Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4403/24.7T8FNC-B.L1-1
Relator: AMÉLIA SOFIA REBELO
Descritores: DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
FACTOS-INDICES
SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA
Sumário: Sumário[1]:
I - A demonstração da situação de insolvência não exige nem passa pela efetiva demonstração da impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a totalidade das suas obrigações; basta a demonstração de factos indiciadores que, de acordo com a valoração do legislador, constituem manifestação daquela impossibilidade.
II - A presunção de insolvência prevista pela al. b) do nº 1 do art. 20º do CIRE pode bastar-se com o incumprimento/mora no cumprimento de uma só obrigação vencida, desde que acompanhado de concretas circunstâncias que revelem a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações vencidas.
III - A existência de um crédito de cerca de €30.000,00 reconhecido por sentença, a ausência de cumprimento voluntário do mesmo a par com o reconhecimento da sua existência e exigibilidade pelo devedor, a ausência de saldos bancários disponíveis para penhora verificada no âmbito da execução instaurada contra o devedor para cobrança desses mesmo crédito, e a pendência da execução durante mais de um ano sem que nela tenha sido penhorado qualquer bem ou direito, enquadram os pressupostos do facto índice de insolvência previsto pela al. b) do nº 1 do art. 20º do CIRE na medida em que, de acordo com um padrão de normalidade ou regras de experiência,  o conjunto das referidas circunstâncias permitem presumir que o devedor não cumpre por ‘impossibilidade de cumprimento’, e não ‘porque não quer ou porque discorda da exigibilidade da dívida.’

[1] Da responsabilidade da relatora, cfr. art. 663º, nº 7 do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as juízas da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa,

I - Relatório
1. Em 25.09.2024 A. e B. requereram a declaração de insolvência de C. e D..
Em fundamento alegaram, em síntese, que são credores dos requeridos pelo montante de capital de €30.000,00 reconhecido por sentença condenatória que apresentaram à execução que corre sob o nº2384/24.6T8FNC do Juízo de Execução do Funchal no âmbito da qual, após diligências, não foram penhorados quaisquer bens, que a dívida se mantém em incumprimento desde pelo menos 2022, e que os requeridos deverão ser considerados insolventes com fundamento nas als. b) e h) do nº1 do art. 20º do CIRE.
 Juntaram cópia não certificada de sentença, e prints de requerimento de execução de decisão judicial condenatória contra os requeridos e de notificação que lhes foi remetida por agente de execução no âmbito da mesma, correspondente ao processo de execução nº2384/24.6T8FNC (para informar das respostas negativas à penhora de saldos bancários da executada por inexistência de saldo ou existência de penhoras anteriores, e remeter registos de penhora de créditos fiscais, IRS e IVA 2023 e IVA 2024).
2. Por despacho de 17.10.2024 foi ordenada a extração das bases de dados das certidões de nascimento dos requeridos, o que foi cumprido, delas resultando que os requeridos celebraram casamento entre si em 28.06.2010 e que foi dissolvido por divórcio declarado por decisão da Conservatória do Funchal de 01.06.2022 e transitada na mesma data.
3. Cumprida a citação dos requeridos por contacto pessoal, por despacho de 27.02.2025 foi suscitada a questão da coligação ilegal dos requeridos e ordenada a notificação dos requerentes para indicarem contra qual dos requeridos pretendem ver apreciado o pedido.
4. Em 18.03.2025 foi proferido despacho a indeferir o pedido contra C. com fundamento em exceção dilatória insuprível, e ordenado pedido de informação sobre processo executivo identificado nos autos, o qual informou que não foram penhorados bens e que os autos se encontram na fase de pesquisa de bens penhoráveis.
5. Submetida aquela informação a contraditório, em 14.04.2025 foi proferida sentença de declaração da insolvência da requerida D.
6. Inconformada, a requerida recorreu da sentença requerendo que, na sua procedência, seja revogada e substituída por outra que julgue a ação improcedente.
Formulou as seguintes conclusões:
(…)
III. Da Petição Inicial junta pelos Requerentes apenas resulta claro são credores da  requerida no valor de 30.000,00 € e que os Requerentes deram entrada de um  processo executivo contra a Requerida que corre os seus termos no Juízo de Execução do Funchal – Juiz 1, sob o número de processo n.º 2384/24.6T8FNC.
IV. Tais factos,por decorrerem da Petição Inicial, podem ser considerados como provado em sequência de ausência de oposição por parte da Recorrente.
