Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | VÍTOR AMARAL | ||
Descritores: | DIREITOS SOCIAIS COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/04/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. - Direitos sociais, para o efeito de fixação da competência dos tribunais de comércio, a que alude o art.º 89.º, n.º 1, al.ª c), da LOFTJ, são os inerentes à qualidade de sócio de determinada sociedade, decorrentes do contrato de sociedade e tendentes à protecção do sócio no âmbito dos seus interesses sociais. 2. - Estando em causa, assim, nas acções relativas ao exercício de direitos sociais a protecção de cada sócio de uma determinada sociedade, por força dessa qualidade de sócio, a competência dos tribunais de comércio radica na complexidade e especificidade da matéria a decidir, a demandar, por isso, uma especial preparação técnica e sensibilidade. 3. - A competência material, que se fixa no momento da instauração da acção, deve ser perspectivada face aos elementos estruturais da causa – pedido e causa de pedir – tal como apresentados na petição inicial. 4. - O tribunal de comércio não é competente para preparar e julgar acção especial de prestação de contas intentada por sociedade contra um não sócio e fundada em gestão temporária e informal de um lar de idosos dessa sociedade, cabendo, nesse caso, a competência em razão da matéria ao tribunal cível. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório Margarida, com residência (…) Cascais, e “D S, Casa de Repouso Unipessoal, Ld.ª”, com sede (…) Cascais, intentaram acção especial de prestação de contas, contra Ana, com residência na Av.ª Miguel Torga, (…), Lisboa, e Maria, residente na Rua Padre Américo, (…), Lisboa, pedindo a citação das Requeridas para, em trinta dias, apresentarem as contas relativas ao período de 29/07/2011 a 09/09/2011 da gerência da sociedade aludida, “D S, Casa de Repouso Unipessoal, Ld.ª”, ou contestarem o pedido, sob pena de, não o fazendo, não poderem deduzir oposição às contas que as Requerentes venham a apresentar. Para tanto, alegaram, em síntese, que: - a sociedade 2.ª Requerente, de que é única sócia e gerente a 1.ª Requerente, tem por objecto, para além do mais, a actividade de clínica de repouso com alojamento e prestação de serviços clínicos e medicamentosos; - em 29/07/2011, as Requeridas ofereceram-se para tomarem conta e gerirem provisoriamente uma casa de repouso onde as Requerentes exercem a sua actividade, acreditando estas na boa vontade daquelas e tratando-se de situação excepcional e provisória e baseada na amizade; - por isso, não foi estipulada data para a prestação de contas, que iriam ser prestadas com o decorrer do tempo, ficando as Requeridas incumbidas de receber as receitas e efectuar os pagamentos, de acordo com a anuência e após autorização da 1.ª Requerente; - porém, as Requeridas não prestaram quaisquer contas, até que, perante as insistências da 1.ª Requerente, abandonaram o lar de idosos em causa em 09/09/2011, após terem recebido, no período em que exerceram a gestão daquele lar, pelo menos, € 13.141,00, referentes às mensalidades dos utentes do lar, continuando a não prestar esclarecimentos adequados sobre o destino dado àquele quantitativo. Foi proferido despacho liminar (cfr. fls. 29), considerando caber a competência para a acção ao Tribunal de Comércio de Lisboa e julgando, por isso, incompetente em razão da matéria o 3.º Juízo Cível da Comarca de Cascais, assim indeferindo in limine a petição inicial. As Requerentes vieram então requerer a “reforma da sentença”, de modo a ser admitida liminarmente a petição inicial. Inconformadas, tais Requerentes logo recorreram também do assim decidido, apresentando alegações onde vieram formular as seguintes conclusões: «I. O Digníssimo Tribunal indeferiu liminarmente a Petição Inicial apresentada pelas Recorrentes por se considerar materialmente incompetente para julgar a causa; II. No entender das Recorrentes, e salvo melhor opinião, o Douto Despacho violou a norma constante no art.º 89.