2. O presente processo de insolvência foi instaurado em Portugal, por apresentação da devedora, em 31-05-2022 e, como decorre dos autos, o tribunal recorrido não questionou a sua competência para a tramitação dos autos e apreciação respetiva, nem qualquer interveniente processual deduziu questão atinente à competência internacional do tribunal português [ [1] ], sendo que a hipótese que se nos depara é a seguinte:
- A requerente/devedora, ora apelante, tem nacionalidade portuguesa;
- À data em que se apresentou à insolvência residia no Reino Unido, situação que se mantém [ [2] ];
- A requerente /devedora tem bens em Portugal, nomeadamente, é titular de uma quota ideal de herança que engloba bens imóveis;
- Alegando a apelante que “o processo de insolvência foi aberto em Portugal, encontrando-se aqui localizado o único credor da recorrente e os seus bens, tendo neste país sido contraída a divida indicada nos presentes autos”, invocando ainda na petição inicial que corre termos contra si, instaurado em Portugal, ação executiva tendo em vista a cobrança do crédito no valor de €18.557,81, que indica ser o seu único passivo, tendo como único credor a exequente daquele processo [ [3] ].
Donde, à data de instauração da ação, momento processualmente relevante para aferição dos pressupostos de natureza processual, a devedora não tinha o seu domicílio em Portugal – cfr. os art.ºs 82.º a 88.º do Cód. Civil – tendo-o no Reino Unido, que já não é um Estado-Membro da União Europeia, salientando-se que, a essa data, já tinha terminado o período de transição para a consolidação da saída (21-12-2020), em que ainda seria aplicável no Reino Unido o direito da União Europeia, conforme “Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte da União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica” (2019/C 384 I/01), publicado no Jornal Oficial da União Europeia em 12-11-2019.
Não se conhecendo qualquer convenção internacional celebrada entre o Estado Português e o Reino Unido, incidindo sobre esta matéria, aceita-se, tendo em conta a relação jurídica tal como ela foi configurada pela apelante na petição inicial e o disposto nos art.ºs 59.º e 62.º, alíneas b) e c) do CPC que o tribunal recorrido, admitindo a tramitação dos autos, proferisse decisão sobre a insolvência, assumindo-se como internacionalmente competente [ [4] ].
No entanto, não se cuida aqui de aferir de questão atinente à (in)competência internacional do tribunal português e da aferição de elementos/fatores de conexão, de natureza pessoal ou real, mas, exclusivamente, da caraterização do presente processo como processo particular de insolvência, com as especificidades elencadas no art.º 295.º que, sob a epígrafe “[e]specialidades de regime”, preceitua:
“Em processo particular de insolvência:
a) O plano de insolvência ou de pagamentos só pode ser homologado pelo juiz se for aprovado por todos os credores afectados, caso preveja uma dação em pagamento, uma moratória, um perdão ou outras modificações de créditos sobre a insolvência;
b) A insolvência não é objecto de qualificação como fortuita ou culposa;
c) Não são aplicáveis as disposições sobre exoneração do passivo restante”.
Acentuando-se que essas “peculiaridades que assistem ao processo particular” se colocam “no seu confronto com o processo comum de insolvência”, mas, ainda assim, “não há uma forma especial para o processo particular de insolvência” [ [5] ].   
O tribunal recorrido deu resposta positiva, considerando estarmos perante um processo particular de insolvência e, decretando a insolvência da devedora, indeferiu liminarmente a pretensão de exoneração, fundamentando como segue:
“Nos termos do art.º 294.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos seus principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português.
No caso em análise, a requerente reside no Reino Unido, país para o qual emigrou, no qual se encontra a desempenhar a sua actividade profissional.
Deste modo, e tomando em consideração a noção de domicílio expressa no art.º 82.º do Código Civil, resulta que, tal como assumido pela própria, o domicílio da requerente é no Reino Unido.
Por outro lado, os factos alegados pela requerente não permitem de todo concluir que esta tem o centro dos seus principais interesses em Portugal.
O mero facto de a requerente ter nacionalidade portuguesa e até ser titular de um quinhão hereditário em território português, só por si, não é de molde a integrar tal conceito.