V. Sucede que, de tais factos provados não é possível extrair a conclusão em como se encontra preenchida a alínea e) do número 1 do artigo 20.º do CIRE.
VI. Repare-se que relativamente à atuação do Sr. Agente de Execução e dos atos praticados pelo mesmo, apenas é possível concluir que não foi possível proceder à penhora de saldos bancários.
VII. Não se verifica e/ou conclui pela situação de insolvência do Requerido.
VIII. Não existe a indicação de que a Requerida não é titular de qualquer património, nem mesmo decorre de tal notificação de que a execução tenha sido extinta por insuficiência de bens.
IX. Pelo que, com o devido respeito por entendimento diverso, não foi provada inequivocamente por parte dos Requerentes que não é possível satisfazer o seu crédito por via da ação executiva (alinea e) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE) e muito menos ficou provado que a Requerida esteja numa situação de incapacidade económica e patrimonial.
X. Na hipótese sub judice os Requerentes apenas fundamentam a presente ação judicial (de insolvência) com a existência do seu crédito, pois, no que concerne à situação do Requerido, limita-se a identificar a alínea a) do artigo 20.º do CIRE, sem apresentar um único facto concreto que consubstancie a situação de insolvência do Requerido, apenas eventuais situações, as quais desde já se adianta, não se verificam.
XI. Pressuposto esse que o próprio Tribunal a quo considerou não estar verificado, entendendo que: “Com relação a esta alínea e para além da dívida dada por provada, nada mais resultou provado, pelo que não se pode concluir que a Requerida apresenta outras dívidas e que existe uma suspensão generalizada do pagamento de obrigações vencidas.”
XII. É incontroverso que a alegação e a prova dos factos cuja verificação faz presumir a situação de insolvência constitui ónus que impende sobre o credor que requeira a declaração de insolvência, o que os Requerentes não lograram fazer conforme supra exposto.
XIII. Sucede que, somente da parca fundamentação por parte dos Requerentes, o Tribunal a quo, entende estarem preenchidos os pressupostos do artigo 20.º, n.º 1, alínea b)
XIV. Andou mal o Tribunal a quo.
XV. Pois bem, sendocerto que apenas ficou dado comoprovado o valor em dividaperante os Requerentes, importa questionar como é que é possível que o Tribunal a quo conclua pela impossibilidade da Recorrente satisfazer pontualmente a GENERALIDADE das suas obrigações.
XVI. Se para além da divida dada por provada, nada mais resultou provado, de certo, e na mesma linha de raciocínio, também não se logrou provar que existe impossibilidade por parte da Recorrente de satisfazer a generalidade das suas obrigações.
XVII. Não se podendo dar como verificado o preenchimento da alínea b) do número 1 do artigo 20.º do CIRE.
XVIII. O que significa, conforme se antecipou supra que, não se encontram verificadas quaisquer pressupostos previstos no artigo 20.º, n.º 1 do CIRE que justifiquem e legalmente suportem a decisão do Tribunal a quo de declarar a insolvência da aqui Recorrente.
XIX. Acontece que, ao contrário do que veio a ser o entendimento do Tribunal a quo quando refere que: “Acresce que, não resulta dos autos que o ativo da Requerida seja superior ao seu passivo, nem tão poucoesta, devidamente citadaparaa presente ação, logrou demonstrar a sua solvência. Assim sendo, e porque tais factos bastam, por si, para decretar a insolvência da Requerida, inócuo se mostra apreciar e integrar factualmente as restantes alíneas do mencionado artigo 20.º do CIRE”,
XX. A falta de oposição à declaração de insolvência, após ter sido devidamente citada, tem como efeito a confissão dos factos alegados na petição inicial, mas não implica, por si só, a automática declaração de insolvência
XXI. O Tribunal a quo tem de analisar a petição inicial que fora apresentada pelos Requerentes e perceber se, com base na informação constante da mesma e dos documentos juntos é passível de enquadrar a Requerida numa das alíneas do artigo 20.º, n.º 1 do CIRE,
XXII. Logicamente, não existindo fundamento suficiente para enquadrar em qualquer uma das alíneas do artigo 20.º, n.º 1 do CIRE, não pode a Recorrente ser declarada insolvente.
XXIII. Face a todo o supra exposto, o Tribunal a quo não poderia ter decidido pela declaração de insolvência da Recorrente.
