Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2019/09.7TMSNT.L1-7
Relator: LUÍS LAMEIRAS
Descritores: INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
CONDENAÇÃO GENÉRICA
DANOS FUTUROS
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAR A DECISÃO
Sumário: I – O incidente de liquidação de sentença (artigo 378º, nº 2, do CPC) destina-se apenas, e só, à concretização do objecto da condenação genérica que ela contém, com respeito do caso julgado por ela formado;
II – A circunstância de a condenação genérica se reportar à indemnização de danos futuros, provados mas não contabilizados na acção declarativa, não obsta a que o credor os possa liquidar, mesmo que ao tempo da propositura do incidente ainda subsista a sua natureza futura;
III – Não é, pois, de indeferir liminarmente o incidente de liquidação de quantia indemnizatória por danos futuros, com o argumento de que ainda não teve lugar o facto de que esses danos hão-de emergir.
(sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1.
1.1. P, Ld.ª propôs acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra R, Ld.ª, pedindo, ao que importa, a condenação da Ré a realizar na respectiva sede as obras necessárias à reparação de todas as irregularidades denunciadas existentes no piso / revestimento fornecido e montado pela Ré do consultório ali instalado …; além disso a imprevisibilidade dos custos que a Autora terá com a reparação do pavimento fornecido pela Ré, com os lucros cessantes decorrentes do encerramento do consultório pelo número de dias necessário à dita reparação, substituição / remoção / aplicação e secagem do novo revestimento a aplicar, a mudança de móveis, etc., forçam a Autora a relegar a liquidação das respectivas importâncias para execução de sentença.
Alegou, em síntese, que explora a actividade de veterinária e que ajustou com a Ré que esta fornecesse e aplicasse no respectivo consultório um pavimento com características convencionadas; a Ré realizou o trabalho e deu garantia de perfeição; progressivamente, contudo, ali foram aparecendo defeitos e imperfeições; a Autora denunciou à Ré tais vícios e solicitou a sua correcção. Os trabalhos de reparação obrigam ao encerramento do consultório da Autora com prejuízos de facturação, por não dispôr aquela de instalações alternativas.

1.2. A Ré foi regularmente citada, mas não contestou.

1.3. Foi, então, proferida sentença que considerando o estatuído no artigo 784º do Código de Processo Civil, por adesão aos fundamentos alegados pela Autora na petição inicial, julgou a acção procedente e provada e firmou o seguinte dispositivo:
«a) Condeno a Ré a realizar na sede da Autora … as obras necessárias à reparação de todas as irregularidades denunciadas, existentes no piso / revestimento fornecido e montado pela Ré no consultório ali instalado …
b) Sem prejuízo do que se deixou dito na alínea a), condeno ainda a Ré a pagar à Autora os custos que esta terá com a reparação do pavimento fornecido pela Ré e, bem assim, os lucros cessantes decorrentes do encerramento do consultório, pelo número de dias necessários à dita reparação / substituição / remoção / aplicação e secagem do novo revestimento a aplicar, mudanças de móveis, ente outros custos, ficando relegado para liquidação em sede de execução de sentença o apuramento dos custos concretos.[1]».
A sentença, com este conteúdo, transitou em julgado.

2.
2.1. Entretanto, a Autora veio deduzir o incidente de liquidação.
Alegou, em síntese, que as reparações a realizar pela Ré implicam a remoção dos bens e equipamentos do consultório e o encerramento total, por um período de tempo, do estabelecimento; ademais, por não existir espaço alternativo, ficará absolutamente privada de exercer a sua actividade durante esse período. Conclui que a remoção dos equipamentos terá o custo de 5.800 € e a mudança de mobiliário 940 €; deixará de ganhar 4.711,80 €; perderá clientela e terá danos de imagem, a que reporta um défice de 9.422 €; tudo na importância de 20.873,80 €, a que acresce IVA igual a 4.174,76; num total certo de 25.048,56 €, quantia em que, com juros moratórios, liquida a condenação genérica que foi proferida na alínea b) da sentença.