Com efeito, de acordo com o art.º 7.º, n.º 2, entende-se por centro dos principais interesses aquele em que o devedor os administre, de forma habitual e cognoscível por terceiros.
Sendo o devedor pessoa singular, a doutrina tem acolhido o lugar da residência habitual, ou da principal residência habitual, tendo mais que uma, como o elemento de mais fácil concretização (o determinável ou cognoscível por terceiros).
A nosso ver é o critério que deve prevalecer na falta de outros elementos que sugiram que o centro principal de interesses não corresponde ao do local de residência habitual – pode muito suceder que, por exemplo, o devedor tenha residência habitual num Estado-Membro e, directamente ou por interposta pessoa, tenha a administração de sociedades ou de estabelecimentos sediados noutro Estado-Membro. (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo n.º 2304/13.3TBVCT-A.G1, de 22/05/2014, disponível em www.dgsi.pt)
Assim, nos termos do art.º 294.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o presente processo de insolvência abrange apenas os bens situados em território português.
E, nesta decorrência, de acordo com o art.º 295.º, alínea c), do mesmo diploma, não são aplicáveis as disposições sobre a exoneração do passivo restante.
Deste modo, resta indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante”.
Entendemos que, tendo por referência exclusivamente a avaliação da admissibilidade da formulação de pedido de exoneração do passivo restante pela devedora, não procede a argumentação expendida na decisão recorrida [ [6] ].
Dispõe o art.º 294.º, que o tribunal recorrido convoca, sob a epígrafe “[p]ressupostos de um processo particular”:
“1 - Se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português.
2 - Se o devedor não tiver estabelecimento em Portugal, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação dos requisitos impostos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Código de Processo Civil.
3 - Sempre que seja aplicável o Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, o processo particular é designado por processo territorial de insolvência até que seja aberto um processo principal, caso em que passa a ser designado por processo secundário”.
Aceitando-se a competência internacional do tribunal português, nos moldes supra indicados e considerando que se verifica o condicionalismo aludido no nº1 do referido preceito [ [7] ], conclui-se que o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português: o legislador permite que o interessado possa, ainda assim, instaurar o processo de insolvência em Portugal, limitando, no entanto, o seu objeto, que se restringe aos bens do devedor situados em território nacional.
Daqui não segue que deva aplicar-se o disposto no art.º 295.º, afigurando-se nos que as várias normas do capítulo III do Título XV, não são todas coincidentes no seu campo de aplicação. Assim, a aplicação de cada uma dessas normas pressupõe sempre que estejamos perante uma insolvência transfronteiriça ou internacional [ [8] ] mas, em segunda linha, é necessário aferir se a hipótese que se depara ao julgador configura, ou não, uma situação subsumível à disciplina jurídica vertida no Regulamento (EU) nº 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015 [ [9] ] [ [10] ] [  [11] ]; aliás, essa constatação é evidente em face do nº 2 do art.º 294.º, preceito que, notoriamente, não é compatível com o disposto no art.º 3.º, nº2 do Regulamento [ [12]  ], de sorte que uma leitura articulada dos dois regimes e tendo em conta o disposto no art.º 275.º, passa por circunscrever a sua aplicabilidade, exclusivamente, às situações internacionais não abrangidas pelo Regulamento [ [13] ] [ [14] ]. Conclusão que também ressalta do nº 3 do art.º 294.º, impressionando a referência daí constante – “[s]sempre que seja aplicável o Regulamento (…)” – o que deixa antever a necessidade de ponderação da aplicação de cada uma das normas desse Capítulo no contexto do Regulamento, ou à margem do mesmo [ [15] ].
Centrando-nos, então, no referido art.º 295.º, atento o objeto do presente recurso, a aplicação das “especialidades” desse regime pressupõe, em nosso entender, que estejamos perante uma insolvência transfronteiriça ou internacional com referência, exclusivamente, a Estados-Membros da União Europeia e em que seja aplicável a disciplina jurídica vertida no referido Regulamento, só assim se podendo compreender o sentido e alcance do regime aí fixado; efetivamente, a existência de um processo particular, ou, noutra designação, de um processo territorial (nº3 do art.º 294.º) deve ser conexionada com a existência de um processo secundário, a que se reporta o art.º 296.º [ [16] ] [ [17] ], compreendendo-se que será no processo principal em que as questões alusivas ao perdão de dívida serão colocadas, sendo que só em Estados-Membros da União Europeia é que pode assegurar-se a aplicação uniforme do Direito da União [ [18] ] [ [19]], mormente quanto ao regime alusivo a tal matéria, atenta a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019 [ [20] ] [ [21] ], cujos destinatários são os Estados-Membros (art.º 36.º da Diretiva). 