7. Respondeu ao recurso o Ministério Público. Requereu a rejeição do recurso por apresentado para além do prazo legal de 15 dias para o efeito e, sem prescindir, pugnou pela sua improcedência e consequente manutenção da decisão recorrida.
8. Apreciada e resolvida a questão da tempestividade do requerimento de recurso (pela consideração da data em que os serviços dos CTT expediram a carta remetida para notificação da sentença à devedora), o recurso foi corretamente recebido e remetido a esta Relação.

II - Objeto do recurso:
Sem perder de vista que o objeto do recurso é antes de mais o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida – recurso reponderação -, é consensual que o objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, que definem e delimitam o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC), sem prejuízo das questões cuja apreciação resulte prejudicada pela solução dada às que a precedem, ou de outras cujo conhecimento oficioso se imponha nos temos do arts. 608º, nº 2, ex vi art. 663º, nº 2, ambos do CPC. Acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos alegados pelas partes, mas apenas das questões de facto ou de direito por elas suscitadas e que, contidas nos elementos essenciais da causa, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo o tribunal livre na determinação e interpretação das normas jurídicas aplicáveis (cfr. art. 5º, nº 3 do CPC).
Nestes termos, considerando o teor da decisão recorrida e das conclusões da recorrente, pelo presente recurso cumpre apreciar se os factos alegados pelos requerentes e os demais oficiosamente adquiridos nos autos integram os pressupostos legais da situação de insolvência.

III - Fundamentação de Facto
O tribunal a quo considerou provados os factos articulados na petição inicial por ausência de oposição e proferiu decisão de facto dando-os por integralmente reproduzidos nos termos o art 567º, nº 3 do CPC. Considerando que pelo recurso vem posta em causa a suficiência dos factos para julgar verificada uma situação de insolvência, cumpre aqui proceder à transcrição dos factos de que o tribunal recorrido dispunha para apreciar o pedido, dando por assentes os que resultam confessados por ausência de oposição e os que resultam documentados nos autos e que, de resto, vêm confirmados pela recorrente nas suas alegações de recurso.
1. Por requerimento de 29.04.024 os requerentes instauraram processo executivo para execução de decisão judicial condenatória contra a requerida e o ex-cônjuge desta, C., que corre termos sob o nº2384/24.6T8FNC do Juízo de Execução do Funchal pelo valor de €31.739,18, do qual €1.739,18 corresponde a juros vencidos referentes ao período de 17.11.2022 a 29.04.2024.
2. No âmbito do dito processo em 04.06.2024 o senhor agente de execução notificou aos requerentes as respostas negativas à diligência para penhora de saldos bancários da insolvente, “por inexistência de saldo ou existência de penhoras anteriores”, e dos “registos de penhora de créditos fiscais.” (doc. 3 junto com a petição)
3. Até 19.03.2025 não foram penhorados quaisquer bens naquele processo executivo, que se mantinha na fase de pesquisa de bens penhoráveis (oficio de 19.03.2025).

IV – Fundamentação de Direito
1. Vem o presente recurso da sentença que, julgando procedente a ação, declarou a insolvência da recorrente, em síntese, com a seguinte fundamentação:
Considerando os factos dados por provados, muito particularmente o valor da dívida, que ascende a €30.000,00 e a data do seu vencimento, que remonta a 2022, ou seja, a dívida encontra-se vencida e sem pagamento há mais de dois anos, consideramos que tais factos são susceptíveis de revelar, por si, a impossibilidade de a Requerida satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.//Ora, tendo em conta o vindo de expor, entendemos encontrar-se verificada a circunstância prevista na alínea b) do art.º 20.º do CIRE em análise.(…).
Considerando que resulta demonstrado que na execução que moveram contra a Requerida resultou verificada a insuficiência de bens penhoráveis pertença da Requerida, entendemos que se encontra verificada a circunstância prevista na referida al. e) do n.º1, do art.º 20.º do CIRE.