º 1 c) da LOFTJ ao se declarar incompetente pois cabia a si, quer territorial quer materialmente, a competência para aferir do mérito da causa de uma acção de prestação de contas interposta por uma sociedade e a sua sócia única contra duas gerentes de facto e não de Direito; III. Além disso, e devido à falta de fundamentação, deverá a Douta Sentença ser considerada nula, porquanto não especifica os fundamentos de Direito que a justificam, não a motivando, limitando-se a remeter para um art.º da LOFTJ, ficando as Recorrentes sem saber que alínea aplica e por que razão a aplica; IV. Os Tribunais competentes para julgar uma Acção de Prestação de Contas interposta por uma sociedade e a sua única sócia são os juízos cíveis e não o Tribunal de Comércio, porquanto não prevê a LOFTJ que os mesmos tratem desta matéria, razão pela qual e por exclusão de partes, deverá ficar a mesma a cargo dos juízos cíveis; V. Assim, deverá o presente Despacho ser julgado revogado e substituído por outro que admita a Petição Inicial in causa; VI. No caso de assim não se entender, deverá o mesmo Despacho ser considerado nulo por falta de fundamentação, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 668.º/1 b) do CPC, fazendo-se a costumada, JUSTIÇA!». Por ulterior despacho de fls. 45, foi decidido indeferir a reclamação apresentada e ordenar a citação das Requeridas para os termos do recurso e para os termos da causa. Contestaram as Requeridas (fls. 57 e segs. e 75 e segs.), alegando, para além do mais, nunca terem sido gerentes de facto ou de direito da sociedade Requerente, à qual apenas prestaram ajuda pontual, concluindo pela improcedência da acção, por não provada. Foi deduzida ainda reconvenção, nesta instância pedindo (a 2.ª Requerida/Reconvinte) a condenação da “Requerente/Reconvinda” no pagamento de quantias pecuniárias, num total de € 5.599,93 e, bem assim, da “Requerente/Reconvinte em litigância de má fé, bem como no pagamento das custas processuais e nos honorários do Exmo. Patrono das Requeridas” (cfr. fls. 63-64 e 86-87). Vieram ainda as Requerentes deduzir “contestação às contas apresentadas”(fls. 92 e segs.), pronunciando-se sobre a contestação, reconvenção e incidente de litigância de má fé deduzidos e concluindo, ademais, pela procedência da contestação às ditas contas, não se admitindo a apresentação de contas por parte das Requeridas. Após o que as Requeridas tomaram posição, “respondendo à contestação”, pugnando, para além do mais, pela existência, in casu, de uma relação laboral – e não de situação de gerência de facto ou de direito –, implicando a incompetência do tribunal em razão da matéria (fls. 105 e segs.). Não foram juntas contra-alegações de recurso. Ordenada a subida dos autos a este Tribunal ad quem, foi determinada aqui, por despacho do relator, a baixa do processo à 1.ª instância, mormente para suprimento da omissão de pronúncia em matéria de arguida nulidade da decisão em crise por falta de fundamentação (pontos III e VI das conclusões das Recorrentes), perante o que foi decidido indeferir aquela arguição de nulidade. Remetidos novamente os autos a esta Relação e tendo o recurso sido admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo (cfr. fls. 144), foi mantido tal regime e efeito do recurso. Colhidos os vistos, e nada obstando ao conhecimento do mérito da Apelação, cumpre apreciar e decidir. II – Âmbito do Recurso Sendo o objecto dos recursos delimitado pelas respectivas conclusões, pressuposto o objecto do processo delimitado nos articulados das partes, está em causa na presente Apelação saber: - se ocorre nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação de direito; - se cabe ao Tribunal recorrido – e não ao Tribunal de Comércio de Lisboa – a competência para a tramitação e decisão da acção, implicando a revogação do despacho de indeferimento liminar. III – Fundamentação A) Matéria de facto Ante os elementos documentais dos autos, os pressupostos fácticos, a considerar, são os que já antes se deixaram explicitados (cfr. relatório supra), aqui dados por reproduzidos, sendo o seguinte o teor da decisão recorrida: «Com os presentes autos, pretende a A. a citação das Requeridas para, no prazo de 30 dias, apresentarem as contas relativas ao período de 29 de Julho de 2011 a 9 de Setembro de 2011 da gerência da sociedade «D S, Casa De Repouso Unipessoal, Lda.», ou contestar o pedido, sob pena de não o fazendo, não poder deduzir oposição às contas que as Requerentes