Fica, assim, salvaguardada a igualdade de tratamento dos cidadãos no que concerte à possibilidade de o devedor insolvente obter um perdão de dívida (art.º 13.º da CRP) [ [22] ]; o deferimento do pedido de exoneração do passivo restante acarreta a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida (art.º 245.º, nº 1), permitindo-se ao devedor “um novo começo (fresh start), recuperando assim da sua situação de insolvência” [ [23] ]; esse foi, conforme expresso no preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03, que aprovou o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, o objetivo do legislador. Relativamente a pessoas singulares, cidadãos de um Estado- Membro da União, a que se aplica o regime do Regulamento, a concessão desse benefício já é assegurada no denominado processo territorial, a correr termos no Estado-Membro correspondente ao domicílio do devedor ou em que se situa o CIP, por via da aplicação do regime da Diretiva, pelo que não tem cabimento o tratamento dessa matéria no processo secundário, de âmbito limitado. O mesmo já não acontece quando a situação de insolvência transfronteiriça ou internacional se coloca relativamente ao Estado Português e outro Estado que se situa fora da União Europeia e/ou em que não é aplicável o Regulamento, não se vislumbrando razões para, nesses casos, relativamente ao processo que corre termos em Portugal, o devedor não poder usufruir do mesmo direito, beneficiando da  mesma oportunidade de exoneração do passivo restante, se verificado o condicionalismo respetivo.
Adere-se, pois, ao entendimento sufragado no acórdão do TRC de 01-06-2020 em que, numa situação que temos por similar à dos autos, se considerou que “[o] critério estabelecido nos art.ºs 294.º a 296.º do CIRE apenas tem aplicação quando se verifica uma situação de insolvência transfronteiriça ou internacional, ou seja, quando o devedor tem ligações com mais do que um Estado-Membro, designadamente por ter bens ou credores localizados em mais de um Estado-Membro, e quando, verificando-se tal situação de insolvência transfronteiriça, o Estado Português não é o internacionalmente competente para o chamado “processo de insolvência principal [ [24] ] [ [25] ].
Em suma, com a delimitação feita, conclui-se que não se aplica ao caso o regime do processo particular de insolvência, inexistindo fundamento para, com base no art.º 295.º, alínea c), indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante; os autos devem, pois, prosseguir os normais trâmites para apreciação do pedido de exoneração formulado pela devedora, sem prejuízo, obviamente, da eventual existência de outros fundamentos para o indeferimento liminar desse pedido, o que aqui não esteve em apreciação.
Tudo em ordem a concluir pela procedência do recurso.
*
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, devendo o tribunal dar seguimento ao pedido de exoneração do passivo restante, nos termos supra assinalados.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 09-01-2023
Isabel Fonseca
Fátima Reis Silva
Amélia Sofia Rebelo
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[1] Pese embora se trate de exceção de conhecimento oficioso (art.ºs 577.º, alínea a) e 578.º do CPC), a circunstância de nenhum interveniente processual discutir ou questionar a situação de facto invocada na petição inicial em que a devedora se apresentou à insolvência permite fixar o quadro factual juridicamente relevante para apreciar da exceção.  
[2] A requerente indica, no cabeçalho da petição inicial, que reside no Reino Unido – “e acidentalmente no sítio da (…) concelho da Ribeira Brava” – para onde emigrou (art.º 2º), aí trabalhando por conta de outrem (art.º 3.º). 
[3] Cfr. os art.ºs 21.º e 22.º da petição inicial, com o seguinte teor:
“21.º
Conforme referido, a requerente encontra-se emigrada; mas foi em Portugal que contraiu a divida exequenda junto do único credor, sendo também neste país onde se localiza a sede desse credor.
