Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
295/24.4YUSTR.L1 E 295/24.4YUSTR-A.L1-PICRS
Relator: RUI ROCHA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
REGULAÇÃO
ATERRAGEM DE AERONAVES
NULIDADE DA SENTENÇA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA COIMA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA COIMA
SECTOR AERONÁUTICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/29/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO (da responsabilidade do relator):
I- Nos termos do disposto no artigo 29º, nº2, do CPP aplicável ex vi do artigo 41º do RGCO se tiverem já sido instaurados processos distintos, logo que a conexão for reconhecida procede-se à apensação de todos àquele que respeitar à contra-ordenação determinante da competência por conexão, pelo que não se verifica a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP, nem sequer uma mera irregularidade, se a entidade administrativa não procedeu, durante a fase administrativa, à apensação de dois processos contra-ordenacionais deduzidos contra a mesma arguida e tal apensação apenas foi determinada pelo Tribunal a quo após lhe terem sido distribuídas as impugnações judiciais deduzidas a cada uma das decisões administrativas condenatórias proferidas pela entidade administrativa.
II-Tendo sido enviada à arguida carta registada com avisto de recepção, dirigida para a sua sede, sem que tivesse sido devolvido o correspondente aviso de recepção assinado, não foi dado cumprimento ao disposto no artigo 50º do RGCO, o que implica que estejamos perante uma nulidade sanável, segundo a fundamentação constante do acórdão uniformizador de jurisprudência nº1/2003, publicado no DR-I-A, de 25-01-03, rectificado pela Declaração de Rectificação nº122 70/2008, de 26/11.
III- Porém, uma vez que a impugnação judicial da decisão administrativa não se limitou a arguir a nulidade, tendo-se a impugnante prevalecido, na impugnação judicial, do direito preterido – tendo abarcando na sua defesa os aspetos de facto ou de direito presentes na decisão/acusação – a nulidade encontra-se sanada, em conformidade com o disposto nos artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do CPP e 41.º, n.º 1 do RGCO.
IV- Na sua impugnação judicial incumbe à Recorrente oferecer e requerer a produção dos meios de prova que pretenda ver produzidos em audiência de julgamento durante a fase judicial, mormente arrolando prova testemunhal ou requerendo diligências complementares que considere necessário serem produzidas no tribunal da 1ª instância para prova da sua defesa, devendo para tanto ainda opor-se à mera decisão por mero despacho, por forma a assegurar a realização da audiência de julgamento, não constituindo qualquer nulidade a total inércia processual da Recorrente a esse propósito.
V- A sentença não enferma de nulidade por omissão de pronúncia se em tal sentença não for apreciada e declarada uma nulidade que o Tribunal a quo entende não se verificar e que a Recorrente não arguiu de forma expressa e inequívoca perante aquele Tribunal.
VI- Os artigos 554º e 608º, ambos do CPC não são aplicáveis subsidiariamente ao processo contra-ordenacional, por decorrer claramente do artigo 41º do RGCO que o direito subsidiário do regime geral das contra-ordenações são os preceitos reguladores do processo criminal, para além das aludidas normas de processo civil não se harmonizarem com o processo contra-ordenacional, onde nem sequer se pode falar em pedidos, e muito menos em pedidos principais e subsidiários, por não se estar perante um processo de partes como o processo civil, mas em face de um processo de natureza pública, em que está em causa a tutela de interesses de natureza pública.
VII-Tendo a decisão recorrida alterado a condenação da arguida, contendo os fundamentos para essa decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção, tendo operado o cúmulo jurídico das sanções e suspendido parcialmente a execução da coima única, abrangendo a condenação da arguida sanções acessórias para além de na decisão recorrida terem sido apreciadas e decididas todas as excepções e nulidades suscitadas pela Recorrente, considerando como sanadas nulidades arguidas que o tribunal qualificou como nulidades sanáveis e tendo observado o disposto no Regulamento das Custas Processuais em matéria de custas, a decisão recorrida não conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, não enfermando, por isso, da nulidade prevista no artigo 379º, nº1, al.c) do CPP ex vi artigo 41.º do RGCO.
VIII- Tendo resultado provado que a Recorrente não solicitou previamente uma faixa horária à coordenação de slots para operar em período noturno, realizando a descolagem sem que tivesse autorização para tal, mostra-se objectivamente verificada a contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro.
IX- A circunstância de estarmos perante os mesmos factos não impede que se considere que eles consubstanciam a prática de mais do que uma contra-ordenação, caso em que ocorre um concurso ideal (e não real) de infracções.
X- Não ocorre violação do princípio ne bis in idem se estivermos perante um concurso efetivo de normas, designadamente porque elas protegem interesses de natureza pública distintos e visam fins diversos e não perante um concurso aparente de normas em que elas protegem o mesmo interesse de natureza pública ou visam a mesma finalidade.
XI- Na fase judicial do processo de contraordenação, não é atribuído o valor de acusação apenas à decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa, mas sim a todo o processo coligido durante a fase administrativa do processo.
XII-Não padece de nulidade por omissão de pronúncia a sentença na qual o tribunal não responda, um a um, a todos os argumentos das partes.
XIII- A adopção de algum tipo de critério de tolerância à violação das restrições do período nocturno fragilizaria os direitos fundamentais das populações adjacentes aos aeroportos, obscurecendo os interesses protegidos pelas normas aqui em causa e os fins por elas visados e seria injustificada num prisma de afectação daqueles direitos fundamentais.
XIV- No direito contra-ordenacional o recurso pelo intérprete ao princípio da proporcionalidade não pode conduzir a um sentido interpretativo da norma sancionatória que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, o que não é permitido pelo artº9º, nº2, do Código Civil, nem a um sentido normativo que viole os princípios da legalidade, da taxatividade e da tipicidade, que são basilares no direito sancionatório, onde também não é permitido o recurso à analogia, nem à interpretação correctiva e é muito limitada a possibilidade de interpretação extensiva.
XV- Não resultando provada matéria de facto de onde se possa concluir pela existência de circunstâncias anteriores ou posteriores à contraordenação, ou contemporâneas dela, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da coima, não há lugar à atenuação especial da coima.
XVI- Verificando-se relevantes exigências de prevenção geral no que se refere aos interesses protegidos pelas contra-ordenações em causa e aos fins preventivos por elas visados ( garantir o equilíbrio entre a expansão do sistema de transportes aéreos e a disponibilidade das infra-estruturas aéreas por forma a obter-se uma gestão equilibrada entre a procura e a capacidade dos aeroportos nacionais e salvaguardar a saúde, o descanso e o ambiente das populações adjacentes aos aeroportos perante o ruído das aeronaves nas operações de descolagem e aterragem) a suspensão total da execução da coima única não se mostra adequada à satisfação das necessidades sancionatórias nem adequada à protecção de tais interesses e fins visados pelas aludidas normas.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório.
Por decisão de 04 de julho de 2024, proferida no âmbito do processo de contra-ordenação n.º PCO 665/2021, a autoridade administrativa Autoridade Nacional de Aviação Civil aplicou à arguida “Fleet Air International Kft”, com sede em Localização 1, cidade de Vecsés, condado de Pest, Hungria, com o número ... de matrícula na Conservatória do Registo Comercial (Tribunal de Registo da 8 Região de Budapeste) e de pessoa colectiva ..., uma coima no montante de 12.000,00€ (doze mil euros), pela prática de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro (Regulamento Geral do Ruído) concretamente, o facto de a Recorrente ter descolado às 23h10UTC do dia 1 de Abril de 2021 com uma aeronave de transporte de carga, que apresenta, no certificado de ruído do fabricante, os seguintes valores de emissões sonoras, considerando os pontos de referência especificados nas normas técnicas aplicáveis: a) 76,5 EPNdB – sobrevoo à descolagem; e b) 84,9 EPNdB – lateral, com potência máxima, tendo saído de calços às 23h00UTC, sem que a Recorrente tivesse autorização para realizar a operação em período noturno.
A arguida, aqui Recorrente, “Fleet Air International Kft”, apresentou recurso de impugnação judicial (cfr. Refª 476068) da aludida decisão administrativa condenatória.
§
Por decisão igualmente de 04 de julho de 2024, proferida no âmbito do processo de contraordenação n.º PCO 664/2021, a autoridade administrativa Autoridade Nacional de Aviação Civil aplicou à arguida “Fleet Air International Kft”, com sede em Localização 1, cidade de Vecsés, condado de Pest, Hungria, com o número ... de matrícula na Conservatória do Registo Comercial (Tribunal de Registo da 8 Região de Budapeste) e de pessoa colectiva ..., uma coima no montante de 400,00€ (quatrocentos euros), pela prática de uma contra-ordenação aeronáutica civil grave, prevista e punida pela al. c) do n.º 2 do artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 34 109/2008, de 26 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 96/2018, de 23 de 35 Novembro, concretamente o facto de a arguida ter uma faixa horária atribuída para descolagem do Aeroporto Francisco Sá Carneiro, no dia 1 de Abril de 2021, às 22h30 UTC, com a aeronave de marcas de nacionalidade e matrícula ..., de transporte de carga e ter descolado com a aeronave identificada às 23h10UTC do dia 1 de Abril de 2021, tendo saído de calços às 23h00UTC e a Recorrente não tinha autorização para realizar a operação em período noturno.
A arguida, aqui Recorrente, “Fleet Air International Kft” também apresentou recurso de impugnação judicial (cfr. Refª 475312 do apenso A) da aludida decisão administrativa condenatória.
§
Distribuída sob o nº 295/24.4YUSTR a impugnação judicial do processo de contraordenação n.º PCO 665/2021, ao Juiz X do Juízo da Concorrência, Regulação e Supervisão e distribuída sob o nº 292/24.0YUSTR a impugnação judicial do processo de contraordenação n.º PCO 664/2021 também ao Juiz 3 do Juízo da Concorrência, Regulação e Supervisão, pelo mesmo Juiz 3 do Juízo da Concorrência, Regulação e Supervisão foi proferido em 19-02-2025 no processo nº 295/24.4YUSTR o seguinte despacho (Refª 511827) :
“Informação que decorre do expediente de 31.01.2025:
Tomei conhecimento.
Consigno que vi o estado do processo que corre termos neste J3, contra a aqui Recorrente, sob o n.º 292/24.0YUSTR, nomeadamente, as posições dos sujeitos processuais e da ANAC lá vertidas quanto à possibilidade desses autos serem apensados a estes.
Nesta medida, considero que há condições processuais para, aqui decidir sobre a apensação dos autos.
*
Da possibilidade de apensação de processos:
Por intermédio do despacho proferido em 29.01.2025, no processo que corre termos sob o n.º 292/24.0YUSTR neste J3, foram os sujeitos processuais e a ANAC notificados para, querendo, se pronunciaram acerca da possibilidade de apensar os processos que, neste tribunal, correm contra a aqui Recorrente.
O Ministério Público, mediante douta promoção de 31.01.2025 (em sede também do processo 292/24.0YUSTR), considerou que deverá operar a sugerida apensação de processos.
A Recorrente considerou que é uma obrigação legal proceder a essa apensação e, por isso, também não se opôs – vide douto requerimento entrado em juízo em 13.02.2025 (Refª 91517) do processo nº 292/24.0YUSTR
Ao invés, a ANAC opôs à referida apensação de processos [vide douto requerimento de 13.02.2025 (ref.ª 91502) do processo n.º 292/24.0YUSTR], por considerar que nos dois processos que correm termos neste tribunal contra a aqui Recorrente estão em causa contra-ordenações de natureza distinta, sujeitas igualmente a regimes processuais distintos que são contraditórios e que poderão levar a colocar em causa a pretensão punitiva do Estado, por consumpção de infracções.
Vejamos.
Decorre do processado dos autos bem como do processado dos autos que correm termos neste Tribunal sob o n.º 292/24.0YUSTR o seguinte:
1. Neste Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão correm termos contra a Recorrente Fleet Air International KFT os seguintes processos, cujas principais características se sintetizam na seguinte tabela:
N.º do processoTipo de infracçãoMoldura da coimaData dos factosData do presumível conhecimento da infracção pela ANAC
292/24.0YUSTR (J3)1 contra-ordenação aeronáutica grave – al.
c) do n.º 2 do artigo 9.º do DL 109/200, 26.06
€ 400,00 a € 1.000,00 (microempresa, negligência)01.04.202126.04.2021
295/24.4YUSTR 1 contra-ordenação € 12.000,00 01.04.2021 26.04.2021
(J3) ambiental grave – a € 72.000,00 (informação da
al. f) do n.º 2 do (negligência) DRE/DRT)
artigo 28.º do
Regime Geral do Ruido
2. Ambos os autos se encontram na mesma fase processual, aguardando ou decisão por mero despacho ou marcação de julgamento.
*
A possibilidade de apensação de processos permite que as causas fiquem unidas processualmente, passando o processo a ser comum a todas elas, com unidade de instrução, de discussão e de decisão, sendo cumpridos os objectivos de economia de actividade processual, boa administração da justiça sancionatória (juntando processos conexos será provavelmente mais esgotante a produção probatória e respectiva cognição) e da coerência ou uniformidade de julgamento, sendo alcançado um maior prestígio das decisões judiciais.
No presente caso, tendo em vista a data das infracções imputadas, verificamos que a mesma Arguida terá alegadamente cometido duas infracções através da mesma acção.
Por essa via e em primeiro lugar, verificamos que, em termos substanciais, existe uma forte ligação entre as infracções, na medida em que acaba por estar em causa a mesma realidade material, ou pelo menos, uma realidade muito próxima. A conexão dos processos permite uma maior coerência de julgamento, já que evita que, para a mesma realidade, possam, por via de meras vicissitudes processuais, serem dados como provados ou não provados factos contraditórios em ambos os processos, o que redunda em maior prestígio para as decisões judiciais. Assim, a ligação dos factos em causa é tal que se pode, pois, presumir que o esclarecimento de todos será mais fácil e mais completo se processados conjuntamente, evitando-se as já referidas contradições de julgados, realizando-se, consequentemente melhor justiça.
Neste conspecto, podemos concluir que entre os dois processos identificados existe uma relação de conexão, em conformidade com o disposto quer no artigo 24.º, quer no artigo 25.º do CPP, ex vi do n.º 1 do artigo 41.º do RGCO.
Porém, apesar dessa conexão evidente, a ANAC vem opor-se à apensação de processos, por considerar que estão em causa infracções sujeitas a regimes processuais distintos.
Importa referir que para além da finalidade acima apontada de realização de justiça e simplificação processual, a conexão de processos, quando está em causa a sua vertente subjectiva, como sucede in casu, permite que mais facilmente e de forma mais profícua possam ser aplicadas ao Arguido, contra quem correm vários processos contra-ordenacionais, o regime da coima única conjunta, com aplicação da norma travão que determina que essa coima única não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contra-ordenações em concurso (vide quer o artigo 19.º do RGCO, aplicável às contra-ordenações aeronáuticas civis, por via do artigo 35.º do DL n.º 10/2004, de 09 de Janeiro, quer o artigo 27.º da Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais) e permite também o conhecimento de eventual existência de infracções praticadas sob a forma continuada.
Fazer operar a conexão de processos é tanto mais relevante se tivermos em conta que tem sido entendimento constante na jurisprudência nos tribunais superiores o de que o cúmulo jurídico superveniente de coimas não é legalmente admissível (vide, por exemplo, acórdão da Relação de Lisboa de 05.06.2024, processo n.º 74/19.0YUSTR-X.L1-PICRS, acórdão do STJ de 06.11.2019, processo n.º 01528/17.9BELRA 0668/18, ambos in www.dgsi.pt).
Será que estas considerações deverão, porém, ser abaladas porque os regimes processuais não são compatíveis e podem minar a pretensão punitiva do Estado, como defende a ANAC?
Com todo o respeito que aqui apresentamos, neste caso concreto, não consideramos que os regimes processuais sejam incompatíveis.
Desde logo importa atentar para que a própria Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais, no seu artigo 27.º (sobre o cúmulo jurídico) alude à prática de “várias contra-ordenações” e não à prática de “várias contra-ordenações ambientais”, o que só por si permite concluir que o legislador não é avesso ao cúmulo de coimas e consequentemente à conexão de processos em que estejam em causa quer regimes, quer contra-ordenações de natureza distinta.
Mas apreciemos, de forma mais próxima, os argumentos expendidos pela ANAC.
Primeiro. Refere a ANC que estamos perante contra-ordenações que visam proteger bens jurídicos diferentes: a contra-ordenação aeronáutica visa acautelar a regulamentação do acesso e utilização das infra-estruturas aeroportuárias, enquanto a contra-ordenação ambiental visa acautelar o direito ao silêncio e ao descanso de todos quantos residem nas imediações das infra-estruturas aeroportuárias e dos corredores aéreos de aproximação às pistas.
É bem verdade.
Porém, natureza distinta dos bens jurídicos não é critério impeditivo da conexão de processos, muito pelo contrário, conforme se extrai do n.º 1 do artigo 24.º do CPP.
Certamente que ninguém discute que se um mesmo agente, na mesma ocasião, cometer um crime de homicídio, um crime de dano, um crime de profanação de cadáver e ainda um crime de difamação, que estão em causa bens jurídicos distintos, mas isso não impede que seja julgado num único e mesmo processo, como é prática judiciária correntíssima, bastando realizar um estudo, que nem sequer requer que seja muito aturado, à jurisprudência que tem sido lavrada.
Segundo. Defende a ANAC que a Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais afasta, no seu artigo 75.º, a proibição da reformatio in pejus, o que não sucede com o regime que decorre do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de Janeiro.
Ora, também é correcto.
Porém, com todo o respeito por melhor entendimento, essa circunstância não é impeditiva da apensação dos processos. O que simplesmente ocorrerá é que, quando for determinada a eventual coima singular de cada uma das infracções, no caso da contra-ordenação ambiental o tribunal não está sujeito ao limite da coima aplicada pela ANAC, podendo elevá-la; o mesmo não sucedendo no caso da coima singular pela prática de contra-ordenação aeronáutica civil, em que tal coima não poderá ser modificada em prejuízo da Recorrente.
Terceiro. A ANAC considera que a apensação de contra-ordenações com regimes processuais de natureza diferente colocará problemas quanto à classificação das contra-ordenações.
Com todo o respeito, não se vê, nem a ANAC explica, como é que essa classificação distinta poderá impactar o processo. Basta atentar para cada um dos regimes e extrair deles as consequências que decorrem da classificação da infracção como leve, grave ou muito grave.
Quarto. A ANAC considera que a apensação de contra-ordenações com regime processuais de natureza diferente colocará problemas quanto à classificação das pessoas colectivas.
Também não se alcança e nem a ANAC explica, como é que a apensação dos processos pode tornar incompatível a classificação da Recorrente como pessoa colectiva, não se vislumbrando que exista algum tipo de assimetria normativa quanto à classificação da Recorrente como pessoa colectiva. Julgamos que ninguém discutirá que a mesma é uma pessoa colectiva.
Quinto. A ANAC considera que a apensação de contra-ordenações com regime processuais de natureza diferente colocará problemas quanto à prescrição.
Novamente renovando o nosso respeito, obviamente que a existência de prazos de prescrição distintos não é impeditiva da apensação dos processos. Socorrendo-nos do nosso exemplo acima, certamente que ninguém discute que se um mesmo agente, na mesma ocasião, cometer um crime de homicídio, um crime de dano, um crime de profanação de cadáver e ainda um crime de difamação, que estão em causa crimes sujeitos a prazos de prescrição distintos, mas isso não impede que seja julgado num único e mesmo processo. Se um dos procedimentos contra-ordenacionais prescrever primeiro que o outro, bastará declarar extinto esse procedimento, prosseguindo o outro.
Sexto. Outro problema encontrado pela ANAC consiste na afectação do produto das coimas. Refere, com acerto, que no caso da contra-ordenação aeronáutica, a afectação do produto das coimas será, nos termos do artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de Janeiro, 60% para o Estado, 30% para a Autoridade Nacional da Aviação Civil e 10% para a entidade fiscalizadora interveniente.
Já as contra-ordenações ambientais, a afectação do produto das coimas será, nos termos do artigo 73.º da Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais, 45% para o Fundo Ambiental, 30% para a entidade que aplique a coima, 15% para a entidade autuante e 10% para o Estado.
Porém, se é certo o que diz a ANAC, isso não é igualmente impedimento de conexão de processos, sendo o próprio legislador que assim o afirma.
De acordo com o artigo 75.º-A da Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais, “caso o mesmo facto dê origem à aplicação, pela mesma entidade, de decisão por contra-ordenação do ordenamento do território, prevista na presente lei, e por contra-ordenação por violação de normas constantes do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, a apreciação da impugnação judicial da decisão adoptada pela autoridade administrativa compete aos tribunais administrativos”.
Ora, decorre deste preceito que se a entidade administrativa concluir que o mesmo facto dá origem a duas contra-ordenações distintas, sujeitas a regimes igualmente distintos, profere uma única e só decisão, ou seja, dá operacionalidade à conexão de processos, não os separa.
Segundo o n.º 11 do artigo 98.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, o produto das coimas destina-se ao município. Nesta conformidade, a diferença de regimes quanto à afectação do produto das coimas não impede que o legislador preveja a conexão de processos.
O mesmo se passa quanto à reformatio in pejus, em que no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro é aplicável a sua proibição, ao contrário do que sucede, como já observámos, com a Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais.
Daqui resulta que é o próprio legislador que assume a possibilidade de existência de regimes processuais distintos que não impedem, ainda assim, a conexão de processos.
Mas questionemos como se poderá dar expressão a duas normas distintas, em termos de afectação do produto das coimas, caso seja realizado um cúmulo jurídico de coimas? Julgamos que será bastante fácil, bastando apurar o peso percentual que cada coima reveste em sede da coima única e realizar os cálculos aritméticos devidos, nos termos de cada um dos regimes.
Sétimo. Entende finalmente a ANAC que a pretensão punitiva do Estado pode sair frustrada se se operar à apensação de processos. Não se percebe, com todo o respeito, como é que tal poderá ocorrer. Não é pelo facto de uma conexão de processos poder dar origem a uma coima única que a pretensão punitiva do Estado pode sair frustrada. A pretensão punitiva do Estado não pode ser sinónimo de critérios aleatórios e subjectivos que pretendem desviar as regras que decorrem do cúmulo jurídico das sanções, especialmente quando está em causa contra-ordenações onde nem sequer se tem aceitado um conhecimento superveniente do cúmulo jurídico.
Retomando de novo o nosso exemplo, será que alguém defende que pelo facto de se realizar um cúmulo jurídico de penas em sede do processo crime em que o agente comete um homicídio, um crime de dano, um crime de profanação de cadáver e ainda um crime de difamação, a pretensão punitiva do Estado sai gorada?
Com todo o respeito que aqui evidenciamos, não logramos perceber a tamanha relutância que a ANAC tem apresentado no que tange à conexão de processos, o que consubstancia um poder-dever que lhe compete. Tal tem implicado uma cadência semanal / mensal de impugnações judiciais provindas da mesma entidade junto deste tribunal, o que se vem a revelar um procedimento sistemicamente disfuncional e que entorpece a actividade do tribunal, atrasando os processos por força dos sucessivos (e diga-se, legítimos) pedidos de apensação que são realizados nesta fase judicial.
Nesta medida, consideramos que estamos perante uma situação de conexão de processos que implica a apensação de todos eles (vide artigo 24.º e artigo 29.º do CPP).
Consideramos que o critério a ter em conta para aferir do processo ao qual deverá operar a apensação decorre do disposto no artigo 28.º do CPP, com as necessárias adaptações.
As contra-ordenações a que cabem coimas mais graves, para efeitos do disposto na al. a) do citado artigo, estão a ser julgadas em sede do processo n.º 295/24.4YUSTR (J3) e por isso é a este processo ao qual deverão ser apensados os autos com o n.º 292/24.0YUSTR.
Assim sendo e em face do exposto, declaro a existência de conexão entre estes autos e o processo que corre termos neste tribunal sob o n.º 292/24.0YUSTR (J3) e, em consequência, determino que se solicite a esses autos a sua remeta para apensação a estes.”
*
Por sua vez, no Juiz 3 do Juízo da Concorrência, Regulação e Supervisão foi proferido em 20-02-2025 no processo nº 292/24.0YUSTR o seguinte despacho (Refª 511796) :
“Por intermédio do despacho proferido nestes autos em 29.01.2025, foram os sujeitos processuais e a ANAC notificados para, querendo, se pronunciaram acerca da possibilidade de apensar os processos que, neste tribunal, correm contra a aqui Recorrente.
O Ministério Público, mediante douta promoção de 31.01.2025, considerou que deverá operar a sugerida apensação de processos.
A Recorrente considerou que é uma obrigação legal proceder a essa apensação e, por isso, também não se opôs – vide douto requerimento entrado em juízo em 13.02.2025 (ref.ª 91517).
Ao invés, a ANAC opôs à referida apensação de processos [vide douto requerimento de 13.02.2025 (ref.ª 91502)], por considerar que nos dois processos que correm termos neste tribunal contra a aqui Recorrente estão em causa contra-ordenações de natureza distinta, sujeitas igualmente a regimes processuais distintos que são contraditórios e que poderão levar a colocar em causa a pretensão punitiva do Estado, por consumpção de infracções.
Essas posições vertidas nos autos foram tomadas em conta em sede do processo que corre termos neste J3 sob o n.º 295/24.4YUSTR.
Nesse processo, foi decidido o seguinte, mediante despacho de 19.02.2025: “declaro a existência de conexão entre estes autos e o processo que corre termos neste tribunal sob o n.º 292/24.0YUSTR (J3) e, em consequência, determino que se solicite a esses autos a sua remeta para apensação a estes.”
Em face do exposto e dispensando a secção de enviar a estes autos ofício a solicitar aquela remessa, determino, desde já, que se remetam os vertentes autos, para apensação aos autos que correm termos neste J3 sob o n.º 295/24.4YUSTR, passando estes autos a ser tramitados nessa sede. “
*
Por Decisão, por mero despacho, de 22 de Maio de 2025 foram as referidas impugnações judiciais julgadas parcialmente procedentes e, em consequência foi decidido :
a) Julgar improcedentes todas as excepções e nulidades suscitadas pela Recorrente;
b) Condenar a Recorrente pela prática de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro (Regulamento Geral do Ruído) – processo principal:
i) na coima que mantenho e fixo no valor de € 12.000,00 (doze mil euros);
e
ii) na sanção acessória consistente na emissão de uma directiva interna, a circular por todos os responsáveis, colaboradores e trabalhadores da Arguida com funções operacionais com abrangência no território português, no sentido de não serem realizadas quaisquer manobras aéreas em períodos de restrição noturna nos aeroportos de Portugal, onde existam tais restrições, sem que para tais movimentos exista uma autorização expressa prestada pela Coordenação (não bastando uma autorização do controlador de tráfico aéreo junto do aeroporto), no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado desta decisão e a comprovar nos autos em igual prazo;
c) Condenar a Recorrente pela prática de uma contra-ordenação aeronáutica civil grave, prevista e punida pela al. c) do n.º 2 do artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 109/2008, de 26 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 96/2018, de 23 1708 de Novembro, na coima que mantenho e fixo no valor de € 400,00 1709 (quatrocentos euros) – apenso A;
d) Operar o cúmulo jurídico das sanções identificadas e condenar a Recorrente numa coima única no valor de € 12.200,00 (doze mil e duzentos euros), acrescida da sanção acessória identificada em b), ii);
e) Suspender parcialmente a execução da coima única de € 12.200,00 (doze mil e duzentos euros), na proporção de 70% (setenta por cento), pelo período de 2 (anos) anos, executando a proporção de 30% (trinta por cento), sem prejuízo da execução da sanção acessória cominada.
*
Inconformada com a decisão, veio então a arguida “Fleet Air International Kft”. interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
“A. O presente Recurso, interposto da Sentença de 22/05/2025 (Ref.ª 530717), proferida pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (“Tribunal” ou “Tribunal a quo”), versa somente sobre matéria de direito, nos termos do disposto no artigo 75.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações (“RGCO”), sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), e n.º 3, do Código de Processo Penal (“CPP”), que a Recorrente entende ser também aqui aplicável.
B. A Recorrente não se conforma com a Sentença, ora recorrida, que decidiu:
a. Julgar improcedentes todas as excepções e nulidades suscitadas pela Recorrente;
b. Condenar a Recorrente pela prática de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro (REGULAMENTO GERAL DO RUÍDO) – processo principal:
i. na coima mantida e fixada no valor de € 12.000,00 (doze mil euros);
e
ii. na sanção acessória consistente na emissão de uma directiva interna, a circular por todos os responsáveis, colaboradores e trabalhadores da Arguida com funções operacionais com abrangência no território português, no sentido de não serem realizadas quaisquer manobras aéreas em períodos de restrição nocturna nos aeroportos de Portugal, onde existam tais restrições, sem que para tais movimentos exista uma autorização expressa prestada pela Coordenação (não bastando uma autorização do controlador de tráfico aéreo junto do aeroporto), no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado desta decisão e a comprovar nos autos em igual prazo;
c. Condenar a Recorrente pela prática de uma contra-ordenação aeronáutica civil
grave, prevista e punida pela al. c) do n.º 2 do artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 109/2008, de 26 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 96/2018, de 23 de Novembro, na coima mantida e fixada no valor de € 400,00 (quatrocentos euros) – apenso A;
d. Operar ao cúmulo jurídico das sanções identificadas e condenar a Recorrente numa coima única no valor de € 12.200,00 (doze mil e duzentos euros), acrescida da sanção acessória identificada em b), ii);
e. Suspender parcialmente a execução da coima única de € 12.200,00 (doze mil e duzentos euros), na proporção de 70% (setenta por cento), pelo período de 2 (anos) anos, executando a proporção de 30% (trinta por cento), sem prejuízo da execução da sanção acessória cominada.
C. Com efeito, e salvo o devido respeito, que é muito, a Sentença proferida pelo Tribunal a quo é nula, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP, violadora de princípios constitucionalmente consagrados, e faz má aplicação do Direito.
a. Da Nulidade por Omissão de Apensação de Processos
D. Conforme reconhecido pelo Tribunal a quo na Sentença recorrida (cf. página 12), a ausência da legalmente devida apensação de processos constitui uma nulidade, por omissão de diligência essencial à descoberta da verdade, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP.
E. Argumentou o Tribunal a quo na Sentença recorrida que, por se ter operado, já em fase judicial, a requerida e legalmente devida apensação de processos, existiria uma inutilidade superveniente a esse respeito, contudo, no caso concreto, a omissão, por parte da autoridade administrativa, da apensação de processos sobre os quais recai a mesma factualidade, prejudicou a Recorrente.
F. Como consta de fls. 64 do processo principal n.º 295/24.4YUSTR, a ANAC separou processos de contraordenação que tinham por base o mesmo enquadramento factual, e aos quais deu enquadramentos jurídicos distintos, que acaso estivessem apensos (e deveriam estar), conduziriam à absolvição da Recorrente.
G. Ademais, em desrespeito do disposto na lei, a saber, no artigo 19.º, n.º 1 do RGCO (e tal como se encontra plasmado na página 63 da Sentença recorrida) foram aplicadas pela autoridade administrativa à Recorrente duas coimas separadas (uma de doze mil euros, outra de quatrocentos euros), em processos com a mesma factualidade – sendo que, num deles, como oportunamente se referiu acima, a Recorrente nem sequer teve oportunidade de ser ouvida e se defender.
H. Se a autoridade administrativa deveria ter aplicado à Recorrente uma coima única nos termos do artigo 19.º do RGCO (e não o fez), tendo a Recorrente sido confrontada com processos separados (e não tendo a Recorrente sequer tido oportunidade de se defender no apenso A), quando lhe deveria ter sido dada oportunidade de se defender de forma cabal e una sobre os dois processos com uma única coima, estamos perante uma evidente nulidade nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP, que não ficou sanada pela apensação dos processos em fase judicial: a Recorrente, em momento algum do processo contraordenacional, teve oportunidade de se defender sobre uma coima única aplicada pela autoridade administrativa, nos termos legalmente previstos no artigo 19.º do RGCO – e como sempre se imporia para o cabal exercício dos seus direitos de audição e defesa (cf. artigos 32.º, n.º 10 e 267.º, n.º 5 da CRP e 50.º do RGCO).
I. Ergo, reconhecendo e verificando o Tribunal a quo, na Sentença recorrida, a existência de uma nulidade nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP – que embora sanável, não foi sanada nos termos legalmente previstos no artigo 121.º, n.º 1 do CPP – errou o Tribunal a quo ao declarar a inutilidade superveniente da lide a esse respeito, em vez de declarar a respetiva nulidade, com os consequentes efeitos legais, nos termos do disposto no artigo 122.º do CPP.
Subsidiariamente, caso assim não se entenda, e por mero dever de patrocínio se cogita,
b. Da Violação do Direito de Audição e Defesa da Recorrente / Nulidade do Apenso A (Processo n.º 295/24.4YUSTR-A)
J. Estabelece o artigo 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa (doravante, “CRP”) que “Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”, e o artigo 50.º do RGCO que “Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”.
K. Refere o Tribunal a quo que o Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre o disposto no referido artigo 50.º do RGCO, no ano de 2003 (Assento n.º 1/2003, publicado no DR-I-A de 25-01-2023); contudo, a jurisprudência aí fixada tem por base uma factualidade que em nada se assemelha à dos presentes autos, conforme doutamente expendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-06-2016, processo n.º 42/15.1TNLSB.L1-A.S2, de 16-06-2016:
IV — A jurisprudência fixada parte do pressuposto de que o arguido foi notificado, e vem afirmar de forma clara e expressa que este deve, no prazo de 10 dias, arguir a nulidade sob pena de sanação.
Ora, não só no caso dos autos o arguido invocou (...) uma nulidade (...), como a nulidade que invocou foi a de omissão de notificação e não notificação omissa relativamente a certos elementos pertinentes.
V — (...) Do já exposto, podemos concluir que no “assento” o Supremo Tribunal de Justiça decidiu tendo por base uma factualidade distinta da referida nos presentes autos, pelo que não podemos concluir sem mais haver uma decisão contra jurisprudência fixada. Até porque a jurisprudência fixada não se aplica aos presentes autos.
VI — Ainda que o Supremo Tribunal de Justiça se tenha referido aos casos de impugnação judicial da omissão de notificação, a jurisprudência fixada é sobre a notificação omissa (não sobre a omissão de notificação), pelo que não sendo o caso subjacente a estes autos não podemos concluir por uma identidade da situação de facto a legitimar a aplicação daquele “assento” n.º 1/2003.”.