venham a apresentar. Da conjugação do disposto nos arts. 1014º do CPC e 89º da LOTJ e respectivo regulamento, na comarca de Cascais, compete ao Tribunal de Comércio de Lisboa apreciar tal acção. Consequentemente, este juízo é materialmente incompetente para a tramitação da mesma, cfr. art. 67º do CPC e normas supra citadas, verificando-se, assim, a existência de uma excepção dilatória, a qual é de conhecimento oficioso (cfr. arts. 494º, al. a) e 495º, ambos do CPC), que acarreta o indeferimento liminar da petição inicial por incompetência absoluta do Tribunal (cfr. arts. 105º, nº 1 e 234-A, nº 1 do CPC). Pelo exposto, ao abrigo do disposto no art. 105º, nº 1 do CPC e demais disposições legais supra citadas, julgo este tribunal incompetente em razão da matéria e indefiro liminarmente a petição inicial. Custas a cargo da A.. Notifique e demais D.N..» (cfr. fls. 29). B) O Direito 1. - Da nulidade da decisão recorrida As Apelantes defendem, nas suas conclusões de recurso, que foi violado o disposto no art.º 668.º, n.º 1, al.ª b), do CPCiv., que dispõe ser nula a sentença “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”, pretendendo, porém, que apenas se conheça dessa arguida nulidade caso não se revogue o despacho recorrido, com a sua substituição por outro que admita a petição inicial (cfr. conclusões V e VI a fls. 43). Por isso, invocada tal nulidade, deve dela conhecer-se em sede de recurso, posto que o Tribunal a quo indeferiu a respectiva arguição. E deve conhecer-se dela desde já, uma vez que a sua eventual procedência implica o necessário suprimento da nulidade, que contende com a fundamentação da decisão recorrida, para só depois, logicamente, se apreciar os específicos fundamentos dessa decisão – conhecimento do mérito da decisão em crise –, no sentido de se julgar se deve esta ser mantida, por verificada a incompetência do Tribunal recorrido, ou se deve ser revogada, por os respectivos fundamentos não poderem proceder (cfr. art.º 660.º, n.º 1, ex vi art.º 713.º, n.º 2, ambos do CPCiv.). Em causa está, pois, questão que se prende com as exigências de fundamentação das decisões dos tribunais (cfr. art.º 158.º, n.º 1, do CPCiv.), sejam sentenças ou despachos – em termos de fundamentos de facto e de direito respectivos –, a que se reporta o convocado art.º 668.º, n.º 1, al. b), do CPCiv. e cuja violação, uma vez verificada, é causa de nulidade da sentença/decisão ([1]), cabendo naturalmente ao arguente, argumentando sobre o tema, clarificar onde pode ser encontrado o vício invocado, onde faltou a decisão à fundamentação devida/exigível. Cabe, pois, perguntar: onde está a falta absoluta de fundamentação de direito da decisão recorrida? Ora, compulsadas as conclusões recursórias das Apelantes, o que se constata é que as mesmo dão corpo argumentativo suficiente à acusada violação do preceito do art.º 668.º, n.º 1, al.ª b), do CPCiv.. Com efeito, expressamente referem que, na decisão em crise, a M.ª Juiz não especifica os fundamentos de direito que a justificam, “não a motivando, limitando-se a remeter para um art.º da LOFTJ, ficando as Recorrentes sem saber que alínea aplica e por que razão a aplica” (sic.). E, vista a decisão proferida, da mesma consta, em termos de fundamentação, tão-só que, pretendendo “a A. a citação das Requeridas para, no prazo de 30 dias, apresentarem as contas relativas ao período de 29 de Julho de 2011 a 9 de Setembro de 2011 da gerência da sociedade «D S, Casa de Repouso Unipessoal, Lda.», ou contestar o pedido, sob pena de não o fazendo, não poder deduzir oposição às contas que as Requerentes venham a apresentar”, é de concluir “da conjugação do disposto nos arts. 1014º do CPC e 89º da LOTJ e respectivo regulamento” que “na comarca de Cascais, compete ao Tribunal de Comércio de Lisboa apreciar tal acção”. Assim, é certo que o fundamento jurídico para a decisão de incompetência do Tribunal foi encontrado no dito art.º 89.