            A estes fundamentos a recorrente opõe que os requerentes se limitam a comprovar o valor do crédito que detêm sobre si, e que a recorrente aceita existir, e a pendência de uma ação executiva que contra ela instauraram, mas que tanto não é suficiente para fundamentar um pedido e declaração de insolvência por não preencher qualquer um dos factos índices de insolvência previstos no art. 20º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE)[1], sendo que o tribunal concluiu pela não verificação da al. a) do nº 1 do art. 20º por nada mais se ter provado pelo que, na mesma linha de raciocínio, também não pode dar como verificada a al. b) por não resultar provado que a recorrente não tem possibilidade de satisfazer a generalidade das suas obrigações posto não existirem elementos que indiquem que está em situação de incumprimento perante outros entidades para além dos requerentes, prova que sobre estes recaía. Mais alega que do documento junto com a petição inicial apenas é possível concluir que não foram penhorados saldos bancários, nada daí resultando sobre se a recorrente é ou não titular de qualquer património, se é ou não possível satisfazer o crédito dos requerentes por via da ação executiva, ou se está numa situação de incapacidade económica e patrimonial.
Cumpre apreciar se ocorre erro de julgamento de direito, que passa exclusivamente por aferir se, conforme pretende a recorrente e contrariamente ao enquadramento operado pela decisão recorrida, o substrato fatual disponível nos autos é insuficiente para concluir pela verificação de situação de insolvência.
2. Nos termos do art. 3º, nº 1 “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.” Nos termos do nº 2, as pessoas coletivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente são ainda consideradas insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis, excluindo-se da valorização do ativo a rubrica do trespasse do estabelecimento, critério - do balanço - que tem a sua aplicação legalmente restringida às pessoas coletivas e aos patrimónios autónomos.
De acordo com o primeiro e principal critério e que decorre da literalidade da norma, o que essencialmente releva na caracterização da insolvência é a impossibilidade de cumprimento pontual das dívidas vencidas por falta de liquidez da banda do devedor, impossibilidade essa que é apreciada objetivamente, independentemente da causa ou do conjunto das causas que determinaram essa situação – o que dita a situação de insolvência do devedor é a ausência de liquidez suficiente para pagar as suas dívidas no momento em que se vencem.[2]  Efetivamente, ainda que no CIRE o legislador tenha omitido a referência à pontualidade como característica essencial do cumprimento das obrigações vencidas, tal não pode ser entendido com o alcance de implicar o abandono do entendimento inerente à ideia de cumprimento, de realização atempada das obrigações a cumprir. É que só dessa forma se satisfaz, na plenitude, o interesse do credor, e se concretiza integralmente o plano vinculativo a que o devedor está adstrito. Neste sentido não interessa somente que ainda se possa cumprir num momento futuro qualquer, importando igualmente que a prestação ocorra no tempo adequado e, por isso, pontualmente.[3] Para além de a lei não exigir que o montante em dívida ou as circunstâncias do incumprimento revelem a impossibilidade, definitiva e em absoluto, de o devedor satisfazer a totalidade da suas obrigações – que seria causa legal de extinção da dívida e não de insolvência - é suficiente que os factos indiciadores revelem a impossibilidade de o devedor satisfazer tais obrigações pontualmente, isto é, ponto por ponto, conforme o acordado com os credores, no tempo e lugar próprios (cfr. art. 406º do Código Civil). A lei basta-se e pressupõe uma situação de mora/atraso no cumprimento desde que, pelo seu montante, no conjunto do passivo do devedor ou de quaisquer outras circunstâncias (designadamente, e relativamente às pessoas singulares, origem e/ou natureza do passivo em incumprimento, respetivos montantes e longevidade da mora, rendimentos auferidos e despesas a cargo, etc.), tal evidencie a impossibilidade de continuar a satisfazer os seus compromissos. Não exige também que tal situação se verifique com todas as obrigações assumidas/contraídas pelo devedor e, contrariamente ao que a recorrente parece pressupor, tão pouco exige a demonstração de pluralidade de dívidas vencidas e não pagas.[4]
Por sua vez, nos termos do art. 20º, nº 1, qualquer credor pode requerer em juízo a declaração de insolvência do devedor verificando-se alguns dos factos previstos pelo art. 20º, nº 1. Sendo o objeto imediato pretendido pelo credor a obtenção de uma sentença judicial que declare a situação de insolvência, e no que se consubstancia o pedido que deduz e que cumpre apreciar e decidir a final, a qualidade de credor do terceiro requerente da insolvência constitui, antes de mais, pressuposto processual (legitimidade ad causam),  mas também condição de procedência da ação (legitimidade material) que, por isso, cumpre apreciar, mas já não decidir[5].