2.2. O tribunal de primeira instância, porém, não admitiu o incidente; e lavrou, para tal, a seguinte fundamentação, nos trechos que aqui importam:
«
… ao contrário do que parece ser a posição da Autora, atentos os termos em que a Ré foi condenada, o pedido a que se refere a alínea b) do dispositivo e que a Autora pretende ver liquidado, não pode ser dissociado do pedido da alínea a) do mesmo dispositivo.
Para liquidar o pedido da alínea b), a Autora tem que, ou demonstrar que a Ré já realizou as obras a que foi condenada e, em função dessa realização de obras, demonstrar os custos e os lucros cessantes (concretos) que teve – e a Autora não demonstra no requerimento que essas obras foram efectuadas; ou, no caso de incumprimento por parte da Ré na realização das obras, tem a Autora que intentar execução para prestação de facto e, ou nessa acção executiva se estiverem verificados os respectivos pressupostos, ou por via do incidente de liquidação enxertado nesta acção declarativa, liquidar então o pedido a que se refere a alínea b).
».
Terminando a concluir não ser, na fase em presença, o incidente de liquidação deduzido, o meio processual próprio à pretensão da Autora.

3.
3.1. É desta decisão que a Autora, inconformada, apelou.
E, nas alegações de recurso, fazendo registar as seguintes conclusões:
a) Por sentença há muito transitada, a Ré foi condenada a realizar na sede da Autora …as obras necessárias à reparação de todas as irregularidades denunciadas existentes no piso / revestimento fornecido e montado pela Ré do consultório ali instalado ….
b) Foi ainda a Ré condenada a pagar à Autora, os custos que esta terá com a reparação do pavimento fornecido pela Ré, com os lucros cessantes decorrentes do encerramento do consultório pelo número de dias necessário à dita reparação, substituição / remoção / aplicação e secagem do novo revestimento a aplicar, mudança de móveis, etc., entre outros, tendo ficado relegado para liquidação em sede de execução de sentença o apuramento dos custos concretos.
c) Resulta dos autos que as reparações a realizar pela Ré implicam necessariamente que a Autora tenha que remover todos os bens e equipamentos que tem no consultório instalado na sua sede, porquanto o pavimento sobre revestimento multicamada de quartzo, cor azul, com rodapé multicamada e selagem com verniz poliuretano, foi colocado pela Ré na sede da Autora, em toda a superfície, numa área de cerca de 127 m2, que inclui recepção, salas de espera, consultório, sala de internamento, sala de preparação, sala de cirurgia, sala de raios X, sala escura, sala de tosquias e corredores de ligação.
d) A eliminação dos defeitos implica, obrigatoriamente, o encerramento total das instalações do consultório da Autora, durante, pelo menos, um mês.
e) Durante as operações de remoção dos defeitos, a Autora não poderá exercer a sua actividade de prestação de serviços veterinários, quer por falta de equipamento (que impede a realização das reparações), quer por impossibilidade de realizar as tarefas que, por imposição legal e regulamentar, têm que ser executadas em ambiente limpo, esterilizado e desinfectado.
f) Contabilizou a Recorrente em 25.048,56 € os custos que esta terá com a reparação do pavimento fornecido pela Ré, com os lucros cessantes, perda de clientela, danos de imagem, decorrentes do encerramento do consultório pelo número de dias necessário à dita reparação, substituição / remoção / aplicação e secagem do novo revestimento a aplicar, incluindo desmontagem, transporte, armazenamento e nova montagem e afinação dos móveis e equipamentos instalados na sua sede.
g) Para encerrar o seu estabelecimento, a Autora aqui Recorrente, necessita de dinheiro para pagar os encargos que vai ter com a desmontagem, transporte, armazenamento, montagem, calibração e testes.
h) Para encerrar o seu estabelecimento, a Autora aqui Recorrente, necessita de dinheiro para suportar os elevados custos fixos que vai ter designadamente com pessoal, rendas, consumíveis, que continuará a ter que suportar ... , durante o tempo em que estiver com as portas fechadas, sem facturar, nem receber seja o que for.
i) Para encerrar o seu estabelecimento, a Autora aqui Recorrente, necessita de ter (adiantadamente, sob pena de insolvência) montantes necessários que a compensem das perdas de clientela, que rapidamente procurará alternativas.
j) Para encerrar o seu estabelecimento, a Autora aqui Recorrente, necessita de ter (adiantadamente, sob pena de insolvência) montantes necessários que a compensem dos danos de imagem.
l) Exigir que a Autora tenha que aguardar que a Ré realize as tarefas de eliminação de defeitos para liquidar lucros cessantes, para além de desproporcionado, é exigir o impossível a uma empresa em início de actividade, mais a mais num contexto actual de recessão económica.
m) Não é necessário ser-se economista para antever a catástrofe decorrente do encerramento da actividade da Autora durante um mês e meio, sem qualquer compensação pecuniária.
n) Havendo condenação, nesse sentido, nada na lei obriga a que se tenha que aguardar pela reparação, para só depois liquidar lucros cessantes.
o) Ao não ter admitido o incidente de liquidação nas circunstâncias em que o fez, o tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 483º, 562º, 564º, 565º, 566º, 1221º e 1223º do Código Civil e os artigos 303º, 378º, 661º, nº 2, e 933º do Código de Processo Civil, preceitos que deveriam ter sido interpretados mediante a admissão do incidente de liquidação, antes mesmo da eliminação dos defeitos.
Em suma, deve ordenar-se a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que admita o incidente de liquidação e ordene o respectivo prosseguimento, nos demais termos processuais.

