Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
661/18.4T8CSC-A.L1-6
Relator: ANA PAULA A. A. CARVALHO
Descritores: PROCESSO DE ADOPÇÃO
NATUREZA SECRETA
OBTENÇÃO DE CERTIDÃO
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Quer nos processos de promoção e protecção, quer nos processos de adopção, o Tribunal pode autorizar a consulta dos mesmos, por quem prove interesse legítimo, assim como a extracção de certidões.
II - Não sendo portanto a natureza secreta dos processos indicados em I, absoluta , certo é que somente «por motivos ponderosos e nas condições e com os limites a fixar na decisão, pode o Tribunal ( titular dos respectivos processos ), a requerimento de quem prove interesse legítimo, ouvido o Ministério Público, se não for o requerente, autorizar a consulta dos aludidos processos e a extracção de certidões».
III - Não tendo a requerente invocado qualquer interesse legítimo na obtenção de certidões de processos da natureza dos indicados em I ,  e, ademais, não se descortinando que haja algum prejuízo de imediato ou no futuro para a demonstração dos temas da prova , bem andou a primeira instância em indeferir a pretensão da requerente/apelante.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:       Acordam na 6ª Seção do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO
No processo principal de ação declarativa comum, que a A [Igreja …. ] intentou contra B [….Cristina…], jornalista da TVI e da TV24, em 28.11.2018, o tribunal indeferiu o requerido pela autora, em 29.10.18, no sentido de se determinar a remessa de cópia dos processos dos menores identificados, na reportagem objecto dos autos, a título devolutivo, e de forma a constituir um apenso confidencial.
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Não se conformando, a autora interpôs recurso de apelação, pedindo que seja revogado o despacho recorrido e substituído por outro que «admita o requerimento da Autora e determine o ofício aos Tribunais em que correram termos os processos referentes aos menores em causa para procederem à remessa de cópia dos respectivos processos, a título devolutivo, para que estes sejam juntos aos presentes autos, constituindo assim um apenso confidencial».
A apelante formula as seguintes conclusões das alegações de recurso:
«1 - A Recorrente vem interpor recurso da decisão proferida pelo Tribunal “a quo” que indeferiu o pedido da Autora no sentido de serem oficiados os Tribunais em que correram termos os processos referentes aos menores em causa à remessa de cópia dos respectivos processos, a título devolutivo, para que estes sejam juntos aos presentes autos, constituindo assim um apenso confidencial (cfr. despacho recorrido de 28 de Novembro de 2018, com a referência citius 116358043 e requerimento da Recorrente de 29 de Outubro de 2018, com a referência citius 30538529).
2 - A Recorrente intentou a presente acção contra a Recorrida na sequência de publicações que a mesma fez na sua página de Facebook, e que a Recorrente considerou ofensivas da sua honra e consideração. Tais publicações foram feitas pela Recorrida de forma a divulgar e promover a reportagem pela qual é uma das responsáveis, transmitida na TVI e TVI24, denominada “O Segredo dos Deuses”.
3 - A referida reportagem, e consequentemente as publicações feitas pela Recorrida na sua página de Facebook, imputam à Recorrente a organização e promoção de uma “uma rede internacional de adopções ilegais” e a sua envolvência, directa ou indirecta, em “compra e tráfico de crianças”.
4 - Quer do objecto do litigio, quer dos temas da prova, resulta inequívoco que o Tribunal “a quo” considerou que tinha interesse para a boa decisão da causa, apurar se os processos de adopções em causa foram ou não legais, obedeceram ou não os trâmites estabelecidos na lei, ou antes resultaram de um esquema fraudulento, encabeçado pela Recorrente.
5 - Nos termos do artigo 410.º do CPC, a instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova. Já nos termos do artigo 411.º do mesmo diploma, incumbe ao Juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quanto aos factos que lhe é licito conhecer.