L. De acordo com o Tribunal a quo, estribando-se na fundamentação do referido Assento n.º1/2003, haveria que distinguir entre duas situações: por um lado, caso a impugnação da Recorrente se limitasse a arguir a nulidade decorrente da omissão absoluta do cumprimento do disposto na lei (artigo 50.º do RGCO), deveria o Tribunal invalidar a instrução (in casu, a partir da notificação omissa, e também, por dela depender e a afetar, a subsequente decisão administrativa, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 120.º, n.º 2, alínea d) e n.º 3, alínea c) e 41.º, n.º 1 do RGCO; por outro lado, caso a impugnação da Recorrente se prevalecesse “do direito preterido (pronunciando-se sobre as questões objecto do procedimento, abarcando aspectos de facto ou de direito omissos e, sendo caso disso, requerendo diligências complementares e juntando documentos)”, a nulidade teria de se considerar sanada, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 121.º, n.º 1, alínea c) do CPP e 41.º, n.º 1 do RGCO.
M. A jurisprudência fixada pelo Assento n.º 1/2003, em que o Tribunal a quo se estribou para afastar a declaração de nulidade, não se aplica aos presentes autos, porquanto versa sobre a notificação omissa (não sobre a omissão de notificação), sendo igualmente inaplicável a sua fundamentação, conforme sublimemente expendido no mui douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04-02-2016, Processo n.º 42/15.1TNLSB.L1-9: “A questão em discussão nos autos diz respeito à fase administrativa do processo de contra-ordenação, na qual foi omissa a notificação ao arguido da sua própria constituição como tal e a possibilidade legal de defesa. Dito de outra maneira, constitui nulidade sanável pela intervenção posterior do arguido na fase de impugnação judicial, a sua não notificação na fase administrativa do processo para deduzir a sua defesa?
A resposta só pode ser negativa.
O que está em causa é a total ausência do direito de defesa na fase preliminar do processo tal como impõe o artigo 50º do RGCO e os artigos 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 267º, nº 5, em matéria administrativa.
É verdade que o processo contra-ordenacional não é, nos seus exactos termos, um processo criminal tal como tem vindo a entender o Tribunal Constitucional em variados arestos, mas nunca na perspectiva de omissão total da possibilidade do exercício do direito de defesa, núcleo essencial do direito criminal e contra-ordenacional. (...)
Os Juízes Conselheiros Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa consideram que a omissão do artigo 50º do RGCO por parte da entidade administrativa e a consequente “Não concessão ao arguido da possibilidade de ser ouvido sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre parece dever considerar-se uma nulidade insanável, enquadrável na alínea c) do nº1 do artº. 119.
Com efeito, embora nesta norma se preveja como nulidade insanável a ausência do arguido ou seu defensor quando a lei exigir a respectiva comparência, o objectivo evidente desta obrigatoriedade de comparência é a concessão ao arguido da possibilidade de exercer os seus direitos de defesa que a lei e a CRP impõem que lhe seja concedida e, por isso, esta norma deve ser interpretada extensivamente como visando todas as situações em que não foi concedida ao arguido, antes de lhe ser aplicada uma sanção, possibilidade de exercer direitos de defesa que obrigatoriamente lhe deve ser proporcionada”. (...)
Parece-nos que a tese da nulidade insanável é aquela que melhor se adequa à matriz do nosso direito processual penal e contra-ordenacional e às teses sufragadas pela jurisprudência constitucional referidas anteriormente.
Aliás, o próprio legislador, em matéria tributária, consagrou o regime da nulidade insanável ao estatuir no artigo 63º, nº 1 al. c) do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) ao considerar nulidade insuprível a “(…) falta de notificação do despacho para audição e apresentação de defesa”.
A consagração legislativa da nulidade insanável em matéria tributária e inexistindo qualquer justificação plausível para tratar diferentemente as demais situações contra-ordenacionais, não vemos como se possa argumentar, como faz Pinto de Albuquerque, que a consagração da excepção, confirma a regra. A regra é a possibilidade do direito de defesa tal como resulta do texto constitucional em matéria criminal extensiva à matéria contra-ordenacional. Esta sim é a regra e a matriz de qualquer processo justo e equitativo.
Um processo justo e equitativo em matéria contra-ordenacional não se compadece com supressão de direitos aos arguidos, em virtude de actuações menos diligentes das autoridades administrativas.
Em resumo e pelas razões referidas, consideramos que o não cumprimento do artigo 50º do RGCO por parte da entidade administrativa conduz a uma nulidade insanável.
A nulidade do acto implica que o mesmo é inválido, tal como todos aqueles que estejam na dependência funcional ou seja com todos aqueles que exista nexo funcional, o que nos reconduz à própria notificação omissa e à decisão da autoridade administrativa (artigo 122º do Código de Processo Penal).” (ênfase nosso).
N. No mesmo sentido, veja-se também o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 99/2009, Processo n.º 11/CPP, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 537/2011, de 15-11-2011, Processo n.º 394/11 e ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02-05-2023, Processo n.º 384/22.0T8PRG.G1: “Assim, faz todo o sentido a jurisprudência que entende que a falta de notificação nos termos do artº 50º RGCO traduz uma nulidade insanável equivalente à prevista no artº 119º al. c) do CPP. (...) Em resumo e pelas razões referidas, consideramos que o não cumprimento do artigo 50º do RGCO por parte da entidade administrativa conduz a uma nulidade insanável.
Por outro lado, enquanto que um arguido, no âmbito de um processo penal, tem de o ser constituído, o que implica um termo próprio e prestação de TIR, bem como a leitura dos seus direitos nos termos do artº 61º do CPP, sendo, assim, a forma como é chamado pela primeira vez a um processo que lhe diz respeito, no âmbito de um processo contraordenacional a única forma de chamar o arguido ao processo é pela notificação prevista no artº 50º do RGCO o que significa que, para todos os efeitos, a notificação do artº 50º RGCO equivale a uma citação (...)
Essa irregularidade faz com que a notificação em causa não possa ser considerada válida e legal pelo que estamos perante uma falta de notificação para todos os efeitos legais o que gera uma nulidade insanável.
Consequentemente, ter-se-á que anular todo o processado contra-ordenacional a partir, inclusive, da notificação efectuada nos termos do artº 50º RGCO devendo esta notificação ser repetida com respeito pela legalidade do acto (...)” (sublinhado nosso).
O. Com efeito, o incumprimento da lei (in casu, do artigo 50.º do RGCO) por parte da autoridade administrativa não deverá operar como uma forma de suprimir ou coartar o pleno exercício do direito de audição e defesa da Recorrente, num processo que, logo à partida, se encontra insanavelmente ferido na sua justiça e no núcleo essencial do direito contra-ordenacional, através da violação desse mesmo direito de audição e defesa constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa.
P. Em suma, o manifesto e indiscutível incumprimento do disposto nos artigos 50.º do RGCO e 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa por parte da autoridade administrativa constitui uma nulidade insanável, enquadrável na alínea c) do artigo 119.º do CPP, ex vi artigo 41.º do RGCO, pelo que deveria o Tribunal a quo ter declarado tal nulidade insanável, com os efeitos legalmente previstos – invalidade da notificação omitida e da decisão da autoridade administrativa, nos termos do disposto no artigo 122.º CPP, ex vi artigo 41.º do RGCO.
Subsidiariamente, caso assim não se entenda, e por mero dever de patrocínio se cogita,
Q. A Recorrente não se prevaleceu de faculdade a cujo exercício o ato anulável se dirigia, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea c) do CPP, como ficciona o Tribunal a quo.
R. Com efeito, a tese de que a Recorrente “sanou” a total preterição, por parte da autoridade administrativa, das normas que asseguram à Recorrente os seus direitos constitucionalmente consagrados de audição e defesa, é errónea e não pode vingar, porquanto a Recorrente foi efetivamente confrontada com uma decisão (surpresa) da autoridade administrativa, condenando-a numa coima e no pagamento de duas unidades de conta, com base nas seguintes diligências instrutórias (cf. fls. 41 do processo apenso n.º 295/24.4YUSTR-A):

S. Face a esta verdadeira decisão surpresa, e confrontada pela primeira vez com o processo, a Recorrente teve o duplo cuidado de, no seu recurso de impugnação judicial (cf. fls. 60 a 63 do processo apenso n.º 295/24.4YUSTR-A), deixar explícito que no processo não lhe havia sido permitido sequer apresentar provas ou requerer a realização de diligências complementares e, bem assim, de requerer a declaração da indiscutível nulidade do processo, por força do incumprimento do disposto no artigo 32.º, n.º 10 da CRP e do artigo 50.º do RGCO.
T. Ergo, contrariamente ao ficcionado pelo Tribunal a quo, a Recorrente não se fez prevalecer da faculdade de exercer plena e eficazmente o seu direito de audição e defesa constitucionalmente consagrado, pois que não teve sequer oportunidade de ser ouvida e de se defender durante a fase administrativa do processo, em violação dos artigos 32.º, n.º10 e 267.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, bem como do artigo 50.º do RGCO.
U. Como decorrência lógica, e tal como reconhecido pelo próprio Tribunal a quo (cf. página 25 da Sentença ora recorrida) a Recorrente não só não arrolou qualquer prova testemunhal nem requereu qualquer diligência complementar – pois nunca foi notificada para o fazer nos termos legalmente exigidos – como os únicos documentos que juntou ao seu recurso, já em fase judicial, se relacionavam com a peticionada declaração de nulidade.
V. Com efeito, o que foi peticionado pela Recorrente ao Tribunal a quo, sem qualquer putativa defesa, foi a declaração da nulidade do processo com os devidos efeitos legais, pelo que, reconhecendo o Tribunal a quo a existência de tal nulidade, deveria o mesmo ter decidido, no caso concreto, pela falta de efetiva sanação da mesma pela Recorrente, declarando a referida nulidade (mesmo que a considerasse sanável) com os consequentes efeitos legais, conforme legal e tempestivamente requerido pela Recorrente, nos termos do disposto nos artigos 120.º, n.º 2, alínea d) e 122.º do CPP, ex vi artigo 41.º, n.º 1 do RGCO.
W. Não o tendo feito, manchou a Sentença recorrida de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP.
Subsidiariamente, caso assim não se entenda, e por mero dever de patrocínio se cogita,
X. Salvo o devido respeito, que é muito, o que foi peticionado ao Tribunal a quo, sem qualquer putativa defesa, foi a declaração da nulidade do processo com os devidos efeitos legais, e apenas e só após tal pedido, subsidiariamente, à cautela e por mero dever de patrocínio, caso assim não entendesse o Tribunal a quo, foram efetuados outros pedidos subsidiários (cf. fls. 99 e 100 do processo apenso n.º 295/24.4YUSTR-A).
Y. Também aqui errou o Tribunal a quo ao conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento, dado o manifesto carácter subsidiário dos pedidos formulados pela Recorrente, manchando assim de nulidade a sentença, por excesso de pronúncia, nos termos previstos no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP, ex vi artigo 41.º do RGCO.
Z. Com efeito, o Tribunal a quo nunca teria (nem deveria ter) conhecido das demais questões (e pedidos), de caráter subsidiário, ao reconhecer primeiramente que existia (e existe) efetivamente uma nulidade processual (insanável ou não sanada); contrariamente, optou por usar as demais questões e pedidos subsidiários para ficcionar a sanação da reconhecida nulidade, em prejuízo da Recorrente e em clara violação da lei – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-06-2017, Processo n.º 825/15.2T8LRA.C1.S1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23-06-2009, Processo n.º 4957/04.4TBCSC.L1-1.
AA. Conforme dispõe o artigo 608.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigos 4.º do CPP e 41.º do RGCO, a sentença deve conhecer ”em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica, e deve o juiz resolver as questões que “as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”, (sublinhado nosso).
BB. Assim, por precedência lógica, e dado o caráter subsidiário dos pedidos da Recorrente, deveria o Tribunal a quo ter declarado a nulidade peticionada pela Recorrente com os consequentes efeitos legais; não o tendo feito, manchou a sentença de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP ex vi artigo 41.º do RGCO, nulidade essa que deve ser declarada com os consequentes efeitos legais.
Em qualquer caso, e cumulativamente, por referência aos pedidos anteriormente deduzidos de declaração de nulidade do processo apenso A (Processo n.º 295/24.4YUSTR-A) e excesso de pronúncia do Tribunal a quo:
c. Dos artigos 28.º, n.º 2, alínea g) e 20.º, n.º 3 do Regulamento Geral do Ruído e artigo 2.º da Portaria n.º 831/2007 / Da Violação do Princípio do Acusatório / Da Violação do Princípio Ne Bis In Idem
CC. A prática da contraordenação ambiental prevista no artigo 28.º, n.º 2, alínea g) do Regulamento Geral do Ruído pressupõe a existência de uma violação das condições de funcionamento da infra-estrutura de transporte aéreo fixadas nos termos do artigo 20.º, n.º 3 do mesmo Regulamento, isto é, de acordo com os elementos fixados pela Portaria n.º831/2007, em função dos resultados do sistema de monitorização e de simulação de ruído:
(i) o número máximo de aterragens e descolagens permitido na infra-estrutura de transporte aéreo entre as 0 e as 6 horas; (ii) a identificação das aeronaves abrangidas em função do nível de classificação sonora.
DD. Decorre da Sentença recorrida que em momento algum se alegou ou provou qualquer ultrapassagem/violação do número máximo de aterragens e descolagens permitido no Aeroporto Francisco Sá Carneiro entre as 0 e as 6 horas e que a aeronave da Recorrente não se encontra abrangida por quaisquer restrições relacionadas com o ruído que emite: a aeronave da Recorrente é uma aeronave de transporte de carga com o nível 0 de classificação sonora.
EE. A Portaria n.º 831/2007 fixa condições de funcionamento do Aeroporto Francisco Sá Carneiro em função dos resultados do sistema de monitorização e de simulação de ruído, ergo, a existência de restrições operacionais em período noturno no Aeroporto Francisco Sá Carneiro está intrinsecamente ligada à verificação e prevenção/limitação de certos níveis de ruído, pois só assim se justificará a existência de restrições à aterragem ou descolagem de aeronaves durante o período noturno (entre as 0 e as 6 horas), seja na sua vertente de número máximo de movimentos aéreos permitidos, seja na sua vertente de aeronaves abrangidas pelas restrições em virtude da sua classificação sonora.
FF. A razão de ser dos artigo 28.º, n.º 2, alínea g) e 20.º, n.º 3, ambos do Regulamento Geral do Ruído, prende-se com a necessidade de tutelar um bem jurídico concreto (descanso e saúde, cf. artigo 1.º do Regulamento Geral do Ruído), tal como bem refere o Tribunal a quo na Sentença recorrida: “Na verdade, estão em causa bens jurídicos distintos. O caso que trata estes autos principais tem que ver directamente com o ruído no aeroporto, pretendendo-se acautelar essencialmente um nível de qualidade de vida das populações que podem ser afectadas por esse ruido, especialmente à noite, que é o período normal de descanso de pessoas e animais. Já a violação dos slots tem sobretudo em vista uma boa gestão dos recursos de um aeroporto coordenado.” (...)
Já através do sancionamento da violação da restrição de operações em período nocturno, procura acautelar-se essencialmente a saúde e o descanso dos habitantes afectados, de modo significativo, pelo ruído das aeronaves.” – cf. páginas 40 e 48 da Sentença ora recorrida (sublinhado nosso).
GG. Ora, e salvo o devido respeito pela interpretação do Tribunal a quo, entende a Recorrente que tal interpretação acaba por perder de vista o bem jurídico que a lei pretende proteger e a própria ratio dos artigos 28.º, n.º 2, alínea g) e 20.º, n.º 3 do Regulamento Geral do Ruído e, bem assim, da Portaria n.º 831/2007, ao condenar a Recorrente numa coima de €12.000,00 (doze mil euros), por alegada violação do artigo 28.º, n.º 2, alínea g) do Regulamento Geral do Ruído.
HH. Conforme se esclarece no preâmbulo da Portaria n.º 831/2007: “O n.º 2 do artigo 20.º do Regulamento Geral do Ruído (...) determina que, por portaria (...), podem ser permitidas a aterragem e a descolagem de aeronaves civis entre as 0 e as 6 horas nos aeroportos (...) que disponham de um sistema de monitorização e simulação do ruído que permita caracterizar a sua envolvente relativamente ao Lden e Ln e determinar o número máximo de aterragens e descolagens entre as 0 e as 6 horas de forma a assegurar o cumprimento dos valores limite fixados no artigo 11.º do referido Regulamento.
Considerando que o aeroporto Francisco Sá Carneiro dispõe de um sistema de monitorização e simulação de ruído que preenche os requisitos exigidos no Regulamento Geral do Ruído;
Considerando ainda que os resultados da simulação do ruído efectuada para os movimentos aéreos previstos na presente portaria no período das 0 às 6 horas permitem verificar o cumprimento dos valores limite aplicáveis;
Tendo presente, por outro lado, que as actividades de transporte de carga e de correio expresso são indispensáveis ao desenvolvimento industrial e económico da região e dos respectivos agentes, por assegurarem a distribuição dos produtos e recepção dos materiais e componentes just in time, para as quais o transporte durante o período noturno é absolutamente vital; Tendo ainda presente que a competitividade do Aeroporto Francisco Sá Carneiro na atracção e fixação destas actividades de transporte de carga e correio expresso depende da realização das referidas operações entre as 0 e as 6 horas:
Entende-se estarem reunidas as condições que permitem a realização de movimentos aéreos no Aeroporto Francisco Sá Carneiro entre as 0 e as 6 horas, com as restrições constantes da presente portaria”.
II. Da leitura das normas supra referidas do Regulamento Geral do Ruído e do preâmbulo da Portaria n.º 831/2007, resulta insofismável para a Recorrente que o escopo e ratio das normas em causa se prendem com o cumprimento dos valores limite de exposição fixados no artigo 11.º do Regulamento Geral do Ruído, os quais não se encontram nem referidos nem considerados na Sentença recorrida (e na decisão administrativa), sendo certo que a referida Portaria visa fomentar a competitividade do Aeroporto na atracção e fixação das atividades de transporte de carga e de correio expresso, as quais são indispensáveis, sendo o transporte durante o período noturno absolutamente vital para a realização de tais atividades – cf. preâmbulo da Portaria n.º 831/2007.
JJ. É ponto assente que o movimento aéreo de descolagem estava relacionado com transporte de carga e que a sua a aeronave ..., matrícula ..., trata-se de uma aeronave de transporte de carga, e que a regra estabelecida no Aeroporto Francisco Sá Carneiro é a da permissão da aterragem e descolagem de aeronaves civis entre as 0 e as 6 horas (período noturno), sem prejuízo das restrições de operação previstas na lei (cf. artigo 1.º da Portaria n.º 831/2007).
KK. Tais restrições de operação encontram-se plasmadas no artigo 2.º da Portaria n.º 831/2007, sendo certo que, da leitura do artigo 2.º da Portaria n.º 831/2007 resulta insofismável para a Recorrente o seguinte:
a) No Aeroporto Francisco Sá Carneiro, o tráfego noturno (entre as 0 e as 6 horas) é permitido sob determinadas condições/restrições:
i. O movimento aéreo tem de estar relacionado com a aviação comercial ou de trabalho aéreo – como in casu estava;
ii. O número máximo de movimentos aéreos permitido no período noturno (entre
as 0 e as 6 horas) é de 11 movimentos diários, 70 semanais e 2100 anuais – não resultando dos autos qualquer alegação ou prova de que tal número máximo tenha sido excedido;
b) A autorização de movimentos aéreos durante o período noturno (entre as 0 e as 6 horas) está também condicionada à classificação da aeronave quanto às emissões sonoras (concreto nível de ruído da aeronave utilizada) nos seguintes termos (cf. artigo 2.º, n.º 2 da Portaria n.º 831/2007):
i. As aeronaves classificadas no nível 16 não podem ser programadas para o período das 0 às 6 horas;
ii. As aeronaves classificadas nos níveis 4 e 8 não podem ser programadas para o período entre as 2 e as 5 horas;
iii. As aeronaves classificadas nos níveis 0, 0,5, 1 e 2 não estão sujeitas a restrições– como é o caso da aeronave de transporte de carga da Recorrente.
LL. Face ao exposto, entende a Recorrente que não existiu qualquer violação das condições de funcionamento e ou das restrições de operação fixadas para o Aeroporto Francisco Sá Carneiro (cf. artigo 28.º, n.º 2, alínea g) e 20.º, n.º 2 e 3, ambos do Regulamento Geral do Ruído, conjugado com os artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 831/2007).
MM. Considerando a razão de ser da previsão da contraordenação ambiental prevista no Regulamento Geral do Ruído (artigos 28.º, n.º 2, alínea g) e 20.º, n.º 3, conjugados com os artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 831/2007), a Recorrente entende que a interpretação da norma prevista no artigo 2.º da Portaria não pode ser reduzida à existência de uma autorização (faixa horária) para operar em período noturno – até sob pena de se confundir dois bens jurídicos distintos e violar o princípio ne bis in idem (na vertente de dupla valoração do mesmo facto).
NN. Quando se lê que a autorização de movimentos aéreos entre as 0 e as 6 horas está igualmente condicionada à classificação das aeronaves quanto às emissões sonoras quer-se simplesmente dizer que tal autorização de movimento aéreo em período noturno só poderá existir se os elementos previstos na lei estiverem preenchidos, a saber, os mesmos que se encontram previstos no artigo 20.º, n.º 3 do Regulamento Geral do Ruído e que estão expressamente identificados no Preâmbulo da Portaria n.º 831/2007:
c) O movimento aéreo tem de estar relacionado com aviação comercial ou de trabalho aéreo – como o dos presentes autos;
d) O movimento aéreo em apreço não resultará na violação do número máximo de
movimentos aéreos permitido – o que em caso algum foi alegado pela autoridade administrativa e ou provado na Sentença recorrida;
e) O momento temporal do movimento aéreo estará sujeito a um certo período temporal do período noturno, consoante a classificação da aeronave que será utilizada no movimento aéreo – nos presentes autos, a aeronave da Recorrente encontra-se classificada no nível 0 e, como tal, de acordo com o elemento literal da lei, não se encontra sujeita a restrições temporais de acordo com a classificação sonora, pelo que poderia ser programada para qualquer período entre as 0 e as 6 horas.
OO. Esta é, com a devida vénia pela interpretação efetuada pelo Tribunal a quo, a melhor e correta interpretação a ser dada aos normativos legais em apreço (os artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 831/2007, como concretização do disposto nos artigos 28.º, n.º 2, alínea g) e 20.º, n.º 3 do Regulamento Geral do Ruído), mormente pelo seu elemento literal e teleológico.
PP. Assim, salvo o devido respeito pela interpretação do Tribunal a quo, a razão de ser da previsão da contraordenação ambiental prevista no Regulamento Geral do Ruído (artigos 28.º, n.º 2, alínea g) e 20.º, n.º 3, conjugados com os artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 831/2007), a interpretação da norma prevista no artigo 2.º da Portaria n.º 831/2007 não pode ser reduzida à existência de uma autorização (faixa horária) para operar em período noturno, tendo sempre de ter em conta a verdadeira e concreta classificação sonora da aeronave –porque a contraordenação em apreço se relaciona com o ruído – sob pena de se de se confundir dois bens jurídicos distintos e violar o princípio ne bis in idem, como acaba por fazer o Tribunal a quo na Sentença recorrida (com uma dupla valoração do mesmo facto).
Subsidiariamente, caso assim não se entenda, o que por mero dever de patrocínio se cogita,
QQ. A Sentença recorrida (bem como a decisão administrativa) é totalmente omissa quanto ao número de movimentos aéreos efetuados no período noturno e ao concreto ruído efetuado no movimento aéreo da Recorrente, sendo que cabia à entidade gestora aeroportuária verificar se a Recorrente estava em condições de efetuar tal movimento aéreo ou não – pois possui informação, que comunica à ANAC, relativa ao número de movimentos aéreos verificados no período entre as 0 e as 6 horas, à classificação sonora das aeronaves e ainda, o relatório de monitorização e mapas de ruído relativos ao cumprimento dos valores limite fixados no Regulamento Geral do Ruído – cf. artigo 6.º da Portaria n.º 831/2007.
RR. Em caso algum se demonstrou ter sido ultrapassado o número máximo de movimentos aéreos permitido no período noturno (tanto na decisão administrativa como na Sentença recorrida) e tampouco ficou demonstrado que a classificação sonora da aeronave da Recorrente a impedia de voar durante o período noturno (pois que, por se encontrar classificada no nível 0, não se encontra, segundo o elemento literal da lei, sujeita a restrições).
SS. Com efeito, não ficou demonstrado em momento algum nos presentes autos (nem a Sentença recorrida o refere), que o número máximo de movimentos aéreos permitido em período noturno já havia ou seria excedido, e que o nível de classificação de ruído da aeronave da Recorrente a impossibilitava de realizar o movimento de descolagem em apreço.
TT. Assim, conforme expressamente referido pela Recorrente no seu recurso de impugnação judicial (cf. fls. 77 e 78 do processo principal e Conclusão Z, fls. 104 do processo principal) a imputação que lhe é feita da prática da contraordenação em causa viola o princípio da estrutura acusatória do processo contraordenacional, previsto no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, na medida em que a matéria prevista no artigo 2.º da Portaria n.º 831/2007 não foi objeto das devidas diligências probatórias por parte da autoridade administrativa, colocando sobre os ombros da Recorrente o ónus de evidenciar que determinados requisitos de punibilidade não se verificavam.
UU. Ademais, não tendo havido qualquer pronúncia na Sentença recorrida sobre tal violação do princípio da estrutura acusatória do processo contraordenacional, padece a mesma do vício de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP.
Subsidiariamente, caso assim não se entenda, o que por mero dever de patrocínio se cogita,
VV. Mesmo que se considere, como o Tribunal a quo, que sempre será necessária, não obstante o disposto no artigo 2.º, n.º 2, alínea c) da Portaria n.º 831/2007, a existência de uma autorização de movimento aéreo (a qual, diga-se, existiu por parte do controlo de tráfego aéreo), e mesmo que se entenda que tal autorização teria de ser obrigatoriamente concedida através de faixa horária (slot aeroportuário), acabaremos por chegar à conclusão que tal interpretação, aplicada ao caso concreto, faz depender inteiramente a aplicação da coima de uma falta de autorização de faixa horária,
WW. E que, caso existisse um slot aeroportuário (em vez de slot ATC como o da Recorrente), a lei permite expressamente que uma aeronave como a da Recorrente possa voar a qualquer hora do período noturno, isto é, entre as 0 e as 6 horas, precisamente por causa do seu nível de classificação sonora, que é o mais baixo de todos: o nível 0.
XX. Por outras palavras, à Recorrente foi aplicada uma coima de €12.000,00 (doze mil euros), por contraordenação prevista no Regulamento Geral do Ruído (cujo bem jurídico que se pretende proteger é, no dizer do Tribunal a quo, “a saúde e o descanso dos habitantes afectados, de modo significativo, pelo ruído das aeronaves”) por uma operação ocorrida efetivamente às 00:00 LT – isto é, no primeiro minuto do período noturno –, com uma aeronave de classificação sonora de nível 0, única e exclusivamente porque não teria uma faixa horária para o efeito.
YY. Aliás, tal entendimento encontra-se plenamente vertido na Sentença recorrida (cf. página 20): “Sucede, porém, que, por um lado, com todo o respeito, não está em causa a possibilidade de ausência de restrição de tráfego noturno entre as 0 e as 6 horas no Aeroporto do Porto, por respeito às emissões sonoras estabelecidas de acordo com a OACI, mas sim está em causa, como resulta à saciedade da decisão administrativa, a falta de autorização para realizar o movimento aéreo no período noturno naquele aeroporto”, (sublinhado nosso).
ZZ. Entende a Recorrente que não se deve confundir a realização de um movimento noturno com a realização de um movimento fora da faixa horária (pois embora possam coincidir, cada tipo de ilícito protege um bem jurídico distinto), pelo que reduzir a aplicação da contraordenação em causa à (in)existência de uma faixa horária, constitui violação clara do princípio ne bis in idem: a Recorrente é punida duplamente, com base na mesma factualidade, pela ausência/violação de uma faixa horária.
AAA. Assim, a Recorrente considera que se encontra violado, na Sentença ora recorrida, o princípio ne bis in idem, por dupla punição da mesma factualidade (e neste caso, uma dupla tutela do mesmo bem jurídico).
Subsidiariamente, caso assim não se entenda, o que por mero dever de patrocínio se cogita,
d. Da Violação do Princípio da Proporcionalidade
BBB. O Tribunal a quo já decidiu, em sede do processo n.º 303/19.0YUSTR, com base no princípio da proporcionalidade, em caso de violação de faixas horárias, no sentido de dever existir uma tolerância de 15 minutos, explicitando-se na Sentença ora recorrida o seu entendimento: “Assim consideramos, com a Recorrente, que apenas atrasos com alguma expressão (...) são susceptíveis de integrar comportamentos subsumíveis na norma cominatória em análise e não qualquer atraso “insignificante”. Porém, para se apurar a dita irrelevância, a mesma deverá assentar em algum tipo de critério, nem que seja os usos da actividade em causa. Ora, segundo o ponto 2.3.2.1 da EUR Regional Supplementary Procedures (SUPPS) (Doc 7030), “Any changes to the EOBT (estimated off-block time) of more than 15 minutes for any IFR (instrument flight rules) flight within the IFPZ (instrument flight rules zone) shall be communicated to the IFPS” (...)
Daqui decorre uma tolerância indirecta relativamente a atrasos de 15 minutos, não sendo necessário comunicar ao IFPS atrasos até 15 minutos.
Apesar de falarmos de realidades diversas (planos de voo e slots ou faixas horárias), consideramos que o mesmo será o critério adequado a utilizar nesta sede, considerando-se que a punição de atrasos de menos de 15 minutos violaria o princípio da proporcionalidade”. (sublinhado nosso).
CCC. Na Sentença recorrida, o Tribunal a quo escudou-se na seguinte argumentação para afastar um qualquer juízo de proporcionalidade ou tolerância quanto à operação efetuada no primeiro minuto do período noturno (00:00 LT) pela Recorrente: “Ou seja, a ponderação, sob o prisma do princípio da proporcionalidade, terá de levar em conta que o legislador fixou o início da restrição às 00h00 tendo em vista que, a partir dessa hora, é expectável que a maioria da população esteja em período de maior repouso.
Está em causa essencialmente a saúde e o descanso dos habitantes afectados, de modo significativo, pelo ruído das aeronaves, procurando-se acautelar esse descanso de toda uma vastíssima população que reside junto aos corredores aéreos ou se encontra internada em hospitais igualmente afectados pelo ruido desses corredores e que todas as noites é importunada pelo ruido produzido pelas aeronaves.
São bem conhecidos os efeitos negativos que o ruido provoca nas populações assim afectadas, onde se elenca danos directos na sua saúde por força do seu impacto na qualidade do sono, com aumento do risco de lesões vasculares, hipertensão arterial, podendo comprometer o desempenho cognitivo das crianças e criar problemas do foro psicológico, como ansiedade e irritabilidade.
Tendo em vista o que se expôs, no caso de restrições ao período noturno, consideramos que não é de aplicar qualquer tipo de tolerância, sob pena do número de movimentos aéreos que o legislador determinou como máximo, para assegurar o descanso da população pelo menos a partir das 00h00, aumentar exponencialmente, por força da aplicação, na prática, de um horário de restrição com inicio pelas 00h15, com violação injustificada da norma que dita que o período de restrição tem inicio às 00h00 e o número de voos a realizar entre as 00h00 e as 06h00 não pode ultrapassar 11 movimentos diários, 70 semanais e 2100 anuais.”, (sublinhado nosso).
DDD. Com o devido respeito, se na teoria a Recorrente concorda com o Tribunal a quo no acima exposto, não deixando de notar que o mesmo se refere repetidamente ao ruído e ao descanso (e bem, tendo em consideração o bem jurídico que se visa proteger), na prática e no caso concreto, cremos que o Tribunal olvidou o essencial na sua ponderação, a saber:
EEE. Que os factos provados e a Portaria n.º 831/2007 mostram que a aeronave da Recorrente é uma aeronave de transporte de carga (facto provado 3), cuja atividade é na verdade incentivada pelo próprio preâmbulo da Portaria n.º 831/2007, e que apresenta no certificado de ruído do fabricante valores de emissões sonoras que, para todos os efeitos, se enquadram no nível mais baixo possível de todos os previstos na lei (nível 0) – cf. artigo 2.º, n.º 3, alínea a) da Portaria n.º 831/2007,
FFF. Que, para todos os efeitos, as aeronaves classificadas no nível 0 (bem como nos níveis 0,5, 1 e 2), não estão sujeitas a quaisquer restrições de programação no período noturno – isto é, caso não se ultrapasse o número máximo de movimentos aéreos permitidos e exista uma autorização (Slot aeroportuário ou ATC) – podem voar no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, conforme previsto na lei, a qualquer hora entre as 0 e as 6 horas,
GGG. Que, para todos os efeitos, a aeronave da Recorrente realizou a operação em apreço às 00:00 LT, isto é, no primeiríssimo minuto do período noturno.
HHH. Recordando que tudo o que é expendido pelo Tribunal a quo a este respeito se relaciona com o bem jurídico tutelado (a saber, evitar ruído das aeronaves que possa afetar de modo significativo a saúde e o descanso da população), chegamos à conclusão de que, em bom rigor, caso a aeronave de carga da Recorrente pudesse afetar de modo significativo a população com o seu ruído (sem prejuízo do respeito pelo número máximo de movimentos aéreos permitidos), a lei nunca permitiria (como acontece com as aeronaves classificadas nos níveis 4, 8 e 16) que esta pudesse efetuar operações durante qualquer hora do período noturno (entre as 0 e as 6 horas).
III. Estando sob análise uma contraordenação ambiental, por referência expressa ao ruído e classificação sonora da aeronave (cf. artigo 20.º do Regulamento Geral do Ruído), a decisão de sancionar a Recorrente com uma coima no valor de €12.000,00 (doze mil euros), acrescida de custas, por esta ter efetuado um movimento aéreo às 00:00 LT (primeiro minuto do período noturno) de 02.04.2021, com uma aeronave de transporte de carga, classificada sonoramente no nível mais baixo de todos os previstos na lei (nível 0), viola manifestamente o princípio da proporcionalidade (cf. artigo 2.º e 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).