3.2. A apelada não apresentou contra-alegações.

4. Delimitação do objecto do recurso.
São as conclusões do apelante que delimitam, em primeira linha, o objecto do recurso (artigos 660º, nº 2, 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1, do Código de Processo Civil).
            E, nesse conspecto, é a seguinte a questão fundamental a apreciar:

            Estabelecendo o dispositivo da sentença declaratória que a Ré é condenada, por um lado, a realizar um conjunto de trabalhos na clínica da Autora e, por outro, ainda a entregar-lhe uma quantia indemnizatória para a compensar dos prejuízos para ela emergentes da execução desses trabalhos e da sua não laboração durante o prazo dessa execução, saber se é de admitir, ou não, o incidente de liquidação, destinado a concretizar aquela condenação genérica, e que foi deduzido pela Autora antes mesmo do início e realização dos ditos trabalhos.


II – Fundamentos

            1. O contexto processual relevante para a apreciação do presente recurso é que já antes foi explicitado, importando agora rememorar os seus aspectos de maior vinco; e que são os dois que seguem.
Em 1º lugar. Por sentença, que transitou em julgado, a Apelada foi condenada a realizar na sede da Apelante as obras necessárias à reparação de todas as irregularidades denunciadas, existentes no piso / revestimento fornecido e montado pela Ré no consultório ali instalado; sem prejuízo disso, foi ainda condenada a pagar-lhe os custos que esta terá com a reparação do pavimento … e, bem assim, os lucros cessantes decorrentes do encerramento do consultório, pelo número de dias necessários à dita reparação / substituição / remoção / aplicação e secagem do novo revestimento a aplicar, mudanças de móveis, ente outros custos, ficando relegado para liquidação em sede de execução de sentença o apuramento dos custos concretos (v fls. 27 a 29).
            Em 2º lugar. Pese embora a Apelada ainda não haja iniciado a execução dos trabalhos de reparação, em que foi condenada, a Apelante deduziu incidente de liquidação, destinado a concretizar a condenação indemnizatória genérica que a sentença também contém (v fls. 40 a 43).