6 - Conforme já se referiu, a veracidade ou falsidade dos factos alegados pela Ré, no que respeita à ilegalidade dos processos de adopções, foi enunciada pelo Tribunal “a quo” como um dos temas de prova, tendo sido igualmente colocada no objecto do litígio. Através do exame e análise dos processos de promoção e protecção, adopção e confiança judicial, é possível apurar a falsidade dos factos alegados pela Ré.
7 – Do estabelecido no artigo 88.º da LPCJP, assim como do estabelecido no artigo 4.º do Regime do Processo de Adopção, resulta que a natureza secreta dos processos de promoção e protecção, assim como dos processos de adopção e confiança judicial, não é absoluta, pelo que nada impede que o Tribunal “a quo”, tal como foi requerido pela Autora, notifique os Tribunais nos quais os mesmos correram termos para a remessa de cópia a titulo meramente devolutivo. Por outro lado, o carácter secreto fica assegurado através da criação de um apenso confidencial, tal como requerido pela Autora.
8 - Assim, tendo em conta tudo o supra referido, deveria o Tribunal “a quo” ter admitido o requerimento feito pela Autora e determinada a notificação aos Tribunais em que correram termos os processos referentes aos menores para procederem à remessa de cópia dos respectivos processos, a título devolutivo, para que estes sejam juntos aos presentes autos, constituindo assim um apenso confidencial, devendo, por isso, o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a notificação nos termos requeridos pela Autora.
Nestes termos e nos mais de direito, sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso se julgado procedente e, em consequência, deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que admita o requerimento da Autora e determine o oficio aos Tribunais em que correram termos os processos referentes aos menores em causa para procederem à remessa de cópia dos respectivos processos, a título devolutivo, para que estes sejam juntos aos presentes autos, constituindo assim um apenso confidencial assim se fazendo a costumada Justiça!!!»
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Não foram oferecidas contra-alegações.
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Obtidos os vistos legais, cumpre apreciar.
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Questões a decidir:
O objeto e o âmbito do recurso são delimitados pelas conclusões das alegações, nos termos do disposto no artigo 635º nº 4 do Código de Processo Civil. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Similarmente, não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Abrantes Geraldes, Recursos no N.C.P.C., 2017, Almedina, pág. 109).
Importa apreciar unicamente se o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 410º e 411º do Código de Processo Civil, pelos motivos invocados nas alegações de recurso?
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade processualmente adquirida com relevo para a decisão é a seguinte:

1 – No processo principal de ação declarativa comum, interposta pela A contra B, em 29.11.2018, a autora, juntamente com o articulado de «resposta», apresentou requerimento no sentido de que:
«sejam oficiados os Tribunais em que correram termos os processos referentes aos menores em causa à remessa de cópia dos respectivos processos, a título devolutivo, para que estes sejam juntos aos presentes autos, constituindo assim um apenso confidencial:
A junção dos processos supra referidos, que ora se requer, afigura-se essencial para a boa decisão da causa e para a descoberta da verdade material e bem- assim imprescindível à defesa dos direitos constitucionalmente garantidos de todos os visados, entre os quais a Autora, e sem os quais o esclarecimento da verdade dos factos sairá prejudicado.
Na verdade, só através do acesso aos processos é que a Autora conseguirá defender-se cabalmente, demonstrando perante este Tribunal o grau de negligência grosseira, ou quase dolo intencional, das afirmações proferidas e difundidas pela ré.»
2 – Por despacho proferido em 28.11.2018, o requerimento foi indeferido nos seguintes termos:
«A autora requereu que este Tribunal determinasse a junção a estes autos dos seguintes processos:
“Vera, Luís e Fábio ……  .
- Processo de Promoção e Protecção n.º 1137/93, que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Lisboa, 4º Juízo, 1ª secção.
- Processo de Promoção e Protecção n.º 1139/93, que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Lisboa, 4º Juízo, 1ª secção.
- Processo de Promoção e Protecção n.º 877/95, que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Lisboa, 4º Juízo, 1ª secção.
- Processo de Adopção n.º 20597/17.5T8LSB, actualmente no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Família e Menores de Lisboa, Juiz 5.
Filipe e Pedro …… .