JJJ. Não se pode considerar assegurado o princípio da proporcionalidade, quando o movimento aéreo efetuado pela Recorrente não seria sequer abstrata e teoricamente punível se efetuado uns segundos antes – isto é, às 23:59 LT -, assim como não é proporcional sancionar a Recorrente quando o movimento aéreo efetuado pela mesma, no primeiro minuto do período noturno, não atingiu o bem jurídico protegido pela norma ínsita no artigo 28.º, n.º 2, alínea g) e no artigo 20.º, n.º 3 do Regulamento Geral do Ruído, conjugados com a Portaria n.º 831/2007.
KKK. É manifesta a desproporcionalidade entre o ruído concretamente efetuado pela aeronave da Recorrente (nível 0 de classificação sonora), no primeiro minuto do período noturno, e a sanção concretamente aplicada à Recorrente, por alegada prática de contraordenação ambiental grave, que protege um bem jurídico que não foi efetivamente violado – cf. artigos 28.º, n.º 2, alínea g) e 20.º, n.º 2 e 3 do Regulamento Geral do Ruído, conjugados com o artigo 1.º e 2.º da Portaria n.º 831/2007.
LLL. Face ao exposto, e salvo o devido respeito, o Tribunal a quo violou o princípio da proporcionalidade previsto no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, ao não aplicar “qualquer tipo de tolerância” na sua ponderação (cf. página 50 da Sentença recorrida), uma vez que o caso concreto assim o exigia, atenta a aeronave de transporte de carga da Recorrente, a sua respetiva classificação sonora de nível 0 (a mais baixa de todas as previstas na lei), a realização da operação no primeiríssimo minuto do período noturno (e não estando demonstrado ter sido ultrapassado o limite diário previsto na lei) e ainda a existência de uma permissão/slot ATC para descolar.
MMM. Em suma, violou o Tribunal a quo, na Sentença recorrida, o princípio da proporcionalidade – cf. artigos 2.º e 18.º, n.º 2, ambos da Constituição da República Portuguesa – devendo decidir-se, a final, pela absolvição da Recorrente quanto à prática da contraordenação que lhe vem imputada, p.p. no artigo 28.º, n.º 2, alínea g) do Regulamento Geral do Ruído.
Subsidiariamente, caso assim não se entenda, o que por mero dever de patrocínio se cogita,
e. Da Atenuação Especial da Coima
OOO. Entendeu o Tribunal a quo que era inaplicável aos presentes autos o instituto da atenuação especial da coima, previsto no artigo 72.º do Código Penal, aplicável ex vi artigo 2.º da Lei n.º 50/2006, de 29/08 e 32.º do RGCO.
PPP. Salvo o devido respeito, a Recorrente considera que, no caso concreto da contraordenação ambiental que lhe é imputada, várias circunstâncias justificam a atenuação especial da coima, in casu por aplicação artigo 72.º do Código Penal, a saber:
a. A aeronave utilizada pela Recorrente no movimento aéreo corresponde a uma aeronave de transporte de carga, atividade especialmente incentivada no preâmbulo da Portaria n.º 831/2007.
b. A aeronave da recorrente tem a classificação sonora mais baixa de todas as previstas na lei – a saber, classificação sonora de nível 0 – não estando sujeita a restrições temporais dentro do horário de período noturno (entre as 0 e as 6 horas);
c. O movimento aéreo foi efetuado no primeiríssimo minuto do período noturno (isto é, às 00:00 LT);
d. Não se demonstrou provado qualquer dano nem tampouco qualquer benefício económico retirado pela Recorrente.
QQQ. Crê a Recorrente, salvo o devido respeito pelo entendimento do Tribunal a quo, e de forma consentânea com o disposto no artigo 23.º-A da Lei n.º 50/2006, que no caso concreto da contraordenação ambiental que lhe é imputada, a conduta da arguida globalmente considerada é realmente diminuta: não só já decorrem quatro anos da prática dos factos, como não existe notícia de que a Recorrente não tenha mantido, durante todo esse tempo, uma conduta conforme ao Direito, e ainda, não se provou que da sua conduta tenha causado qualquer prejuízo ambiental ou que a Recorrente tenha daí retirado um benefício económico para si mesma – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12-02-2025,Processo n.º 3164/23.1T9MAI.P1.
RRR. Salvo o devido respeito, errou o Tribunal a quo na apreciação do instituto da atenuação especial da coima previsto no artigo 72.º do Código Penal, aplicável ex vi artigo 2.º da Lei n.º50/2006 e 32.º do RGCO, face ao caso concreto da contraordenação ambiental, pois que se verificam várias circunstâncias atenuantes que devem levar à aplicação da atenuação especial da coima (a saber, aeronave de transporte de carga, com a classificação sonora de nível 0 e não sujeita a restrições temporais no período noturno, com o movimento aéreo a ser efetuado no primeiro minuto do período noturno e sem ter ficado demonstrada a existência de qualquer dano ambiental e ou de qualquer benefício económico que haja sido retirado pela Recorrente),
SSS. Levando assim à conclusão de que a conduta da arguida, globalmente considerada, no caso concreto da imputada contraordenação ambiental, revela uma diminuição acentuada da ilicitude do facto (movimento aéreo com aeronave de transporte de carga classificada sonoramente no nível 0, no primeiro minuto do período noturno), da sua culpa (negligência inconsciente) e da necessidade da pena (a Recorrente manteve desde a prática dos factos uma conduta conforme ao Direito, evidenciando-se uma menor exigência de prevenção).
f. Da Suspensão da Execução da Coima
TTT. Na Sentença recorrida o Tribunal a quo aplicou uma sanção acessória à Recorrente como condição necessária para suspender a execução da coima (cf. páginas 64 e 65 da Sentença ora Recorrida).
UUU. Com efeito, na Sentença recorrida o Tribunal a quo lançou mão do artigo 20.º-A da Lei n.º 50/2006 (embora por lapso acabe por se referir várias vezes ao Regulamento Geral do Ruído), tendo concluído que a ausência de antecedentes contraordenacionais e o decurso do prazo de quatro anos sobre a prática da infracção, sem notícia de outras infracções, permitiam concluir que a Recorrente tem vindo a adotar um comportamento lícito e conforme ao Direito, possibilitando que lhe fosse aplicada o instituto da suspensão da coima.
VVV. Contudo, salvo o devido respeito, errou o Tribunal a quo ao não determinar a suspensão total da execução da coima, pois que nenhuma razão existe para determinar a sua suspensão parcial.
WWW. Com efeito, na Sentença recorrida o Tribunal a quo aplicou uma sanção acessória (por força do disposto no artigo 20.º-A da Lei n.º 50/2006) para suspender a execução da coima, tendo imposto aquela para que a Recorrente “sedimente de forma duradoira a sua consciência crítica do ocorrido, para que haja uma efectiva prevenção de danos ambientais futuros e que se elimine riscos para a saúde, segurança das pessoas e bens ou ambiente” ”, (sublinhado nosso).
XXX. Ora, em bom rigor, tendo em consideração que o objetivo prosseguido pela sanção acessória aplicada à Recorrente pelo Tribunal a quo coincide inteiramente com o motivo expendido por este para determinar a suspensão da execução da coima, entende a Recorrente que a suspensão da coima deveria ser total (e não parcial), nos termos do artigo 20.º-A da Lei n.º 50/2006, ainda para mais quando a o Tribunal a quo reconhece que “as exigências de prevenção especial não se situam num patamar elevado”.
YYY. Assim, sob pena de esvaziar o verdadeiro objetivo e motivação por trás da imposição da sanção acessória, deveria o Tribunal a quo ter determinado a suspensão total da execução da coima, por se mostrar adequada e para isso concorrerem os motivos ponderados pelo Tribunal a quo: inexistência de quaisquer antecedentes contraordenacionais, tendo decorrido quatro anos desde a prática da infracção, sem notícia de outras infracções, permitindo concluir que a Recorrente tem vindo a adotar um comportamento lícito e conforme ao Direito.
Terminou pedindo que, na procedência do recurso, seja declarada a nulidade do processo principal e apenso A, por omissão de apensação de processos e violação do disposto no artigo 19º do RGCO, nos termos do disposto no artigo 120º, nº2, alínea d) e artigo 122º do CPP ex vi artigo 41º, nº1, do RGCO, com os devidos efeitos legais
ou, caso assim não se entenda, subsidiariamente
que seja declarada a nulidade do processo (Apenso A) por violação do direito de audição e defesa da Recorrente (artigo 32º, nº10, da CRP e artigo 50º do RGCO), nos termos do disposto no artigo 119º, alínea c) e 122º do CPP ex vi artigo 41º do RGCO, com os devidos efeitos legais
ou, caso assim não se entenda, subsidiariamente
que seja declarada a nulidade do processo (Apenso A) por violação do direito de audição e defesa da Recorrente (artigo 32º, nº10 da CRP e artigo 50º do RGCO) nos termos do disposto no artigo 120º, nº2, alínea d) e 122º do CPP ex vi artigo 41º, nº1, do RGCO, com os devidos efeitos legais
ou, caso assim não se entenda, subsidiariamente
que seja declarada a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, na parte em que conheceu de pedidos subsidiários para se pronunciar sobre o pedido principal (no processo apenso A), nos termos do disposto no artigo 379º, nº1, alínea c) do CPP ex vi do artigo 41º, nº1, do RGCO, com os devidos efeitos legais.
Em qualquer caso, e cumulativamente por referência aos pedidos deduzidos no ponto 1. acima,
Que a Recorrente seja absolvida quanto à contraordenação ambiental que lhe é imputada (artigos 28º, nº2, alínea g), 20º, nº3 e artigos 1º e 2º da Portaria nº831/2007)
ou, caso assim não se entenda, subsidiariamente
que seja alterada a decisão do tribunal recorrido, nos termos do artigo 75º, nº2, alínea a) do RGCO, sendo a Recorrente absolvida quanto à contraordenação ambiental que lhe é imputada, por força da violação do princípio do acusatório (artigo 32º, nº5 da CRP) e do princípio ne bis in idem (artigo 29º, nº5, da CRP)
ou, caso assim não se entenda, subsidiariamente
que seja alterada a decisão do tribunal recorrido, nos termos do artigo 75º, nº2, alínea a) do RGCO, e ser a Recorrente absolvida quanto à contraordenação ambiental que lhe é imputada, por força da violação do princípio da proporcionalidade (artigos 2º e 18º, nº2, da CRP)
ou, caso assim não se entenda, subsidiariamente
que seja alterada a decisão do tribunal recorrido, nos termos do artigo 75º, nº2, alínea a) do RGCO, e ser proferida decisão que aplique o instituto da atenuação especial da coima previsto no artigo 72º do Código Penal, aplicável ex vi artigo 2º da Lei nº5/2006 e artigo 32º do RGCO
ou, caso assim não se entenda, subsidiariamente
que seja alterada a decisão do tribunal recorrido, nos termos do artigo 75º, nº2, alínea a) do RGCO, e ser proferida decisão que decida pela suspensão total da execução da coima.
*
O Ministério Público respondeu ao recurso, elaborando a seguinte síntese conclusiva:
1ª O processo não enferma do vício previsto no art. 120º, nº 2, d), do CPP. A arguida teve oportunidade efetiva de se defender da aplicação conjunta das sanções aplicadas pelo TCRS.
2ª Não houve violação do direito de audição no apenso A na fase administrativa nem excesso de pronúncia da decisão agora recorrida.
3ª As condutas são ilícitas, típicas e culposas, designadamente o comportamento integrante da contraordenação ambiental grave, prevista pelo art. 28º, nº 2, g), do DL 9/2007, de 17/01 e punida pelo art. 22º, nº 3, b), da Lei 50/2006, de 29/08 [1ª infração].
4ª A arguida poderá beneficiar do regime da atenuação especial em relação à 1ª infração, mas não quanto à 2ª infração, pelo que o recurso deverá proceder parcialmente nesta parte.
5ª Sem prejuízo de oferecer o merecimento dos autos quanto à aplicação da suspensão da execução da coima única, considero que a determinação da coima se mostra adequada nesta parte.
Terminou pugnando pela improcedência do recurso, com exceção da possibilidade de ser aplicada a atenuação especial da coima relativa à prática da contraordenação ambiental grave (1ª infração) tratada na quinta questão.
*
Também a Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC) respondeu ao recurso, elaborando a seguinte síntese conclusiva:
1. Com o presente recurso, atentas as conclusões apresentadas, a Recorrente pretende ver debatidas as seguintes questões: (i) Nulidade do processo, por violação do direito de audição e de defesa; (ii) Violação do Princípio do acusatório; (iii) Violação do Princípio Ne bis in idem; (iv) Violação do Princípio da proporcionalidade; (v) Atenuação especial da coima; (vi) Suspensão total da execução da coima; e, (vii) Decisão quanto à matéria de facto;
2. Não sendo possível o recurso quanto à matéria de facto, e estando o recurso restrito à apreciação da matéria de direito, a Recorrente deveria invocar alguns dos fundamentos previstos no artigo 410º n.º 2 do CPP - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou erro notório na apreciação da prova, mas não o fez.
3. Como tal, a Recorrente estava legalmente obrigada a indicar um ou vários dos motivos em que se fundamentava a sua discordância com a sentença proferida pelo Tribunal a quo e não o fez.
4. A Recorrente, decidiu então não enquadrar, nos termos do artigo 410º n.º 2 do CPP, qual ou quais os fundamentos para interpor o presente recurso, enxertando a matéria de facto na sua argumentação com vista à sua reapreciação por parte do Tribunal ad quem.
5. Porquanto, o recurso apresentado mais não é do que um pedido de reapreciação
da decisão administrativa e não da decisão judicial.
6. A Recorrente limita-se a invocar os supostos vícios da decisão administrativa,
ignorando que a mencionada decisão administrativa vale como acusação quando os autos são apresentados a Tribunal.
7. Na verdade, numa primeira análise das conclusões apresentadas pela visada – as quais delimitam o objecto do recurso – é patente uma amálgama argumentativa composta quer por uma impugnação da matéria de facto dada como provada, quer por uma arguição de vícios imputáveis à decisão administrativa.
8. Se é certo que qualquer impugnação da matéria de facto dada como provada – que não tenha, como se julga não ter, qualquer apoio, num dos vícios do artigo 410º nº 2 do CPP (que a recorrente nem chega a invocar, do mesmo modo que se mostra parca numa enumeração expressa das normas concretas que efectivamente possam ter sido violadas pelo tribunal recorrido) – não cabe nos poderes de cognição desse douto Tribunal, certo será também que esse mesmo âmbito de reexame reconhecido pelo artigo 75º do RGCO diz sempre respeito, de forma muito directa, à sentença, qua tale, e não à decisão administrativa que a mesma tenha decido confirmar, em virtude do seu próprio juízo factual e jurídico.
9. Ou seja, se for desde já visto – como chega a ser patente em muitas das conclusões apresentadas pela Recorrente – que o núcleo essencial de todos os reparos apontados pela visada se prendem com a decisão administrativa em si mesma considerada, não se entrevê de que modo pode esse douto Tribunal produzir um qualquer juízo «reformador» e de per saltum invertido, que, de uma só «penada» - e sindicando uma decisão administrativa, mas não a sentença recorrida em si mesma considerada (como lhe compete) –, vem a ser assim apta a absolver a Recorrente de todas as contra-ordenações em que foi condenada
10. No mais, diga-se ainda, que possíveis irregularidades – prévias à fase jurisdicional – e relativas à narração dos factos e imputação da responsabilidade à ora Recorrente, em que tivesse incorrido a Autoridade Administrativa, desde logo se mostram sanadas uma vez que a impugnação judicial não se basta apenas com a mera alegação de tais nulidades, mas apresenta uma defesa especificada para todos os factos que acabaram por lhe ser imputados pela Autoridade Administrativa.
11. Assim, a existir qualquer nulidade da notificação, dever-se-á ter como sanada e arredado de quaisquer outras considerações.
12. De resto, tal conspecto foi objecto de consideração pelo Tribunal a quo, que
apreciou criticamente tais invocações e ‘inquietudes’ da Recorrente, apresentando uma fundamentação clara, lógica e sem quaisquer vícios quanto à improcedência do assim alegado.
13. A percepção plena dos factos que estão em causa é asseverada pela própria
defesa apresentada pela Recorrente que, para além de suscitar a questão da nulidade, aduz factos tendentes a demonstrar que cometeu as contra-ordenações, mostrando ter percebido que factos estavam em discussão, defendendo-se em relação aos mesmos.
14. Mesmo assim e ainda assim, a Recorrente vem esgrimir este argumento formal, em sede de impugnação judicial, como se não percebesse aquilo que, obviamente, percebeu, pelo que, se nulidade existisse, a mesma mostrar-se-ia sanada, em conformidade com o acórdão supracitado.
15. No que tange à dita apensação de processos, refira-se que o artigo 36.º do RGCO, ex vi do artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 09.01, disciplina nos seguintes moldes: “1 - Em caso de concurso de contra-ordenações será competente a autoridade a quem, segundo os preceitos anteriores, incumba processar qualquer das contra-ordenações. “2 - O disposto no número anterior aplica-se também aos casos em que um mesmo facto torna várias pessoas passíveis de sofrerem uma coima.”.
16. Assim, o art.º 36º do RGCO não estabelece qualquer obrigação processual de apensar infracções, este artigo estabelece a forma de resolver conflitos positivos de competência.
17. Por não se estar perante uma situação em que se tivesse de recorrer ao art.º 36º do Regime Geral das Contra-Ordenações para resolver um qualquer conflito positivo de competência inexiste qualquer nulidade tal como invocada pela Recorrente.
18. Decorre do aresto proferido por esse douto tribunal no processo n.º 184/19.4YUSTR-J.L1-PICRS que a existir, estaríamos perante uma unificação de processos, tal como decorrente do art.º 52º do Código de Processo Penal (“Diversamente, o que pode suceder é que, se existirem vários processos por uma só infracção ou vários processos por infracções diferentes, esses processos podem vir a ser apensados. Porém, nesse caso, não se trata de competência por conexão mas de mera unificação ou apensação de processos. Esta unificação de processos é uma solução que não resulta dos artigos 24.º, 25.º e 29.º do CPP, mas resulta antes, directamente, do artigo 52.º do CPP que, no caso de concurso de crimes, atribui legitimidade ao Ministério Público para promover um único processo.”).
19. Como bem afirma o citado Aresto: perante a inexistência de regra quanto à unificação de processos no Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de Janeiro e no Regime Geral das Contra-Ordenações cumpre antes de mais apurar se esse silêncio tem o sentido de regular a situação ou se se deve considerar que se está perante uma lacuna e, se se deve recorrer ao direito subsidiário para a suprir, mormente às regras do Código de Processo Penal (“A primeira dificuldade prende-se com saber se a omissão de regulamentação no RJC, sobre a unificação de processos, deve dar lugar à aplicação do direito subsidiário, neste caso do artigo 52.º do CPP, ou, se a ausência de regra expressa no RJC, tem o sentido de regular a situação. Com efeito, os únicos casos de unificação de processos na fase judicial são os previstos nos artigos 85.º n.º 3 e 89.º n.º 3 do RJC, que dizem respeito a recursos interpostos no âmbito de um mesmo processo, neles não se enquadrando a apensação de processos diferentes, aqui em causa. Por seu lado, o RGCO regula a conexão de processos para os quais sejam competentes várias autoridades administrativas (cf. artigo 36.º do RGC), regime que aqui não se aplica, desde logo por não haver derrogação às regras típicas de competência, como já foi explicado supra; porém, o RGCO não regula a unificação de processos aqui em causa”).
20. Ressalvado o devido respeito por melhor entendimento, consideramos que o
legislador regulou a situação jurídica na sua totalidade e intencionalmente não previu a figura da unificação de processos.
21. Desde logo, porque a unificação de processos tal como regulada no art.º 52º
do Código de Processo Penal visa solucionar a questão muito específica da legitimidade para promover o processo quando se esteja perante processos de diversa natureza (crimes públicos, semi-públicos e particulares), questão que não se coloca nos ilícitos de mera ordenação social – todos têm natureza pública.
22. Adicionalmente, a intenção com a criação do regime do ilícito de mera ordenação social foi a criação de uma forma mais simplificada de tornar injuntivas as determinações de um Estado de Direito cada vez mais interventivo.
23. É pacificamente aceite pela Doutrina e pela Jurisprudência que o processo de contra-ordenações é caracterizado na fase administrativa pela sua celeridade e simplicidade.
24. Objectivos que ficariam claramente prejudicados com a unificação de processos tout court, que, além do mais, colocaria claramente em causa a capacidade de tornar efectivas as injunções do Estado que decorrem das normas de conduta que a Recorrente violou (in casu as regras de gestão da infra-estrutura aeroportuária e as restrições de operações durante o período noturno), e, no limite colocariam em causa a própria injunção em si.
25. Termos em que, forçoso será concluir que inexiste qualquer vício da decisão
administrativa e, a existir a mesma, quando muito redundaria numa irregularidade e não numa nulidade.
26. Entende a Recorrente que as limitações de operações em vigor no aeroporto
Francisco Sá Carneiro “está intrinsecamente ligada à verificação e prevenção/limitação de certos níveis de ruído, pois só assim se justificará a existência de restrições à aterragem ou descolagem de aeronaves durante o período noturno (00:00 – 06:00), seja na sua vertente de número máximo de movimentos aéreos permitidos, seja na sua vertente de aeronaves abrangidas pelas restrições em virtude da sua classificação sonora (vide artigo 51. das alegações de recurso).
27. Desde logo, tal afirmação demonstra à evidência a falta de adesão da Recorrente ao quadro legal aplicável às operações durante o período noturno no aeroporto Francisco Sá de Carneiro, no Porto, que estão em vigor desde 2007, e a justiça e importância da sanção aplicada.
28. Assim, só os voos que são autorizados pela Entidade Nacional de Coordenação de Faixas Horárias é que podem operar no aeroporto Francisco Sá Carneiro Humberto Delgado durante o período de restrições (00:00 – 06:00) com o limite de 70 voos semanalmente!
29. As restrições a que a Recorrente se refere e que constam dos números 1 e do referido artigo 2º criam limitações acrescidas de operação durante o período de restrição, mas são restrições para o número de operações que podem ser autorizadas a operar durante o período de restrição.
30. São directrizes para a Entidade Nacional de Coordenação de Faixas Horárias para poder autorizar voos a operar durante o período de restrição.
31. Existem aeronaves que não podem de todo ser autorizadas a operar no período
de restrição (aeronaves classificadas nos níveis 16), há aeronaves que só podem ser autorizadas a operar até determinada hora dentro do período de restrição (“aeronaves classificadas no nível 4 e 8 não podem ser programadas para descolar entre as 2 horas e as 5 horas”), e há aeronaves que não têm qualquer limite para ser autorizadas a operar dentro do período de restrição (“As aeronaves classificadas nos níveis 0, 0,5, 1 e 2 não estão sujeitas a restrições”).
32. Mas uma coisa é não existir limitações para que a aeronave seja autorizada a operar durante o período de restrição e outra completamente diferente é dizer que para determinadas aeronaves não existem de todo restrições para operar no período noturno!
33. O n.º 1 e 2 do referido artigo começam por indicar que no Aeroporto do Porto o tráfego noturno é restringido entre as 0 e as 6 horas, sendo que apenas podem
ser permitidos, naquele período, por semana, movimentos aéreos com o limite total de 70 voos semanais.
34. Significa isto que a entidade competente para o efeito apenas pode autorizar
70 movimentos aéreos por semana a realizar no citado período noturno.
35. Nesta conformidade, constitui contra-ordenação a realização de um voo noturno sem a respectiva autorização, independentemente da existência de um slot diurno que não é utilizado ou não é cumprido.
36. O caso que trata estes autos tem de ver directamente com o ruído no aeroporto, pretendendo-se acautelar essencialmente um nível de qualidade de vida das populações que podem ser afectadas por esse ruido, especialmente à noite, que é o período normal de descanso de pessoas e animais.
37. Já a violação dos slots tem sobretudo em vista uma boa gestão dos recursos
de um aeroporto coordenado.
38. Por seu turno, o n.º 2 disciplina que a autorização de movimentos aéreos durante o período noturno “(…) está igualmente condicionada à classificação das aeronaves quanto às emissões sonoras (…)”.
39. Sublinhamos a expressão “está igualmente”, porque a consideramos absolutamente contundente na boa interpretação da norma que deve ser realizada. O advérbio de modo “igualmente” apenas pode pretender significar que para além da limitação de autorização aos movimentos ao número de 70 por semana, ainda existem outras restrições que têm que ver com os níveis de ruído das aeronaves utilizadas.
40. E o legislador taxativamente esclarece que ainda que limitado àquele limite
numérico de 70 movimentos por semana, há aeronaves que só podem ser autorizadas a operar até determinada hora dentro do período de restrição (“aeronaves classificadas no nível 4 e 8 não podem ser programadas para descolar entre as 2 horas e as 5 horas”), e há aeronaves que não têm qualquer limite para ser autorizadas a operar dentro do período de restrição (“As aeronaves classificadas nos níveis 0, 0,5, 1 e 2 não estão sujeitas a restrições”).
41. Quando o legislador refere que as aeronaves classificadas nos níveis 0, 0,5, 1 e 2 não estão sujeitas a restrições, tendo em vista o citado advérbio de modo “igualmente”, tal apenas pretende significar que esse tipo de aeronaves pode ser programado para o período noturno, condicionado, porém, à autorização desse voo. Autorização essa que não pode ultrapassar o número de 70 por semana, número esse que obviamente só poderá ser controlado pela autoridade competente se for pedida e concedida a devida autorização, (sublinhado nosso).
42. Ora, tendo em vista o exposto e tendo em vista que se mostra provado que a Recorrente não solicitou previamente uma faixa horária à coordenação de slots para operar em período noturno, realizando a descolagem sem que tivesse autorização para tal, mostra-se objectivamente verificada a contra-ordenação sob análise – a contra-ordenação aeronáutica muito grave prevista no artigo g) do n.º 2 do art. 28.º do mesmo Regulamento que: “Constitui contra-ordenação ambiental grave: (…) g) A violação das condições de funcionamento da infra-estrutura de transporte aéreo fixadas nos termos do n.º 3 do artigo 20.º;”.
43. Num aeroporto coordenado como o é o Aeroporto Francisco Sá Carneiro, onde para operar é necessário não só uma autorização prévia para operar (faixa horária), como uma autorização no momento para descolar dada pela torre de controlo, onde a própria operadora preenche o formulário de tráfego, no qual constam os dados da operação (identificação da aeronave, aeródromo de origem e de destino, carga e hora de realização da operação), como é que inexistem os elementos objectivos do tipo?!?
44. E o mesmo se diga quanto aos elementos subjectivos: constam dos factos dados como provados no ponto 6 que a Recorrente sabia que ia operar a operação de descolagem durante o período de restrição de operações e ainda assim operou.
45. Entende ainda a Recorrente, que a punição do comportamento viola o princípio ne bis in idem.
46. No entanto, não existe de todo razão à Recorrente, porquanto ainda que estejamos perante violações de autorizações para operar, são duas autorizações diferentes e visam proteger bens jurídicos muito diferentes.
47. Umas normas pretendem proteger a regulação de utilização das infraestruturas aeroportuárias.
48. Coisa diferente é a autorização para operar no período de restrições, até
porque as operações durante este período estão sujeitas a um limite acrescido (o número máximo de operações que podem ser autorizados e a classificação da aeronave quanto ao ruído).
49. Neste caso, o bem jurídico que se pretende proteger é o direito ao repouso de todos quantos residem nas imediações das infra-estrututas aeroportuárias e dos
corredores aéreos de aproximação à pista.
50. Assim, porque estamos perante bem jurídico diferente, existe um concurso de contra-ordenações e ambos os comportamentos são individualmente puníveis.
51. Assim, se as normas protegem bens jurídicos diferentes, ainda que a acção seja una, o concurso é real, havendo tantos crimes quanto os bens afectados. Se a norma protege o mesmo bem jurídico haverá um concurso aparente ou ideal.
52. Ora, na violação das normas previstas nos artigos 9º n.º 2 – alínea c) e 9º n.º 1– alínea d) do Decreto-Lei n.º 109/2008, o bem jurídico protegido é a utilização das infra-estruturas aeroportuárias (aeroportos coordenados), de forma a permitir a utilização equilibrada das mesmas, permitindo apenas que as aeronaves possam aterrar ou descolar se tiverem uma faixa horária previamente atribuída.
53. Já no que respeita à violação das normas previstas no artigo 12º n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 293/2003, de 19 de Novembro com as alterações introduzidas pelo artigo 20º do Decreto-Lei n.º 208/2004, de 19 de Agosto por referência às restrições de operações estabelecidas no artigo 2º n.º 1 da Portaria n.º 303-A/2005, de 16 de Março, o bem jurídico protegido é a saúde e o descanso dos cidadãos que residem nas imediações dos aeroportos e que ficam comprometidos com o ruído das aeronaves a descolar e a aterrar durante a noite, sem descurar a proteção do meio ambiente.
54. A Recorrente respiga que a moldura da coima abstratamente prevista viola o princípio da proporcionalidade a que alude o artigo 18.º da CRP.
55. As contraordenações muito graves são punidas com a coima mínima de 100.000€ e máxima de 250.000€, em caso de dolo, conforme disciplina a al. e) do n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 10/2004 de 9 de Janeiro.
56. O legislador, ao estabelecer um determinado ilícito contraordenacional, sancionável mediante coima, delimita uma determinada moldura sancionatória. Esta conformação da ilicitude pressuposta e da moldura sancionatória tem em vista os bens jurídicos tutelados e as necessidades subjacentes em determinado sector da vida, ponderação esta que cabe na discricionariedade do legislador democraticamente legitimado.
57. Estando em causa um direito sancionatório público, o mesmo está sujeito a
critérios constitucionalmente impostos de proporcionalidade, necessidade e justa medida.
58. O Tribunal Constitucional tem entendido que não se pode olvidar a ampla margem de liberdade do legislador ordinário para definir as condutas que constituem contra-ordenação e para fixar as correspectivas molduras sancionatórias abstratamente aplicáveis, devendo os juízos de inconstitucionalidade por ofensa do princípio da proporcionalidade ser reservados para casos de manifesta excessividade.
59. Ora, a moldura sancionatória em causa não se mostra desproporcionada em
face das finalidades prosseguidas, em geral, pelo legislador no domínio contraordenacional– a advertência social relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas e, assim, com a promoção de determinadas condutas quer na área da protecção do direito ao sossego e à saúde das pessoas quer na área do reforço das competências da entidade reguladora que garante o cumprimento daquele primeiro desiderato. Desiderato esse, que importa vincular, tem assento constitucional, em sede do artigo 64.º do CRP.
60. Consideramos que, no domínio contra-ordenacional, engloba-se na margem
de conformação do legislador a determinação da conduta ilícita e da moldura sancionatória com vista à prossecução das finalidades subjacentes, sendo mais elástico, neste domínio, o princípio da proporcionalidade, em face da neutralidade da advertência social que constitui a finalidade deste ramo do direito e a irrelevância da censura ética do autor da infracção.
61. Por via do artigo 32.º do RGCO, quer a doutrina, quer a jurisprudência maioritárias, têm entendido que tem aplicação o disposto no artigo 72.º do CP, referente à atenuação especial, ao domínio do processo contra-ordenacional – vide, acórdão da Relação de Coimbra de 06.11.2013, processo n.º 60/13.4TBALD.C1, da Relação de Évora de 22.01.2019, processo n.º 135/18.3T8TNV.E1, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2011, processo n.º 17/10.7YFLSB-5.ª, todos in www.dgsi.pt, vide também Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, pág. 86 e Simas Santos e Lopes de Sousa, in “Contra-ordenações, Anotações ao Regime Geral, 6.ª Edição, 2011, Lisboa, Vislis, 7.ª anotação ao artigo 18.º.
62. Os pressupostos da atenuação especial previstos no artigo 72.º CP consubstanciam-se na existência de circunstâncias anteriores ou posteriores à prática do ilícito, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da sanção.
63. Considerou o tribunal a quo que tendo em consideração que a atenuação especial da coima é um instituto de cariz excepcionalíssimo, sob pena do poder judicial se imiscuir indevidamente nas opções legislativas do poder legislativo democraticamente legitimado, com violação do princípio da separação de poderes, especialmente quando estamos perante molduras com uma elasticidade enorme como a que está em causa, o que denota que o legislador foi cuidadoso e previu uma possibilidade variadíssima de situações, não será de aplicar o referido instituto legal.
64. Quando previu a moldura legal aplicável, com uma latitude grande, teve em
mente situações como as que estão em causa nestes autos, sendo certo que a Recorrente não indica nenhuma situação, que poderia ter um carácter tão excepcional que pudesse permitir considerar que os critérios aplicáveis para efeitos de determinação da medida concreta da coima não asseguram a justiça no caso concreto.
65. Aliás, no fundo, a Recorrente limita-se a invocar esses mesmos critérios.
66. Reforça-se que o que está em causa são contra-ordenações de mero perigo abstrato, o que significa que o que está primacialmente em causa não é o dano, mas sim o perigo, bastando-se a Lei com a produção do perigo em abstrato para que, dessa forma, o tipo legal esteja preenchido.
67. Esse perigo abstrato revela que a perigosidade da acção, é presumida juris et de jure, cujo perigo, concebido como situação perigosa, não surge sequer como evento típico, destacado da acção.
68. Por isso, a ausência de danos ou constrangimentos não revela qualquer tipo de excepcionalidade.
69. A ausência de um benefício económico (que, refira-se, existe sempre, quanto mais não seja pela realização dos voos em questão para os quais comercializou bilhetes e pelos quais recebeu pagamento) também não constitui qualquer evento excepcional que permita lançar mão do instituto em causa.
70. Em suma, todos os critérios indicados pela Recorrente não são, salvo o devido respeito por melhor entendimento, decisivos no sentido de permitir concluir que o legislador não previu situações semelhantes quando estabeleceu a moldura contraordenacional, com vista a permitir accionar a válvula de escape da atenuação especial.
71. A Recorrente, subsidiariamente, também veio defender que a execução da coima deveria ficar suspensa.
72. Decorre do n.º 1 e n.º 3 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 09 de Janeiro que a ANAC e, por maioria de razão, o Tribunal pode suspender, total ou parcialmente, a aplicação da sanção, por um período de dois a cinco anos.
73. Por seu turno, segundo o n.º 2 do mesmo artigo, a suspensão pode ficar condicionada ao cumprimento de certas obrigações, designadamente as consideradas necessárias para a regularização de situações ilegais, à reparação de danos ou à prevenção de perigos para a segurança na aviação civil.