            2. O mérito do recurso.

            2.1. Enquadramento preliminar.
            O incidente de liquidação, no contexto do qual se situa o recurso de apelação em presença, é no essencial uma exigência que emerge da regra de que só a obrigação líquida pode ser coercivamente efectivada em juízo (artigo 802º do Código de Processo Civil). Em particular, no que à sentença condenatória respeita, e porque se admite a condenação genérica, nos termos do artigo 661º, nº 2, do Código de Processo Civil, ela constituirá título executivo mas, naquele caso, apenas após a respectiva liquidação no processo declarativo (artigos 46º, nº 1, alínea a), e 47º, nº 5, do Código de Processo Civil).
            E assim chegamos ao incidente da instância em causa.
Distintamente do pretérito, deixou a sentença de condenação genérica de condenar “no que se liquidar em execução de sentença” (artigo 661º, nº 2, pré-vigente ao Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março), para agora condenar “no que vier a ser liquidado” (artigo 661º, nº 2, actual). No regime actual o legislador fez deslocar a liquidação obrigatoriamente para o âmbito do processo declaratório que a originou, em incidente posterior à condenação.[2]
Desta feita, com o novo regime – que é o da reformada acção executiva – passou o incidente de liquidação, com o âmbito definido no artigo 378º, nº 2, do Código de Processo Civil, a ser o único meio para liquidar, exceptuado o mero cálculo aritmético, a obrigação em cujo cumprimento o devedor tenha sido condenado.[3]  Criou-se, então, uma espécie de incidente da instância posterior ou subsequente à decisão judicial de condenação, enxertado no processo declaratório que nela culminou, e que tem até a virtualidade de determinar a renovação da respectiva instância, já extinta.[4]
            À tramitação desta modalidade incidental são aplicáveis, na sua fase liminar, as disposições gerais referentes aos incidentes da instância (artigo 302º do Código de Processo Civil);[5] assim o incidente, requerido nos termos do artigo 379º,[6] será sempre objecto de um despacho liminar que se pronuncie sobre a respectiva admissibilidade; e, caso seja admitido, a instância declaratória extinta considerar-se-á renovada (artigo 378º, nº 2, “in fine”).[7]
            O despacho apelado tem precisamente esta natureza liminar; indeferiu liminarmente o procedimento incidental e inviabilizou o ressuscitar da instância. Se é de manter, ou infirmar, é do que se tratará a seguir.

2.2. Pressupostos especifícos do incidente de liquidação.
Como dissemos, a justificação genética do incidente encontra-se no regime do artigo 661º, nº 2, do Código de Processo Civil:
Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo da condenação imediata na parte que já seja líquida.
Este preceito, que se reporta aos limites da condenação na sentença deve ser, ainda, conexionado com a admissibilidade de pedidos genéricos na acção declarativa. A regra é a de que o Autor deve, na acção que propõe, fazer concretizar a prestação debitória que pretende obter do Réu; pode porém e excepcionalmente formular pedido genérico designadamente quando não seja ainda possível determinar de modo definitivo as consequências do facto ilícito, ou o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o artigo 569º do Código Civil (artigo 471º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil). Adjectivam-se assim preceitos de direito substantivo, relativos à obrigação de indemnização, como o do artigo 564º, nº 2,[8] ou o do citado artigo 569º,[9] ambos do Código Civil.
Significa isto, então, que ao credor da indemnização se abre a alternativa de, na acção declaratória, poder formular um pedido líquido (como será regra), ou então, se for caso, um pedido ilíquido no enquadramento indicado. Ainda, em qualquer desses dois casos, e reunidas as condições do artigo 661º, nº 2, o tribunal poderá proferir a condenação genérica.[10]
Produzida a sentença, a sua liquidação destinar-se-á tão só à concretização do objecto da condenação que contenha, com respeito do caso julgado ali formado, não sendo permitido às partes tomar uma posição diferente ou mais favorável do que a já assumida na acção declarativa.[11]
É contudo essencial, na acção declarativa precedente, que seja provada a existência dos danos que poderão, até, ser futuros;[12] ficando apenas dispensada aí a prova do respectivo valor, justificada por não existirem, no momento, os elementos indispensáveis para fixar o seu quantitativo; mas relegada para o ajustado incidente de liquidação, onde previsivelmente serão apurados e carreados esses elementos.
Tem de estar provado o prejuízo, e apenas não determinado o “quantum debeatur”, não se estando a facultar ao Autor uma nova oportunidade para provar os danos ou percas, se o não logrou fazer na acção declarativa.
A liquidação destina-se, por isso, a uma mera quantificação.
E só no caso de não se terem provado danos na acção declarativa, é que há nessa parte caso julgado material; e aí, então sim, se impedindo a reabertura de nova fase probatória, ou de qualquer outro tipo de quantificação.
É, portanto, na acção declarativa que são determinados os contornos que permitem ir fazer a quantificação dos danos; é a sentença que nela se produz que condiciona a admissibilidade, ou não, do incidente de liquidação.[13]
Semelhantemente, o artigo 471º, nº 2, do CPC, remete também a concretização do pedido genérico para o mesmo mecanismo processual.
Em qualquer caso, no contexto incidental, ao Autor competirá especificar os danos derivados do facto ilícito e concluir pedindo uma quantia certa (artigo 379º, nº 1); sendo aí mais ténues as regras do ónus da prova, a cargo das partes, e a fase instrutória marcada por mais acentuados poderes inquisitórios do tribunal, de indagação oficiosa dos factos (artigo 380º, nº 4).