22.º
Daí que o Tribunal Português seja competente para apreciar e decidir do presente pedido de insolvência”. 
[4] Com a afirmação tabelar feita pelo tribunal recorrido, em sede de saneamento do processo, considerando que “[o] Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia”.
[5] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2015, Lisboa: Quid Juris, p. 966.
[6] O Acórdão do TRG de 22-05-2014, processo: 2304/13.3TBVCT-A.G1 (Relator: Heitor Gonçalves), acessível in www.dgsi.pt, como todos os demais a que aqui se fizer referência, convocado na decisão, foi proferido num contexto em que estava em causa, exclusivamente, aferir de questão alusiva à competência do tribunal, no âmbito de dois Estados-Membros da União Europeia (Portugal e França); o acórdão foi assim sumariado:
“Demonstrando-se que o principal centro de interesses do devedor não é em Portugal, mas em França, são os tribunais deste último Estado-Membro os internacionalmente competentes para conhecerem do pedido de insolvência do devedor (processo principal de insolvência)”.
[7] Esse condicionalismo reconduz-se à constatação de que, nos casos em que o devedor é uma pessoa singular, como aqui acontece, o devedor não tem domicílio em Portugal, nem do processo resultam elementos factuais que permitam concluir que tem no nosso país, o centro dos seus principais interesses (CIP), no sentido a que alude o número 2 do art.º 7.º, preceito que “oferece elementos pragmáticos para a caracterização do lugar que deve ser tido por centro dos principais interesses do devedor. Atender-se-á, então, àquele em que o devedor habitualmente os gere, mas exige-se, para que isso seja determinante, o facto de o fazer em termos cognoscíveis por terceiros, ou seja, de forma medianamente perceptível pelos interessados, conquanto não necessariamente publicitada, ou, sequer, ostensiva” (Carvalho Fernandes e João Labareda, obr. cit. p. 104). Donde, no caso ora em análise, é irrelevante a argumentação explanada nas alegações de recurso, quando aí se refere que “[a] recorrente nasceu, cresceu e casou em Portugal, aqui conservando as suas raízes familiares e afetivas, tencionando um dia regressar a este país”.
[8] O que acontece quando o devedor/insolvente tem ligações com várias ordens jurídicas, nomeadamente em razão da sua pessoa e/ou dos seus bens.
[9] O Regulamento revogou o Regulamente (CE) nº 1346/2000 (cfr. o art.º 91.º).
[10] A Dinamarca não está vinculada à aplicação do Regulamento – cfr. o considerando 88.
[11] Salienta-se que o “Regulamento tem um fim de mera harmonização processual. Ele não visa, de facto, uniformizar a disciplina jurídica da insolvência dos Estados-Membros, mas sim regular a abertura e os efeitos dos processos de insolvência que podem ser abertos numa situação de insolvência internacional. Mais precisamente, os processos abrangidos pelo Regulamento ficam sujeitos às regras nele contidas no que toca, fundamentalmente, a cinco aspectos: tribunal competente, lei aplicável, reconhecimento das sentenças, publicidade e reclamação de créditos e, por fim, no caso de pluralidade de processos, cooperação e comunicação entre os órgãos processuais” (Catarina Serra, Insolvência transfronteiriça, Revista de Direito Comercial (2018-12-04), acessível in
https://www.revistadedireitocomercial.com/insolvencia-transfronteirica).  
[12] “Artigo 3.º
Competência internacional
1. Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência («processo principal de insolvência»). O centro dos interesses principais é o local em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros.
No caso de sociedades e pessoas coletivas, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o local da respetiva sede estatutária. Esta presunção só é aplicável se a sede estatutária não tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos três meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência.
No caso de pessoa singular que exerça uma atividade comercial ou profissional independente, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o local onde exerce a atividade principal. Esta presunção só é aplicável se o local de atividade principal da pessoa singular não tiver sido transferido para outro Estado-Membro nos três meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência.
No caso de qualquer outra pessoa singular, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o lugar de residência habitual. Esta presunção só é aplicável se a residência habitual não tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos seis meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência.
2. No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado-Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro. Os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território.