74. Por esta via, se as questões que têm que ver directamente com o grau de ilicitude e culpa foram essenciais para definir a coima concreta aplicada, quando se pondera a questão da suspensão da execução da coima, são questões relacionadas com as condições “pessoais” da Recorrente e com as exigências de prevenção especial e geral que deverão prevalecer, sendo necessário formular um juízo de prognose positivo quanto à possibilidade da simples censura do facto e a ameaça da sanção, realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
75. Contudo, importa referir que se verificou ao longo da impugnação judicial, bem como do recurso ora apresentado, uma total ausência de sentido crítico demonstrado pela Recorrente (o que deveria ter sido considerado pelo tribunal a quo – vide acórdão da Relação de Lisboa de 18.11.2021, processo n.º 26/21.0YUSTR.L1).
76. Na verdade, a Recorrente dispôs-se a defender que pelo facto de estar em causa uma aeronave com determinado nível de ruido não teria de obter uma autorização para realizar movimentos noturnos no aeroporto do Porto, como se pudesse, segundo a sua própria descrição, efectuar tais manobras, quando está em causa um período restrito, em que apenas podem ser autorizadas 70 manobras por semana.
77. A Recorrente parece pretender colocar-se à margem dessa restrição, o que é absolutamente avesso à responsabilidade social que sobre si impende.
78. Tal situação deverá recear-nos sobre a efectiva consciencialização da Recorrente acerca da ilicitude da sua conduta.
79. Faz-nos recear sobre a possibilidade de casos como os que estão em causa nos presentes autos poderem voltar a ocorrer, bastando meros atrasos nos voos que possam implicar a violação do slot atribuído, com ultrapassagem para o período nocturno para que a Recorrente volte a cometer a infracção em causa, atenta a ausência de sentido critico que versou neste processo.
80. Assim, consideramos que não se mostra adequada uma suspensão da execução da coima, tendo em vista que, a eficácia e a coercibilidade do sistema (e deste sistema sectorial em particular), bem como a prevenção que se pretende alcançar, carece da efectiva interiorização pela Recorrente de que as respectivas regras devem ser cumpridas e que caso não o sejam será punida.”
Terminou, pugnando pela improcedência do recurso e pela confirmação da decisão recorrida.
*
Já neste Tribunal da Relação, a Excelentíssima Senhora Procuradora Geral Adjunta apôs visto nos termos e para os efeitos do disposto no artº416º, nº1, do CPP (Refª 23743506).
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.
É sabido que o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. os artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2 e 410º, n.º 2, als. a), b) e c) do Código de Processo Penal).
Estando em causa o recurso de sentença que conheceu de impugnação judicial de uma decisão administrativa proferida em processo de contraordenação, importa ainda ter presente o disposto no artigo 75º, n.º 1 do Dec. Lei n.º 433/82, de 27.10 (RGCO), que estabelece que, em regra, e salvo se o contrário resultar desse diploma, este Tribunal apenas conhece de matéria de direito, estando-lhe pois vedado sindicar o julgamento em matéria de facto.
Assim, o presente Tribunal limita-se, no exercício de uma função similar á de um tribunal de revista, a definir e aplicar o regime ou enquadramento jurídico adequado aos factos já anterior e definitivamente fixados, ou seja, apenas conhece de direito, sendo que, nesse âmbito de recurso, o modo como a 1ª Instância fixou os factos materiais só é sindicável desde que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova (cfr. artigo 410º, nº2, do Código do Processo Penal
ex vi do artigo 74º, nº4, do Dec. Lei n.º 433/82, de 27.10).
Vale isto por dizer que não cabe na competência do presente Tribunal da Relação controlar a decisão sobre a matéria de facto, enquanto fundada em provas sujeitas ao princípio da livre apreciação, ou seja, sem valor legalmente tabelado, à excepção dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº2 do referido artigo 410º do Código de Processo Penal, que não se descortinam na factualidade dada como provada pela sentença recorrida.
Assim, as questões que importa apreciar e decidir no presente recurso reconduzem-se a saber :
1ª- Se se verifica a nulidade do processo principal e apenso A, por omissão de apensação de processos e violação do disposto no artigo 19º do RGCO, nos termos do disposto no artigo 120º, nº2, alínea d) e artigo 122º do CPP ex vi artigo 41º, nº1, do RGCO;
2ª Se se verifica a nulidade do processo (Apenso A) por violação do direito de audição e defesa da Recorrente (artigo 32º, nº10, da CRP e artigo 50º do RGCO), nos termos do disposto no artigo 119º, alínea c) e 122º do CPP ex vi artigo 41º do RGCO;
3ª Se se verifica a nulidade do processo (Apenso A) por violação do direito de audição e defesa da Recorrente (artigo 32º, nº10 da CRP e artigo 50º do RGCO) nos termos do disposto no artigo 120º, nº2, alínea d) e 122º do CPP ex vi artigo 41º, nº1, do RGCO;
4ª Se a sentença recorrida enferma de nulidade por excesso de pronúncia, na parte em que conheceu de pedidos subsidiários para se pronunciar sobre o pedido principal (no processo apenso A), nos termos do disposto no artigo 379º, nº1, alínea c) do CPP ex vi do artigo 41º, nº1, do RGCO;
5ª Se a Recorrente deve ser absolvida quanto à contraordenação ambiental que lhe é imputada (artigos 28º, nº2, alínea g), 20º, nº3 e artigos 1º e 2º da Portaria nº831/2007)
6ª Se a Recorrente deve ser absolvida quanto à contraordenação ambiental que lhe é imputada, por força da violação do princípio do acusatório (artigo 32º, nº5 da CRP) e do princípio ne bis in idem (artigo 29º, nº5, da CRP)
7ª Se Recorrente deve ser absolvida quanto à contraordenação ambiental que lhe é imputada, por força da violação do princípio da proporcionalidade (artigos 2º e 18º, nº2, da CRP)
8ª Se deve ser proferida decisão que aplique o instituto da atenuação especial da coima previsto no artigo 23º-A da Lei 50/2006, de 29/08 e no artigo 72º do Código Penal, aplicável ex vi artigo 2º da Lei nº5/2006 e artigo 32º do RGCO
9ª Se deve ser proferida decisão que decida pela suspensão total da execução da coima.
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III. Fundamentação
III.1. Na decisão recorrida foram considerados provados com interesse para a decisão da mesma, os seguintes factos:
1. A Recorrente é uma transportadora aérea;
2. Tinha uma faixa horária atribuída para descolagem do Aeroporto Francisco Sá Carneiro, no dia 1 de Abril de 2021, às 22h30 UTC, com a aeronave de marcas de nacionalidade e matrícula ...;
3. Trata-se de uma aeronave de transporte de carga;
4. E apresenta, no certificado de ruído do fabricante, os seguintes valores de emissões sonoras, considerando os pontos de referência especificados nas normas técnicas aplicáveis:
a) 76,5 EPNdB – sobrevoo à descolagem; e
b) 84,9 EPNdB – lateral, com potência máxima;
5. No entanto, a Recorrente descolou com a aeronave identificada às 23h10UTC do dia 1 de Abril de 2021, tendo saído de calços às 23h00UTC;
6. A Recorrente não tinha autorização para realizar a operação em período nocturno
7. Ao agir como agiu, fora do horário da faixa horária atribuída e sem ter autorização para realizar a operação em período nocturno, a Recorrente não observou os cuidados de que era capaz e estava adstrita, não chegando sequer a ter consciência da natureza das obrigações em causa;
8. Não são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais em que seja entidade administrativa a ANAC;
9. Não é conhecida a situação económica e financeira da Recorrente, apesar da mesma ter sido devidamente notificada para a comprovar nos autos;
10. Os serviços de assistência em escala consubstanciam uma empresa distinta da Recorrente.
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III.2. Na decisão recorrida considerou-se que com interesse para a decisão da mesma, não resultaram provados:
1. O atraso ou cancelamento da operação implicaria custos acrescidos com o cumprimento do regulamento dos direitos dos passageiros, não só ao nível da prestação de assistência, como eventuais compensações financeiras àqueles;
2. O atraso na operação foi devido aos serviços de assistência em escala, que se atrasaram no reabastecimento de combustível da aeronave, sendo que a aeronave estava junto dos serviços de assistência em escala para ser reabastecida pelas 22h10, apenas tendo sido dado início ao reabastecimento após 20 minutos, ou seja, pelas 23h30LT, operação que demorou mais 30 minutos, até cerca das 00:00LT, quando era expectável, por ser habitual, que a aeronave estivesse pronta em cerca de 5 a 10 minutos depois da sua chegada junto daqueles serviços para ser reabastecida;
3. Só a entidade gestora do Aeroporto Sá Carneiro tem capacidade logística para abastecer os aviões que lá aterram e descolam.
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III.3. O Direito.
O Direito das Contra-ordenações é um ramo do Direito Público situado entre o Direito Administrativo (que constitui a matriz do ilícito e de parte do processo de contra-ordenação) e o Direito Penal (do qual importa alguns princípios, regras de imputação e garantias de defesa), (Cf. Augusto Silva Dias, Direito das Contra-Ordenações, Fevereiro 2019, Almedina, pág. 41).
Embora a natureza do ilícito seja essencialmente administrativa, dado que assenta na tutela de interesses e na violação de deveres de ordem administrativa e a competência sancionatória caiba a autoridades administrativas, no âmbito de um processo administrativo especial, trata-se de uma modalidade de Direito punitivo cuja intervenção se traduz na restrição, por vezes gravosa, de direitos patrimoniais e de liberdades económicas.
Nessa medida, convoca a aplicação de princípios constitucionais e de outros do domínio penal – designadamente quanto aos elementos constitutivos da prática de tipos de ilícito contra-ordenacional, quer ainda quanto à própria tramitação perante os tribunais competentes para aferir da sua impugnação – ligação que explica que o Código Penal e o Código de Processo Penal possam funcionar como direito subsidiário (cf. os artigos 32º e 41º do Dec. Lei n.º 433/82, de 27.10).
Porém, importa não olvidar as especificidades do processo contra-ordenacional, que permitem, designadamente a concentração na mesma entidade dos poderes de regulação, investigação, acusação e sancionatório.
E em atenção a tais especificidades, o Tribunal Constitucional tem “reiteradamente afirmado a não aplicação direta e global aos processos contraordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal, desde logo, o principio da judicialização da instrução consagrado no n.º 4 do artigo 32º”, (Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional 73/2012, de 08 de fevereiro de 2012, proferido no processo n.º 733/10, acessível em www.tribunalconstitucional.pt).
Com efeito, no âmbito contra-ordenacional – dada a diferente natureza do ilícito de mera ordenação e a sua menor ressonância ética, comparativamente com o ilícito criminal – o peso do regime garantístico é menor, conforme já defendido pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente no Acórdão n.º 659/2006 (disponível no sítio da internet já referido), porquanto “a menor ressonância ética do ilícito contra-ordenacional subtrai-o às mais “rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal” (Maria Fernanda Palma e Paulo Otero, “Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social” in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol, XXXVII 2, 1996, pág. 564).
Sendo certo que apesar da introdução do actual n.º 10 do artigo 32.º da CRP – efectuada pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contra-ordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios, contra‑ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qual­quer outro, a norma do nº10 do artº32º da CRP tem um alcance limitado, tendo sido rejei­tada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as garan­tias do processo criminal” (artigo 32.º‑B do Projecto de Revisão Constitu­cional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assembleia da República, II Série‑RC, n.º 20, de 12 de Setembro de 1996, pp. 541‑544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997, pp. 3412 e 3466).
É óbvio que as garantias dos arguidos em processos sancionatórios não se limitam ao estatuído no nº10 do artº32º da CRP, mas é noutros preceitos constitucionais, que não no n.º 10 do artigo 32.º, que eles encontram esteio.
É o caso, desde logo, do direito de impugnação perante os tribunais das decisões sancionatórias em causa, direito que se funda, em geral, no artigo 20.º, n.º 1, e, especificamente para as decisões administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da CRP. E, entrados esses processos na “fase jurisdicional”, na sequência da impugnação perante os tribunais dessas decisões, gozam os mesmos das genéricas garantias constitucionais dos processos judiciais, quer directamente referidas naquele artigo 20.º (direito a decisão em prazo razoável e garantia de processo equitativo), quer dimanados do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da CRP).
Dentre os processos sancionatórios é o processo contra‑ordenacional um dos que mais se aproxima, atenta a natureza do ilícito em causa, do processo penal, embora a este não possa ser equiparado.
Constitui afirmação recorrente na jurisprudência do Tribunal Constitucional a da não aplicabilidade directa e global aos processos contra‑ordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal.
A diferença de “princípios jurídico‑constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e a legislação das contra‑ordenações” reflecte‑se no regime processual pró­prio de cada um desses ilícitos, não exigindo um automático paralelismo com os institutos e regimes próprios do processo penal.
Para além de que a reconhecida inexigibili­dade de estrita equiparação entre processo contra‑ordenacional e processo criminal é conciliável com “a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra‑ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conforma­ção mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo penal” (Cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 469/97 e 278/99).
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Não obstante ser difícil traçar uma fronteira absoluta entre a natureza das infracções criminais e contra-ordenacionais, a ponto de apenas se poder afirmar, indubitavelmente, que “constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima” (artigo 1.º, do Decreto-Lei n.º 433/82), tal não significa que o âmbito de liberdade do legislador ordinário, quanto à decisão de reprimir determinadas condutas com os mecanismos sancionatórios penais ou apenas intervir com sanções de carácter ordenativo, não seja constitucionalmente vinculado e dependente, no limite, duma distinção substantiva entre os dois ilícitos.
De acordo com Figueiredo Dias, “a ordem axiológica jurídico-constitucional constitui o quadro de referência e, simultaneamente, o critério regulativo e delimitativo do âmbito de uma aceitável e necessária actividade punitiva do Estado.”
Assim, só é legítima a intervenção do direito penal, quando se verifiquem os seguintes requisitos: estejam em causa condutas que “violem bens jurídicos claramente individualizáveis”; tais condutas não possam ser “suficientemente contrariadas ou controladas por meios não criminais”; exista uma reconhecível referência de tais bens jurídicos à ordem axiológica constitucional, quer por corresponderem a uma concretização de valores constitucionais ligados aos direitos, liberdades e garantias – como se verifica no âmbito do “direito penal clássico ou de justiça” – quer por se reportarem à concretização de valores constitucionais ligados aos direitos sociais e à organização económica – como se verifica, em regra, no caso do direito penal secundário.
Pelo direito penal já não deverão ser abrangidas “as condutas que, dada a sua neutralidade ético-social, não mais permitem uma referência à ordem axiológica constitucional; mas, se se entender que, apesar disso, elas devem ser contrariadas com sanções exclusivamente pecuniárias, de carácter ordenativo, é isso sinal seguro que estamos perante contra-ordenações, constitutivas de um ilícito de mera ordenação social.” (cfr. J. de Figueiredo Dias, “O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, “Jornadas de Direito Criminal”, C.E.J., 1983, p. 323.)
A autonomia do direito das contra-ordenações assentaria, desta forma, numa ideia de neutralidade ética da conduta que integra o ilícito, que apenas na associação com a proibição legal passaria a constituir um substrato idóneo de desvalor ético-social (J. Figueiredo Dias, op. cit. p. 327, 328).
Em certos casos, porém, o critério qualitativo de distinção é complementado por critérios quantitativos, reportados à gravidade da infracção, considerando-se que a ultrapassagem de determinado limiar de danosidade determinará a natureza da reacção do Estado: penal ou contra-ordenacional.
Vejamos, então, as questões que importa apreciar e decidir no presente recurso :
1ª Questão :
No caso dos autos, invoca a Recorrente que se verifica a nulidade do processo principal e apenso A, por omissão de apensação de processos e violação do disposto no artigo 19º do RGCO, nos termos do disposto no artigo 120º, nº2, alínea d) e artigo 122º do CPP ex vi artigo 41º, nº1, do RGCO.
Para tanto, apresenta os seguintes fundamentos :
D. Conforme reconhecido pelo Tribunal a quo na Sentença recorrida (cf. página 12), a ausência da legalmente devida apensação de processos constitui uma nulidade, por omissão de diligência essencial à descoberta da verdade, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP.
E. Argumentou o Tribunal a quo na Sentença recorrida que, por se ter operado, já em fase judicial, a requerida e legalmente devida apensação de processos, existiria uma inutilidade superveniente a esse respeito, contudo, no caso concreto, a omissão, por parte da autoridade administrativa, da apensação de processos sobre os quais recai a mesma factualidade, prejudicou a Recorrente.
F. Como consta de fls. 64 do processo principal n.º 295/24.4YUSTR, a ANAC separou processos de contraordenação que tinham por base o mesmo enquadramento factual, e aos quais deu enquadramentos jurídicos distintos, que acaso estivessem apensos (e deveriam estar), conduziriam à absolvição da Recorrente.
G. Ademais, em desrespeito do disposto na lei, a saber, no artigo 19.º, n.º 1 do RGCO (e tal como se encontra plasmado na página 63 da Sentença recorrida) foram aplicadas pela autoridade administrativa à Recorrente duas coimas separadas (uma de doze mil euros, outra de quatrocentos euros), em processos com a mesma factualidade – sendo que, num deles, como oportunamente se referiu acima, a Recorrente nem sequer teve oportunidade de ser ouvida e se defender.
H. Se a autoridade administrativa deveria ter aplicado à Recorrente uma coima única nos termos do artigo 19.º do RGCO (e não o fez), tendo a Recorrente sido confrontada com processos separados (e não tendo a Recorrente sequer tido oportunidade de se defender no apenso A), quando lhe deveria ter sido dada oportunidade de se defender de forma cabal e una sobre os dois processos com uma única coima, estamos perante uma evidente nulidade nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP, que não ficou sanada pela apensação dos processos em fase judicial: a Recorrente, em momento algum do processo contraordenacional, teve oportunidade de se defender sobre uma coima única aplicada pela autoridade administrativa, nos termos legalmente previstos no artigo 19.º do RGCO – e como sempre se imporia para o cabal exercício dos seus direitos de audição e defesa (cf. artigos 32.º, n.º 10 e 267.º, n.º 5 da CRP e 50.º do RGCO).
I. Ergo, reconhecendo e verificando o Tribunal a quo, na Sentença recorrida, a existência de uma nulidade nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP – que embora sanável, não foi sanada nos termos legalmente previstos no artigo 121.º, n.º 1 do CPP – errou o Tribunal a quo ao declarar a inutilidade superveniente da lide a esse respeito, em vez de declarar a respetiva nulidade, com os consequentes efeitos legais, nos termos do disposto no artigo 122.º do CPP.
Estando em causa a invocação de uma nulidade processual, importa, primeiramente, atentar a que a Recorrente foi condenada pela prática de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro (REGULAMENTO GERAL DO RUÍDO) e pela prática de uma contra-ordenação aeronáutica civil grave, prevista e punida pela al. c) do n.º 2 do artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 109/2008, de 26 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 96/2018, de 23 de Novembro.
Ora, compulsando o regime contra-ordenacional especialmente previsto nos artigos 26º a 30º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro, a Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto (Lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais), o regime contra-ordenacional especialmente previsto nos artigos 8º a 10º do Decreto-Lei n.º 109/2008, de 26 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 96/2018, de 23 de Novembro, bem como o regime aplicável às contra-ordenações aeronáuticas civis aprovado pelo DL nº10/2004, de 09 de Janeiro, constata-se que em nenhum de tais regimes especiais está prevista a apensação de processos.
Também no regime geral das contra-ordenações constante do DL nº433/82, de 27 de Outubro, (R.G.C.O.), que é aplicável em tudo o que não resulta especialmente previsto naqueles diplomas (cfr. quanto ao DL nº10/2004, o artigo 35º desse diploma), não se encontra qualquer norma prevendo expressamente a apensação de processos.
A norma invocada pela Recorrente, a esse propósito, é o artigo 19º com a epígrafe “concurso de contra-ordenações” do aludido DL nº433/82 :
“1-Quem tiver praticado várias contra-ordenações é punido com uma coima cujo limite máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infracções em concurso.
2 - A coima aplicável não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contra-ordenações em concurso.
3 - A coima a aplicar não pode ser inferior à mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contra-ordenações.”
A redacção de tal norma resultou da alteração introduzida pelo DL 244/95, de 14 de Setembro ao artigo 19º do DL nº433/82, constando do relatório do aludido DL 244/95, a esse propósito, “No sentido de garantir uma maior eficácia do sistema, são de sublinhar (…) ainda a fixação de um cúmulo jurídico das coimas, em caso de concurso de contra-ordenação, com equiparação entre concurso ideal e concurso real.
“A razão de ser desta equiparação entre concurso real e concurso ideal resulta da necessidade de punir mais gravemente quem pratica várias contra-ordenações do que quem pratica apenas uma contra-ordenação, pelo que acabou o sistema de absorção”, (Ac. STA, de 27/09/2000; www.dgsi.jsta.pt-Proc. nº025045).
Norma similar consta do artigo 27º da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto (Lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais) :
“1- Quem tiver praticado várias contraordenações é punido com uma coima cujo limite máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infrações em concurso.
2 - A coima a aplicar não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contraordenações em concurso.
3 - A coima a aplicar não pode ser inferior à mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contraordenações.”
O que necessariamente implica que a invocada norma contende com o concurso de contra-ordenações, mas não com a apensação de processos, cuja regulação se terá de buscar no CPP aplicável por força da remissão do artº.41, nº.1, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas.
Com efeito, nos artigos 24º a 31º do Código de Processo Penal prevê-se a competência por conexão, prevendo-se no artigo 29º a unidade e apensação dos processos.
Ora, nos termos do disposto no artigo 29º, nº2, do CPP (aplicável, como se referiu, ao processo contra-ordenacional, e consequentemente aos presentes autos) estatui-se inequivocamente que “se tiverem já sido instaurados processos distintos, logo que a conexão for reconhecida procede-se à apensação de todos àquele que respeitar ao crime determinante da competência por conexão”, o que, aplicado com as necessárias adaptações ao processo contra-ordenacional implica que se tiverem já sido instaurados processos distintos, logo que a conexão for reconhecida procede-se à apensação de todos àquele que respeitar à contra-ordenação determinante da competência por conexão”.
Deste modo, decorre claramente de tal norma que o facto de não se ter ordenado a apensação de todos os processos na fase administrativa, não impede que seja ordenada essa mesma apensação na fase judicial (cfr.artº.29, nº.2, do C.P.Penal e Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 4ª. edição, 2010, Áreas Editora, pág.395 e seg.).
E, conforme se começou por referir no relatório que antecede, foi o que sucedeu nos presentes autos tendo o Tribunal a quo, nos seus despachos proferidos em 19-02-2025 no processo nº 295/24.4YUSTR (cfr. Refª 511827) e em 20-02-2025 no processo nº292/24.0YUSTR (cfr. Refª 511796) declarado a existência de conexão entre o processo nº295/24.4YUSTR e o processo n.º 292/24.0YUSTR ( ambos J3) e, em consequência, foi determinada a apensação do processo nº292/24.0YUSTR ao processo nº295/24.4YUSTR, passando os aludidos autos nº292/24.0YUSTR a ser tramitados (como apenso A) nesse processo nº295/24.4YUSTR.
E fê-lo em cumprimento do disposto no aludido artº.29, nº.2, do C.P.Penal nos termos do qual tendo já sido instaurados processos distintos, logo que a conexão foi reconhecida foi determinada a apensação de todos àquele que respeitar à contra-ordenação determinante da competência por conexão.
Revertendo ao caso dos autos, deve concluir-se que nos encontramos perante um concurso ideal de contra-ordenações (cfr.artº.19, do R.G.C.O.), visto que a circunstância de estarmos perante os mesmos factos não impede que se considere que eles consubstanciam a prática de mais do que uma contraordenação, caso em que ocorre um concurso ideal (e não real) de infracções.
Inexiste assim qualquer nulidade ou irregularidade, por o Tribunal "a quo" ter conhecido da questão da apensação dos processos de contra-ordenação supra identificados e determinado tal apensação logo que a conexão foi reconhecida, não resultando do aludido artº29º, nº2, do CPP aplicável ex vi do artigo 41º do R.C.C.O. qualquer obrigatoriedade que tal apensação tivesse sido determinada e ocorrido na fase administrativa, nem se estando perante qualquer acto legalmente obrigatório que não tenha sido cumprido na fase administrativa pela entidade administrativa.
E assim não se pode considerar que a ausência da apensação de processos constitui qualquer nulidade, por omissão de diligência essencial à descoberta da verdade, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP, conforme sustenta a Recorrente e é referido na sentença recorrida, discordando-se da mesma neste ponto.
Aliás, considerando-se, como se considerou na sentença recorrida, estar-se perante uma nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP sempre tal nulidade ter-se-ia de considerar como já sanada, por a aqui Recorrente, quando notificada para se pronunciar acerca da apensação dos processos que no tribunal “a quo” corriam contra si, ao invés de ter invocado a arguida nulidade, considerou que é uma obrigação legal proceder a essa apensação e, por isso não se opôs a tal apensação, (cfr. requerimento entrado em juízo em 13.02.2025 -ref.ª 91517), tendo logo de seguida sido decidida pelo tribunal a quo a apensação dos aludidos processos, (cfr. artigo 120º, nº3, al.c) do CPP).
Não se podendo considerar a esse propósito, salvo o devido respeito, ter ocorrido “uma inutilidade superveniente nessa parte da lide”, desde logo por se estar no âmbito de um processo sancionatório de natureza pública, em que prevalecem os princípios do inquisitório e do acusatório, ao invés do que se verifica num processo de natureza civil, destinado à tutela dos interesses individuais das partes e em que vigora o princípio do dispositivo, podendo, por isso, a lide tornar-se supervenientemente inútil para o autor.
Ou antes se sustentando, como faz o Ministério Público na sua resposta do recurso que “esse procedimento não constitui nulidade mas uma irregularidade (art. 118º, nºs 2, do CPP)”, entendimento que aqui também não se sufraga, sempre tal irregularidade se teria de ter igualmente por sanada com a decisão operada pelo tribunal a quo no sentido de ser realizada a apensação dos processos, (cfr. artigo 123º, nº2, do CPP).
Assim, inexistindo qualquer “nulidade por Omissão de Apensação de Processos” (sic) improcedem necessariamente as conclusões C. e D. a I. e o recurso nessa parte.
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2ª Questão :
Se se verifica a nulidade do processo (Apenso A) por violação do direito de audição e defesa da Recorrente (artigo 32º, nº10, da CRP e artigo 50º do RGCO), nos termos do disposto no artigo 119º, alínea c) e 122º do CPP ex vi artigo 41º do RGCO.
Nesse sentido, invoca a Recorrente no recurso sub judice:
“b. Da Violação do Direito de Audição e Defesa da Recorrente / Nulidade do Apenso A (Processo n.º 295/24.4YUSTR-A)
J. Estabelece o artigo 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa (doravante, “CRP”) que “Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”, e o artigo 50.º do RGCO que “Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”.
K. Refere o Tribunal a quo que o Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre o disposto no referido artigo 50.º do RGCO, no ano de 2003 (Assento n.º 1/2003, publicado no DR-I-A de 25-01-2023); contudo, a jurisprudência aí fixada tem por base uma factualidade que em nada se assemelha à dos presentes autos, conforme doutamente expendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-06-2016, processo n.º 42/15.1TNLSB.L1-A.S2, de 16-06-2016:
IV — A jurisprudência fixada parte do pressuposto de que o arguido foi notificado, e vem afirmar de forma clara e expressa que este deve, no prazo de 10 dias, arguir a nulidade sob pena de sanação.
Ora, não só no caso dos autos o arguido invocou (...) uma nulidade (...), como a nulidade que invocou foi a de omissão de notificação e não notificação omissa relativamente a certos elementos pertinentes.
V — (...) Do já exposto, podemos concluir que no “assento” o Supremo Tribunal de Justiça decidiu tendo por base uma factualidade distinta da referida nos presentes autos, pelo que não podemos concluir sem mais haver uma decisão contra jurisprudência fixada. Até porque a jurisprudência fixada não se aplica aos presentes autos.
VI — Ainda que o Supremo Tribunal de Justiça se tenha referido aos casos de impugnação judicial da omissão de notificação, a jurisprudência fixada é sobre a notificação omissa (não sobre a omissão de notificação), pelo que não sendo o caso subjacente a estes autos não podemos concluir por uma identidade da situação de facto a legitimar a aplicação daquele “assento” n.º 1/2003.”.
L. De acordo com o Tribunal a quo, estribando-se na fundamentação do referido Assento n.º1/2003, haveria que distinguir entre duas situações: por um lado, caso a impugnação da Recorrente se limitasse a arguir a nulidade decorrente da omissão absoluta do cumprimento do disposto na lei (artigo 50.º do RGCO), deveria o Tribunal invalidar a instrução (in casu, a partir da notificação omissa, e também, por dela depender e a afetar, a subsequente decisão administrativa, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 120.º, n.º 2, alínea d) e n.º 3, alínea c) e 41.º, n.º 1 do RGCO; por outro lado, caso a impugnação da Recorrente se prevalecesse “do direito preterido (pronunciando-se sobre as questões objecto do procedimento, abarcando aspectos de facto ou de direito omissos e, sendo caso disso, requerendo diligências complementares e juntando documentos)”, a nulidade teria de se considerar sanada, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 121.º, n.º 1, alínea c) do CPP e 41.º, n.º 1 do RGCO.
M. A jurisprudência fixada pelo Assento n.º 1/2003, em que o Tribunal a quo se estribou para afastar a declaração de nulidade, não se aplica aos presentes autos, porquanto versa sobre a notificação omissa (não sobre a omissão de notificação), sendo igualmente inaplicável a sua fundamentação, conforme sublimemente expendido no mui douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04-02-2016, Processo n.º 42/15.1TNLSB.L1-9: “A questão em discussão nos autos diz respeito à fase administrativa do processo de contra-ordenação, na qual foi omissa a notificação ao arguido da sua própria constituição como tal e a possibilidade legal de defesa. Dito de outra maneira, constitui nulidade sanável pela intervenção posterior do arguido na fase de impugnação judicial, a sua não notificação na fase administrativa do processo para deduzir a sua defesa?
A resposta só pode ser negativa.
O que está em causa é a total ausência do direito de defesa na fase preliminar do processo tal como impõe o artigo 50º do RGCO e os artigos 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 267º, nº 5, em matéria administrativa.
É verdade que o processo contra-ordenacional não é, nos seus exactos termos, um processo criminal tal como tem vindo a entender o Tribunal Constitucional em variados arestos, mas nunca na perspectiva de omissão total da possibilidade do exercício do direito de defesa, núcleo essencial do direito criminal e contra-ordenacional. (...)
Os Juízes Conselheiros Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa consideram que a omissão do artigo 50º do RGCO por parte da entidade administrativa e a consequente “Não concessão ao arguido da possibilidade de ser ouvido sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre parece dever considerar-se uma nulidade insanável, enquadrável na alínea c) do nº1 do artº. 119.
Com efeito, embora nesta norma se preveja como nulidade insanável a ausência do arguido ou seu defensor quando a lei exigir a respectiva comparência, o objectivo evidente desta obrigatoriedade de comparência é a concessão ao arguido da possibilidade de exercer os seus direitos de defesa que a lei e a CRP impõem que lhe seja concedida e, por isso, esta norma deve ser interpretada extensivamente como visando todas as situações em que não foi concedida ao arguido, antes de lhe ser aplicada uma sanção, possibilidade de exercer direitos de defesa que obrigatoriamente lhe deve ser proporcionada”. (...)
Parece-nos que a tese da nulidade insanável é aquela que melhor se adequa à matriz do nosso direito processual penal e contra-ordenacional e às teses sufragadas pela jurisprudência constitucional referidas anteriormente.
Aliás, o próprio legislador, em matéria tributária, consagrou o regime da nulidade insanável ao estatuir no artigo 63º, nº 1 al. c) do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) ao considerar nulidade insuprível a “(…) falta de notificação do despacho para audição e apresentação de defesa”.
A consagração legislativa da nulidade insanável em matéria tributária e inexistindo qualquer justificação plausível para tratar diferentemente as demais situações contra-ordenacionais, não vemos como se possa argumentar, como faz Pinto de Albuquerque, que a consagração da excepção, confirma a regra. A regra é a possibilidade do direito de defesa tal como resulta do texto constitucional em matéria criminal extensiva à matéria contra-ordenacional. Esta sim é a regra e a matriz de qualquer processo justo e equitativo.
Um processo justo e equitativo em matéria contra-ordenacional não se compadece com supressão de direitos aos arguidos, em virtude de actuações menos diligentes das autoridades administrativas.
Em resumo e pelas razões referidas, consideramos que o não cumprimento do artigo 50º do RGCO por parte da entidade administrativa conduz a uma nulidade insanável.
A nulidade do acto implica que o mesmo é inválido, tal como todos aqueles que estejam na dependência funcional ou seja com todos aqueles que exista nexo funcional, o que nos reconduz à própria notificação omissa e à decisão da autoridade administrativa (artigo 122º do Código de Processo Penal).” (ênfase nosso).
N. No mesmo sentido, veja-se também o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 99/2009, Processo n.º 11/CPP, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 537/2011, de 15-11-2011, Processo n.º 394/11 e ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02-05-2023, Processo n.º 384/22.0T8PRG.G1: “Assim, faz todo o sentido a jurisprudência que entende que a falta de notificação nos termos do artº 50º RGCO traduz uma nulidade insanável equivalente à prevista no artº 119º al. c) do CPP. (...) Em resumo e pelas razões referidas, consideramos que o não cumprimento do artigo 50º do RGCO por parte da entidade administrativa conduz a uma nulidade insanável.
Por outro lado, enquanto que um arguido, no âmbito de um processo penal, tem de o ser constituído, o que implica um termo próprio e prestação de TIR, bem como a leitura dos seus direitos nos termos do artº 61º do CPP, sendo, assim, a forma como é chamado pela primeira vez a um processo que lhe diz respeito, no âmbito de um processo contraordenacional a única forma de chamar o arguido ao processo é pela notificação prevista no artº 50º do RGCO o que significa que, para todos os efeitos, a notificação do artº 50º RGCO equivale a uma citação (...)
Essa irregularidade faz com que a notificação em causa não possa ser considerada válida e legal pelo que estamos perante uma falta de notificação para todos os efeitos legais o que gera uma nulidade insanável.
Consequentemente, ter-se-á que anular todo o processado contra-ordenacional a partir, inclusive, da notificação efectuada nos termos do artº 50º RGCO devendo esta notificação ser repetida com respeito pela legalidade do acto (...)” (sublinhado nosso).