            2.3. O caso concreto.
            Dito isto vemos que, na acção declarativa que propôs, a Apelante já formulara um pedido genérico que, no essencial, não merece (nem mereceu) reparo. E foi na sua sequência que a sentença liquidanda veio a ser proferida aderindo aliás, na parte dispositiva, e na íntegra, ao petitório formulado.
            Rememorando:
« a) Condeno a Ré a realizar na sede da Autora ... as obras necessárias à reparação ... b)... condeno ainda a Ré a pagar à Autora os custos que esta terá com a reparação ... e, bem assim, os lucros cessantes ..., ficando relegado para liquidação ... o apuramento dos custos concretos.» (I – 1.3.).
Que significa o conteúdo deste dispositivo? Terá ele o sentido de condicionar a condenação indemnizatória, que se contém em b), à precedente efectivação da condenação em facto, que contém em a)?
Vejamos; começando por uma breve reflexão especulativa.
Será que na acção declarativa, ao invés do que fez, podia a Autora ter formulado um pedido concreto, líquido? A resposta tem de ser afirmativa; podia tê-lo feito, naturalmente, desde que matéria de facto tivesse e alegasse que conseguisse suportar a viabilidade desse pedido.
Conjecturemos que a Autora o tinha realmente feito; e que porventura conseguia até o seu apuramento, a sua prova. A consequência natural seria a condenação concreta no que houvesse sido pedido.
Pois bem. A existência dessa viabilidade – que só ali se não realizou por a Autora, agora Apelante, por ocasião da interposição da causa, haver considerado, certamente, ainda imprevisíveis as suas perdas – permite dizer que então não se vê razão para, agora, quando a mesma Apelante já se sente habilitada a concretizar essas perdas, lhe cercear a mesma possibilidade.
Em resumo, do que se trata agora é de conceder uma faculdade processual que já antes podia ter sido exercida, e só o não foi (como opção legitima) por, certamente, a Apelante ainda, então, se não julgar rectamente habilitada a concretizar os seus danos, quando agora, também certamente, ela se julga já em condição adequada para poder proceder a essa exacta quantificação. Foi então, e é agora, como é bom de ver, uma questão de opção, de escolha da alternativa adjectiva que a Apelante, antes Autora, entendeu, nos quadros da lei processual, melhor servirem os seus interesses de natureza substantiva.[14]
Em bom rigor, do ponto de vista substancial, o problema enquadra-se precisamente na temática dos danos futuros. Como prescreve o artigo 564º, nº 2, do Código Civil, estes, que tanto podem representar danos emergentes como lucros cessantes,[15] devem ser atendidos ao fixar-se a indemnização, desde que sejam previsíveis. E não é a sua natureza futura que permite condicionar qualquer mecanismo processual que destinado seja à respectiva efectivação. Se eles transparecerem de uma sentença de condenação líquida, há imediato título executivo para alicerçar a execução; se surgirem apenas latentes a uma condenação genérica, continua possível avançar para a execução, se bem que então condicionada à prévia liquidação. O artigo 564º, nº 2, citado, é aliás ilustrativo a este propósito, por prever que tais danos podem, ou não, ser determináveis, sendo dessa determinação que depende a sua imediata concretização na sentença declaratória, ou então, a sua quantificação concreta em decisão ulterior.
Ademais, ao invés do que consta na fundamentação do despacho recorrido, não se vê que a condenação genérica, na sentença, ora liquidanda, não possa ser dissociada da condenação em prestação de facto, que da mesma consta também. A especial particularidade daquela radica apenas na circunstância de reflectir um conjunto de prestações negativas, de déficits, que a esfera da Apelante irá ter de suportar (ainda não suportou), embora apenas mais tarde aquando e por ocasião da efectiva concretização, pela Apelada, da prestação de facto a que também está vinculada por força do dispositivo condenatório. Significa ser certa, com a força do caso julgado material, a radicação de danos na esfera jurídica da Apelante.
São portanto perdas futuras que, como dissemos, não permitem inviabilizar os mecanismos coercitivos de cumprimento à disposição do credor. Antes, pela sua previsibilidade e, do ponto de vista da sua demonstração, agora, pela possibilidade da sua determinação exacta, ao menos do ponto de vista da Apelante, são passíveis de abrir o caminho da liquidação suscitada. É, no fundo, o que acontece com qualquer dano futuro, sempre justificado pela respectiva previsibilidade, pela probabilidade que existe em emergir.
Acrescentaremos, ainda, uma outra distinção, entre um e outro dos extractos condenatórios, contidos na sentença liquidanda. Constituindo um a típica prestação de facto, e visando outro o pagamento de uma quantia pecuniária, o respectivo exercício coercitivo haverá sempre de ser desdobrado em duas instâncias executivas, perfeitamente distintas e autónomas entre si, por visarem fins diferentes; ali, uma execução para prestação de facto; aqui, uma execução para pagamento de quantia certa;[16] não se vendo também – e a decisão recorrida parece supô-lo – como a liquidação, que aqui se pretende, pudesse de algum modo vir a ser feita naquela primeiramente referida execução.[17]