3. Se for aberto um processo de insolvência nos termos do n.º 1, qualquer processo aberto posteriormente nos
termos do n.º 2 constitui um processo secundário de insolvência.
4. Um processo territorial de insolvência referido no n.º 2 só pode ser aberto antes da abertura de um processo
principal de insolvência nos termos do n.º 1, caso:
a) Não seja possível abrir um processo de insolvência ao abrigo do n.o 1 em virtude das condições estabelecidas na lei do Estado-Membro em cujo território se situa o centro dos interesses principais do devedor; ou
b) A abertura do processo territorial de insolvência seja requerida por:
i) um credor cujo crédito decorra da exploração, ou esteja relacionado com a exploração, de um estabelecimento
situado no território do Estado-Membro em que é requerida a abertura do processo territorial,
ii) uma autoridade pública que, nos termos da lei do Estado-Membro em cujo território o estabelecimento está
situado, tenha o direito de requerer a abertura de um processo de insolvência.
Quando é aberto um processo principal de insolvência, o processo territorial de insolvência passa a ser um processo secundário de insolvência”.
[13] Nesse sentido, cfr. Catarina Serra, obra cit. Refere a autora:
“Nos termos do Regulamento, um processo secundário ou territorial (“processo particular”, segundo a lei portuguesa) pode ser aberto noutro Estado-membro desde que o devedor tenha aí um estabelecimento. Ora, de acordo com o art.º 294.º, n.ºs 2 e 3, do CIRE, se o devedor não tiver um estabelecimento em Portugal, os tribunais portugueses podem, ainda assim, ser competentes se estiverem verificados os requisitos dispostos na al. c) do n.º 1 do art.º 62.º do CPC, isto é, “quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão pessoal ou real”. Perguntar-se-á qual é, afinal, o critério que deve prevalecer para a abertura deste tipo de processos nos casos em que se aplique o Regulamento: o critério (único) da titularidade do estabelecimento ou o critério estabelecido na lei portuguesa?
Determinando-se, no art.º 275.º, n.º 1, do CIRE, que os processos aos quais seja aplicável o Regulamento são regulados aí apenas a título subsidiário e na medida em que isso não seja contrário ao disposto no Regulamento, prevalece o primeiro critério: os tribunais portugueses (só) são competentes se o estabelecimento estiver localizado em Portugal51. Restará aplicar a norma do art.º 294.º, n.º 2, do CIRE aos restantes processos internacionais, isto é, aqueles que não sejam abrangidos pelo Regulamento”.
[14] No mesmo sentido cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, obr cit. p. 965 (nota 6) e Luís Manuel Teles de Meneses Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2018, Coimbra: Almedina, p. 317 (nota 3). 
[15] Sem prejuízo, atente-se que decorre do Regulamento que há situações em que, mesmo entre os Estados-Membros, não deve ser aplicado o regine do Regulamento – cfr. o art.º 1º, nº1 (in fine) e nº 2 do Regulamento, bem como os considerandos 9 a 19.
[16] Cfr. os seguintes considerandos do Regulamento:
“23) O presente regulamento permite que o processo de insolvência principal seja aberto no Estado-Membro em que se situa o centro dos interesses principais do devedor. Esse processo tem alcance universal e visa abarcar todo o património do devedor. Para proteger a diversidade dos interesses, o presente regulamento permite que os
processos secundários de insolvência eventualmente instaurados corram paralelamente ao processo principal de
insolvência. Pode-se instaurar um processo secundário de insolvência no Estado-Membro em que o devedor tenha um estabelecimento. Os efeitos dos processos secundários de insolvência limitar-se-ão aos ativos situados no território desse Estado. A necessidade de manter a unidade dentro da União é garantida por normas imperativas de coordenação com o processo principal de insolvência.
(24) No caso de o processo principal de insolvência relativo a uma pessoa coletiva ou a uma sociedade ter sido aberto num Estado-Membro distinto daquele em que se situa a sua sede estatutária, deverá ser possível abrir um
processo secundário de insolvência no Estado-Membro da sede estatutária, desde que o devedor exerça nesse
Estado uma atividade económica com recurso a meios humanos e a bens materiais, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.