Tratando-se de insolvência requerida (por contraposição com a apresentação à insolvência pelo devedor), é sobre o requerente que também recai o ónus de alegar e demonstrar algum ou alguns dos factos indiciadores da situação de insolvência enunciados nas diversas alíneas do art. 20º, dos quais resultam presunção legal de insolvência. É consensual na doutrina e na jurisprudência que “o legislador, através da enumeração desses factos-índice, pretendeu enunciar os critérios indispensáveis à identificação da insolvência e, por isso, o credor interessado na declaração da insolvência tem que demonstrar que o devedor se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações, provando que tal impossibilidade se manifesta através de sintomas inequívocos que o legislador descreve.[6] Como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda em anotação ao art. 20º, O estabelecimento de factos presuntivos da insolvência tem por principal objectivo permitir aos legitimados o desencadeamento do processo, fundados na ocorrência de alguns deles, sem haver necessidade de, a partir daí, fazer a demonstração efectiva da situação de penúria traduzida na insusceptibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nos termos em que ela é assumida como característica nuclear da situação de insolvência (…). Caberá então ao devedor (…) trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir. Por outras palavras, cabe-lhe ilidir a presunção emergente do “facto-índice”, solução esta aliás expressamente consagrada no nº 3 do art.º 30º. (subl. nosso).
3. No caso, quer para sustentar a sua legitimidade para o pedido quer para o fundamentar, os requerentes invocaram um crédito sobre a recorrente, que esta reconhece existir, no valor de capital de € 30.000,00, o que, para além de assegurar o pressuposto da legitimidade dos requerentes para o pedido de declaração da insolvência na sua dupla dimensão – processual e material -, mais preenche o primeiro e essencial pressuposto constitutivo da situação de insolvência atual – existência de pelo menos uma obrigação vencida e não paga.
Mas porque a ação de insolvência não se confunde com uma ação de cobrança de dívida e a situação de insolvência não se confunde com a constatação de incumprimento de dívidas vencidas, resta apurar da verificação do pressuposto da impossibilidade de a recorrente cumprir as suas obrigações, conforme critério de insolvência previsto pelo art. 3º, nº 1 e acima caracterizado, de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas, o único aplicável a pessoas singulares.
Assim, a par com a alegação e demonstração da qualidade de credor, a insolvência requerida por credor impõe que venha suportada em factos suscetíveis de concretizar qualquer um dos factos indício de insolvência previstos pelo art. 20º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, designadamente, e fazendo referência ao fundamento legal invocado pela sentença recorrida, Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações (al b). Os factos índice da situação de insolvência são assim designados, não por referência a um qualquer juízo probatório sumário dos factos em que se suporta a verificação da situação da insolvência, mas por referência ao valor presuntivo da situação de insolvência que o legislador atribuiu e/ou reconheceu a esses mesmos factos. Nas palavras de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda em anotação ao art. 20º do CIRE, “tendo precisamente em conta a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações, que é a pedra de toque do instituto[7] [8]. Técnica legislativa que se justifica para obviar à grave dificuldade que os terceiros com legitimidade para requerer a insolvência do devedor teriam em demonstrar a efetiva ausência ou insuficiência de meios do devedor para satisfazer as suas obrigações vencidas (ou/e, no caso das pessoas coletivas, a superioridade do valor do passivo em relação ao ativo). Conforme alerta Soveral Martins[9], Não se trata, na verdade, de outras tantas situações de insolvência que devam ser somadas às previstas no art. 3.º, mas sim de meros requisitos de legitimidade e de «factos-índices» ou presuntivos da insolvência (…). O que bem se compreende pois, conforme refere Catarina Serra, “existem casos de incumprimento sem impossibilidade de cumprimento (o devedor não cumpre porque não quer ou porque discorda da exigibilidade da dívida).[10] O que equivale a dizer que o mero (facto) incumprimento não se confunde com a (situação de) insolvência, nem sequer é indício da sua verificação[11]. Nesse sentido, entre outros, acórdão da Relação de Coimbra de 11.11.2014[12]: “Atendendo aos efeitos decorrentes do processo de insolvência e, sobretudo, à inversão do ónus da prova suportada pelo devedor, exige-se ao requerente (que não o devedor) não só a formulação do pedido e alegação da situação de insolvência, mas também, e particularmente, a alegação e prova das circunstâncias enunciadas no art.º 20º, n.º 1, aduzindo factos que sejam subsumíveis numa das suas hipóteses e fundamentando o seu pedido nesses factos - as hipóteses ali previstas emprestam seriedade ao pedido, porquanto indiciam de forma significativa a existência de dificuldades económicas ou financeiras por parte do sujeito que nelas incorreu, em termos de ser razoável admitir, em face da alegação e prova de uma delas, que o processo de insolvência se desenvolva e nele se presuma mesmo a existência da situação de insolvência, não devendo, por isso, o requerente limitar-se a formular alegações genéricas e não factuais respeitantes à situação de insolvência do requerido, sob pena, a não ter havido logo rejeição da petição, de improcedência da acção e não declaração da insolvência.