O. Com efeito, o incumprimento da lei (in casu, do artigo 50.º do RGCO) por parte da autoridade administrativa não deverá operar como uma forma de suprimir ou coartar o pleno exercício do direito de audição e defesa da Recorrente, num processo que, logo à partida, se encontra insanavelmente ferido na sua justiça e no núcleo essencial do direito contra-ordenacional, através da violação desse mesmo direito de audição e defesa constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa.
P. Em suma, o manifesto e indiscutível incumprimento do disposto nos artigos 50.º do RGCO e 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa por parte da autoridade administrativa constitui uma nulidade insanável, enquadrável na alínea c) do artigo 119.º do CPP, ex vi artigo 41.º do RGCO, pelo que deveria o Tribunal a quo ter declarado tal nulidade insanável, com os efeitos legalmente previstos – invalidade da notificação omitida e da decisão da autoridade administrativa, nos termos do disposto no artigo 122.º CPP, ex vi artigo 41.º do RGCO.”
Na presente questão a Recorrente apenas invoca a nulidade do processo do Apenso A), (nada invocando, portanto, a esse propósito relativamente aos autos principais), no qual, como já se referiu, a Recorrente foi condenada pela prática de uma contra-ordenação aeronáutica civil grave, prevista e punida pela al. c) do n.º 2 do artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 109/2008, de 26 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 96/2018, de 23 de Novembro.
Ora, estando em causa a imputação à Recorrente da prática de uma contra-ordenação aeronáutica civil, necessariamente que o regime aplicável a tal contra-ordenação é desde logo o regime aplicável às contra-ordenações aeronáuticas civis aprovado pelo DL nº10/2004, de 09 de Janeiro, apenas sendo aplicável o RGCO “em tudo o que não for expressamente regulado” naquele diploma (cfr. artº35º do aludido DL nº 10/2004).
E a propósito do direito de audição e defesa da Recorrente lex specialis habemus, pois o artigo 26º do aludido DL nº10/2004, cuja epígrafe é a de “notificações” estatui que :
“1-As notificações em processo de contra-ordenação são feitas por carta registada com aviso de recepção, dirigida para a sede ou para o domicílio dos destinatários e dos seus mandatários judiciais, ou pessoalmente, se necessário, através das autoridades policiais.
2- A notificação ao arguido do acto processual que lhe impute a prática de contra-ordenação, bem como da decisão que lhe aplique coima, sanção acessória ou alguma medida cautelar, é feita nos termos do número anterior ou, quando o arguido não seja encontrado ou se recuse a receber a notificação, por anúncio publicado num dos jornais da localidade da sua sede ou da última residência conhecida no País ou, no caso de aí não haver jornal ou de o arguido não ter sede ou residência no País, num dos jornais diários de Lisboa.”
Ora, compulsado o processo de contra-ordenação nº 292/24.0YUSTR, que constitui o actual apenso A) destes autos, (Refª 475309) verifica-se que :
- às 11h46 mn do dia 23 de Abril de 2021 AA, em nome de BB, Diretora da Direcção da Regulação Económica da Autoridade Nacional da Aviação Civil enviou um e-mail para ...; ..., com a REfª 1351-2021/VCA(DRE/DRT, com tradução em inglês, com o seguinte teor :





- às 12h40mn desse mesmo dia 23 de Abril de 2021 CC , flight operations director, ... enviou um e-mail de resposta em inglês para AA, indicando a referência 1351-2021/VCA/DRE/DRT e com o seguinte teor :

-Em 18/02/2022 a ANAC notificou a Fleet Air International por carta registada com AR enviada nesse mesmo dia nos seguintes termos :








- Na sequência de tal notificação, CC , flight operations director, ... em nome da Recorrente respondeu em inglês nos termos do e-mail que se segue, indicando a mesma Refª 1351-2021/VCA/DRE/DRT :


-Em 24/07/2024 a ANAC remeteu ao Ilustre Mandatário da Recorrente a seguinte notificação :

-Tendo nesse mesmo dia sido enviada a seguinte notificação em inglês à Recorrente :


Mais tendo sido enviado, por attachment, a deliberação do Conselho de Administração da ANAC de 04 de Julho de 2024 (Proc. CO 664/2021), em português e na seguinte versão em língua inglesa :










- Tendo o Ilustre Mandatário da Recorrente sido notificado por carta registada com AR :


- E a Recorrente sido notificada por carta registada com AR :


- Tendo na sequência a Recorrente interposto impugnação judicial para o Tribunal a quo, da decisão proferida pelo Conselho de Administração da Autoridade Nacional de Aviação Civil no âmbito do processo de contra-ordenação nº 664/2021, através da qual foi aplicada à Recorrente a coima de €400, (quatrocentos euros).
Deste modo, constata-se que em bom rigor a entidade administrativa deu cumprimento ao disposto no artigo 26º do aludido DL nº10/2004, ao ter enviado “carta registada com aviso de recepção, dirigida para a sede ou para o domicílio dos destinatários” com vista à “notificação ao arguido do acto processual que lhe impute a prática de contra-ordenação.”
Porém, como pertinentemente se sublinha na decisão recorrida, “(…) se resulta de fls. 26 dos autos que a ANAC registou em 18.02.2022 a carta que visava dar cumprimento ao disposto no artigo 50.º do RGCO, enviando-a com aviso de recepção, porém, não consta dos autos qualquer aviso de recepção assinado pela Recorrente ou por alguém em seu nome, por respeito ao registo que estava em causa com o n.º de objecto RH779304725PT.”
Pelo que, contrariamente ao sustentado pela Recorrente, não se está perante uma omissão de notificação, mas antes perante uma notificação omissa à luz do disposto no artigo 26º do DL nº10/2004.
Tanto mais que não consta minimamente dos autos que a carta registada remetida tenha vindo devolvida e não tenha sido entregue.
Falta é o AR comprovativo de tal entrega à Recorrente.
Pese embora, acrescentamos, já se mostrar devolvido e junto aos autos o AR devidamente assinado da carta registada de notificação da decisão final também remetida à Recorrente, apesar de as duas notificações terem sido remetidas para a mesma morada, o que indicia que a falta de AR da primeira das referidas cartas não se terá ficado a dever aos correios húngaros.
Acrescentando-se ainda na decisão recorrida :
“É certo que consta dos autos um email de 02.03.2022, da Recorrente a informar que havia recebido uma carta da ANAC (vide fls. 27 verso). Porém, a carta que foi recebida nada tinha que ver com o processo a que dizia respeito o apenso A, mas antes com o processo que dizia respeito aos autos principais, devendo o email constar do apenso A certamente por lapso da ANAC (…).
Veja-se que o registo da carta para efeitos de cumprimento do disposto no artigo 50.º do RGCO foi feito em ambos os processos em 18.02.2022 (vide fls. 26 do apenso A e fls. 26 do processo principal).
Na verdade, como se pode ler do referido email de fls. 27 verso, a resposta da Arguida dizia respeito à referência 262/DJU/2022 – processo 665/2021/DJU. Esse processo corresponde ao processo principal e não ao apenso A.”
Seja como for, e conforme se refere na decisão recorrida, que nessa parte se acompanha, “em face do que se mostra provado e não provado, temos de concluir que, por respeito ao apenso A, a ANAC não deu cumprimento ao disposto no artigo 50.º do RGCO, o que implica que estejamos perante uma nulidade sanável, segundo a fundamentação constante do acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 1/2003, publicado no DR-I-A, de 25-01-03, rectificado pela Declaração de Rectificação n° 122 70/2008, de 26/11, a qual acompanhamos.
De acordo com o mesmo, “a omissão dessa notificação incutirá à decisão administrativa condenatória, se judicialmente impugnada e assim volvida «acusação», o vício formal de nulidade (sanável), arguível, pelo «acusado», no acto da impugnação [artigos 120.º, n.os 1, 2, alínea d), e 3, alínea c), e 41.º, n.º 1, do 127 regime geral das contra-ordenações]”.
Porém, o mesmo acórdão também explica o seguinte sobre a situação de omissão do cumprimento do disposto no artigo 50.º do RGCO: “Se a impugnação se limitar a arguir a invalidade, o tribunal invalidará a instrução, a partir da notificação omissa, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [artigos 121.º, n.os 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código 133 de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações]. Mas, se a impugnação se prevalecer do direito preterido (pronunciando-se sobre as questões objecto do procedimento e, sendo caso disso, requerendo diligências complementares e juntando documentos), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações].”
“Nesse mesmo acórdão é ainda referido o seguinte:
“(…) a eventual preterição, no decurso da instrução contra-ordenacional, do «direito (processual) de audição» (…) haveria de ficar «sanada» (…) – por força do disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal - se o arguido viesse a prevalecer-se, na impugnação judicial da «acusação» administrativa, do direito (de defesa) «a cujo exercício o acto anulável se dirigia». (…) Com efeito, não faria sentido (…) anular a «acusação» (a não ser que a impugnação se limitasse a arguir a correspondente nulidade) se o «participante processual interessado» aproveitasse a impugnação (da «decisão administrativa» assim volvida «acusação») para exercer - dele enfim se prevalecendo - o preterido direito de defesa, em ordem (cf. artigo 286.º, n.º 1) à «comprovação judicial» (negativa) (…) da «decisão de deduzir acusação». (…).
Com essa excepção (sanação do vício por os participantes processuais se terem prevalecido da faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia), «o legislador procura evitar a anulação do processado por motivos de mera forma, contribuindo para a construção de um sistema menos formalista e mais preocupado com a justiça material. Se o acto, apesar de imperfeito, cumpriu os objectivos para os quais foi pensado pelo legislador [...], não se justifica a sua repetição»”.
Ora, a Recorrente não se limitou a arguir a nulidade que foi efectivamente cometida pela ANAC.
A Recorrente esgrimiu a sua posição nos autos, explicando a sua tese factual e normativa, nesta fase judicial.
Nesta medida, a nulidade que foi cometida pela ANAC mostra-se sanada, em conformidade com o acórdão supra citado.
Efectivamente, extrai-se do dito acórdão, a necessidade de se proceder à distinção das seguintes situações:
- Se a Recorrente se limitar a arguir a nulidade, deve o tribunal invalidar a instrução;
- Se a impugnação se prevalecer do direito preterido (pronunciando-se sobre as questões objecto do procedimento, abarcando aspectos de facto ou de direito omissos e, sendo caso disso, requerendo diligências complementares e juntando documentos), a nulidade ter-se-á de considerar sanada [artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra- ordenações].
Ora, no vertente caso, reforçamos, a Arguida não se limitou a arguir a nulidade.
Por tudo o que foi exposto, deve considerar-se a nulidade cometida sanada, improcedendo, por isso, nesta parte, a pretensão da Recorrente.”
Na verdade, a menor ressonância ética do ilícito contra-ordenacional subtrai-o às mais ‘rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal’ (Maria Fernanda Palma e Paulo Otero, ‘Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social’ in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol, XXXVII 2, 1996, pág. 564), o que não deixa de se reflectir no âmbito do contraditório.
Uma vez que a impugnação judicial da decisão administrativa não se limitou a arguir a nulidade, tendo-se o impugnante prevalecido na impugnação judicial do direito preterido – tendo abarcando na sua defesa os aspetos de facto ou de direito presentes na decisão/acusação – a nulidade encontra-se sanada, em conformidade com o disposto nos artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do CPP e 41.º, n.º 1, do RGCO.
Nesta conformidade, pese embora se considere ter-se verificado a nulidade decorrente da violação do direito de audição previsto no artigo 50º do RGCO arguida pelo recorrente, improcede o recurso nesta parte no que diz respeito à consequência processual a extrair de tal verificação, uma vez que tal nulidade deverá considerar-se sanada por força do Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2003 de 16.10.2002, o que se decide.
Assim, inexistindo qualquer nulidade, que não se mostre já sanada, por violação do direito de Audição e defesa da Recorrente no Apenso A (Processo n.º 295/24.4YUSTR-A) improcedem necessariamente as conclusões J. a P. e o recurso nessa parte.
*
3ª Questão :
Se se verifica a nulidade do processo (Apenso A) por violação do direito de audição e defesa da Recorrente (artigo 32º, nº10 da CRP e artigo 50º do RGCO) nos termos do disposto no artigo 120º, nº2, alínea d) e 122º do CPP ex vi artigo 41º, nº1, do RGCO
Para tanto, invoca a Recorrente :
Q. A Recorrente não se prevaleceu de faculdade a cujo exercício o ato anulável se dirigia, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea c) do CPP, como ficciona o Tribunal a quo.
R. Com efeito, a tese de que a Recorrente “sanou” a total preterição, por parte da autoridade administrativa, das normas que asseguram à Recorrente os seus direitos constitucionalmente consagrados de audição e defesa, é errónea e não pode vingar, porquanto a Recorrente foi efetivamente confrontada com uma decisão (surpresa) da autoridade administrativa, condenando-a numa coima e no pagamento de duas unidades de conta, com base nas seguintes diligências instrutórias (cf. fls. 41 do processo apenso n.º 295/24.4YUSTR-A):

S. Face a esta verdadeira decisão surpresa, e confrontada pela primeira vez com o processo, a Recorrente teve o duplo cuidado de, no seu recurso de impugnação judicial (cf. fls. 60 a 63 do processo apenso n.º 295/24.4YUSTR-A), deixar explícito que no processo não lhe havia sido permitido sequer apresentar provas ou requerer a realização de diligências complementares e, bem assim, de requerer a declaração da indiscutível nulidade do processo, por força do incumprimento do disposto no artigo 32.º, n.º 10 da CRP e do artigo 50.º do RGCO.
T. Ergo, contrariamente ao ficcionado pelo Tribunal a quo, a Recorrente não se fez prevalecer da faculdade de exercer plena e eficazmente o seu direito de audição e defesa constitucionalmente consagrado, pois que não teve sequer oportunidade de ser ouvida e de se defender durante a fase administrativa do processo, em violação dos artigos 32.º, n.º10 e 267.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, bem como do artigo 50.º do RGCO.
U. Como decorrência lógica, e tal como reconhecido pelo próprio Tribunal a quo (cf. página 25 da Sentença ora recorrida) a Recorrente não só não arrolou qualquer prova testemunhal nem requereu qualquer diligência complementar – pois nunca foi notificada para o fazer nos termos legalmente exigidos – como os únicos documentos que juntou ao seu recurso, já em fase judicial, se relacionavam com a peticionada declaração de nulidade.
V. Com efeito, o que foi peticionado pela Recorrente ao Tribunal a quo, sem qualquer putativa defesa, foi a declaração da nulidade do processo com os devidos efeitos legais, pelo que, reconhecendo o Tribunal a quo a existência de tal nulidade, deveria o mesmo ter decidido, no caso concreto, pela falta de efetiva sanação da mesma pela Recorrente, declarando a referida nulidade (mesmo que a considerasse sanável) com os consequentes efeitos legais, conforme legal e tempestivamente requerido pela Recorrente, nos termos do disposto nos artigos 120.º, n.º 2, alínea d) e 122.º do CPP, ex vi artigo 41.º, n.º 1 do RGCO.
W. Não o tendo feito, manchou a Sentença recorrida de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP.
Mais uma vez, a nulidade arguida pela Recorrente diz apenas respeito ao apenso A), em nada contendendo com os autos principais.
Para tanto, invoca, em síntese, a Recorrente que não se prevaleceu de faculdade a cujo exercício o ato anulável se dirigia, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea c) do CPP, pois no processo não lhe havia sido permitido sequer apresentar provas ou requerer a realização de diligências complementares.
Porém, compulsado o seu articulado de impugnação judicial da decisão administrativa do apenso A) constata-se que a Recorrente apenas se limitou a juntar 3 documentos, não tendo oferecido nem sequer requerido a produção de mais nenhum meio de prova, mormente testemunhal ou depoimental, nem requereu a realização de quaisquer diligências complementares.
Mas tal sibi imputet, tanto mais que a Recorrente nem sequer se opôs à prolação de decisão por mero despacho, não tendo pugnado pela realização da audiência de julgamento a que tinha direito.
Pelo que se a Recorrente não arrolou qualquer prova testemunhal nem requereu qualquer diligência probatória complementar, apenas a si é devido, pois nada impedia que na sua impugnação judicial tivesse arrolado prova testemunhal ou requerido as diligências complementares que tivesse por convenientes e necessárias, oferecendo prova testemunhal, requerendo a prestação de declarações pelos seus representantes, desde que, como é óbvio se opusesse (o que também não fez) à decisão por mero despacho, assegurando desse modo a realização da audiência de julgamento.
Mas tal apenas à própria Recorrente é imputável, não comportando essa sua omissão probatória qualquer nulidade, mas antes uma mera opção de defesa processual.
The last but not the least, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP “é nula a sentença” “que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º”
Tendo a causa de nulidade da sentença invocada apenas a ver com o âmbito fáctico da sentença de condenação, não é causa de uma tal nulidade a não declaração de uma nulidade na sentença, que a parte entende que deveria ser de declarar, reportando-se tal questão apenas a matéria de direito e não aos factos com base nos quais foi proferida a sentença condenatória.
E assim também não enferma a Sentença recorrida de nulidade por omissão de pronúncia.
Assim, inexistindo a invocada nulidade também improcedem necessariamente as conclusões Q. a W. e o recurso nessa parte.
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4ª Questão :
Se a sentença recorrida enferma de nulidade por excesso de pronúncia, na parte em que conheceu de pedidos subsidiários para se pronunciar sobre o pedido principal (no processo apenso A), nos termos do disposto no artigo 379º, nº1, alínea c) do CPP ex vi do artigo 41º, nº1, do RGCO.
A este propósito, formulou a Recorrente as seguintes conclusões :
X. Salvo o devido respeito, que é muito, o que foi peticionado ao Tribunal a quo, sem qualquer putativa defesa, foi a declaração da nulidade do processo com os devidos efeitos legais, e apenas e só após tal pedido, subsidiariamente, à cautela e por mero dever de patrocínio, caso assim não entendesse o Tribunal a quo, foram efetuados outros pedidos subsidiários (cf. fls. 99 e 100 do processo apenso n.º 295/24.4YUSTR-A).
Y. Também aqui errou o Tribunal a quo ao conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento, dado o manifesto carácter subsidiário dos pedidos formulados pela Recorrente, manchando assim de nulidade a sentença, por excesso de pronúncia, nos termos previstos no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP, ex vi artigo 41.º do RGCO.
Z. Com efeito, o Tribunal a quo nunca teria (nem deveria ter) conhecido das demais questões (e pedidos), de caráter subsidiário, ao reconhecer primeiramente que existia (e existe) efetivamente uma nulidade processual (insanável ou não sanada); contrariamente, optou por usar as demais questões e pedidos subsidiários para ficcionar a sanação da reconhecida nulidade, em prejuízo da Recorrente e em clara violação da lei – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-06-2017, Processo n.º 825/15.2T8LRA.C1.S1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23-06-2009, Processo n.º 4957/04.4TBCSC.L1-1.
AA. Conforme dispõe o artigo 608.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigos 4.º do CPP e 41.º do RGCO, a sentença deve conhecer ”em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica”, e deve o juiz resolver as questões que “as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” (sublinhado nosso).
BB. Assim, por precedência lógica, e dado o caráter subsidiário dos pedidos da Recorrente, deveria o Tribunal a quo ter declarado a nulidade peticionada pela Recorrente com os consequentes efeitos legais; não o tendo feito, manchou a sentença de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP ex vi artigo 41.º do RGCO, nulidade essa que deve ser declarada com os consequentes efeitos legais.
As questões a resolver numa sentença ou decisão judicial proferida na sequência de uma impugnação judicial de uma decisão administrativa resultam do disposto nos artigos 64º e 73º do RGCO.
Assim, a sentença ou o despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação, (cfr. artº64º, nº3 do RGCO).
A sentença ou o despacho podem também rejeitar a impugnação judicial , (cfr. artº73º, nº1, al.d) do RGCO).
Em caso de manutenção ou alteração da condenação deve o juiz fundamentar a sua decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção, (cfr. artº64º, nº4 e artº73º, nº1, al.a), ambos do RGCO).
A condenação do arguido pode abranger sanções acessórias, (cfr. artº73º, nº1, al.b) do RGCO).
Em caso de absolvição deverá o juiz indicar porque não considera provados os factos ou porque não constituem uma contra-ordenação, (cfr. artº64º, nº5 do RGCO).
No mais, rege o disposto no artigo 374º do CPP ex vi do artº41º do RGCO.
Já o estatuído no artigo 608º do CPC não é aplicável ao processo contra-ordenacional, desde logo, por decorrer claramente do artigo 41º do RGCO que o direito subsidiário do regime geral das contra-ordenações são os preceitos reguladores do processo criminal, para além da aludida norma não se harmonizar com o processo contra-ordenacional.
Do mesmo modo, não é aplicável ao processo contra-ordenacional o estatuído no artigo 554º do CPC, não se podendo aí falar em pedidos, e muito menos em pedidos principais e subsidiários, desde logo por não se estar perante um processo de partes como o processo civil, mas em face de um processo sancionatório de natureza pública, em que está em causa a tutela de interesses protegidos ou de fins visados por normas de natureza pública ou comunitária mediante a aplicação de sanções principais (coimas) e acessórias a comportamentos que se considerem legalmente tratar-se de ilícitos contra-ordenacionais.
Acresce que tendo sido arguida uma nulidade insanável pela aqui Recorrente perante o tribunal a quo este pode considerar antes verificar-se uma nulidade sanável, e já sanada, tratando-se de questão de que podia tomar conhecimento, não enfermando, por isso, a sentença da nulidade prevista no artigo 379º, nº1, al.c) do CPP ex vi artigo 41.º do RGCO.
Assim, tendo a decisão recorrida alterado a condenação da arguida, contendo os fundamentos para essa decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção, tendo operado o cúmulo jurídico das sanções e suspendido parcialmente a execução da coima única, abrangendo a condenação da arguida sanções acessórias para além de na decisão recorrida terem sido apreciadas e decididas todas as excepções e nulidades suscitadas pela Recorrente, considerando como sanadas nulidades arguidas que o tribunal qualificou como nulidades sanáveis e tendo observado o disposto no Regulamento das Custas Processuais em matéria de custas, a decisão recorrida não conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, não enfermando, por isso, da nulidade prevista no artigo 379º, nº1, al.c) do CPP ex vi artigo 41.º do RGCO.
Assim, inexistindo a invocada nulidade também improcedem necessariamente as conclusões X. a BB. e o recurso nessa parte.
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5ª Questão :
Se a Recorrente deve ser absolvida quanto à contraordenação ambiental que lhe é imputada (artigos 28º, nº2, alínea g), 20º, nº3 e artigos 1º e 2º da Portaria nº831/2007).
No sentido da por si pugnada absolvição, invoca a Recorrente :
CC. A prática da contraordenação ambiental prevista no artigo 28.º, n.º 2, alínea g) do Regulamento Geral do Ruído pressupõe a existência de uma violação das condições de funcionamento da infra-estrutura de transporte aéreo fixadas nos termos do artigo 20.º, n.º 3 do mesmo Regulamento, isto é, de acordo com os elementos fixados pela Portaria n.º831/2007, em função dos resultados do sistema de monitorização e de simulação de ruído:
(i) o número máximo de aterragens e descolagens permitido na infra-estrutura de transporte aéreo entre as 0 e as 6 horas; (ii) a identificação das aeronaves abrangidas em função do nível de classificação sonora.
DD. Decorre da Sentença recorrida que em momento algum se alegou ou provou qualquer ultrapassagem/violação do número máximo de aterragens e descolagens permitido no Aeroporto Francisco Sá Carneiro entre as 0 e as 6 horas e que a aeronave da Recorrente não se encontra abrangida por quaisquer restrições relacionadas com o ruído que emite: a aeronave da Recorrente é uma aeronave de transporte de carga com o nível 0 de classificação sonora.
EE. A Portaria n.º 831/2007 fixa condições de funcionamento do Aeroporto Francisco Sá Carneiro em função dos resultados do sistema de monitorização e de simulação de ruído, ergo, a existência de restrições operacionais em período noturno no Aeroporto Francisco Sá Carneiro está intrinsecamente ligada à verificação e prevenção/limitação de certos níveis de ruído, pois só assim se justificará a existência de restrições à aterragem ou descolagem de aeronaves durante o período noturno (entre as 0 e as 6 horas), seja na sua vertente de número máximo de movimentos aéreos permitidos, seja na sua vertente de aeronaves abrangidas pelas restrições em virtude da sua classificação sonora.
FF. A razão de ser dos artigo 28.º, n.º 2, alínea g) e 20.º, n.º 3, ambos do Regulamento Geral do Ruído, prende-se com a necessidade de tutelar um bem jurídico concreto (descanso e saúde, cf. artigo 1.º do Regulamento Geral do Ruído), tal como bem refere o Tribunal a quo na Sentença recorrida: “Na verdade, estão em causa bens jurídicos distintos. O caso que trata estes autos principais tem que ver directamente com o ruído no aeroporto, pretendendo-se acautelar essencialmente um nível de qualidade de vida das populações que podem ser afectadas por esse ruido, especialmente à noite, que é o período normal de descanso de pessoas e animais. Já a violação dos slots tem sobretudo em vista uma boa gestão dos recursos de um aeroporto coordenado.” (...)
Já através do sancionamento da violação da restrição de operações em período nocturno, procura acautelar-se essencialmente a saúde e o descanso dos habitantes afectados, de modo significativo, pelo ruído das aeronaves.” – cf. páginas 40 e 48 da Sentença ora recorrida (sublinhado nosso).
GG. Ora, e salvo o devido respeito pela interpretação do Tribunal a quo, entende a Recorrente que tal interpretação acaba por perder de vista o bem jurídico que a lei pretende proteger e a própria ratio dos artigos 28.º, n.º 2, alínea g) e 20.º, n.º 3 do Regulamento Geral do Ruído e, bem assim, da Portaria n.º 831/2007, ao condenar a Recorrente numa coima de €12.000,00 (doze mil euros), por alegada violação do artigo 28.º, n.º 2, alínea g) do Regulamento Geral do Ruído.
HH. Conforme se esclarece no preâmbulo da Portaria n.º 831/2007: “O n.º 2 do artigo 20.º do Regulamento Geral do Ruído (...) determina que, por portaria (...), podem ser permitidas a aterragem e a descolagem de aeronaves civis entre as 0 e as 6 horas nos aeroportos (...) que disponham de um sistema de monitorização e simulação do ruído que permita caracterizar a sua envolvente relativamente ao Lden e Ln e determinar o número máximo de aterragens e descolagens entre as 0 e as 6 horas de forma a assegurar o cumprimento dos valores limite fixados no artigo 11.º do referido Regulamento.
Considerando que o aeroporto Francisco Sá Carneiro dispõe de um sistema de monitorização e simulação de ruído que preenche os requisitos exigidos no Regulamento Geral do Ruído;
Considerando ainda que os resultados da simulação do ruído efectuada para os movimentos aéreos previstos na presente portaria no período das 0 às 6 horas permitem verificar o cumprimento dos valores limite aplicáveis;
Tendo presente, por outro lado, que as actividades de transporte de carga e de correio expresso são indispensáveis ao desenvolvimento industrial e económico da região e dos respectivos agentes, por assegurarem a distribuição dos produtos e recepção dos materiais e componentes just in time, para as quais o transporte durante o período nocturno é absolutamente vital; Tendo ainda presente que a competitividade do Aeroporto Francisco Sá Carneiro na atracção e fixação destas actividades de transporte de carga e correio expresso depende da realização das referidas operações entre as 0 e as 6 horas:
Entende-se estarem reunidas as condições que permitem a realização de movimentos aéreos no Aeroporto Francisco Sá Carneiro entre as 0 e as 6 horas, com as restrições constantes da presente portaria”.
II. Da leitura das normas supra referidas do Regulamento Geral do Ruído e do preâmbulo da Portaria n.º 831/2007, resulta insofismável para a Recorrente que o escopo e ratio das normas em causa se prendem com o cumprimento dos valores limite de exposição fixados no artigo 11.º do Regulamento Geral do Ruído, os quais não se encontram nem referidos nem considerados na Sentença recorrida (e na decisão administrativa), sendo certo que a referida Portaria visa fomentar a competitividade do Aeroporto na atracção e fixação das atividades de transporte de carga e de correio expresso, as quais são indispensáveis, sendo o transporte durante o período noturno absolutamente vital para a realização de tais atividades – cf. preâmbulo da Portaria n.º 831/2007.
JJ. É ponto assente que o movimento aéreo de descolagem estava relacionado com transporte de carga e que a sua a aeronave ..., matrícula ..., trata-se de uma aeronave de transporte de carga, e que a regra estabelecida no Aeroporto Francisco Sá Carneiro é a da permissão da aterragem e descolagem de aeronaves civis entre as 0 e as 6 horas (período noturno), sem prejuízo das restrições de operação previstas na lei (cf. artigo 1.º da Portaria n.º 831/2007).
KK. Tais restrições de operação encontram-se plasmadas no artigo 2.º da Portaria n.º 831/2007, sendo certo que, da leitura do artigo 2.º da Portaria n.º 831/2007 resulta insofismável para a Recorrente o seguinte:
a) No Aeroporto Francisco Sá Carneiro, o tráfego noturno (entre as 0 e as 6 horas) é permitido sob determinadas condições/restrições:
i. O movimento aéreo tem de estar relacionado com a aviação comercial ou de trabalho aéreo – como in casu estava;
ii. O número máximo de movimentos aéreos permitido no período noturno (entre as 0 e as 6 horas) é de 11 movimentos diários, 70 semanais e 2100 anuais – não resultando dos autos qualquer alegação ou prova de que tal número máximo tenha sido excedido;
b) A autorização de movimentos aéreos durante o período noturno (entre as 0 e as 6 horas) está também condicionada à classificação da aeronave quanto às emissões sonoras (concreto nível de ruído da aeronave utilizada) nos seguintes termos (cf. artigo 2.º, n.º 2 da Portaria n.º 831/2007):
i. As aeronaves classificadas no nível 16 não podem ser programadas para o período das 0 às 6 horas;
ii. As aeronaves classificadas nos níveis 4 e 8 não podem ser programadas para o período entre as 2 e as 5 horas;
iii. As aeronaves classificadas nos níveis 0, 0,5, 1 e 2 não estão sujeitas a restrições
– como é o caso da aeronave de transporte de carga da Recorrente.
LL. Face ao exposto, entende a Recorrente que não existiu qualquer violação das condições de funcionamento e ou das restrições de operação fixadas para o Aeroporto Francisco Sá Carneiro (cf. artigo 28.º, n.º 2, alínea g) e 20.º, n.º 2 e 3, ambos do Regulamento Geral do Ruído, conjugado com os artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 831/2007).
A este propósito, considerou-se na decisão recorrida :
Já no processo principal, a Recorrente vem acusada da prática de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro (REGULAMENTO GERAL DO RUÍDO - RGR).
Segundo essa al. g) do n.º 2 do artigo 28.º do RGR, constitui contra-ordenação ambiental grave, a violação das condições de funcionamento da infra-estrutura de transporte aéreo fixadas nos termos do n.º 3 do artigo 20.º.
De acordo com os n.ºs 1 a 3 do artigo 20.º RGR:
“1 - São proibidas nos aeroportos e aeródromos não abrangidos pelo disposto no Decreto-Lei n.º 293/2003, de 11 de Novembro, a aterragem e a descolagem de aeronaves civis entre as 0 e as 6 horas, salvo por motivo de força maior.
“2 - Por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas dos transportes e do ambiente, pode ser permitida a aterragem e a descolagem de aeronaves civis entre as 0 e as 6 horas nos aeroportos e aeródromos que disponham de um sistema de monitorização e simulação de ruído que permita caracterizar a sua envolvente relativamente ao L(índice den) e L(índice n) e determinar o número máximo de aterragens e descolagens entre as 0 e as 6 horas, de forma a assegurar o cumprimento dos valores limite fixados no artigo 11.º
“3 - A portaria referida no número anterior fixa, em função dos resultados do sistema de monitorização e de simulação de ruído, o número máximo de aterragens e descolagens permitido na infra-estrutura de transporte aéreo entre as 0 e as 6 horas, a identificação das aeronaves abrangidas em função do nível de classificação sonora de acordo com as normas da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), bem como outras restrições de operação.”
Ora, no que tange à realização de operações no período compreendido entre as 00h00 e as 06h00 no aeroporto Francisco Sá Carneiro foi publicada a Portaria n.º 831/2007, de 1 de Agosto, entendendo a ANAC que a restrição violada em causa se coaduna com a falta de autorização da Recorrente para operar em período nocturno.
Sob a epígrafe de “Restrições de operação”, o artigo 2.º da citada Portaria 887 estabelece nos seguintes moldes:
“1 - No período entre as 0 e as 6 horas aplicam-se as seguintes restrições à operação no Aeroporto Francisco Sá Carneiro:
“a) Não são permitidos movimentos aéreos não relacionados com a aviação comercial ou de trabalho aéreo;
“b) O número máximo de movimentos aéreos permitido nesse período é de 11 movimentos diários, 70 semanais e 2100 anuais.
“2 - A autorização de movimentos aéreos entre as 0 e as 6 horas está igualmente condicionada à classificação das aeronaves quanto às emissões sonoras nos termos seguintes:
“a) As aeronaves classificadas no nível 16 não podem ser programadas para o período das 0 às 6 horas;
“b) As aeronaves classificadas nos níveis 4 e 8 não podem ser programadas para o período entre as 2 e as 5 horas;
“c) As aeronaves classificadas nos níveis 0, 0,5, 1 e 2 não estão sujeitas a restrições, sem prejuízo do número seguinte.
“3 - Para efeitos do disposto no n.º 2:
“a) As aeronaves são classificadas quanto às emissões sonoras estabelecidas de acordo com a Organização da Aviação Civil Internacional (OACI/ICAO), nos seguintes níveis:
“Nível 0 - inferior a 87 EPNdB;
“Nível 0,5 - de 87 EPNdB a 89,9 EPNdB;
“Nível 1 - de 90 EPNdB a 92,9 EPNdB;
“Nível 2 - de 93 EPNdB a 95,9 EPNdB;
“Nível 4 - de 96 EPNdB a 98,9 EPNdB;
“Nível 8 - de 99 EPNdB a 101,9 EPNdB;
“Nível 16 - superior a 101,9 EPNdB;
“b) O nível de classificação sonora de uma aeronave à aterragem ou à descolagem é dado pelos valores indicados no certificado de ruído do fabricante, considerando os pontos de referência especificados nas normas técnicas aplicáveis para a aproximação à aterragem, para o sobrevoo à descolagem e lateral, com potência máxima. (…)
“5 - Para efeitos do cumprimento do disposto no n.º 2, compete ao operador, no momento do pedido de atribuição de faixa horária, fornecer a informação constante do certificado de ruído do fabricante da aeronave com que pretende operar. (…)” (negritos nossos)
A Recorrente defende que a decisão não contém todos os elementos objectivos do tipo pois que era necessário que contivesse a classificação da aeronave em causa, quanto às emissões sonoras, uma vez que as aeronaves classificadas como no nível 0, como sucederia in casu, não estão sujeitas a restrições.