(25) O presente regulamento aplica-se exclusivamente aos processos relativos ao devedor cujo centro dos interesses principais está situado na União.
(26) As normas de competência previstas no presente regulamento estabelecem unicamente a competência internacional, isto é, determinam o Estado-Membro cujos órgãos jurisdicionais estão habilitados a abrir processos de insolvência. A competência territorial interna deverá ser determinada pela lei nacional do Estado-Membro em questão”.
[17] Cfr. o Capítulo III do Regulamento, alusivo ao “Processo de Insolvência Secundário” (art.ºs 34.º a 52.º).
[18] O art.º 8.º, nº4 da CRP acolhe o princípio do primado do Direito da União, reafirmado igualmente pelo art.º 275.º do CIRE. 
[19] Atente-se aos seguintes considerandos do Regulamento aludido:
“Considerando o seguinte:
(1) Em 12 de dezembro de 2012, a Comissão adotou um relatório sobre a aplicação do Regulamento (CE)
n.º 1346/2000 do Conselho (). O relatório concluiu que a aplicação do regulamento é geralmente satisfatória,
mas que seria desejável aperfeiçoar a aplicação de algumas das suas disposições, a fim de melhorar a gestão eficaz dos processos de insolvência transfronteiriços. Uma vez que o regulamento foi alterado várias vezes e que é necessário fazer novas alterações, por razões de clareza, deverá proceder-se à reformulação do referido
regulamento.
(2) A União estabeleceu o objetivo de criar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça.
(3) O bom funcionamento do mercado interno implica a tramitação eficiente e eficaz dos processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços. A aprovação do presente regulamento é necessária para alcançar esse objetivo, o qual se insere no âmbito da cooperação judiciária em matéria civil, na aceção do artigo 81.º do Tratado.
(4) As atividades das empresas produzem cada vez mais efeitos transfronteiriços e são, por este motivo, regulamentadas pelo direito da União. A insolvência dessas empresas afeta, nomeadamente, o bom funcionamento do mercado interno, fazendo-se sentir a necessidade de um ato da União que exija a coordenação das medidas a tomar relativamente aos bens de um devedor insolvente.
(5) Para o bom funcionamento do mercado interno, é necessário evitar incentivos que levem as partes a transferir
bens ou ações judiciais de um Estado-Membro para outro, no intuito de obter uma posição jurídica mais
favorável em detrimento do interesse coletivo dos credores (seleção do foro).
(6) O presente regulamento deverá incluir disposições que regulem a competência para a abertura de processos de insolvência e a propositura de ações que deles decorram diretamente e que com eles se encontrem estreitamente relacionadas. O presente regulamento deverá igualmente incluir disposições relativas ao reconhecimento e à execução das decisões judiciais proferidas em processos desta natureza e disposições relativas à lei aplicável ao processo de insolvência. Além disso, o presente regulamento deverá prever regras de coordenação dos processos de insolvência relativos ao mesmo devedor ou a vários membros do mesmo grupo de sociedades.
[20] Salienta-se que a Lei n.º 9/2022 estabeleceu medidas tendo em vista a transposição da Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, nomeadamente quanto à fixação do período de cessão – prazo para o perdão, na terminologia da Diretiva – em três anos e a possibilidade de prorrogação desse prazo (por igual período).
[21] Cfr. os art.ºs 20.º a 24.º da Diretiva, em matéria pertinente ao instituto da exoneração.    
[22] “O sentido primário da fórmula constitucional é negativo: consiste na vedação de privilégios e de discriminações. (…)
Mais rico e exigente vem a ser o sentido positivo do princípio da igualdade: (i) tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações semelhantes); (ii) tratamento desigual de situações desiguais, mas substancial e objectivamente desiguais e não criadas ou mantidas artificialmente pelo legislador; (iii) tratamento em moldes de proporcionalidade das situações relativamente iguais ou desiguais e que, consoante os casos, se converte para o legislador ora em mera faculdade, ora em obrigação; (iv) tratamento das situações não apenas como existem mas também como devem existir (acrescentando-se, assim, uma componente activa  ao princípio e fazendo da igualdade perante a lei uma verdadeira igualdade através da lei); (v) consideração do princípio não como uma “ilha”, antes como princípio a situar no âmbito dos padrões materiais da Constituição” (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, 2010, Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, pp. 222-223).              