º da LOTJ, sem se cuidar de mencionar qual das suas alíneas se convoca, donde a perplexidade das Recorrentes quanto à alínea tida em vista pelo Tribunal a quo, o qual, não obstante as oportunidades que teve para o efeito, não contribuiu para que fosse vencida aquela perplexidade – nem o fez na decisão do requerimento de “reforma da sentença”, apenas dizendo “inexistir qualquer lapso que cumpra sanar” (fls. 45), nem na decisão da arguição de nulidade, onde apenas se expendeu inexistirem “quaisquer nulidades ou omissões que cumpra sanar” (fls. 121). Termos em que não chegou a ficar expresso nos autos em qual das diversas alíneas do preceito convocado se alicerçou a 1.ª instância. Bastará isso para que ocorra a invocada falta de fundamentação jurídica? Pensamos que não. Na verdade, apesar da notória insuficiência de fundamentação jurídica cabal, pois que por clarificar ficou qual das diversas alíneas do preceito legal se pretendia convocar, o certo é que alguma fundamentação jurídica, ainda assim, se logrou fazer constar da decisão recorrida, não deixando de se expressar quais as normas legais em que se sustenta a decisão, sejam as constantes do CPCiv., seja a da LOTJ, muito embora de forma incompleta quanto a esta última. A ausência de invocação de qual a alínea do art.º 89.º da LOTJ se pretendia convocar não impede a compreensão do fundamento jurídico apresentado, tanto mais que a própria parte recorrente percebe que estará em causa a al.ª c) daquele preceito legal, atinente às “acções relativas ao exercício de direitos sociais” (cfr. pontos 6.º e segs. da alegação recursória, a fls. 40 e segs.), motivo pelo qual procurou impugnar, nessa perspectiva, a substância da decisão recorrida. Acresce que, notoriamente, não estamos aqui perante uma falta absoluta de motivação, sendo que, repetindo-se o já mencionado, “a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”. Donde que, inexistindo uma total omissão de fundamentos de direito e tendo as Apelantes/arguentes entendido o fundamento eleito pelo Tribunal a quo, seja patente a não verificação do vício de nulidade invocado. Improcede, pois, a arguida causa de nulidade da decisão em crise. 2. - Da competência para a preparação e decisão da acção As Apelantes defendem a revogação da decisão de indeferimento liminar da petição inicial, por considerarem não se verificar a incompetência, em razão da matéria, do Tribunal recorrido, ao contrário do entendimento adoptado por este nos autos. Consideram, assim, as Apelantes, contra o expendido pela 1.ª instância, que é inaplicável ao caso o disposto na al.ª c) do art.º 89.º da LOTJ – tal como qualquer outra das demais alíneas desse preceito legal, que as Recorrentes entendem não ter qualquer virtualidade de aplicação in casu –, pois que não estamos perante acção relativa ao exercício de direitos sociais. Vejamos. Estabelece o art.º 211.º da Const. Rep. Portuguesa, serem os tribunais judiciais “os tribunais comuns em matéria cível e criminal”, exercendo jurisdição “em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” (n.º 1), acrescentando que “na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas” (n.º 2). Mas é no art.º 62.º do CPCiv. que se encontram os factores determinantes da competência, na ordem interna e no âmbito da jurisdição cível, preceito onde pode ler-se que a competência dos tribunais judiciais “é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código” (n.º 1), sendo ainda que em tal ordem interna “a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, a hierarquia judiciária, o valor da causa, a forma de processo aplicável e o território” (n.º 2). Já o art.º 67.º do CPCiv. dispõe que as leis de organização judiciária “determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada”. Por sua vez, na LOFTJ – Lei n.º 3/99, de 13-01, esta com a redacção dada pela Lei n.º 105/2003, de 10-12, e com as posteriores alterações pelo DLei n.º 53/2004, de 18-03, da Lei 42/2005, de 29-08, e dos DLei n.º 76-A/2006, de 29-03, 8/2007, de 17-01, e 303/2007, de 24-08 ([2]) – também pode ler-se que, na ordem interna, a competência se reparte “pelos tribunais judiciais segundo a matéria, a hierarquia, o valor e o território” (art.º 17.º, n.º 1), sendo “da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (art.º 18.º, n.º 1), e, bem assim, que é na mesma LOFTJ que se determina “a competência em razão da matéria entre os tribunais judiciais, estabelecendo as causas que competem aos tribunais de competência específica (art.º 18.º, n.º 2). Acresce, quanto aos tribunais judiciais de 1.