Porém, com elevado respeito que apresentamos relativamente à interpretação que a Recorrente realiza das normas aplicáveis, consideramos que a mesma não está correcta, porque confunde situações distintas.
A alínea b) do n.º 1 e o próprio n.º 1 do referido artigo 2.º da Portaria começa por indicar que no Aeroporto do Porto o tráfego nocturno é restringido entre as 0 e as 6 horas, sendo que apenas podem ser permitidos, naquele período, 11 movimentos diários, 70 semanais e 2100 anuais. Significa isto que a entidade competente para o efeito apenas pode autorizar esse número de movimentos aéreos a realizar no citado período nocturno.
Nesta conformidade, é correcta a interpretação da ANAC, quando refere que constitui contra-ordenação a realização de um voo nocturno sem a respectiva autorização, independentemente da existência de um slot diurno (ou fora do período da restrição) que não é utilizado ou não é cumprido.
Na verdade, estão em causa bens jurídicos distintos. O caso que trata estes autos principais tem que ver directamente com o ruído no aeroporto, pretendendo-se acautelar essencialmente um nível de qualidade de vida das populações que podem ser afectadas por esse ruido, especialmente à noite, que é o período normal de descanso de pessoas e animais. Já a violação dos slots tem sobretudo em vista uma boa gestão dos recursos de um aeroporto coordenado.
Por seu turno, o n.º 2 do citado artigo 2.º da Portaria disciplina que a autorização de movimentos aéreos durante o período nocturno “está igualmente condicionada à classificação das aeronaves quanto às emissões sonoras”.
Sublinhamos a expressão “está igualmente”, porque a consideramos absolutamente contundente na boa interpretação da norma que deve ser realizada. O advérbio de modo “igualmente” apenas pode pretender significar que para além da limitação de autorização aos movimentos aos números citados, ainda existem outras restrições que têm que ver com os níveis de ruído das aeronaves utilizadas.
E o legislador taxativamente esclarece que ainda que limitado àquele limite numérico, as aeronaves classificadas no nível 16 não podem ser programadas para o período das 0 às 6 horas, as aeronaves classificadas nos níveis 4 e 8 não podem ser programadas para o período entre as 2 e as 5 horas e as aeronaves classificadas nos níveis 0, 0,5, 1 e 2 não estão sujeitas a restrições, sem prejuízo do número seguinte.
Quando o legislador refere que as aeronaves classificadas nos níveis 0, 0,5, 1 e 2 não estão sujeitas a restrições, tendo em vista o citado advérbio de modo “igualmente”, tal apenas pretende significar que esse tipo de aeronaves pode ser programado para o período nocturno, condicionado, porém, à autorização desse voo. Autorização essa que não pode ultrapassar o número de 11 movimentos diários, 70 semanais e 2100 anuais, números esses que obviamente só poderão ser controlados pela autoridade competente se for pedida e concedida a devida autorização.
Ora, tendo em vista o exposto e tendo em vista que se mostra provado que a Recorrente não solicitou previamente uma faixa horária à coordenação de slots para operar em período nocturno, realizando a descolagem sem que tivesse autorização para tal, mostra-se objectivamente verificada a contra-ordenação sob análise – a contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro.
Em situação similar (por respeito ao aeroporto de Lisboa, onde se aplicam normas de teor similar), já decidiu o acórdão da Relação de Lisboa datado de 19.12.2024, processo n.º 204/24.0YUSTR.L1, consultável no respectivo processo que correu termos neste tribunal.
Não descuramos que em sede do processo n.º 303/19.0YUSTR decidimos em sentido distinto do agora perfilhado. Porém, consideramos ser esta a melhor interpretação da lei aplicável, a qual veio a ser secundada pelo Tribunal Superior, no acórdão já citado.
Defendeu a Recorrente que a ANAC aplicou dois critérios na determinação da hora relevante. No caso de restrição do período nocturno, a ANAC aplicou a hora local (LT), enquanto que, no caso da violação do slot, aplicou a hora UTC.
Isso é verdade e também é verdade que o fez com correcção.
Com efeito, no caso das restrições do período nocturno, consideramos que os períodos fixados por lei, mormente o da restrição das 00h00 às 06h00, deve ser interpretado como tendo por referência a LT (local time) e não a UTC (Universal Time Coordinated – Tempo Universal Coordenado), apesar do carácter universal da actividade que a norma regula.
Na verdade, interpretar uma lei é atribuir-lhe determinado significante, de modo a entender a sua correcta aplicação a um caso concreto.
O primeiro critério de interpretação da lei é o literal (elemento literal ou gramatical), assente nas palavras em que a lei se expressa, as quais conformam o início, mas também o limite da interpretação (vide artigo 9.º, n.º 1 e 2 do CC).
A letra da lei, na sua função negativa, afasta qualquer interpretação que não tenha o mínimo de sustento na mesma. Já na sua função positiva, favorece, sucessivamente, de entre os vários significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o firmado pelo uso geral da linguagem.
Importa partir do pressuposto de que o legislador soube exprimir correctamente o seu pensamento, servindo-se do vocábulo jurídico adequado e que o legislador se dirige a todos os cidadãos, sendo necessário que o entendam.
Ora, tendo por base estes elementos, não podemos deixar de considerar que, nada na letra da lei nos permite concluir que a hora esteja expressa em UTC, sendo certo que, sendo uma lei nacional, se o legislador pretendesse que a lei fosse por referência à UTC, certamente que o teria dito, valendo o princípio de que “onde a lei não distingue não deve ser o seu aplicador a fazer tal distinção”.
Veja-se que a situação respeitante às faixas horárias é diversa, uma vez que não é a lei que fixa as horas dessas faixas horárias, mas antes entidades com competência para o efeito que devem seguir orientações que determinam que as faixas atribuídas devam ser expressas em UTC.
Por seu turno, não faz qualquer sentido que, tendo o legislador conhecimento do Decreto-Lei n.º 17/96, de 8 de Março, quisesse distinguir entre o horário de Verão e o horário de Inverno. No horário de Verão a restrição passaria a ser antes das 01h00 às 07h00, prejudicando-se mais o sono, a tranquilidade e a saúde dos habitantes afectados no horário de Verão, já que, em vez da restrição iniciar à 00h00, iniciaria uma hora mais tarde. Esta distinção, com todo o respeito, não faz qualquer sentido.
Por seu turno, para além do elemento literal, a interpretação da lei também pode socorrer-se dos elementos lógicos com os quais se tenta determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a sua lógica:
- elemento histórico que atende à história da lei (trabalhos preparatórios, elementos do preâmbulo ou as concretas e especiais circunstâncias em que a lei foi elaborada).
- o elemento sistemático que implica que a norma interpretanda deve ser considerada como parte de um sistema, sistema esse que tem de ser coerente.
Este elemento parece-nos contundente, já que chamando novamente à colação o Regulamento Geral do Ruído, este não faz qualquer tipo de distinção entre o horário de Verão e o de Inverno quando define, na sua alínea p) do artigo 3.º, o «Período de referência» (ou seja “o intervalo de tempo a que se refere um indicador de ruído, de modo a abranger as actividades humanas típicas, delimitado nos seguintes termos: “i) Período diurno - das 7 às 20 horas; ii) Período do entardecer - das 20 às 23 horas; iii) Período nocturno - das 23 às 7 horas”). Ora, ninguém certamente discutirá que estas horas são em LT e não, obviamente, em UTC.
Por seu turno, não podemos deixar de fora o que nos diz o artigo 20.º desse Regulamento Geral do Ruído, sob a epígrafe de “Funcionamento de infra-estruturas 1038 de transporte aéreo”.
Nos termos desse artigo:
“1 - São proibidas nos aeroportos e aeródromos não abrangidos pelo disposto no Decreto-Lei n.º 293/2003, de 11 de Novembro, a aterragem e a descolagem de aeronaves civis entre as 0 e as 6 horas, salvo por motivo de força maior.
“2 - Por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas dos transportes e do ambiente, pode ser permitida a aterragem e a descolagem de aeronaves civis entre as 0 e as 6 horas nos aeroportos e aeródromos que disponham de um sistema de monitorização e simulação de ruído que permita caracterizar a sua envolvente relativamente ao L(índice den) e L(índice n) e determinar o número máximo de aterragens e descolagens entre as 0 e as 6 horas, de forma a assegurar o cumprimento dos valores limite fixados no artigo 11.º
“3 - A portaria referida no número anterior fixa, em função dos resultados do sistema de monitorização e de simulação de ruído, o número máximo de aterragens e descolagens permitido na infra-estrutura de transporte aéreo entre as 0 e as 6 horas, a identificação das aeronaves abrangidas em função do nível de classificação sonora de acordo com as normas da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), bem como outras restrições de operação. (…)” (sublinhados nossos).
Ora, parece-nos evidente que, ao estabelecer o mesmo período de restrição, sito entre as 00h00 e as 06h00, quer nos aeroportos e aeródromos não abrangidos pelo disposto no Decreto-Lei n.º 293/2003, de 11 de Novembro, quer nos abrangidos, o legislador pretendeu harmonizar o sistema jurídico, definindo um horário de restrição único para a actividade da aviação, voltando-se a frisar que não há qualquer motivo para que neste Regulamento Geral do Ruído se entenda que as horas são estabelecidas em UTC, tal como entendemos que também não o há em sede da norma da Portaria aplicável ao caso.
- elemento racional ou teleológico que conduz a considerar o fim e o objectivo da norma (ratio legis).
O objectivo da Portaria tem natureza ambiental, sem descurar a necessidade de fortalecer a competitividade do aeroporto em causa
No que concretamente tange às horas que são indicadas na Portaria, desde logo, as que têm que ver com a restrição de tráfego nocturno entre as 00h00 e as 06h00, as mesmas destinam-se essencialmente a salvaguardar o repouso e a saúde dos habitantes que podem ser afectados pelo ruido.
Ora, uma vez que a questão apenas se coloca no horário de Verão, em que à UTC terá de se acrescentar 60 minutos (a hora de Inverno coincide com a UTC – vide artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 17/96, de 8 de Março), caso se entendesse que a lei prevê um horário em UTC, o período restrito passaria a ser da 01h00 às 07h00 LT. Não faz sentido prejudicar os habitantes no período de Verão, conforme acima já mencionámos, não se vendo razão alguma para a existência de uma distinção entre o período de Verão e o período de Inverno.
Aliás, voltando ao Regulamento Geral do Ruído, que também pretende a “prevenção do ruído e o controlo da poluição sonora visando a salvaguarda da saúde humana e o bem-estar das populações”, podemos concluir que nesse diploma o período nocturno é fixado entre as 23 as 7 horas (subal. iii) da al. p) do artigo 3.º), o que corresponde exactamente ao “período nocturno” da Portaria, acrescido de uma hora no início e descontado de uma hora no fim. Tal harmonia, quando se estivesse no período de Verão, já não existiria se a restrição legislada fosse em UTC, insistindo-se que não faz sentido essa distinção.
Ora, sobre a dualidade de critérios em relação à hora local (LT) ou à UTC, o tribunal constitucional já teve oportunidade de expender o seu entendimento nos seguintes moldes (vide acórdão n.º 454/2021, de 2021-06-24):
“Se a fixação daquele intervalo temporal se destina, como a Portaria bem explicita, a restringir as operações de programação para descolagem do aeroporto de Lisboa das aeronaves mais ruidosas durante o período noturno, é relativamente evidente não apenas que este período só pode ser o período noturno local como também que os limites horários dentro dele estabelecidos se reportam à hora local em Lisboa. A atividade restringida - programação de aeronaves em terra é levada a cabo no espaço físico do aeroporto de Lisboa, cuja atividade se rege pela hora legal em Portugal, esta por sua vez determinada, como bem nota a reclamante, segundo os critérios definidos no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 17/96, de 8 de março; isto é, coincidindo com o tempo universal coordenado (UTC) no período compreendido entre a 1 hora UTC do último domingo de outubro e a 1 hora UTC do último domingo de março seguinte (hora de Inverno) e com o tempo universal coordenado aumentado de sessenta minutos no período compreendido entre a 1 hora UTC do último domingo de março e a 1 hora UTC do último domingo de outubro (hora de 1104 Verão).
“É pacífico - e não está sequer em causa - que a hora de referência para a organização e processamento do tráfego aéreo é UTC. Sucede que a norma questionada respeita, como se viu, exclusivamente às operações levadas a cabo no aeroporto de Lisboa, o que, como se refere no acórdão recorrido, torna desde logo manifestamente implausível que a restrição horária das operações de programação de aeronaves que ali têm lugar tivesse sido concretizada através de uma norma que, utilizando critério distinto da LT, obrigasse a conversões durante pelo menos seis meses em cada ano.
“Não se vê, assim, como a falta de uma referência expressa à LT possa afetar a cognoscibilidade e a previsibilidade da norma de comportamento que tem como destinatários os operadores de aeronaves ou comprometer aquele mínimo de determinabilidade que é constitucionalmente imposto à tipificação dos ilícitos contraordenacionais.”
Esgrime também a Recorrente que a ANAC adopta dois critérios distintos no apuramento da hora relevante para efeitos de verificação de incumprimento da faixa horária (contra-ordenação a que alude o apenso A) e para efeitos de verificação do incumprimento das normas respeitantes a restrições em período nocturno (contra-ordenação em causa no processo principal e que agora se analisa). Para o primeiro adopta o critério da saída de calços. Já para o segundo adopta o critério da efectiva descolagem/aterragem.
Ora, para o presente caso da violação de restrições em período nocturno importa referir que tanto sendo adoptado o critério da saída de calços como o critério da descolagem sempre se verificaria o preenchimento dos elementos típicos da contra-ordenação.
Na verdade, a restrição opera entre as 00h00LT e as 06h00LT e a Recorrente saiu de calços às 00h00LT e descolou às 00h10LT.
Assim, entendemos que a discussão da questão, nesta sede e neste concreto caso, não reveste qualquer tipo de utilidade, não passando de um mero exercício teórico.
Eventualmente poderia ter utilidade para efeitos de medida da coima a aplicar, já que, em termos de ilicitude fará diferença violar a norma no primeiro minuto da restrição ou no décimo minuto da restrição. Porém, a coima que a ANAC aplicou coincide com o mínimo legal admissível, considerando o tribunal que não se justifica aumentar tal coima (neste processo principal não vigora o princípio da reformatio in pejus), conforme infra será abordado. Nesta conformidade, consideramos ser despiciendo abordar a questão.
Para além disso, sempre se dirá que consideramos que não existe, como defende a Recorrente, com todo o respeito, uma dualidade de critérios adoptados pela ANAC, consoante pretenda ou não condenar as companhias aéreas. O que a ANAC faz é aplicar as normas que estão em causa, interpretando-as, sendo certo que, conforme já tivemos oportunidade de explicar anteriormente, estão em causa duas normas absolutamente distintas, que tutelam bens jurídicos igualmente diversos, pelo que nada impede que leis diferentes prevejam momentos temporais distintos que marcam o inicio de cada uma das infracções que tipificam.
Na verdade, por intermédio do sancionamento por violação das faixas horárias especificas atribuídas procura tutelar-se os interesses relacionados com o equilíbrio entre a expansão do sistema de transportes aéreos e a disponibilidade de infra-estruturas adequadas a fazer face à crescente procura, como forma de evitar o congestionamento dos aeroportos, fazendo uma gestão equilibrada entre a procura e a capacidade dos aeroportos nacionais, visando que numa aeronave possa aterrar ou descolar sem que previamente tenha sido atribuída uma faixa horária à transportadora aérea.
Concorda-se, na sua quase totalidade, com a fundamentação expressa na sentença recorrida acabada de transcrever.
Com efeito, considerou-se na decisão administrativa e na sentença recorrida que a Recorrente praticou uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro (Regulamento Geral do Ruído).
Estatui essa norma que “constitui contra-ordenação ambiental grave :” “a violação das condições de funcionamento da infra-estrutura de transporte aéreo fixadas nos termos do nº3 do artigo 20º.”
Estatui esse artigo 20º, cuja epígrafe é Funcionamento de infra-estruturas de transporte aéreo :
“1 - São proibidas nos aeroportos e aeródromos não abrangidos pelo disposto no Decreto-Lei n.º 293/2003, de 11 de Novembro, a aterragem e a descolagem de aeronaves civis entre as 0 e as 6 horas, salvo por motivo de força maior.
2 - Por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas dos transportes e do ambiente, pode ser permitida a aterragem e a descolagem de aeronaves civis entre as 0 e as 6 horas nos aeroportos e aeródromos que disponham de um sistema de monitorização e simulação de ruído que permita caracterizar a sua envolvente relativamente ao L(índice den) e L(índice n) e determinar o número máximo de aterragens e descolagens entre as 0 e as 6 horas, de forma a assegurar o cumprimento dos valores limite fixados no artigo 11.º
3 - A portaria referida no número anterior fixa, em função dos resultados do sistema de monitorização e de simulação de ruído, o número máximo de aterragens e descolagens permitido na infra-estrutura de transporte aéreo entre as 0 e as 6 horas, a identificação das aeronaves abrangidas em função do nível de classificação sonora de acordo com as normas da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), bem como outras restrições de operação.
4 - As aeronaves a operar no território nacional devem ser objecto de certificação acústica de acordo com as normas estabelecidas pela OACI.”
Nos termos do disposto no artigo 1º do Decreto-Lei nº9/2007, de 17 de Janeiro “o presente Regulamento estabelece o regime de prevenção e controlo da poluição sonora, visando a salvaguarda da saúde humana e o bem estar das populações.”
Conforme se refere no preâmbulo da Portaria n.º 831/2007 de 1 de Agosto “o n.º 2 do artigo 20.º do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro, determina que, por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas dos transportes e do ambiente, podem ser permitidas a aterragem e a descolagem de aeronaves civis entre as 0 e as 6 horas nos aeroportos e aeródromos que disponham de um sistema de monitorização e simulação do ruído que permita caracterizar a sua envolvente relativamente ao Lden e Ln e determinar o número máximo de aterragens e descolagens entre as 0 e as 6 horas de forma a assegurar o cumprimento dos valores limite fixados no artigo 11.º do referido Regulamento.
Considerando que o aeroporto Francisco Sá Carneiro dispõe de um sistema de monitorização e simulação de ruído que preenche os requisitos exigidos no Regulamento Geral do Ruído;
Considerando ainda que os resultados da simulação do ruído efectuada para os movimentos aéreos previstos na presente portaria no período das 0 às 6 horas permitem verificar o cumprimento dos valores limite aplicáveis;
Tendo presente, por outro lado, que as actividades de transporte de carga e de correio expresso são indispensáveis ao desenvolvimento industrial e económico da região e dos respectivos agentes, por assegurarem a distribuição dos produtos e recepção dos materiais e componentes just in time, para as quais o transporte durante o período nocturno é absolutamente vital;
Tendo ainda presente que a competitividade do Aeroporto Francisco Sá Carneiro na atracção e fixação destas actividades de transporte de carga e correio expresso depende da realização das referidas operações entre as 0 e as 6 horas:
Entende-se estarem reunidas as condições que permitem a realização de movimentos aéreos no Aeroporto Francisco Sá Carneiro entre as 0 e as 6 horas, com as restrições constantes da presente portaria”, estatuindo-se no artº1º dessa Portaria, cuja epígrafe é Objecto e âmbito de aplicação :
“1 - No Aeroporto Francisco Sá Carneiro é permitida a aterragem e descolagem de aeronaves civis entre as 0 e as 6 horas, com as restrições constantes da presente portaria.
2 - Excluem-se do âmbito de aplicação da presente portaria os movimentos aéreos realizados por aeronaves militares e ainda por aeronaves utilizadas no transporte de chefes de estado ou de membros de governo em deslocação oficial.”
Prevendo o artigo 2º as seguintes restrições de operação :
“1 - No período entre as 0 e as 6 horas aplicam-se as seguintes restrições à operação no Aeroporto Francisco Sá Carneiro:
a) Não são permitidos movimentos aéreos não relacionados com a aviação comercial ou de trabalho aéreo;
b) O número máximo de movimentos aéreos permitido nesse período é de 11 movimentos diários, 70 semanais e 2100 anuais.
2 - A autorização de movimentos aéreos entre as 0 e as 6 horas está igualmente condicionada à classificação das aeronaves quanto às emissões sonoras nos termos seguintes:
a) As aeronaves classificadas no nível 16 não podem ser programadas para o período das 0 às 6 horas;
b) As aeronaves classificadas nos níveis 4 e 8 não podem ser programadas para o período entre as 2 e as 5 horas;
c) As aeronaves classificadas nos níveis 0, 0,5, 1 e 2 não estão sujeitas a restrições, sem prejuízo do número seguinte.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 2:
a) As aeronaves são classificadas quanto às emissões sonoras estabelecidas de acordo com a Organização da Aviação Civil Internacional (OACI/ICAO), nos seguintes níveis:
Nível 0 - inferior a 87 EPNdB;
Nível 0,5 - de 87 EPNdB a 89,9 EPNdB;
Nível 1 - de 90 EPNdB a 92,9 EPNdB;
Nível 2 - de 93 EPNdB a 95,9 EPNdB;
Nível 4 - de 96 EPNdB a 98,9 EPNdB;
Nível 8 - de 99 EPNdB a 101,9 EPNdB;
Nível 16 - superior a 101,9 EPNdB;
b) O nível de classificação sonora de uma aeronave à aterragem ou à descolagem é dado pelos valores indicados no certificado de ruído do fabricante, considerando os pontos de referência especificados nas normas técnicas aplicáveis para a aproximação à aterragem, para o sobrevoo à descolagem e lateral, com potência máxima.
4 - As aeronaves classificadas segundo o critério descrito no número anterior que sejam autorizadas a aterrar neste período estão proibidas de proceder, logo após a aterragem, à inversão de potência (reverse thrust).
5 - Para efeitos do cumprimentos do disposto no n.º 2, compete ao operador, no momento do pedido de atribuição de faixa horária, fornecer a informação constante do certificado de ruído do fabricante da aeronave com que pretende operar.
6 - Após cada aterragem, a entidade gestora da atribuição de faixas horárias pode obter junto da entidade gestora aeroportuária a confirmação do nível de ruído constante do certificado de ruído das aeronaves.”
Prevendo o artigo 5º os casos de força maior nos seguintes termos :
“As restrições de operação constantes da presente portaria não se aplicam em casos de força maior, nomeadamente:
a) Aeronaves que efectuem missões de carácter humanitário, de emergência médica ou evacuações;
b) Aeronaves que se encontrem em situações urgentes, tendo em conta razões meteorológicas, de falha técnica ou de segurança de voo;
c) Movimentos aéreos relativamente aos quais tenha existido uma alteração horária imprevista provocada por uma anormal perturbação no controlo do tráfego aéreo;
d) Movimentos aéreos realizados até à 1 hora em voos programados para períodos até às 0 horas devido a atrasos não imputáveis à entidade gestora aeroportuária ou ao operador;
e) Movimentos aéreos de e para as Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores devido a razões meteorológicas;
f) Aterragens efectuadas durante o período compreendido entre as 5 e as 6 horas devido a razões meteorológicas desde que o horário de chegada tenha sido programado para depois das 6 horas.”
Conforme resulta da factualidade provada a Recorrente tinha uma faixa horária atribuída para descolagem do Aeroporto Francisco Sá Carneiro, no dia 1 de Abril de 2021, às 22h30 UTC, com a aeronave de marcas de nacionalidade e matrícula ..., (cfr. facto provado 2).
No entanto, a Recorrente descolou com a aeronave identificada às 23h10UTC do dia 1 de Abril de 2021, tendo saído de calços às 23h00UTC, (cfr, facto provado 5).
Nos termos do disposto no artigo 1º do DL nº17/96, de 8 de Março :
“1-A hora legal em Portugal continental coincide com o tempo universal coordenado (UTC) no período compreendido entre a 1 hora UTC do último domingo de Outubro e a 1 hora UTC do último domingo de Março seguinte (hora de Inverno).
2 - A hora legal coincide com o tempo universal coordenado aumentado de sessenta minutos no período compreendido entre a 1 hora UTC do último domingo de Março e a 1 hora UTC do último domingo de Outubro (hora de Verão).”
Desta forma, no dia 1 de Abril de 2021 a hora local corresponde a UTC mais uma hora, pelo que a Recorrente descolou com a aeronave identificada às 00h10 Hora local do dia 1 de Abril de 2021, tendo saído de calços às 00h00 Hora local (cfr, facto provado 5).
Para aferir a prática da contra-ordenação em causa importa atender à hora de descolagem ou aterragem efectivas e não à hora de saída ou chegada a calços, na medida em que é com a efetiva descolagem ou aterragem da aeronave que se efectiva o facto típico que se pretende sancionar.
Resultou provado que a Recorrente descolou com a aeronave identificada às 23h10UTC do dia 1 de Abril de 2021 = 00h 10mn LT (Local Time) (cfr, facto provado 5), tendo tal operação ocorrido durante o período de restrição entre as 00h00 e as 06h00, (cfr. artº20º, nº1, do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro).
Mais resultou provado que a aeronave em causa trata-se de uma aeronave de transporte de carga e apresenta, no certificado de ruído do fabricante, os seguintes valores de emissões sonoras, considerando os pontos de referência especificados nas normas técnicas aplicáveis:
a) 76,5 EPNdB – sobrevoo à descolagem; e
b) 84,9 EPNdB – lateral, com potência máxima; (cfr. factos provados 3 e 4);
Também resultou provado que a Recorrente não tinha autorização para realizar a operação em período nocturno, (cfr. facto provado 6.) e que ao agir como agiu, fora do horário da faixa horária atribuída e sem ter autorização para realizar a operação em período nocturno, a Recorrente não observou os cuidados de que era capaz e estava adstrita, não chegando sequer a ter consciência da natureza das obrigações em causa, (facto provado 7).
Sendo certo que a restrição de tráfego nocturno entre as 00h00 e as 06h00, destina-se essencialmente a salvaguardar o repouso e a saúde dos habitantes que podem ser afectados pelo ruido.
Deste modo, em face da factualidade provada, de onde resulta inequivocamente a realização de um voo nocturno por aeronave da Recorrente sem a respectiva autorização, importa concluir que a Recorrente praticou uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro (REGULAMENTO GERAL DO RUÍDO - RGR), conforme se considerou na sentença recorrida.
Com efeito, tendo resultado provado que a Recorrente não solicitou previamente uma faixa horária à coordenação de slots para operar em período nocturno, realizando a descolagem sem que tivesse autorização para tal, mostra-se objectivamente verificada a contra-ordenação sob análise – a contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro.
Assim, improcede totalmente a pretensão da Recorrente de que seja absolvida quanto à contraordenação ambiental que lhe é imputada (artigos 28º, nº2, alínea g), 20º, nº3 e artigos 1º e 2º da Portaria nº831/2007), antes se concluindo pela confirmação da condenação da Recorrente pela prática de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro.
Destarte, improcedem necessariamente as conclusões CC. a LL. e o recurso nessa parte.
*
6ª Questão :
Se a Recorrente deve ser absolvida quanto à contraordenação ambiental que lhe é imputada, por força da violação do princípio do acusatório (artigo 32º, nº5 da CRP) e do princípio ne bis in idem (artigo 29º, nº5, da CRP)
Nesse sentido, invoca a Recorrente :
MM. Considerando a razão de ser da previsão da contraordenação ambiental prevista no Regulamento Geral do Ruído (artigos 28.º, n.º 2, alínea g) e 20.º, n.º 3, conjugados com os artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 831/2007), a Recorrente entende que a interpretação da norma prevista no artigo 2.º da Portaria não pode ser reduzida à existência de uma autorização (faixa horária) para operar em período noturno – até sob pena de se confundir dois bens jurídicos distintos e violar o princípio ne bis in idem (na vertente de dupla valoração do mesmo facto).
NN. Quando se lê que a autorização de movimentos aéreos entre as 0 e as 6 horas está igualmente condicionada à classificação das aeronaves quanto às emissões sonoras quer-se simplesmente dizer que tal autorização de movimento aéreo em período noturno só poderá existir se os elementos previstos na lei estiverem preenchidos, a saber, os mesmos que se encontram previstos no artigo 20.º, n.º 3 do Regulamento Geral do Ruído e que estão expressamente identificados no Preâmbulo da Portaria n.º 831/2007:
c) O movimento aéreo tem de estar relacionado com aviação comercial ou de trabalho aéreo – como o dos presentes autos;
d) O movimento aéreo em apreço não resultará na violação do número máximo de
movimentos aéreos permitido – o que em caso algum foi alegado pela autoridade administrativa e ou provado na Sentença recorrida;
e) O momento temporal do movimento aéreo estará sujeito a um certo período temporal do período noturno, consoante a classificação da aeronave que será utilizada no movimento aéreo – nos presentes autos, a aeronave da Recorrente encontra-se classificada no nível 0 e, como tal, de acordo com o elemento literal da lei, não se encontra sujeita a restrições temporais de acordo com a classificação sonora, pelo que poderia ser programada para qualquer período entre as 0 e as 6 horas.
OO. Esta é, com a devida vénia pela interpretação efetuada pelo Tribunal a quo, a melhor e correta interpretação a ser dada aos normativos legais em apreço (os artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 831/2007, como concretização do disposto nos artigos 28.º, n.º 2, alínea g) e 20.º, n.º 3 do Regulamento Geral do Ruído), mormente pelo seu elemento literal e teleológico.
PP. Assim, salvo o devido respeito pela interpretação do Tribunal a quo, a razão de ser da previsão da contraordenação ambiental prevista no Regulamento Geral do Ruído (artigos 28.º, n.º 2, alínea g) e 20.º, n.º 3, conjugados com os artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 831/2007), a interpretação da norma prevista no artigo 2.º da Portaria n.º 831/2007 não pode ser reduzida à existência de uma autorização (faixa horária) para operar em período noturno, tendo sempre de ter em conta a verdadeira e concreta classificação sonora da aeronave –porque a contraordenação em apreço se relaciona com o ruído – sob pena de se de se confundir dois bens jurídicos distintos e violar o princípio ne bis in idem, como acaba por fazer o Tribunal a quo na Sentença recorrida (com uma dupla valoração do mesmo facto).
Subsidiariamente, caso assim não se entenda, o que por mero dever de patrocínio se cogita,
QQ. A Sentença recorrida (bem como a decisão administrativa) é totalmente omissa quanto ao número de movimentos aéreos efetuados no período noturno e ao concreto ruído efetuado no movimento aéreo da Recorrente, sendo que cabia à entidade gestora aeroportuária verificar se a Recorrente estava em condições de efetuar tal movimento aéreo ou não – pois possui informação, que comunica à ANAC, relativa ao número de movimentos aéreos verificados no período entre as 0 e as 6 horas, à classificação sonora das aeronaves e ainda, o relatório de monitorização e mapas de ruído relativos ao cumprimento dos valores limite fixados no Regulamento Geral do Ruído – cf. artigo 6.º da Portaria n.º 831/2007.
RR. Em caso algum se demonstrou ter sido ultrapassado o número máximo de movimentos aéreos permitido no período noturno (tanto na decisão administrativa como na Sentença recorrida) e tampouco ficou demonstrado que a classificação sonora da aeronave da Recorrente a impedia de voar durante o período noturno (pois que, por se encontrar classificada no nível 0, não se encontra, segundo o elemento literal da lei, sujeita a restrições).
SS. Com efeito, não ficou demonstrado em momento algum nos presentes autos (nem a Sentença recorrida o refere), que o número máximo de movimentos aéreos permitido em período noturno já havia ou seria excedido, e que o nível de classificação de ruído da aeronave da Recorrente a impossibilitava de realizar o movimento de descolagem em apreço.
TT. Assim, conforme expressamente referido pela Recorrente no seu recurso de impugnação judicial (cf. fls. 77 e 78 do processo principal e Conclusão Z, fls. 104 do processo principal) a imputação que lhe é feita da prática da contraordenação em causa viola o princípio da estrutura acusatória do processo contraordenacional, previsto no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, na medida em que a matéria prevista no artigo 2.º da Portaria n.º 831/2007 não foi objeto das devidas diligências probatórias por parte da autoridade administrativa, colocando sobre os ombros da Recorrente o ónus de evidenciar que determinados requisitos de punibilidade não se verificavam.
UU. Ademais, não tendo havido qualquer pronúncia na Sentença recorrida sobre tal violação do princípio da estrutura acusatória do processo contraordenacional, padece a mesma do vício de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP.
VV. Mesmo que se considere, como o Tribunal a quo, que sempre será necessária, não obstante o disposto no artigo 2.º, n.º 2, alínea c) da Portaria n.º 831/2007, a existência de uma autorização de movimento aéreo (a qual, diga-se, existiu por parte do controlo de tráfego aéreo), e mesmo que se entenda que tal autorização teria de ser obrigatoriamente concedida através de faixa horária (slot aeroportuário), acabaremos por chegar à conclusão que tal interpretação, aplicada ao caso concreto, faz depender inteiramente a aplicação da coima de uma falta de autorização de faixa horária,
WW. E que, caso existisse um slot aeroportuário (em vez de slot ATC como o da Recorrente), a lei permite expressamente que uma aeronave como a da Recorrente possa voar a qualquer hora do período noturno, isto é, entre as 0 e as 6 horas, precisamente por causa do seu nível de classificação sonora, que é o mais baixo de todos: o nível 0.
XX. Por outras palavras, à Recorrente foi aplicada uma coima de €12.000,00 (doze mil euros), por contraordenação prevista no Regulamento Geral do Ruído (cujo bem jurídico que se pretende proteger é, no dizer do Tribunal a quo, “a saúde e o descanso dos habitantes afectados, de modo significativo, pelo ruído das aeronaves”) por uma operação ocorrida efetivamente às 00:00 LT – isto é, no primeiro minuto do período noturno –, com uma aeronave de classificação sonora de nível 0, única e exclusivamente porque não teria uma faixa horária para o efeito.