            2.4. O despacho de indeferimento liminar.
            Aos casos em que é admissível o indeferimento liminar reporta-se o artigo 234º-A, nº 1, do Código de Processo Civil; são eles, no essencial, quando o pedido seja manifestamente improcedente ou, então, quando ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente.
            Nem uma, nem outras, dessas situações se verificam neste caso.
            A sentença declaratória contém a necessária condenação genérica; e transitou em julgado. Não se vislumbra qualquer justificação razoável para obstar, desde já, à concretização dos danos – provados na acção declarativa precedente e que a Apelante, agora, pretende realizar – ainda que estes se denotem meramente futuros, quer dizer, a virem repercutir-se apenas mais tarde na esfera jurídica da Apelante, por ocasião da realização da prestação de facto a que a Apelada se mostra vinculada, e atenta a sua razoável previsibilidade.

            2.5. Conclusão.
            Concluímos assim que procedem as conclusões da Apelante; devendo a decisão liminar recorrida ser revogada e substituída por outra que admita o incidente de liquidação (artigo 378º, nº 2) e ordene a notificação da Apelada a fim de, em 10 dias, querendo, deduzir oposição (artigos 234º-A, nº 4, e 303º, nº 2, do Código de Processo Civil).[18]
            As custas da apelação serão da responsabilidade da Apelada, que decaiu (artigo 446º, nº 1 e nº 2, do Código de Processo Civil).

            2.5. Síntese conclusiva.
            É a seguinte a síntese conclusiva que pode ser feita, a propósito do que fica de essencial quanto ao mérito do presente recurso:

            I – O incidente de liquidação de sentença (artigo 378º, nº 2, do CPC) destina-se apenas, e só, à concretização do objecto da condenação genérica que ela contém, com respeito do caso julgado por ela formado;
            II – A circunstância de a condenação genérica se reportar à indemnização de danos futuros, provados mas não contabilizados na acção declarativa, não obsta a que o credor os possa liquidar, mesmo que ao tempo da propositura do incidente ainda subsista a sua natureza futura;
            III – Não é, pois, de indeferir liminarmente o incidente de liquidação de quantia indemnizatória por danos futuros, com o argumento de que ainda não teve lugar o facto de que esses danos hão-de emergir.

           
III – Decisão
           
            Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência:
a) – revogar a decisão recorrida;
b) – determinar a sua substituição por outra que, admitindo liminarmente o incidente de liquidação, ordene a notificação da Apelada a fim de, em 10 dias, querendo, deduzir oposição, seguindo-se os ulteriores termos.
xxx
As custas ficam a cargo da Apelada.