- Processo de consentimento prévio à adopção n.º 204/M/98, que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Lisboa, 1.º Juízo, 1.ª Secção.
- Processo de Adopção n.º 642/M/99, que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Lisboa, 2.º Juízo, 3.ª secção.
- Processo de Adopção n.º 1148/M/99, que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Lisboa, 3.º Juízo, 2.ª secção.
Cristele …….. e Daniela …………
- Processo de Promoção e Protecção n.º 109/04.1TMPRT, que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Gaia.
- Processo de Confiança Judicial n.º 5469/04.1TBVNG, que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Gaia.
- Processo de Adopção n.º 2885/11.6TBVNG, que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Gaia”.
Os processos de promoção e protecção têm carácter reservado, cfr. artº 88, nº 1 da LPCJP, aprovada pela Lei 147/99, de 1-9.
Os processos de adopção e confiança judicial em causa têm natureza secreta, conforme estipula o artº 4º, nº 1 do Regime do Processo de Adopção, aprovado pela Lei 143/15, de 8.11.
Apenas por “motivos ponderosos e nas condições e com os limites a fixar na decisão, pode o Tribunal (titular dos respectivos processos), a requerimento de quem prove interesse legítimo, ouvido o Ministério Público, se não for o requerente, autorizar a consulta dos processos referidos no n.º 1 e a extracção de certidões” (nº 3 do artº 4º da Lei 143/15, de 8.11.
Por outro lado, “a violação do segredo dos processos referidos no n.º 1 e a utilização de certidões para fim diverso do expressamente autorizado constituem crime a que corresponde pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias” (nº 4 do artº 4º da Lei 143/15, de 8.11).
Até ao preciso momento não foram carreados para os autos, dados que permitam afirmar que existem motivos ponderosos que imponham a consulta dos processos em causa, nem que justifiquem o risco de o conteúdo dos mesmos possa ser alvo de violação de segredo.
A isto acresce que, conforme consta do ofício sob a refª. 3359583, na sequência da exibição da reportagem da TVI, foi instaurado inquérito criminal para averiguação da prática de eventuais ilícitos, pendente na 9º secção do DIAP, sob o nº 704/17.8TELSB. Logo, faz todo o sentido que os processos de adopção/confiança em causa, a terem que ser consultados e eventualmente apensados, o sejam, a este processo crime que, pois, este o procedimento, que salvaguarda o interesse punitivo do Estado e, face a conflito com os demais interesses privados legítimos, se apresenta como superior. Assim sendo, indefiro o requerido.».
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Importa apreciar unicamente se o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 410º e 411º do Código de Processo Civil, pelos motivos invocados nas alegações de recurso?
No essencial, a apelante sustenta que nos «termos do artigo 410.º do CPC, a instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova. Já nos termos do artigo 411.º do mesmo diploma, incumbe ao Juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quanto aos factos que lhe é lícito conhecer… Conforme já se referiu, a veracidade ou falsidade dos factos alegados pela Ré, no que respeita à ilegalidade dos processos de adopções, foi enunciada pelo Tribunal “a quo” como um dos temas de prova, tendo sido igualmente colocada no objecto do litígio. Através do exame e análise dos processos de promoção e protecção, adopção e confiança judicial, é possível apurar a falsidade dos factos alegados pela Ré… Como se refere no despacho recorrido, o artigo 88.º da LPCJP determina que os processos de promoção e protecção têm um caracter reservado, estando a consulta dos mesmos reservada aos pais, ao representante legal e às pessoas que tenham a guarda de facto dos menores, assim como à criança ou jovem visados…. Já nos termos do artigo 4.º Regime do Processo de Adopção, a fase judicial e os demais procedimentos administrativos e judiciais que integram o processo de adoção, incluindo os seus preliminares, têm carácter secreto, podendo ser consultados pelo adoptado depois de atingida a maioridade.
Quer nos processos de promoção e proteção, quer nos processos de adoção, o Tribunal pode autorizar a consulta dos mesmos, por quem prove interesse legítimo, assim como a extracção de certidões.