Nesse desiderato os recorrentes alegaram (expressa e implicitamente) que o crédito de que são titulares sobre a recorrente foi reconhecido por sentença transitada em julgado e que, apesar disso, o mesmo não foi voluntariamente cumprido pela recorrente nem, até à instauração dos presentes autos, foi coercivamente satisfeito no âmbito da execução que em abril de 2024 instauraram contra a recorrente e o seu ex-cônjuge, sendo que em março de 2025 a execução mantinha-se pendente sem bens penhorados para satisfação, sequer parcial, do crédito dos requerentes. A recorrente, que não põe em causa estes factos, assume o não cumprimento voluntário de uma dívida que reconhece existir, que há mais de um ano foi condenada a pagar por sentença judicial condenatória, e que há mais de um ano está pendente de execução. Acresce que das diligências para penhora resultou que a recorrente não dispõe de saldos bancários ou, pelo menos, de saldos disponíveis para penhora e garantia de pagamento do crédito dos requerentes, e que, apesar de pendente desde abril de 2024, em março de 2025 ainda não existiam bens penhorados na execução por eles instaurada, permanecendo nessa data ainda na fase de pesquisa de bens penhoráveis. Destas circunstâncias, a normalidade das coisas permite inclusive presumir que a recorrente não será titular de imóveis nem de bens móveis sujeitos a registo posto que, a existirem, já teria sido cumprida (atendendo a que é realizada por mera apresentação de pedido de registo na Conservatória).
O conjunto destes factos, aos quais a decisão recorrida reconheceu valor presuntivo da situação de insolvência, permite concluir pelo acerto do julgamento de direito da sentença recorrida que, conforme dela consta, julgou verificada a situação de insolvência com fundamento na al. b) do nº 1 do art. 20º. O preenchimento dos pressupostos desta alínea vale por si só como facto índice presuntivo da impossibilidade de satisfação de dívidas vencidas independentemente da verificação em processo de execução da ausência ou insuficiência de bens para satisfação de dívida exequenda que, conforme consta previsto pela al. e) do nº 1 do art. 20º, constitui fundamento autónomo de situação de insolvência e que, no caso, efetivamente, não se verifica posto que dos elementos e informação do processo de execução disponíveis nos autos não resulta que o agente de execução ali formalizou declaração a atestar a verificação da ausência de bens penhoráveis da recorrente. Porém, cada uma das alíneas do art. 20º vale per si como facto índice de insolvência e não exige mais do que a verificação dos pressupostos legais que a integram, e tanto basta para concluir pela verificação da situação de insolvência do devedor.
Como acima se expôs, O que verdadeiramente releva é a insuscetibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciem a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Não exige que tal situação se verifique com todas as obrigações assumidas/contraídas pelo devedor, nem tão pouco exige a demonstração de pluralidade de dívidas vencidas e não pagas. Referindo-se à previsão da al. b) do nº 1 do art. 20º, escreve Menezes Leitão que [N]este caso, a insolvência não necessita de uma cessação generalizada de pagamentos, podendo resultar apenas de algumas faltas de pagamento ou mesmo de uma só, desde que feitas em circunstâncias ou acompanhadas de actos de onde se possa inferir a impossibilidade de incumprimento das obrigações vencidas.[13] O que vale por dizer que nem o pressuposto da legitimidade ativa do credor nem a demonstração da situação de insolvência exige que o requerente identifique outros credores. Conforme esclarece Catarina Serra, “a pluralidade de credores não é um requisito [para a abertura] do processo de insolvência nem uma condição para a sua procedência”.[14] A este respeito, e a propósito da definição da insolvência como impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas (art. 3º, nº 1 do CIRE), acrescenta que “a única exigência legal para que se verifique a insolvência é que haja uma ou mais obrigações vencidas. (subl. nosso).[15]
Valorados no seu conjunto, os factos que resultam dos autos legitimam concluir que o incumprimento do crédito dos requerentes pela recorrida se deve a impossibilidade de cumprimento, e não porque a recorrente não quer cumprir ou porque discorda da exigibilidade da dívida; são reveladores, em termos presuntivos, da situação de penúria e de impossibilidade, atual, de a recorrida satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações por falta de liquidez para satisfazer a totalidade das dívidas vencidas já que, reiterando o acima citado, não interessa somente que ainda se possa cumprir num momento futuro qualquer, importando igualmente que a prestação ocorra no tempo adequado e, por isso, pontualmente.