[23] Luís Meneses Leitão, 2009, Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, p.319.    [24] Processo: 324/20.0T8LRA.C1 (Relator: Arlindo Oliveira); na situação aí em análise os devedores, que se apresentaram à insolvência em Portugal, eram emigrantes, residindo e trabalhando na Suíça; invocavam a instauração, contra ambos, em Portugal, de uma execução com vista à cobrança de um crédito garantido por hipoteca, execução em que o prédio em causa foi vendido e que todas as dívidas foram contraídas em Portugal e os credores são todos portugueses; foi deduzida questão alusiva à competência internacional dos tribunais portugueses, tendo a Relação concluído como indicado e ainda que “[o]s tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a declaração de insolvência pedida por dois devedores (marido e mulher) residentes na Suíça, mas em que os credores são portugueses e as dívidas foram contraídas em Portugal”.
Lê-se na fundamentação desse aresto:
“Os factores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses encontram-se referidos nos artigos 59.º, 62.º e 63.º do CPC, sem embargo do estabelecido nas normas de direito internacional, bem como nas convenções internacionais ratificadas pelo Estado Português – cf. artigo 8.º da CRP.
Desde já, cumpre esclarecer que não fazendo a Suíça parte da União Europeia, não se pode aplicar in casu o Regulamento (UE) 2017/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Maio de 2015.
Por outro lado, e como decorrência do facto da Suíça não fazer parte da UE, também os artigos 294.º a 296.º do CIRE não têm aplicação ao caso em apreço, uma vez que os mesmos apenas são de aplicar quando se verifica uma situação de insolvência transfronteiriça ou internacional, ou seja, quando o devedor tem ligações com mais do que um Estado-Membro, designadamente por ter bens ou credores localizados em mais de um Estado-Membro; e quando, verificando-se tal situação de insolvência transfronteiriça, o Estado Português não é o internacionalmente competente para o chamado “processo de insolvência principal” (sublinhado nosso).
[25] No mesmo sentido, parece-nos, apontam os acórdãos do TRC de 17-03-2020, processo: 3413/17.5TBLRA-B.C1 (Relator: Barateiro Martins) e do STJ de 12-07-2018, processo: 2892/17.5T8VNF-A.G1.S2 (Relator: Ana Paula Boularot).
No acórdão proferido pelo TRC estava em causa um recurso interposto por um credor, tendo por objeto o “despacho inicial” que fixou o montante alusivo ao rendimento indisponível do devedor, propugnando o credor apelante que o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor devia ter sido indeferido “por manifesta impossibilidade legal”, uma vez que o devedor residia em França, com base no disposto na alínea c) do art.º 295.º; a Relação não considerou essa argumentação acentuando que aquando da instauração do processo, requerido por um credor, o devedor residia em Portugal – o que, acrescentamos nós, tornaria porventura dispensável mais larga indagação –, não deixando, no entanto, em sede de fundamentação, de referir como segue:
“O presente recurso decorre, com todo o respeito, dum equívoco da apelante na compreensão do que está previsto nos 3 artigos do Capítulo III do Título XV do CIRE.
Tais 3 artigos (294.º a 296.º do CIRE) têm (podem ter) aplicação apenas e só quando se verifica uma situação de insolvência transfronteiriça ou internacional, ou seja, quando o devedor tem ligações com mais do que um Estado-Membro, designadamente por ter bens ou credores localizados em mais de um Estado-Membro; e quando, verificando-se tal situação de insolvência transfronteiriça, o Estado Português não é o internacionalmente competente para o chamado “processo de insolvência principal”.
Situação esta (de insolvência transfronteiriça ou internacional) em que sempre se confrontaram duas teses – a da universalidade/unidade, que grosso modo sustenta que os efeitos do processo não se limitam ao território onde a insolvência é declarada e que haverá um único processo de insolvência; e a da territorialidade/pluralidade, que sustenta que os efeitos da insolvência estão circunscritos ao território onde a insolvência é declarada, podendo haver uma pluralidade de processos de insolvência – sendo há muito dominante (pelo menos nos Estados-Membros da União da Europeia) a tese da universalidade/unidade, tese esta oportunamente plasmada em instrumentos comunitários, como foi o caso do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, de 29/05/2000, de 29 de Maio, e como é o caso do atualmente vigente Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Maio de 2015 (entrado em vigor, em Portugal, em 26/06/2017 – cfr. art.º 92.º de tal Regulamento e, por conseguinte, ao caso aplicável).