ª instância, que os tribunais de comarca podem “desdobrar-se em varas, com competência específica” (art.º 65.º, n.º 3), podendo, por outro lado, ser criadas diversas modalidades de tribunais de competência especializada, designadamente tribunais de comércio – cfr. art.º 78.º, al. e). Dispõe, por sua vez, o art.º 94.º da mesma LOFTJ que “aos juízos de competência especializada cível compete a preparação e o julgamento dos processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais”. Por isso, a sua competência, sendo especializada, apresenta-se, todavia, como residual. Já o invocado art.º 89.º, n.º 1, daquela LOTJ – norma central na apreciação e decisão deste recurso – estabelece a esfera de competência dos tribunais de comércio, dispondo que: “Compete aos tribunais de comércio preparar e julgar: a) O processo de insolvência se o devedor for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa; b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais; d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As acções de dissolução e de liquidação judicial de sociedades; f) As acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial; g) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial; h) As acções de nulidade e de anulação previstas no Código da Propriedade Industrial” (sublinhado aditado). A competência dos tribunais – que se fixa no momento em que a acção se propõe (art.º 22.º, n.º 1, da LOFTJ) – afere-se, como é entendimento comum na doutrina e pacífico na jurisprudência, pelos termos em que a acção foi proposta e pelo pedido do demandante, sendo, por isso, o pedido e a causa de pedir apresentados os elementos essenciais de referência para determinação da competência material do tribunal ([3]). Nestes autos pretendem as Requerentes, uma delas sociedade, a prestação de contas da gerência da sociedade aludida (“D S, Casa de Repouso Unipessoal, Ld.ª”), quanto a um seu lar de idosos / casa de repouso, alegadamente gerido, temporária e amigavelmente, pelas Requeridas, que não prestaram costas dessa gestão. Assim, nos termos apresentados na petição inicial, as Requeridas, pessoas estranhas à sociedade, apenas se ofereceram / prontificaram, “enquanto grandes amigas” da 1.ª Requerente, «da sua inteira confiança, para “tomarem conta e gerirem”, provisoriamente, a Casa de Repouso» (cfr. art.º 4.º da p. i.). Está, assim, em causa a pretensão de prestação de contas a uma sociedade por pessoas a ela estranhas e que temporária e amigavelmente geriram um lar de idosos dessa sociedade. Sendo este o objecto da acção, afastada está, obviamente, a aplicação in casu do disposto nas al.ªs a) – referente a processos de insolvência –, b) – acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade –, d) – acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais –, e) – acções de dissolução e de liquidação judicial de sociedades –, f) – acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial –, g) – acções a que se refere o Código do Registo Comercial – e h) – acções de nulidade e de anulação previstas no Código da Propriedade Industrial – do aludido art.º 89.º, n.º 1, da LOFTJ. Resta averiguar se estamos perante acção relativa ao exercício de direitos sociais, caso em que a competência material estaria legalmente atribuída ao Tribunal de Comércio, como pretende o Tribunal recorrido (al.ª c) do n.º 1 daquele art.º 89.º). Importa, assim, determinar o que são direitos sociais para o efeito de atribuição de competência material aos tribunais de comércio. Já foi defendido, quanto ao recorte legal da competência destes tribunais, que a interpretação adequada deve ser “no sentido de não reatamento do modelo dos antigos tribunais de comércio, mas a de lhes atribuir competência em questões para que se requer especial preparação técnica e sensibilidade, designadamente as do contencioso das sociedades comerciais, da propriedade industrial, das acções e recursos previstos no Código de Registo Comercial, e os recursos das decisões em processos de contra-ordenação no âmbito da defesa e promoção da concorrência”, donde o apontar-se “no sentido de que a competência dos tribunais de comércio se prende com questões relacionadas com a actividade das sociedades comerciais e das sociedades civis sob a forma comercial, a qual deve orientar o intérprete na determinação do sentido e alcance do segmento normativo em análise” ([4]). No tocante aos processos de jurisdição voluntária – dentro, pois, dos processos especiais, mas fora do processo de prestação de contas (este previsto nos art.