Daqui se depreende que a natureza secreta dos processos de promoção e protecção, assim como dos processos de adopção e confiança judicial, não é absoluta, pelo que nada impede que o Tribunal “a quo”, tal como foi requerido pela Autora, notifique os Tribunais nos quais os mesmos correram termos para a remessa de cópia a titulo meramente devolutivo. Por outro lado, o carácter secreto fica assegurado através da criação de um apenso confidencial, tal como requerido pela Autora.»
Tal como é reconhecido nas alegações de recurso, o processo de adoção e os respectivos procedimentos preliminares, incluindo os de natureza administrativa, têm caráter secreto, nos termos dos artigos 4º e 33º e seguintes do R.J.P.A. (regime jurídico do processo de adoção), significando este regime que são globalmente abrangidas qualquer das fases do processo de adoção, incluindo os procedimentos de confiança administrativa e o consentimento prévio, bem como o processo de promoção e protecção em que haja sido decretada a medida prevista na alínea g) do nº 1 do artigo 35º da L.P.C.J.P. A violação do segredo é, além disso, prevista e tipificada como crime, punível com pena de prisão ou multa, por força do disposto no artigo 4º nº 5 do R.J.P.A.
A natureza secreta destes processos é um corolário do princípio consagrado no artigo 1985º do Código Civil, de onde se retira que, no silêncio dos intervenientes, ao adoptante será revelada a identidade dos pais biológicos, mas a estes nunca poderá ser revelada a identidade daquele.
Consequentemente, o despacho recorrido é inteiramente adequado e correto, quando alude ao carácter reservado e secreto dos aludidos processos, e explicita que somente «por motivos ponderosos e nas condições e com os limites a fixar na decisão, pode o Tribunal (titular dos respectivos processos), a requerimento de quem prove interesse legítimo, ouvido o Ministério Público, se não for o requerente, autorizar a consulta dos processos… e a extração de certidões».
Mas, além deste argumento, que nem sequer é posto em causa pela apelante, salienta-se no despacho impugnado que não foram até ao momento carreados aos autos dados que permitam afirmar que existem motivos ponderosos para a consulta dos processos, nem que justifiquem o risco de eventualmente ocorrer a violação do segredo. Esta conclusão alicerça-se na circunstância de o tribunal recorrido, aparentemente, ponderar a hipótese de aguardar a conclusão do inquérito criminal para averiguação da prática de eventuais ilícitos, pendente na 9ª seção do DIAP, sob o nº 704/17.8TELSB, e instaurado na sequência da exibição da reportagem da TVI, por fazer «todo o sentido que os processos de adoção/confiança em causa, a terem que ser consultados e eventualmente apensados, o sejam, a este processo crime», por ser este o procedimento «que salvaguarda o interesse punitivo do Estado e, face a conflito com os demais interesses privados legítimos, se apresenta como superior».

Na verdade, decorre do princípio do inquisitório tal como é consagrado no artigo 411º do C.P.C. que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, devendo além disso o tribunal tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, nos termos do disposto no artigo 413º do mesmo código.
No caso em apreço, o tribunal recorrido indeferiu o meio de prova requerido, ao abrigo do poder de direção do processo, que se encontra autonomizado como princípio de gestão processual, no artigo 6º nº 1 e nº 2 do C.P.C. (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, C.P.C. Anotado, Vol. 2º, pág. 206; Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao N.C.P.C., Vol. I, pág. 334). A pretensão da apelante nem sequer foi definitivamente rejeitada, pelo que não se vislumbra que haja algum prejuízo de imediato ou no futuro para a demonstração dos temas da prova enunciados no despacho que foi proferido, previsto no nº 1 do artigo 596º do C.P.C.
Nesta sequência, é forçoso concluir que a pretensão da apelante não merece qualquer acolhimento.
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DECISÃO
Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em manter a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante.
Lisboa, 11.07.2019

Ana Paula Albarran Carvalho
Nuno Lopes Ribeiro
Gabriela Fátima Marques