Porém, sem prejuízo do princípio da universalidade/unidade[1] constituir a matriz de ambos os Regulamentos (quer do 1346/2000, quer do atualmente vigente 2015/848), não está consagrado um “modelo puro”, isto é, tal princípio matricial é mitigado pelos princípios da territorialidade/pluralidade.
Razão pela qual os Regulamentos em questão, procurando uniformizar o DIP da Insolvência, estabelecem, entre outras, regras respeitantes:
 - à atribuição de competência internacional aos Tribunais dos Estados-Membros;
 - à determinação da lei aplicável;
 - ao reconhecimento de decisões estrangeiras;
 - à articulação entre um processo de insolvência principal e um processo de insolvência secundário.
Dizendo-se no Regulamento de 2015 (vigente e aplicável):
Artigo 3.ª Competência internacional
(…)
Dizendo assim respeito – em absoluta e indispensável conformidade e concordância com o direito comunitário vigente – os 3 artigos do Capítulo III do Título XV do CIRE ao tal processo limitado/secundário [2] (referido nos n.ºs 2 e 3 do art.º 3.º acabados de transcrever) que o matricial princípio da universalidade/unidade consentiu aos princípios da territorialidade/pluralidade.
O que significa que o “processo particular de insolvência”, previsto 3 artigos do Capítulo III do Título XV do CIRE, pressupõe a competência internacional, nos termos do art.º 3.º/1 do Regulamento, de Tribunais de outro Estado-Membro para o processo principal de insolvência, ou seja, não é por o devedor, a dado passo, residir no estrangeiro, que são aplicáveis os 3 referidos artigos.
O que – competência internacional de Tribunais de outro Estado-Membro – não pode ser afirmado no caso, desde logo por não estarmos sequer perante uma situação que tenha ligações com mais do que um Estado-Membro (além de Portugal), designadamente por o devedor ter bens ou credores localizados noutro Estado-Membro.
Ademais, no centro da atribuição de competência internacional aos Tribunais dos Estados-Membros, está o conceito do “Centro de Interesses Principais do Devedor (CIPD)”, sendo que, como se referiu, “no caso de pessoa singular (que não exerça uma atividade comercial ou profissional independente), presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o lugar de residência habitual”, sucedendo que o aqui devedor/insolvente foi, no início do presente processo, identificado como residindo em Portugal (na rua (…) Pombal), o que a apelante não coloca sequer em crise, dizendo tão só e apenas que o devedor agora reside (por tal constar da decisão sob recurso) em França[3]; ou seja, no início do processo – momento relevante para a fixação da competência – caso porventura estivéssemos perante uma insolvência transfronteiriça, os tribunais portugueses até seriam internacionalmente competentes, nos termos da referida presunção do art.º 3.º/1 do Regulamento de 2015, para o processo principal de insolvência, devendo com tal (como processo principal) ser considerado este processo de insolvência[4].
Em síntese, explicado o exato sentido do que está previsto nos 3 artigos do Capítulo III do Título XV do CIRE, nada é verdadeiramente dito ou invocado que permita qualificar os presentes autos como um “processo particular/territorial/limitado/secundário de insolvência”, não lhe sendo assim aplicável o previsto em qualquer um dos 3 artigos do Capítulo III do Título XV do CIRE, mais exatamente, ao contrário do que a apelante pretende, o disposto no art.º 295.º/c) do CIRE (segundo o qual, ao processo limitado, “não são aplicáveis as disposições sobre a exoneração do passivo restante”).
É quanto basta para concluir pela improcedência da apelação” (sublinhado nosso).
Quanto ao referido aresto do STJ, o Regulamento aí referenciado foi o Regulamento (CE) nº 1346/2000, mas a questão coloca-se ao mesmo nível.