Para concluir, demonstradas circunstâncias que de acordo com um padrão de normalidade ou regras de experiência enquadram os pressupostos do facto índice de insolvência previsto pela al. b) do nº 1 do art. 20º do CIRE, cabia à recorrente ilidir a presunção de situação de insolvência que do mesmo decorre, como por exemplo, alegando e demonstrando que, não obstante aquelas circunstâncias, dispõe de rendimentos próprios ou de crédito (bancário ou de outro) que lhe permitem cumprir a generalidade das suas dívidas, designadamente, a que foi judicialmente reconhecida aos requerentes. Nesse mesmo sentido, acórdão desta secção de 30.06.2020[16] acima citado: “(…) formada a presunção de situação de insolvência, a prova da solvência cabe por inteiro ao devedor, pelo que não era ao banco requerente que cabia demonstrar que o requerido não podia recorrer ao crédito para proceder ao pagamento, mas antes ao requerido que cabia demonstrar o contrário, com base na situação fáctica concreta apurada.”. Alegação e prova que resultou logo prejudicada pela ausência de oportuna oposição ao pedido de insolvência.
Em conformidade com o exposto, improcedem as conclusões de recurso e reitera-se o acerto do juízo de insolvência formado pela decisão recorrida com fundamento na al. b) do nº 1 do art. 20 do CIRE.

V - DECISÃO:
Por todo o exposto, julga-se a apelação improcedente, com consequente manutenção da sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo da recorrente (cfr. arts. 527º, nº 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 28.10.2025
Amélia Sofia Rebelo
Isabel Fonseca
Manuela Espadaneira Lopes
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[1] Diploma a que reportam todas as normas aqui citadas sem indicação de outra origem.
[2] Nesse sentido, Luis Menezes Leitão, Direito da Insolvência, p. 77.
[3] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. I, Quid Juris, 2005, pág. 69, nota 3; no mesmo sentido vd. Ac. RL de 19.06.2008, disponível no site da dgsi.
[4] Nesse sentido, Alberto dos Reis, citando acórdão do STJ de 29.10.1918, pelo qual se [d]ecidiu que pode ser declarada a falência ainda que seja uma só a obrigação que o comerciante deixou de pagar; e acórdão do STJ de 11.10.1927, que [d]eclarou que não pode a priori estabelecer-se se basta a falta de pagamento duma obrigação, se é necessária a falta de pagamento de várias; há que atender às circunstâncias. (Processos Especiais, vol. II, pág 323).
[5] Vd. acórdãos da RG de 02.11.2017 e 19.06.2019, procs. nº 440/17.6T8PTL-A.G1 e 80/18.2T8TMC.G1, da RP de 10.07.2019, proc. nº 4800/18.7T8OAZ-A.P1, da RL de 12.01.2016, proc. nº 2314/15.6T8VFX.L1-7, e da RC de 29.02.2012, proc. 689/11.5TBLSA.C1, todos disponíveis na pagina da dgsi, como os demais infra citados.
[6] Acórdão da RC de 14.12.2005, proc. nº 2956/05, disponível no site da dgsi.
[7] CIRE Anotado, vol. I, Lisboa, 2006, p. 131.
[8] Nesse sentido, Acórdãos da Relação de Coimbra de 20.11.2007, relatado por Teles Pereira, e da Relação de Lisboa, de 22.04.2010.
[9] Ob. cit., p. 67.
[10] Licões de Direito da Insolvência, Almedina, p. 56.
[11] Vd. Catarina Serra, ob. cit., p. 56.
[12]  Proc. nº 3857/13.1TJCBR.C1, disponível na página da dgsi.
[13] Ob. cit., p. 131.
[14] Ob. cit., p. 43.
[15] Pág. 57.
[16] Processo nº 33/20.0T8FNC.L1, não publicado.