YY. Aliás, tal entendimento encontra-se plenamente vertido na Sentença recorrida (cf. página 20): “Sucede, porém, que, por um lado, com todo o respeito, não está em causa a possibilidade de ausência de restrição de tráfego nocturno entre as 0 e as 6 horas no Aeroporto do Porto, por respeito às emissões sonoras estabelecidas de acordo com a OACI, mas sim está em causa, como resulta à saciedade da decisão administrativa, a falta de autorização para realizar o movimento aéreo no período nocturno naquele aeroporto” (sublinhado nosso).
ZZ. Entende a Recorrente que não se deve confundir a realização de um movimento noturno com a realização de um movimento fora da faixa horária (pois embora possam coincidir, cada tipo de ilícito protege um bem jurídico distinto), pelo que reduzir a aplicação da contraordenação em causa à (in)existência de uma faixa horária, constitui violação clara do princípio ne bis in idem: a Recorrente é punida duplamente, com base na mesma factualidade, pela ausência/violação de uma faixa horária.
AAA. Assim, a Recorrente considera que se encontra violado, na Sentença ora recorrida, o princípio ne bis in idem, por dupla punição da mesma factualidade (e neste caso, uma dupla tutela do mesmo bem jurídico).
Ora, relativamente à invocada violação do princípio ne bis in idem escreveu-se na decisão recorrida :
Em sede dos autos principais, a ANAC condenou a Recorrente pela prática de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do 279 artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro (REGULAMENTO GERAL 280 DO RUÍDO);
Em sede do apenso A, a ANAC condenou a Recorrente pela prática de uma contra-ordenação aeronáutica civil grave, prevista e punida pela al. c) do n.º 2 do artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 109/2008, de 26 de Junho.
Em ambos os processos está em causa o voo n.º ..., de 01.04.2021, com a aeronave ..., matrícula ..., com a faixa horária às 22h30UTC, a qual saiu de calços pelas 23h00 UTC e descolou pelas 23h10UTC.
O n.º 5 do artigo 29.º da nossa CRP impõe que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
Porém, o mesmo facto naturalisticamente abordado pode implicar o cometimento de vários tipos de ilícitos em concurso efectivo, como decorre do disposto no n.º 1 do artigo 30.º do CP.
No vertente caso, a ANAC considerou que o mesmo facto naturalístico implica o cometimento de duas infracções distintas – uma pela violação dos slots atribuídos; outra por violação de restrições do período nocturno.
Ora, importa referir que as normas incriminadoras são distintas e tutelam bens jurídicos distintos.
Por intermédio do sancionamento por violação das faixas horárias especificas atribuídas procura tutelar-se os interesses relacionados com o equilíbrio entre a expansão do sistema de transportes aéreos e a disponibilidade de infra-estruturas adequadas a fazer face à crescente procura, como forma de evitar o congestionamento dos aeroportos, fazendo uma gestão equilibrada entre a procura e a capacidade dos aeroportos nacionais, visando que numa aeronave possa aterrar ou descolar sem que previamente tenha sido atribuída uma faixa horária à transportadora aérea.
Já através do sancionamento da violação da restrição de operações em período nocturno, procura acautelar-se essencialmente a saúde e o descanso dos habitantes afectados, de modo significativo, pelo ruído das aeronaves.
Porque assim é, estamos perante tipos de contra-ordenação distintos, que tutelam interesses igualmente distintos, sem que entre eles interceda qualquer tipo de relação de especialidade, subsidiariedade ou consumpção, inexistindo qualquer tipo de hierarquia de normas, em que a punição por via de uma esgota totalmente a punição por via da outra.
Conforme tem sustentado o Tribunal Constitucional, “se um mesmo objecto material comporta teleologicamente diferentes valorações jurídicas», a existência de uma situação de «concurso efectivo e ideal de infracções de natureza distinta» - (…) - «não se afigura constitucionalmente inadmissível», já que a «lei confere distintas valorações jurídicas à mesma conduta, materialmente entendida»” – vide acórdão n.º 265/2016.
Sem necessidades de maiores considerações, não se mostra violado o princípio ne bis in idem, pelo que improcede também nesta vertente a defesa da Recorrente.
Concorda-se neste ponto com o sentido decisório da decisão recorrida, uma vez que nos encontramos perante um concurso ideal de contra-ordenações (cfr.artº.19, do R.G.C.O.), visto que a circunstância de estarmos perante os mesmos factos não impede que se considere que eles consubstanciam a prática de mais do que uma contraordenação, caso em que ocorrerá um concurso ideal (e não real) de infracções.
A problemática relativa ao concurso de contra-ordenações (unidade e pluralidade de infracções) tem no artigo 30º do Código Penal a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
Mutatis mutandis, o número de contra-ordenações determina-se pelo número de tipos de contra-ordenações efectivamente cometidas, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de contra-ordenações for preenchido pela conduta do agente.
O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados.
E efectivamente violados.
A indicação da lei acolhe, pois, as noções de concurso real e concurso ideal.
Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente várias contra-ordenações ou várias vezes a mesma contra-ordenação (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas contra-ordenacionais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).
O critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados existe, efectivamente, unidade ou pluralidade de infracções, id est, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, reverte ao interesse de natureza pública protegido por cada tipo de contra-ordenação e aos fins visados pela respectiva norma sancionatória.
Voltando à decisão recorrida neste ponto :
Em sede dos autos principais, a ANAC condenou a Recorrente pela prática de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do 279 artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro (REGULAMENTO GERAL 280 DO RUÍDO);
Em sede do apenso A, a ANAC condenou a Recorrente pela prática de uma contra-ordenação aeronáutica civil grave, prevista e punida pela al. c) do n.º 2 do artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 109/2008, de 26 de Junho.
Em ambos os processos está em causa o voo n.º ..., de 01.04.2021, com a aeronave ..., matrícula ..., com a faixa horária às 22h30UTC, a qual saiu de calços pelas 23h00 UTC e descolou pelas 23h10UTC.”
“No vertente caso, a ANAC considerou que o mesmo facto naturalístico implica o cometimento de duas infracções distintas – uma pela violação dos slots atribuídos; outra por violação de restrições do período nocturno.
Ora, importa referir que as normas incriminadoras são distintas e tutelam bens jurídicos distintos.
Por intermédio do sancionamento por violação das faixas horárias especificas atribuídas procura tutelar-se os interesses relacionados com o equilíbrio entre a expansão do sistema de transportes aéreos e a disponibilidade de infra-estruturas adequadas a fazer face à crescente procura, como forma de evitar o congestionamento dos aeroportos, fazendo uma gestão equilibrada entre a procura e a capacidade dos aeroportos nacionais, visando que numa aeronave possa aterrar ou descolar sem que previamente tenha sido atribuída uma faixa horária à transportadora aérea.
Já através do sancionamento da violação da restrição de operações em período noturno, procura acautelar-se essencialmente a saúde e o descanso dos habitantes afectados, de modo significativo, pelo ruído das aeronaves.
Porque assim é, estamos perante tipos de contra-ordenação distintos, que tutelam interesses igualmente distintos, sem que entre eles interceda qualquer tipo de relação de especialidade, subsidiariedade ou consumpção, inexistindo qualquer tipo de hierarquia de normas, em que a punição por via de uma esgota totalmente a punição por via da outra.”
Estamos, pois, aqui perante uma situação de concurso efectivo e ideal de infracções de natureza distinta (uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do 279 artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro e uma contra-ordenação aeronáutica civil grave, prevista e punida pela al. c) do n.º 2 do artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 109/2008, de 26 de Junho) que tutelam interesses de natureza pública igualmente distintos, (a contra-ordenação ambiental procura garantir o interesse de natureza pública de garantir o descanso noturno, a saúde e o bem estar de todos os habitantes adjacentes aos aeroportos susceptíveis de ser afectados, de modo significativo, pelo ruído das aeronaves nas operações de descolagem e aterragem e a contra-ordenação aeronáutica civil visa tutelar o interesse de natureza pública de garantir o equilíbrio entre a expansão do sistema de transportes aéreos e a disponibilidade de infra-estruturas adequadas a fazer face à crescente procura, como forma de evitar o congestionamento dos aeroportos, fazendo uma gestão equilibrada entre a procura e a capacidade dos aeroportos nacionais, visando evitar que uma aeronave possa aterrar ou descolar sem que previamente tenha sido atribuída uma faixa horária à transportadora aérea respectiva), sem que entre eles interceda qualquer tipo de relação de especialidade, subsidiariedade ou consumpção, inexistindo qualquer tipo de hierarquia de normas, em que a punição por via de uma esgote totalmente a punição por via da outra.
E assim, não ocorre violação do princípio ne bis in idem por estarmos perante um concurso efetivo de normas (designadamente porque elas protegem interesses de natureza pública distintos) e não perante um concurso aparente de normas (em que porque elas protegem o mesmo interesse de natureza pública têm entre si uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consunção).
Com efeito, o critério que a lei acolhe no tratamento do concurso de infracções, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», (cfr. artº30º do Código Penal) é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de infracções através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de infracções eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de infracções (os casos de concurso aparente e de crime continuado).
Assim, ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis sancionatórias concorrem só na aparência, excluindo uma as outras- concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.
A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção.
O princípio ne bis in idem encontra consagração legal no normativo contido no art. 29º, nº5 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime“.
Assim, a proibição do ne bis in idem abrange a aplicação de novas sanções pela prática da mesma infracção – ne bis in idem na vertente penal (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, pág. 497) e é entendida no sentido de proibição de dupla punição, sendo seu fundamento essencial, o de que, para cada acto ilícito só pode existir uma reacção sancionatória.
Estando-se perante um concurso ideal efetivo de normas, porque elas protegem interesses de natureza pública distintos, em que através de uma mesma acção a Recorrente violou duas normas contra-ordenacionais diversas, não ocorre violação do princípio ne bis in idem.
Por sua vez, como é sabido, na fase judicial do processo de contraordenação, o recurso de impugnação deve ser apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, devendo esta proceder ao envio dos autos ao Ministério Público que os tornará presentes ao juiz. Este ato vale como acusação. Ou seja, não é atribuído o valor de acusação apenas à decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa, mas sim a todo o processo coligido durante a fase administrativa do processo, (neste sentido, Alexandra Vilela, O Direito de Mera Ordenação Social, Entre a Ideia de “Recorrência” e a de “Erosão” do Direito Penal Clássico, 1.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, março de 2013, pág.386).
Constando de todo o processo coligido durante a fase administrativa e da decisão condenatória inequivocamente a realização de um voo nocturno por aeronave da Recorrente sem a respectiva autorização, e bem assim que a aeronave em causa trata-se de uma aeronave de transporte de carga e apresenta, no certificado de ruído do fabricante, os seguintes valores de emissões sonoras, considerando os pontos de referência especificados nas normas técnicas aplicáveis:
a) 76,5 EPNdB – sobrevoo à descolagem; e
b) 84,9 EPNdB – lateral, com potência máxima, factualidade que foi decisiva para a condenação da Recorrente pela prática da contraordenação ambiental em causa, a imputação que lhe é feita da prática da contraordenação em causa não viola o princípio da estrutura acusatória do processo contraordenacional.
Invoca ainda a Recorrente que não tendo havido qualquer pronúncia na Sentença recorrida sobre a por si invocada violação do princípio da estrutura acusatória do processo contraordenacional, padece a mesma do vício de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP.
Porém, salvo o devido respeito, sem qualquer razão.
Com efeito, como é sabido a omissão de pronúncia é um vício gerador de nulidade da decisão judicial que ocorre quando o tribunal não se pronuncia sobre questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer motivo ou argumento aduzido pelas partes. A pronúncia cuja omissão releva incide, assim, sobre problemas e não sobre motivos, argumentos ou às razões alegadas.
Não padece, por isso, de nulidade por omissão de pronúncia a sentença na qual o tribunal não responda, um a um, a todos os argumentos das partes ou que não aprecie questões com conhecimento prejudicado pela solução dada a anterior questão.
Assim, assentando a invocação pela Recorrente da alegada violação do princípio do acusatório na interpretação por si sustentada das normas em referência, mormente da Portaria nº831/2007, que não teve qualquer acolhimento na decisão recorrida, designadamente que a Sentença recorrida bem como a decisão administrativa deveriam ter apurado se o número máximo de movimentos aéreos permitido em período noturno já havia ou seria excedido e se o nível de classificação de ruído da aeronave da Recorrente a impossibilitava de realizar o movimento de descolagem em apreço, estando-se assim perante meros argumentos invocados pela Recorrente, não tinha a decisão recorrida de se pronunciar sobre os mesmos, sendo certo que a mesma se pronunciou sobre todas as questões com relevância para a decisão de mérito, pelo que não padece a mesma do vício de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP.
Assim, improcede totalmente a pretensão da Recorrente de que seja absolvida quanto à contraordenação ambiental que lhe é imputada (artigos 28º, nº2, alínea g), 20º, nº3 e artigos 1º e 2º da Portaria nº831/2007), antes se concluindo pela confirmação da condenação da Recorrente pela prática de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro.
Destarte, improcedem necessariamente as conclusões MM. a AAA. e o recurso também, nessa parte.
*
7ª Questão :
Se Recorrente deve ser absolvida quanto à contraordenação ambiental que lhe é imputada, por força da violação do princípio da proporcionalidade (artigos 2º e 18º, nº2, da CRP).
Nesse sentido, invoca a Recorrente que :
BBB. O Tribunal a quo já decidiu, em sede do processo n.º 303/19.0YUSTR, com base no princípio da proporcionalidade, em caso de violação de faixas horárias, no sentido de dever existir uma tolerância de 15 minutos, explicitando-se na Sentença ora recorrida o seu entendimento: “Assim consideramos, com a Recorrente, que apenas atrasos com alguma expressão (...) são susceptíveis de integrar comportamentos subsumíveis na norma cominatória em análise e não qualquer atraso “insignificante”. Porém, para se apurar a dita irrelevância, a mesma deverá assentar em algum tipo de critério, nem que seja os usos da actividade em causa. Ora, segundo o ponto 2.3.2.1 da EUR Regional Supplementary Procedures (SUPPS) (Doc 7030), “Any changes to the EOBT (estimated off-block time) of more than 15 minutes for any IFR (instrument flight rules) flight within the IFPZ (instrument flight rules zone) shall be communicated to the IFPS” (...)
Daqui decorre uma tolerância indirecta relativamente a atrasos de 15 minutos, não sendo necessário comunicar ao IFPS atrasos até 15 minutos.
Apesar de falarmos de realidades diversas (planos de voo e slots ou faixas horárias), consideramos que o mesmo será o critério adequado a utilizar nesta sede, considerando-se que a punição de atrasos de menos de 15 minutos violaria o princípio da proporcionalidade” (sublinhado nosso).
CCC. Na Sentença recorrida, o Tribunal a quo escudou-se na seguinte argumentação para afastar um qualquer juízo de proporcionalidade ou tolerância quanto à operação efetuada no primeiro minuto do período noturno (00:00 LT) pela Recorrente: “Ou seja, a ponderação, sob o prisma do princípio da proporcionalidade, terá de levar em conta que o legislador fixou o início da restrição às 00h00 tendo em vista que, a partir dessa hora, é expectável que a maioria da população esteja em período de maior repouso.
Está em causa essencialmente a saúde e o descanso dos habitantes afectados, de modo significativo, pelo ruído das aeronaves, procurando-se acautelar esse descanso de toda uma vastíssima população que reside junto aos corredores aéreos ou se encontra internada em hospitais igualmente afectados pelo ruido desses corredores e que todas as noites é importunada pelo ruido produzido pelas aeronaves.
São bem conhecidos os efeitos negativos que o ruido provoca nas populações assim afectadas, onde se elenca danos directos na sua saúde por força do seu impacto na qualidade do sono, com aumento do risco de lesões vasculares, hipertensão arterial, podendo comprometer o desempenho cognitivo das crianças e criar problemas do foro psicológico, como ansiedade e irritabilidade.
Tendo em vista o que se expôs, no caso de restrições ao período nocturno, consideramos que não é de aplicar qualquer tipo de tolerância, sob pena do número de movimentos aéreos que o legislador determinou como máximo, para assegurar o descanso da população pelo menos a partir das 00h00, aumentar exponencialmente, por força da aplicação, na prática, de um horário de restrição com inicio pelas 00h15, com violação injustificada da norma que dita que o período de restrição tem inicio às 00h00 e o número de voos a realizar entre as 00h00 e as 06h00 não pode ultrapassar 11 movimentos diários, 70 semanais e 2100 anuais.” (sublinhado nosso).
DDD. Com o devido respeito, se na teoria a Recorrente concorda com o Tribunal a quo no acima exposto, não deixando de notar que o mesmo se refere repetidamente ao ruído e ao descanso (e bem, tendo em consideração o bem jurídico que se visa proteger), na prática e no caso concreto, cremos que o Tribunal olvidou o essencial na sua ponderação, a saber:
EEE. Que os factos provados e a Portaria n.º 831/2007 mostram que a aeronave da Recorrente é uma aeronave de transporte de carga (facto provado 3), cuja atividade é na verdade incentivada pelo próprio preâmbulo da Portaria n.º 831/2007, e que apresenta no certificado de ruído do fabricante valores de emissões sonoras que, para todos os efeitos, se enquadram no nível mais baixo possível de todos os previstos na lei (nível 0) – cf. artigo 2.º, n.º 3, alínea a) da Portaria n.º 831/2007,
FFF. Que, para todos os efeitos, as aeronaves classificadas no nível 0 (bem como nos níveis 0,5, 1 e 2), não estão sujeitas a quaisquer restrições de programação no período noturno – isto é, caso não se ultrapasse o número máximo de movimentos aéreos permitidos e exista uma autorização (Slot aeroportuário ou ATC) – podem voar no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, conforme previsto na lei, a qualquer hora entre as 0 e as 6 horas,
GGG. Que, para todos os efeitos, a aeronave da Recorrente realizou a operação em apreço às 00:00 LT, isto é, no primeiríssimo minuto do período noturno.
HHH. Recordando que tudo o que é expendido pelo Tribunal a quo a este respeito se relaciona com o bem jurídico tutelado (a saber, evitar ruído das aeronaves que possa afetar de modo significativo a saúde e o descanso da população), chegamos à conclusão de que, em bom rigor, caso a aeronave de carga da Recorrente pudesse afetar de modo significativo a população com o seu ruído (sem prejuízo do respeito pelo número máximo de movimentos aéreos permitidos), a lei nunca permitiria (como acontece com as aeronaves classificadas nos níveis 4, 8 e 16) que esta pudesse efetuar operações durante qualquer hora do período noturno (entre as 0 e as 6 horas).
III. Estando sob análise uma contraordenação ambiental, por referência expressa ao ruído e classificação sonora da aeronave (cf. artigo 20.º do Regulamento Geral do Ruído), a decisão de sancionar a Recorrente com uma coima no valor de €12.000,00 (doze mil euros), acrescida de custas, por esta ter efetuado um movimento aéreo às 00:00 LT (primeiro minuto do período noturno) de 02.04.2021, com uma aeronave de transporte de carga, classificada sonoramente no nível mais baixo de todos os previstos na lei (nível 0), viola manifestamente o princípio da proporcionalidade (cf. artigo 2.º e 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).
JJJ. Não se pode considerar assegurado o princípio da proporcionalidade, quando o movimento aéreo efetuado pela Recorrente não seria sequer abstrata e teoricamente punível se efetuado uns segundos antes – isto é, às 23:59 LT -, assim como não é proporcional sancionar a Recorrente quando o movimento aéreo efetuado pela mesma, no primeiro minuto do período noturno, não atingiu o bem jurídico protegido pela norma ínsita no artigo 28.º, n.º 2, alínea g) e no artigo 20.º, n.º 3 do Regulamento Geral do Ruído, conjugados com a Portaria n.º 831/2007.
KKK. É manifesta a desproporcionalidade entre o ruído concretamente efetuado pela aeronave da Recorrente (nível 0 de classificação sonora), no primeiro minuto do período noturno, e a sanção concretamente aplicada à Recorrente, por alegada prática de contraordenação ambiental grave, que protege um bem jurídico que não foi efetivamente violado – cf. artigos 28.º, n.º 2, alínea g) e 20.º, n.º 2 e 3 do Regulamento Geral do Ruído, conjugados com o artigo 1.º e 2.º da Portaria n.º 831/2007.
LLL. Face ao exposto, e salvo o devido respeito, o Tribunal a quo violou o princípio da proporcionalidade previsto no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, ao não aplicar “qualquer tipo de tolerância” na sua ponderação (cf. página 50 da Sentença recorrida), uma vez que o caso concreto assim o exigia, atenta a aeronave de transporte de carga da Recorrente, a sua respetiva classificação sonora de nível 0 (a mais baixa de todas as previstas na lei), a realização da operação no primeiríssimo minuto do período noturno (e não estando demonstrado ter sido ultrapassado o limite diário previsto na lei) e ainda a existência de uma permissão/slot ATC para descolar.
MMM. Em suma, violou o Tribunal a quo, na Sentença recorrida, o princípio da proporcionalidade – cf. artigos 2.º e 18.º, n.º 2, ambos da Constituição da República Portuguesa – devendo decidir-se, a final, pela absolvição da Recorrente quanto à prática da contraordenação que lhe vem imputada, p.p. no artigo 28.º, n.º 2, alínea g) do Regulamento Geral do Ruído.
Voltemos ao decidido, a esse propósito, na decisão recorrida :
Também defende a Recorrente que se mostra desproporcional a condenação na medida em que o período nocturno começa às 00h00LT e a saída de calços começou precisamente a essa hora, tendo a descolagem ocorrido às 00h10LT.
O tribunal, como bem refere a Recorrente, já decidiu, em sede do processo n.º 303/19.0YUSTR, com base no princípio da proporcionalidade, em caso de violação de faixas horárias, no sentido de dever existir uma tolerância de 15 minutos.
Fê-lo explicando que não se mostraria razoável nem conforme ao princípio da proporcionalidade, uma interpretação que impusesse que toda e qualquer violação da faixa horária atribuída, por insignificante que fosse, implicasse a prática de uma contra-ordenação pelas companhias aéreas.
Nessa sede, verifica-se igualmente que o tribunal ponderou os bens jurídicos em apreço, estando em causa, reforçamos, a violação de faixas horárias, escrevendo, o seguinte:
“Tratar-se-ia de um sancionamento que excederia largamente o necessário relativamente aos objectivos do legislador com a previsão deste tipo contra ordenacional: organizar toda a estrutura aeroportuária, evitando o congestionamento e promovendo a eficiência do aeroporto no que diz respeito à capacidade, mediante este método de regulação que estabelece quais os horários de aterragem e descolagem para as companhias aéreas e a quantidade máxima de horários para as companhias aéreas.
“Assim consideramos que apenas atrasos com alguma expressão (por isso potencialmente susceptíveis de afectar a organização da estrutura aeroportuária) são susceptíveis de integrar comportamentos subsumíveis na norma cominatória em análise e não qualquer atraso “insignificante”.”
“Interpretar a norma de forma rígida, não permitindo qualquer tolerância seria uma interpretação excessivamente formalista, a qual não teria a capacidade para suprir todas as exigências de uma actividade complexa como a actividade da aviação aérea, devendo ser afastada a punição de casos de pouca ou nenhuma relevância, como por exemplo, atrasos de poucos minutos relativamente à hora da faixa horária atribuída.”
Porém, no presente caso, os objectivos do legislador são outros. Ou seja, a ponderação, sob o prisma do princípio da proporcionalidade, terá de levar em conta que o legislador fixou o início da restrição às 00h00 tendo em vista que, a partir dessa hora, é expectável que a maioria da população esteja em período de maior repouso.
Está em causa essencialmente a saúde e o descanso dos habitantes afectados, de modo significativo, pelo ruído das aeronaves, procurando-se acautelar esse descanso de toda uma vastíssima população que reside junto aos corredores aéreos ou se encontra internada em hospitais igualmente afectados pelo ruido desses corredores e que todas as noites é importunada pelo ruido produzido pelas aeronaves.
São bem conhecidos os efeitos negativos que o ruido provoca nas populações assim afectadas, onde se elenca danos directos na sua saúde por força do seu impacto na qualidade do sono, com aumento do risco de lesões vasculares, hipertensão arterial, podendo comprometer o desempenho cognitivo das crianças e criar problemas do foro psicológico, como ansiedade e irritabilidade.
Tendo em vista o que se expôs, no caso de restrições ao período nocturno, consideramos que não é de aplicar qualquer tipo de tolerância, sob pena do número de movimentos aéreos que o legislador determinou como máximo, para assegurar o descanso da população pelo menos a partir das 00h00, aumentar exponencialmente, por força da aplicação, na prática, de um horário de restrição com inicio pelas 00h15, com violação injustificada da norma que dita que o período de restrição tem inicio às 00h00 e o número de voos a realizar entre as 00h00 e as 06h00 não pode ultrapassar 11 movimentos diários, 70 semanais e 2100 anuais.
Neste exercício racionalizador relevante, no quadro de ponderação normativo-constitucional, consideramos que a adopção de algum tipo de critério de tolerância à violação das restrições do período nocturno fragilizaria os direitos fundamentais das populações adjacentes aos aeroportos, obscurecendo os bens jurídicos tutelados pelas normas, o que reverteria numa consideração problemática do ponto de vista da democracia e da separação de poderes, já que a ponderação seria injustificada num prisma de afectação daqueles direitos fundamentais.
Conforme refere Mariana Canotilho, in “O princípio da proporcionalidade e os seus críticos”, XIII Encontro de Professores de Direito Público, Instituto Jurídico Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2021, pág. 157:
“Não pode confundir-se o princípio da proporcionalidade, ou mesmo o balanceamento, com o mau uso que dele possa ser feito, designadamente utilizando-o como mecanismo que permite exceder os limites do controlo de constitucionalidade ou alimentar o activismo judicial (…)”.
Parece igualmente a Recorrente defender que se o preâmbulo da Portaria 831/2007, de 1 de Agosto refere que as actividades de transporte de carga e de correio expresso são indispensáveis ao desenvolvimento industrial e económico da região e dos respectivos agentes, por assegurarem a distribuição dos produtos e recepção dos materiais e componentes just in time, para as quais o transporte durante o período nocturno é absolutamente vital e sendo a aeronave em causa de transporte de carga, existiria como que uma via verde para operar em período nocturno.
Porém, como já esclarecemos variadas vezes, existem limites de números de movimentos nocturnos que podem ser contemplados com uma autorização, quer diários, quer semanais, quer anuais. Esses limites aplicam-se quer a voos de carga ou de passageiros (ainda que se possa concluir que a Portaria permite que exista uma preferência dos primeiros em elação aos segundos, sem nunca obviamente colocar em causa as limitações que a própria estabelece).
Se existisse essa via verde que a Recorrente parece defender seriam crassamente violados os limites / restrições que a Portaria prevê, designadamente, ao nível do número de movimentos diários, semanais e anuais permitidos. Somente existindo uma rigorosa autorização prévia de voos nocturnos a entidade competente logrará conjugar todos os interesses em causa, cumprindo as restrições da Portaria.
Finalmente, quanto à existência de um caso de força maior, também alegado pela Arguida, não decorre dos factos provados qualquer tipo de factualidade que tenha a virtualidade de se integrar no conceito atinente, previsto no artigo 5.º da 1249 Portaria 831/2007, de 1 de Agosto.
Nestes termos, deve improceder a pretensão da Recorrente.
Mais uma vez, concordamos, no essencial, com a decisão recorrida.
Ao aí referido, apenas importa acrescer que no trajeto interpretativo da lei não se deve ater, apenas e só, à sua letra, mas reconstituir a partir dela o pensamento legislativo, procurando-se este a partir daquela. E, face a tal, a letra (o enunciado linguístico) sendo o ponto de partida, exerce também a função de um limite, já que de acordo com o nº 2 do dito dispositivo, entre os sentidos possíveis da lei, há que seguir aquele pensamento legislativo que tenha na literalidade da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
Acresce a letra (texto) da lei exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio à interpretação que melhor condiga com o significado natural e correto das expressões utilizadas.
Considerando todo o expendido e o elemento literal da normação aqui em disputa, salvo o devido respeito, o entendimento sustentado pela Recorrente, sob o pretexto da observância do princípio da proporcionalidade, acaba por conduzir a um sentido que desrespeita completamente o texto da norma por não ter o mínimo de correspondência verbal com o mesmo texto.
Com efeito, sustentar, como faz o Recorrente, invocando o princípio da proporcionalidade, um sentido normativo de “aterragem e a descolagem de aeronaves civis entre as 0h15mn e as 6 horas” é defender um sentido interpretativo normativo que não tem o mínimo de correspondência verbal com a literalidade do texto da lei “aterragem e a descolagem de aeronaves civis entre as 0 e as 6 horas”.
E assim o sentido interpretativo defendido pela Recorrente não pode ser considerado, não só por o mesmo não ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, e dessa forma estar vedado pelo disposto no artº9º, nº2, do Código Civil, mas também por se mostrar completamente contrário aos princípios da legalidade, da taxatividade e da tipicidade, que regem no direito sancionatório, onde também não é permitido o recurso à analogia (cfr. artº1º, nº3, do Código Penal ex vi do artº32º do RGCO) nem à interpretação correctiva, sendo muito reduzida a possibilidade de interpretação extensiva.
Assim, improcede totalmente a pretensão da Recorrente de que seja absolvida quanto à contraordenação ambiental que lhe é imputada (artigos 28º, nº2, alínea g), 20º, nº3 e artigos 1º e 2º da Portaria nº831/2007), antes se concluindo pela confirmação da condenação da Recorrente pela prática de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro.
Destarte, improcedem necessariamente as conclusões BBB. a MMM. e o recurso também nesta parte.
*
8ª Questão :
Se deve ser proferida decisão que aplique o instituto da atenuação especial da coima previsto no artigo 23º-A da Lei 50/2006, de 29/08 e no artigo 72º do Código Penal, aplicável ex vi artigo 2º da Lei nº5/2006 e artigo 32º do RGCO
Para sustentar esta sua pretensão recursiva, alega a Recorrente :
OOO. Entendeu o Tribunal a quo que era inaplicável aos presentes autos o instituto da atenuação especial da coima, previsto no artigo 72.º do Código Penal, aplicável ex vi artigo 2.º da Lei n.º 50/2006, de 29/08 e 32.º do RGCO.
PPP. Salvo o devido respeito, a Recorrente considera que, no caso concreto da contraordenação ambiental que lhe é imputada, várias circunstâncias justificam a atenuação especial da coima, in casu por aplicação artigo 72.º do Código Penal, a saber:
a. A aeronave utilizada pela Recorrente no movimento aéreo corresponde a uma aeronave de transporte de carga, atividade especialmente incentivada no preâmbulo da Portaria n.º 831/2007.
b. A aeronave da recorrente tem a classificação sonora mais baixa de todas as previstas na lei – a saber, classificação sonora de nível 0 – não estando sujeita a restrições temporais dentro do horário de período noturno (entre as 0 e as 6 horas);
c. O movimento aéreo foi efetuado no primeiríssimo minuto do período noturno (isto é, às 00:00 LT);
d. Não se demonstrou provado qualquer dano nem tampouco qualquer benefício económico retirado pela Recorrente.
QQQ. Crê a Recorrente, salvo o devido respeito pelo entendimento do Tribunal a quo, e de forma consentânea com o disposto no artigo 23.º-A da Lei n.º 50/2006, que no caso concreto da contraordenação ambiental que lhe é imputada, a conduta da arguida globalmente considerada é realmente diminuta: não só já decorrem quatro anos da prática dos factos, como não existe notícia de que a Recorrente não tenha mantido, durante todo esse tempo, uma conduta conforme ao Direito, e ainda, não se provou que da sua conduta tenha causado qualquer prejuízo ambiental ou que a Recorrente tenha daí retirado um benefício económico para si mesma – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12-02-2025,Processo n.º 3164/23.1T9MAI.P1.
RRR. Salvo o devido respeito, errou o Tribunal a quo na apreciação do instituto da atenuação especial da coima previsto no artigo 72.º do Código Penal, aplicável ex vi artigo 2.º da Lei n.º50/2006 e 32.º do RGCO, face ao caso concreto da contraordenação ambiental, pois que se verificam várias circunstâncias atenuantes que devem levar à aplicação da atenuação especial da coima (a saber, aeronave de transporte de carga, com a classificação sonora de nível 0 e não sujeita a restrições temporais no período noturno, com o movimento aéreo a ser efetuado no primeiro minuto do período noturno e sem ter ficado demonstrada a existência de qualquer dano ambiental e ou de qualquer benefício económico que haja sido retirado pela Recorrente),
SSS. Levando assim à conclusão de que a conduta da arguida, globalmente considerada, no caso concreto da imputada contraordenação ambiental, revela uma diminuição acentuada da ilicitude do facto (movimento aéreo com aeronave de transporte de carga classificada sonoramente no nível 0, no primeiro minuto do período noturno), da sua culpa (negligência inconsciente) e da necessidade da pena (a Recorrente manteve desde a prática dos factos uma conduta conforme ao Direito, evidenciando-se uma menor exigência de prevenção).
No mesmo sentido da pretensão da Recorrente relativamente à 1ª infracção, manifestou-se o Ministério Público invocando a esse propósito, em sentido convergente com a Recorrente :

44. A Recorrente apela para a aplicação do regime da atenuação especial, previsto no art. 72º do Código Penal (conclusões OOO. e ss).
Contraordenação ambiental grave (1ª infração)
45. No caso da contraordenação ambiental grave, prevista pelo art. 28º, nº 2, g), do DL 9/2007, de 17/01 que aprovou o Regulamento Geral do Ruído é aplicável o regime da Lei 50/2006, de 29/08.
46. Este contraordenação ambiental é punida pelo art. 22º, nº 3, b) deste regime: coima de € 12 000 a €72 000 em caso de negligência e de € 36 000 a € 216 000 em caso de dolo, se praticadas por pessoas coletivas.
47. Art. 23º-A da Lei 50/2006, de 29/08:
«1- Para além dos casos expressamente previstos na lei, a autoridade administrativa atenua especialmente a coima, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores à prática da contraordenação, ou contemporâneas dela, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da coima.
2- Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter havido atos demonstrativos de arrependimento do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados e o cumprimento da norma, ordem ou mandado infringido;
b) Terem decorrido dois anos sobre a prática da contraordenação, mantendo o agente boa conduta.
3- Só pode ser atendida uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo».
48. Uma vez que a infração ocorreu no dia 01/04/2021, considero que o legislador permite atenuar especialmente a coima no caso concreto relativamente à contraordenação ambiental grave.