Lisboa, 19 de Outubro de 2010

Luís Filipe Brites Lameiras
Jorge Manuel Roque Nogueira
António Santos Abrantes Geraldes
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[1] A alínea b) do dispositivo resultou de uma correcção da sentença, que o tribunal “a quo” efectuou por despacho que proferiu posteriormente.
[2] Sobre a transição, neste circunspecto, do regime pretérito para o actual, veja-se o Acórdão da Relação de Coimbra de 7 de Dezembro de 2004 in Colectânea de Jurisprudência XXIX-5-31.
[3] José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil anotado”, volume 3º, 2003, página 255.
[4] Carlos Lopes do Rego, “Requisitos da obrigação exequenda”, Themis, ano IV, nº 7, 2003 (A reforma da acção executiva), páginas 71 e 72.
[5] O artigo 380º, nº 3, manda aplicar, apenas a partir do momento da contestação, “os termos subsequentes do processo sumário de declaração”.
[6] Os artigos 379º e 380º do Código de Processo Civil têm a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
[7] Carlos Lopes do Rego, citado, página 72.
[8]Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior”.
[9]Quem exigir a indemnização não necessita de indicar a importância exacta em que avalia os danos, …”.
[10] No interessante Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 2003 in Colectânea de Jurisprudência (STJ) XXVIII-1-140, faz-se o cotejo entre os artigos 661º, nº 2, do Código de Processo Civil, e 566º, nº 3, do Código Civil, este relativo ao julgamento por equidade, sempre que não possa ser averiguado o valor exacto dos danos, e conclui-se que a opção por uma ou outra das hipóteses (condenação genérica ou julgamento segunda a equidade) deve depender, em face das circunstâncias concretas de cada caso, sobre a possibilidade de determinação, ou não, do valor exacto dos danos; se probabilidade houver de poder, ainda, vir a fazer-se prova desse valor, deve dar-se a oportunidade que é inerente à condenação genérica, mas se essa probabilidade faltar então a opção deve ser pelo julgamento segundo a equidade. A propósito do mesmo assunto, veja-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 2010 in Colectânea de Jurisprudência (STJ) XVIII-1-162.
[11] Acórdão da Relação de Coimbra de 4 de Dezembro de 2007 in Colectânea de Jurisprudência XXXII-5-32.
[12] Artigo 564º, nº 2, do Código Civil.
[13] Como vem sendo notado, de maneira a salvaguardar o caso julgado formado na sentença que reconheceu a existência de um direito de crédito, apenas não quantificado, não pode a liquidação ser, em caso algum, julgada improcedente (Acórdãos da Relação de Coimbra de 5 de Março de 2002 e da Relação do Porto de 31 de Janeiro de 2005 in Colectânea de Jurisprudência, respectivamente, XXVII-2-7 e XXX-1-180).
[14] Poderíamos acrescentar que o próprio risco da prova corre a cargo da Apelante. Ela pode não conseguir fazer prova dos factos e quantificações que alegue; nesse caso, não lhe será concedida outra oportunidade, desencadear-se-ão os mecanismos oficiosos previstos e, no limite, o tribunal julgará (concretizará os danos) segundo a equidade (artigos 380º, nº 4, do Código de Processo Civil, e 566º, nº 3, do Código Civil).
[15] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil anotado”, volume I, 4ª edição revista e actualizada, página 580.
[16] Artigos 45º, nº 2, e 53º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil. A preterição da autonomia das execuções, para fins diferentes, com cumulação inadequada das mesmas, deve merecer as consequências estabelecidas no artigo 812º-E, nº 3 e nº 4, do Código de Processo Civil, isto é, o juiz convidará o exequente a escolher qual o pedido que pretende prossiga e, se ele o não fizer, indeferirá o requerimento executivo (Fernando Amâncio Ferreira, “Curso de Processo de Execução”, 11ª edição, página 91).
[17] De acordo com o regime próprio da execução para prestação de facto, o credor, além dessa prestação, pode pedir indemnização moratória ou indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação (artigo 933º, nº 1); em qualquer dos casos, trata-se de ressarcir a não satisfação da prestação debitória em causa, a realização do facto. Coisa distinta da quantia indemnizatória que a Apelante pretende, prestação debitória (pecuniária) autónoma, inerente e consequente à satisfação da prestação debitória, de facto. De igual modo, a conversão da execução, a que se refere o artigo 934º, reporta-se a uma indemnização do dano sofrido que não é aquela a que se refere a condenação genérica, na sentença declaratória, e que a Apelante quer aqui ver liquidada.
[18] Salvador da Costa, “Os incidentes da instância”, 5ª edição, actualizada e ampliada, página 299.