Segunda infração
49. Quanto à contraordenação grave prevista pelo art. 9º, nº 2, c), do DL 109/2008, de 26/06 alterado (descolagem de aeronave em aeroporto coordenado na data para a qual foi atribuída a faixa horária, mas em violação da mesma faixa horária, sem que tal se deva a motivo de força maior ou a razões operacionais), a conduta da arguida é punida de acordo com o regime jurídico aplicável às contraordenações aeronáuticas civis, aprovado pelo DL 10/2004, de 09/01, sendo-lhe aplicável subsidiariamente o RGCO – v.art. 35º.
A arguida é punida pelo art. 9º, nº 3, b), deste diploma.
50. Estabelece o art. 18º, nº 3, do RGCO: «Quando houver lugar à atenuação especial da punição por contraordenação, os limites máximo e mínimo da coima são reduzidos para metade».
De acordo com o RGCO, os casos em que há lugar à atenuação especial da punição são exclusivamente os expressamente previstos nas normas dos artigos 9º, nº 2 (erro sobre a ilicitude censurável), 13º, nº 2 (tentativa) e 16º, nº 3 (punição do cúmplice quando comparticipante). Este regime especial afastou expressamente o instituto penal da atenuação especial, sendo-lhe contrário, na aceção do art. 32º, do RGCO.
51. No sentido de o RGCO não consentir aplicação da atenuação especial do CP aponta a existência de regimes especiais que justamente preveem o instituto, como são os casos do art. 3º, nº 5 do DL 10/2004, de 09/01, do art. 80º (art. 80º, nº 1, remete para a lei geral, entendida, hoc sensu, como sendo o RGCO – cfr. a alínea «a) Em caso de contra-ordenação leve ou grave, aplica-se o disposto no n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro;». Idem quanto ao art. 71º, da Lei da Rádio) e 81º, da Lei 27/2007, de 30/07, versão atual (Lei Televisão), do art. 71º, nº 1, a) da Lei n.º 54/2010, de 24/12 (Lei Rádio), do art. 59º, nº 9, da Lei n.º 34/2013, de 16/05 (atividade de segurança privada) «Nos casos de cumplicidade e de tentativa, bem como nas demais situações em que houver lugar à atenuação especial da sanção, os limites máximo e mínimo da coima são reduzidos para metade».
O art. 363º, nº 4 da Lei n.º 147/2015, de 09/09 (Regime jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora e resseguradora) fala em “Atenuação decorrente da reparação do dano ou da redução do perigo”.
52. O Ac. STJ de 30/03/2016, P. 69/14.0 YUSTR, rejeitou a interposição de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, por oposição entre o Ac. da RL de 07/10/2015 proferido no P. 69/14.0 YUSTR com o AUJ do STJ de 15/10/2015, que fixou jurisprudência no sentido de ser aplicável às CO ambientais o regime do art. 72º do CP.
53. No sentido de ser aplicável a atenuação especial do CP, com base no AUJ do STJ n.º 13/2015, de 09/09/2015 (DR de 15/10/2015, nº 202, 1ª série), decidiu o Ac. RL de 23/10/2023, P. 385/22.8YUSTR.L1: «I – A atenuação especial de pena prevista pelo art. 72.º, n.ºs 1 e 2, do CP é subsidiariamente aplicável às contra-ordenações aeronáuticas civis, por força do disposto no art. 32.º do Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27-10. II - A coima só deve ser especialmente atenuada quando esteja demonstrada uma situação excepcional, ao nível da ilicitude, da culpa ou das exigências sancionatórias, que justifique a substituição da moldura prevista pelo legislador por outra menos severa».
No sentido de não se aplicar o regime da atenuação especial do CP
54. No sentido de não se aplicar o Código Penal, por não haver lacuna no RGCO, cfr. o Ac. RL de 20/03/2014, P. 23/12.7 YUSTR.E.L1, o Ac. RL de 07/10/2015, P. 69/14.0 YUSTR.L1, pp 55 e 56 e o Ac. STJ de 25/05/2015, P. 44/14.5 TBORQ.E1-A.S1.
55. Como referiu o Ac. da RL de 20/03/2014, P. 23/12.7 YUSTR.E.L1, pp 317-318, «Ora, (…) resulta, inequivocamente, da letra da lei – art.º 18.º, n.º 3, do RGCO -, [que] só haverá lugar à atenuação especial da punição por contra-ordenação nos casos expressamente previstos na lei, isto é, no caso de erro censurável sobre a ilicitude – art.º 9.º, n.º 2, tentativa – art.º 13.º, n.º 2 e cumplicidade – art.º 16.º, n.º 3, (…). Por outro lado, resultando do art.º 32.º do RGCO que a aplicação do Cód. Penal apenas terá lugar a título subsidiário, isto é, a mesma aplicação só ocorre quando o DL n.º 433/82 for omisso relativamente à matéria a regular e a norma do citado Cód. Penal para a qual se remete não se oponha aos princípios do mesmo decreto-lei, não poderá, como pretende o recorrente, sustentar-se uma atenuação especial das contra-ordenações à luz da ponderação do circunstancialismo previsto no art. 72.º, pois que, como se referiu, os casos em que tal se torna possível estão previstos na lei, sendo que, a entender-se de outra forma, o n.º 3 do atrás citado art.º 18.º não tinha qualquer razão de ser.
Para quê a sua existência, se, afinal, o art.º 72.º do Cód. Penal tem uma muito maior abrangência, compreendendo, também, as circunstâncias previstas no RGCO, atrás descritas!? (…) Uma ausência normativa querida pelo legislador não é uma lacuna,
O pano de fundo da norma do art.º 72.º do Cód. Penal é só e apenas o direito penal, como resulta das alíneas a) e d) do seu n.º2.».
56. «Mesmo no direito penal é questionável a existência de uma cláusula geral de atenuação especial da pena como a prevista no art. 72º, nº 1 do CP, pois, como referiu Figueiredo Dias, ela só fazia sentido no âmbito de uma velha e desatualizada parte especial do Código Penal que apresentava «molduras penais escusada e injustamente severas, características de um tempo em que o princípio político-criminal da humanização do direito penal se não fazia ainda sentir (…); em função, por outro lado, de molduras penais demasiado exíguas, com os limites máximo e mínimo relativamente próximos, consequência ainda do dogma das penas fixas e da desconfiança perante a autonomia da função judicial. Nenhuma destas razões tem hoje a mínima validade perante um CP como o nosso, moderno, impregnado pelo princípio da humanização e dotado de molduras penais suficientemente amplas» - cfr. J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências jurídicas do crime, Cap. 9º, § 465, p. 312. Isto mesmo foi afirmado pelo Ac. do STJ de 30/10/2003, CJ, Ac. STJ, 2003, tomo 3, p. 220.
Daí que tal regime se justifique apenas diante de casos “relativamente extraordinários ou mesmo excecionais” (F. Dias, ibidem, p. 312.). Neste preciso sentido cfr. a parte final da fundamentação do Ac. do STJ de 07/09/2011, Oliveira Mendes, P. 356/09.0JAAVR.S1: «Trata-se assim de uma válvula de segurança, só aplicável a situações que, pela sua excepcionalidade, não se enquadram nos limites da moldura penal aplicável ao respectivo crime, ou seja, a situações em que se mostra quebrada a relação/equivalência entre o facto cometido e a pena para o mesmo estabelecida, consabido que entre o crime e a pena há (deve haver) uma equivalência».
57. Se estas são as razões que explicam o instituto à luz do direito penal clássico, e mesmo assim com reservas, compreende-se, agora, por que razão a sua aplicação como cláusula geral é de todo incompatível com o direito de mera ordenação social, no âmbito do qual não se aplicam penas de prisão, nem penas de multa convertíveis em prisão em caso de não pagamento, considerações de todo ausentes na jurisprudência recetiva à aplicação do regime penal às contraordenações.
58. Em suma, como venho defendendo há longo tempo, o regime excecional da atenuação especial do CP não é aplicável ao direito das contraordenações, quer por razões formais, quer por razões substantivas.
59. Ainda que assim não se entenda, os factos dados como provados não registam circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores à infração que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa ou a necessidade da sanção relativamente à 2ª infração –v. art. 72º, nº 1, do CP.
60. Por estas razões, a arguida poderá beneficiar do regime da atenuação especial em relação à 1ª infração, o que já não acontece relativamente à 2ª infração, pelo que o recurso deverá proceder parcialmente nesta parte.”
Voltemos à decisão recorrida e ao que aí foi referido a este propósito :
“- Da possibilidade de atenuação especial da coima:
A Recorrente defende que as coimas deveriam ser especialmente atenuadas.
Por via do artigo 32.º do RGCO, quer a doutrina, quer a jurisprudência maioritárias, têm entendido que tem aplicação o disposto no artigo 72.º do CP, referente à atenuação especial, ao domínio do processo contra-ordenacional – vide, acórdão da Relação de Coimbra de 06.11.2013, processo n.º 60/13.4TBALD.C1, da Relação de Évora de 22.01.2019, processo n.º 135/18.3T8TNV.E1, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2011, processo n.º 17/10.7YFLSB-5.ª, todos in www.dgsi.pt e o próprio acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 13/2015, publicado no Diário da República n.º 202/2015, Série I de 2015-10-15, que uniformizou o seguinte entendimento: “É aplicável às contra-ordenações ambientais a atenuação especial nos termos do artigo 72.º do Código Penal, ex vi do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto e 32.º do RGCO”, vide também Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Regime Geral das Contra- Ordenações, à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, pág. 86 e Simas Santos e Lopes de Sousa, in “Contra-ordenações, Anotações ao Regime Geral, 6.ª Edição, 2011, 1320 Lisboa, Vislis, 7.ª anotação ao artigo 18.º.
De acordo com o n.º 1 do artigo 72.º do CP, “o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.”
A propósito desta matéria, Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág. 306, refere o seguinte:
“A diminuição da culpa ou das exigências da prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto resultante da actuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Por isso, tem plena razão a nossa jurisprudência – e a doutrina que a segue –,quando insiste em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar: para a generalidade dos casos, para os casos “normais”, lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios”.
Trata-se assim de uma válvula de segurança, só aplicável a situações que, pela sua excepcionalidade, não se encaixam nos limites da moldura da coima aplicável ao caso, ou seja, a situações em que se mostra quebrada a relação/equivalência entre o facto cometido e a coima para o mesmo estabelecida, consabido que entre a contra-ordenação e a coima deverá existir uma equivalência.
Os pressupostos da atenuação especial previstos no artigo 72.º CP consubstanciam-se na existência de circunstâncias anteriores ou posteriores à prática do ilícito, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da sanção.
Para esse efeito, decorre do n.º 2 do artigo 72.º do CP, que são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
Há que ver, então, se se justifica, no caso concreto, a atenuação especial da coima.
Salvo o devido respeito por melhor entendimento, tendo em consideração que a atenuação especial da coima é um instituto de cariz excepcionalíssimo, sob pena do poder judicial se imiscuir indevidamente nas opções legislativas do poder legislativo democraticamente legitimado, com violação do princípio da separação de poderes, especialmente quando estamos perante molduras com uma elasticidade enorme como as que estão em causa, o que denota que o legislador foi cuidadoso e previu uma possibilidade variadíssima de situações, não será de aplicar o referido instituto legal.
Assim, consideramos que o legislador, quando previu as molduras legais aplicáveis, com latitudes grandes, teve em mente situações como as que estão em causa nestes autos, nomeadamente, quanto ao facto de não existir uma autorização para operar no período nocturno, o facto da aeronave emitir pouco barulho na descolagem (importa referir que actualmente, não existe nenhuma aeronave comercial que seja completamente silenciosa, apesar dos avanços científicos, sendo igualmente certo que, por força da ausência de outros ruídos circundantes, os sons emitidos pelas aeronaves no período nocturno costumam ser mais sentidos pelas populações adjacentes aos aeroportos) e o facto da aeronave ter iniciado o movimento de saída de calços no primeiro minuto da restrição, descolando no décimo minuto. Isso são tudo considerações que devem ser acomodadas em sede da determinação concreta da coima.
Por outro lado, também não consideramos um atraso de 30 minutos no que tange à violação do slot seja uma situação que revista um carácter tão excepcional que pudesse permitir considerar que os critérios aplicáveis para efeitos de determinação da medida concreta da coima não asseguram a justiça no caso concreto.
Por seu turno, quanto à ausência de danos, importa referir que estão em causa contra-ordenações de mero perigo abstracto, o que significa que o que está primacialmente em causa não é o dano, mas sim o perigo, bastando-se a lei com a produção do perigo em abstracto para que, dessa forma, o tipo legal esteja preenchido
Essa abstracção revela que a perigosidade da acção, é presumida juris et de jure, cujo o perigo, concebido como situação perigosa, não surge sequer como evento típico, destacado da acção. Por isso, a ausência de danos ou constrangimentos não revela qualquer tipo de excepcionalidade.
A ausência de um benefício económico também não constitui qualquer evento excepcional que permita lançar mão do instituto em causa.
Para além disso, não pudemos deixar aqui de expressar a absoluta falta de actos demonstrativos de arrependimento sincero da Arguida, que mesmo condenada pela ANAC, continua a entender que pode operar em período nocturno sem autorização e continua a considerar desculpável atrasos de 30 minutos no cumprimento das faixas horárias que lhe são atribuídas.
Em suma, todos os critérios indicados pela Recorrente não são, salvo o devido respeito por melhor entendimento, decisivos no sentido de permitir concluir que o legislador não previu situações semelhantes quando estabeleceu as molduras contra-ordenacionais, com vista a permitir accionar a válvula de escape da atenuação especial, sendo certo que a Recorrente não evidencia ter-se consciencializado verdadeiramente do desvalor das suas condutas.
Não existem circunstâncias que deponham no sentido de um invulgar quadro fáctico que imponham um sentimento de gritante desproporcionalidade da coima, ao ponto de se concluir que o legislador, quando pensou na moldura abstracta, não previu uma situação como a dos autos. Julgamos que a realidade factual apurada em pouco acrescenta às situações pensadas pelo legislador.”
Pese embora a sentença recorrida não tenha atentado no Art. 23º-A da Lei 50/2006, de 29/08, em que, conforme pertinentemente realça o Ministério Público, o legislador permite atenuar especialmente a coima no caso concreto relativamente à contraordenação ambiental grave, mais uma vez se concorda com o decidido a este propósito na decisão recorrida.
Com efeito, a Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto é a Lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais, na qual foi aditado pela Lei nº 114/2015, de 28 de Agosto o artigo 23º-A, com a epígrafe de atenuação especial da coima, onde se estatui :
“1-Para além dos casos expressamente previstos na lei, a autoridade administrativa atenua especialmente a coima, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores à prática da contraordenação, ou contemporâneas dela, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da coima.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a. Ter havido atos demonstrativos de arrependimento do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados e o cumprimento da norma, ordem ou mandado infringido;
b. Terem decorrido dois anos sobre a prática da contraordenação, mantendo o agente boa conduta.
3 - Só pode ser atendida uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.”
Estatuindo-se no artigo 23º-B, também aditado pela Lei nº 114/2015, de 28 de Agosto, sob a epígrafe de termos da atenuação especial :
“Sempre que houver lugar à atenuação especial da coima, os limites mínimos e máximos da coima são reduzidos a metade.”
Assim, se relativamente à contraordenação ambiental grave, prevista pelo art. 28º, nº 2, g), do DL 9/2007, de 17/01 que aprovou o Regulamento Geral do Ruído é aplicável o regime especialmente previsto nos artigos 23º-A e 23º-B da Lei 50/2006, de 29/08, por força do disposto no artigo 1º, nºs 1, 2 e 3, da mesma Lei nº50/2006, já relativamente à contraordenação grave prevista pelo art. 9º, nº 2, c), do DL 109/2008, de 26/06 se suscita, desde logo, a questão de saber se lhe é aplicável o regime da atenuação especial, previsto no art. 72º do Código Penal.
Ora, conforme se refere na sentença recorrida a esse propósito, quer a doutrina, quer a jurisprudência maioritárias, têm entendido que tem aplicação o disposto no artigo 72.º do CP, referente à atenuação especial, ao domínio do processo contra-ordenacional, não vislumbrando motivos para se dissentir de tal entendimento maioritário, assim se verifiquem os respectivos pressupostos de aplicação, divergindo-se neste ponto do sustentado pelo Ministério Público na sua resposta.
Vejamos.
*
Relativamente a esta questão, apenas resultou provado que :
- A Recorrente é uma transportadora aérea, (facto provado 1);
- Não são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais em que seja entidade administrativa a ANAC, (facto provado 8);
- Não é conhecida a situação económica e financeira da Recorrente, apesar da mesma ter sido devidamente notificada para a comprovar nos autos, (facto provado 9).
Ora, assim sendo não resultou provada matéria de facto de onde se pudesse concluir pela existência de circunstâncias anteriores ou posteriores à prática da contraordenação, ou contemporâneas dela, que tenham diminuído por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa da agente ou a necessidade da coima, não se tendo apurado ter havido quaisquer atos demonstrativos de arrependimento da agente e apesar de terem decorrido dois anos sobre a prática da contraordenação, apenas se apurou que não são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais em que seja entidade administrativa a ANAC, o que não é equivalente a ser dado como provado que a Recorrente não tem antecedentes contraordenacionais junto da ANAC.
E isto quer à luz do disposto no artigo 23º-A da Lei 50/2006, de 29/08, quanto á contra-ordenação ambiental, quer perante o disposto no art. 72º do Código Penal quanto à contra-ordenação do apenso A).
E assim, não se vislumbrando circunstâncias anteriores ou posteriores à prática das contraordenações, ou contemporâneas delas, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da coima, importa concluir pela não aplicação do instituto da atenuação da coima previsto no artigo 23º-A da Lei 50/2006, de 29/08 e no art. 72º do Código Penal
Destarte, improcedem necessariamente as conclusões OOO. a SSS. e o recurso também nesta parte.
*
9ª Questão :
Se deve ser proferida decisão que decida pela suspensão total da execução da coima.
Para tanto invoca a Recorrente :
TTT. Na Sentença recorrida o Tribunal a quo aplicou uma sanção acessória à Recorrente como condição necessária para suspender a execução da coima (cf. páginas 64 e 65 da Sentença ora Recorrida).
UUU. Com efeito, na Sentença recorrida o Tribunal a quo lançou mão do artigo 20.º-A da Lei n.º 50/2006 (embora por lapso acabe por se referir várias vezes ao Regulamento Geral do Ruído), tendo concluído que a ausência de antecedentes contraordenacionais e o decurso do prazo de quatro anos sobre a prática da infracção, sem notícia de outras infracções, permitiam concluir que a Recorrente tem vindo a adotar um comportamento lícito e conforme ao Direito, possibilitando que lhe fosse aplicada o instituto da suspensão da coima.
VVV. Contudo, salvo o devido respeito, errou o Tribunal a quo ao não determinar a suspensão total da execução da coima, pois que nenhuma razão existe para determinar a sua suspensão parcial.
WWW. Com efeito, na Sentença recorrida o Tribunal a quo aplicou uma sanção acessória (por força do disposto no artigo 20.º-A da Lei n.º 50/2006) para suspender a execução da coima, tendo imposto aquela para que a Recorrente “sedimente de forma duradoira a sua consciência crítica do ocorrido, para que haja uma efectiva prevenção de danos ambientais futuros e que se elimine riscos para a saúde, segurança das pessoas e bens ou ambiente” (sublinhado nosso).
XXX. Ora, em bom rigor, tendo em consideração que o objetivo prosseguido pela sanção acessória aplicada à Recorrente pelo Tribunal a quo coincide inteiramente com o motivo expendido por este para determinar a suspensão da execução da coima, entende a Recorrente que a suspensão da coima deveria ser total (e não parcial), nos termos do artigo 20.º-A da Lei n.º 50/2006, ainda para mais quando a o Tribunal a quo reconhece que “as exigências de prevenção especial não se situam num patamar elevado”.
Efectivamente, recorde-se que na decisão recorrida foi decidido :
a) condenar a Recorrente pela prática de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pela al. g) do n.º 2 do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro (REGULAMENTO GERAL DO RUÍDO) – processo principal:
i) na coima fixada no valor de € 12.000,00 (doze mil euros);
e
ii) na sanção acessória consistente na emissão de uma directiva interna, a circular por todos os responsáveis, colaboradores e trabalhadores da Arguida com funções operacionais com abrangência no território português, no sentido de não serem realizadas quaisquer manobras aéreas em períodos de restrição nocturna nos aeroportos de Portugal, onde existam tais restrições, sem que para tais movimentos exista uma autorização expressa prestada pela Coordenação (não bastando uma autorização do controlador de tráfico aéreo junto do aeroporto), no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado desta decisão e a comprovar nos autos em igual prazo;
b) Condenar a Recorrente pela prática de uma contra-ordenação aeronáutica civil grave, prevista e punida pela al. c) do n.º 2 do artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 109/2008, de 26 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 96/2018, de 23 1708 de Novembro, na coima que mantenho e fixo no valor de € 400,00 1709 (quatrocentos euros) – apenso A;
c) Operar ao cúmulo jurídico das sanções identificadas e condenar a Recorrente numa coima única no valor de € 12.200,00 (doze mil e duzentos euros), acrescida da sanção acessória identificada em a), ii);
d) Suspender parcialmente a execução da coima única de € 12.200,00 (doze mil e duzentos euros), na proporção de 70% (setenta porcento), pelo período de 2 (anos) anos, executando a proporção de 30% (trinta porcento), sem prejuízo da execução da sanção acessória cominada.
Para tanto, no que à suspensão parcial da execução da coima única diz respeito, escreveu-se na decisão recorrida :
Da possibilidade de suspender a execução da coima única:
A Recorrente também veio defender que a execução da coima deveria ficar suspensa.
Tanto o artigo 20.º-A do RGR, como o artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 09 de Janeiro permitem a suspensão, total ou parcial, da execução da coima.
Existe, porém, divergência de regimes, nos seguintes segmentos:
- o artigo 20.º-A do RGR apenas permite a suspensão da execução da coima nos casos em que a autoridade administrativa também tenha aplicado à arguida uma sanção acessória, ao passo que o artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 09 de Janeiro não faz depender o uso do instituto dessa aplicação;
- a duração da suspensão: o artigo 20.º-A do RGR prevê um prazo entre 1 a 3 anos, enquanto que o artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 09 de Janeiro prevê um prazo de 2 a 5 anos.
Começando pelo primeiro regime, o do RGR, a ANAC não aplicou qualquer sanção acessória à Recorrente, sendo que, como já observado, nos termos do artigo 20.º-A da LQCA a suspensão da execução da coima só é admissível nos casos em que a autoridade administrativa também tenha aplicado à arguida uma sanção acessória.
Porém, o facto de a autoridade administrativa não ter aplicado à arguida qualquer sanção acessória não pode ser impeditivo de, no âmbito da impugnação judicial deduzida, o tribunal possa e deva equacionar a aplicação de tal sanção, enquanto condição necessária para suspender a execução da coima – vide acórdão da Relação de Coimbra de 22-02-2023, processo n.º 1422/22.1T8GRD.C1, in 1546 www.dgsi.pt
No mesmo sentido, vide o acórdão da Relação de Lisboa de 19.02.2024, processo n.º 2638/23.9T9SNT.L1-3, in https://jurisprudencia.pt/acordao/221658/, onde se escreveu também:
“O que a Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto (alterada pela Lei nº 114/2015, de 28 de Agosto que introduziu o art.º 20º-A) estabelece, no âmbito deste novo dispositivo, é a possibilidade da suspensão de execução da coima, desde que se verifiquem cumulativamente as condições previstas no nº1, alíneas a) e b), do referido preceito.
“Esse é o escopo da lei.
“O mecanismo previsto para os casos em que tais requisitos se mostrem reunidos e a situação ainda não reparada, será através da imposição de uma sanção acessória, condicionada.
“Mas não há que confundir instâncias – a imposição, repete-se da sanção acessória, é apenas um meio para alcançar um fim, reunidos que se mostrem os seus requisitos. Não é um fim em si mesmo, nem é a imposição da sanção o objectivo que o legislador pretendeu alcançar.
“Assim, reunidos os requisitos que o legislador impõe – que, efectivamente, se mostram preenchidos no caso presente, como, aliás, o próprio recorrente não contesta - para que possa haver lugar à suspensão da coima, esta mostra-se legalmente admissível sendo que, caso a reposição ainda não tenha ocorrido, deverá ser imposta sanção acessória condicionada (meio instrumental para alcançar tal propósito) e, nos casos em que já ocorreu, tal sanção mostra-se desnecessária, por tal mecanismo se mostrar desnecessário, para alcançar o objectivo pretendido pelo legislador, através da norma.”
Nesta conformidade, importa aplicar uma sanção acessória, caso se conclua que a suspensão da execução da coima, consistindo numa simples censura do facto e a ameaça da sanção, realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Sobre a suspensão da execução da pena, com aplicação ao instituto da suspensão da execução da coima, pugna o acórdão da Relação de Lisboa de 13.07.2022, processo n.º 293/21.0YUSTR.L1, in www.dgsi.pt), o seguinte entendimento, que acompanhamos: “(…) o que a lei visa com o instituto em termos de finalidade político-criminal “é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos — «metanóia» das concepções da vida e o mundo (…) ou como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, § 519), sendo certo que, como se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 1999, processo n.º 823/99 “não são considerações de culpa que interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto da suspensão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas”.
Nesta conformidade e como também referido no citado acórdão da Relação de Lisboa de 13.07.2022, processo n.º 293/21.0YUSTR.L1, in www.dgsi.pt “a suspensão da pena assenta na formulação de um juízo de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do arguido, ou seja, na formulação de um juízo de que ele não praticará novos crimes.
“Temos assim que na ponderação da personalidade do agente, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias do mesmo, o tribunal terá que ter em mente que a suspensão da execução da pena de prisão apenas poderá ser aplicada se sustentar e viabilizar os desígnios de prevenção especial — apoiando e promovendo a reinserção social do condenado — e geral — na perspectiva em que a comunidade não encare a suspensão, como um sinal de impunidade.”
Por esta via, importa concluir que, se as questões que têm que ver directamente com o grau de ilicitude e culpa foram essenciais para definir a coima concreta aplicada, quando se pondera a questão da suspensão da execução da coima, são questões relacionadas com as condições “pessoais” da Recorrente e com as exigências de prevenção especial e geral que deverão prevalecer, sendo necessário formular um juízo de prognose positivo quanto à possibilidade da simples censura do facto e a ameaça da sanção, realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
No vertente caso, importa ter em consideração que a Recorrente praticou duas contra-ordenações na mesma situação, sem que tenha, porém, quaisquer antecedentes contra-ordenacionais
O facto de sobre a prática das infracções que estão em causa nos autos já terem decorrido cerca de quatro anos, sem notícia de outras infracções, também nos permite concluir que a Recorrente tem vindo a adoptar um comportamento lícito e conforme ao direito.
O decorrer do tempo faz abrandar as exigências de prevenção que ao caso se imporiam de forma mais premente se o mesmo tivesse sido julgado em data mais próxima da sua prática.
Estes factores, salvo melhor opinião, possibilitam que seja aplicada à Recorrente o instituto da suspensão da coima (ainda que parcial e sob condições), considerando-se que a mera ameaça da execução parcial da sanção aplicada é suficiente para dissuadir aquela de voltar a incumprir as normas em causa nos autos.
Porém, tanto no regime do RGR, como no Decreto-Lei n.º 10/2004, de 09 de Janeiro, a suspensão pode ser total ou parcial.
Neste caso, consideramos que não se mostra adequada uma suspensão total da coima, tendo em vista que a eficácia e a coercibilidade do sistema (e deste sistema sectorial em particular), bem como a prevenção que se pretende alcançar, carece da efectiva interiorização pela Arguida de que tem os efectivos deveres de respeitar a faixa horária que lhe seja atribuída, bem como não operar em período de restrição nocturno, sem que para tal esteja autorizada pela entidade competente.
Com efeito, se as exigências de prevenção especial não se situam num patamar elevado, elas não deixam de ser relevantes se atentarmos para a postura da Recorrente, apresentada em sede de impugnação judicial, com ausência absoluta de qualquer consciência crítica relativamente às infracções cometidas.
Assim sendo, esta falta de consciência crítica da Recorrente não pode deixar de ser assinalada, elevando as exigências de prevenção especial, ao ponto de considerarmos, salvo o devido respeito por melhor entendimento, que não é adequada uma suspensão da execução da coima total.
A essa circunstância, acresce também as exigências de prevenção geral, importando que as mesmas não saiam totalmente goradas, não devendo o tribunal passar a mensagem de impunidade perante a violação de regras que acabam por ser basilares para a área regulada em apreço, sendo impreterível não desincentivar ao cumprimento das normas.
Nesta medida, a coima única no valor de € 12.200,00 deve ficar suspensa parcialmente na proporção de 70%, executando-se o remanescente de 30%.
Em termos de tempo da suspensão, conjugando todos os citados factores, entendemos que a suspensão da execução da coima pelo período de 2 anos é suficiente para acautelar as exigências de prevenção já identificadas.
Para além disso, conforme acima já havíamos atentado, por força do regime que resulta do RGR, deve ainda ser aplicada uma sanção acessória à Recorrente, que imponha medidas adequadas à prevenção de danos ambientais, à reposição da situação anterior à infracção e à minimização dos efeitos decorrentes da mesma e que seja indispensável à eliminação de riscos para a saúde, segurança das pessoas e bens ou ambiente.
Tendo em vista a natureza das infracções cometidas, de perigo abstracto, não há como “repor a situação anterior” e nem como minimizar os efeitos.
A sanção acessória que se considera adequada, para que a Recorrente sedimente de forma duradoira a sua consciência crítica acerca do ocorrido, para que haja uma efectiva prevenção de danos ambientais futuros e que se elimine risco para a saúde, segurança das pessoas e bens ou ambiente, consiste na emissão de uma directiva interna, a circular por todos os responsáveis, colaboradores e trabalhadores da Arguida com funções operacionais com abrangência no território português, no sentido de não serem realizadas quaisquer manobras áreas em períodos de restrição nocturna nos aeroportos de Portugal, onde existam tais restrições, sem que para tais movimentos exista uma autorização expressa prestada pela Coordenação (não bastando uma autorização do controlador de tráfico aéreo junto do aeroporto), no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado desta decisão e a comprovar nos autos em igual prazo.”
Aqui chegados, a discordância apontada pela Recorrente à decisão recorrida neste ponto apenas tem a ver com que a suspensão da execução da coima seja total, em vez de uma suspensão parcial na proporção de 70% que foi decidida.
E assim sendo está apenas em causa decidir se também deverão ser suspensos os 30% da coima única cuja execução não foi suspensa.
Para a Recorrente “errou o Tribunal a quo ao não determinar a suspensão total da execução da coima, pois que nenhuma razão existe para determinar a sua suspensão parcial”, pois “tendo em consideração que o objetivo prosseguido pela sanção acessória aplicada à Recorrente pelo Tribunal a quo coincide inteiramente com o motivo expendido por este para determinar a suspensão da execução da coima, entende a Recorrente que a suspensão da coima deveria ser total (e não parcial), nos termos do artigo 20.º-A da Lei n.º 50/2006, ainda para mais quando a o Tribunal a quo reconhece que “as exigências de prevenção especial não se situam num patamar elevado”.
Porém, é o próprio artigo 20º-A, nº1, da Lei nº50/2006 que prevê a possibilidade de suspender, total ou parcialmente, a aplicação da coima.
E na decisão recorrida resulta devidamente fundamentada a opção por uma suspensão parcial da aplicação da coima, ao invés de uma suspensão total.
Assim, o tribunal a quo considerou que “não se mostra adequada uma suspensão total da coima, tendo em vista que a eficácia e a coercibilidade do sistema (e deste sistema sectorial em particular), bem como a prevenção que se pretende alcançar, carece da efectiva interiorização pela Arguida de que tem os efectivos deveres de respeitar a faixa horária que lhe seja atribuída, bem como não operar em período de restrição nocturno, sem que para tal esteja autorizada pela entidade competente.
Com efeito, se as exigências de prevenção especial não se situam num patamar elevado, elas não deixam de ser relevantes se atentarmos para a postura da Recorrente, apresentada em sede de impugnação judicial, com ausência absoluta de qualquer consciência crítica relativamente às infracções cometidas.
Assim sendo, esta falta de consciência crítica da Recorrente não pode deixar de ser assinalada, elevando as exigências de prevenção especial, ao ponto de considerarmos, salvo o devido respeito por melhor entendimento, que não é adequada uma suspensão da execução da coima total.
A essa circunstância, acresce também as exigências de prevenção geral, importando que as mesmas não saiam totalmente goradas, não devendo o tribunal passar a mensagem de impunidade perante a violação de regras que acabam por ser basilares para a área regulada em apreço, sendo impreterível não desincentivar ao cumprimento das normas.
Nesta medida, a coima única no valor de € 12.200,00 deve ficar suspensa parcialmente na proporção de 70%, executando-se o remanescente de 30%.”
Também aqui se concorda com o decidido, por efectivamente a suspensão total da aplicação de uma coima, mormente não atingindo a mesma um montante muito elevado, poder facilmente ser vista como uma autêntica “absolvição a posteriori”, com sérios riscos de frustração completa das exigências sancionatórias de prevenção geral e especial que com a sanção se procuraram assegurar, sendo certo que as exigências de prevenção geral no presente caso se afiguram de relevo pela necessidade de se garantir o cumprimento escrupuloso pelas companhias e operadores aéreos das normas que dizem respeito à prevenção do ruido resultante das descolagens e aterragens dos respectivos aviões nos aeroportos, pelos nefastos efeitos ambientais e de qualidade de vida para as populações adjacentes que daí decorrem mormente no período noturno e bem assim das normas que garantem o equilíbrio entre a expansão do sistema de transportes aéreos e a disponibilidade das infra-estruturas aéreas por forma a obter-se uma gestão equilibrada entre a procura e a capacidade dos aeroportos nacionais.
Assim, a suspensão total da execução da coima única não se mostra adequada à satisfação das necessidades sancionatórias nem adequada à protecção dos interesses de natureza pública e fins visados pelas normas contraordenacionais pelas quais a Recorrente foi condenada.
Destarte, improcedem necessariamente as conclusões TTT. a XXX. e o recurso também nesta parte.
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Por tudo o que antecede, não pode o recurso deixar de ser julgado totalmente improcedente.
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IV. Decisão.
Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção de Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Fixa-se a taxa de justiça devida pela recorrente em 5 Ucs.
Notifique.
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Lisboa, 29 de Outubro de 2025
Rui A. N. Ferreira Martins da Rocha
Carlos M.G. Melo Marinho
Alexandre Au-Yong Oliveira