ºs 1014.º e segs.) –, o CPCiv. prevê uma secção (a XVII do capítulo dos ditos processos de jurisdição voluntária) referente ao exercício de direitos sociais (é esta a respectiva epígrafe), incluindo “Do inquérito judicial à sociedade” (art.ºs 1479.º e segs.), “Nomeação e destituição de titulares de órgãos sociais” (art.ºs 1484.º e segs.), “Convocação de assembleia de sócios” (art.º 1486.º), “Redução do capital social” (art.º 1487.º), “Oposição à fusão e cisão de sociedades e ao contrato de subordinação”(art.ºs 1488.º e seg.), “Averbamento, conversão e depósito de acções e obrigações” (art.ºs 1490.º e segs.), “Liquidação de participações sociais” (art.ºs 1498.º e seg.), “Investidura em cargos sociais” (art.º 1500.º e seg.), podendo questionar-se a bondade da solução de inclusão destes processos especiais no âmbito dos processos de jurisdição voluntária ([5]) mas não podendo deixar de afirmar-se a natureza essencialmente societária das respectivas matérias, por fortemente radicadas, todas elas, no direito societário ([6]), fazendo sentido, por isso, falar aqui em “contencioso das sociedades comerciais”. Como salientado pela jurisprudência, o CSComerciais, por sua vez, “também estabelece uma série de direitos concedidos aos sócios”, ligando-se aqui a competência dos tribunais de comércio a “questões relacionadas com a vida e actividade das sociedades comerciais e das sociedades civis sob forma comercial, sendo este o princípio que deve presidir à fixação do sentido a atribuir à mencionada al. c)” ([7]) ([8]). Assim sendo, direitos sociais são “todos aqueles que os sócios têm enquanto sócios de uma sociedade, tendentes à protecção dos seus interesses sociais. São direitos que nascem na esfera jurídica do sócio enquanto tal, por força do contrato de sociedade. Já aqueles outros direitos de que os sócios são titulares independentemente da sua qualidade de sócios, em que esta qualidade é irrelevante para o exercício de determinado direito, são direitos extra-sociais que os sócios podem exercer como qualquer outra pessoa, numa posição semelhante à de terceiros”. A prestação de contas, por sua vez, “não é um típico direito social, um daqueles direitos que tenha nascido na esfera jurídica do autor enquanto sócio de uma sociedade”, apresentando-se antes como “um direito que os sócios de uma sociedade exercem como qualquer outra pessoa, numa posição semelhante à de um terceiro. Aliás, este processo está previsto e regulado de uma forma genérica no C.Pr.Civil para todo aquele que tenha o direito de exigir a prestação de contas” ([9]). Ou, dito de outro modo, “direitos sociais são todas as prerrogativas dirigidas à protecção de cada sócio de uma determinada sociedade, mercê, exclusivamente, da qualidade de sócio que lhe está conferida, e que lhe advêm do contrato de sociedade, de conteúdo complexo e sujeito a um quadro legal que apresenta variedade e complexidade pouco usuais”([10]),a exigir Quer dizer, e como também já concluiu esta Relação de Lisboa, “em face designadamente da causa de pedir invocada”, não se mostra que “a prestação de contas exigida pela própria sociedade a uma pessoa que não é seu sócio nem gerente se deva classificar como representando o exercício de um direito social. Desde logo, porque não se vê que estejam a ser exercidos direitos de sócios em face da sociedade ou daqueles e desta perante um seu gerente – os direitos sociais a que [alude] a alínea c) do artigo 89º, nº 1 da LOFTJ” ([11]). Perante esta perspectiva do que deve entender-se por exercício de direitos sociais, resulta manifesto que a presente acção, em que se pretende a prestação de contas a uma sociedade por parte de quem não é, nem jamais foi, seu sócio – nem é sequer gerente –, por força de acidental/precária e informal actuação de poderes de gestão num lar de idosos, não se dirige ao exercício de quaisquer direitos sociais, não caindo, por isso, na esfera de competência dos tribunais de comércio, antes se compreendendo no âmbito mais genérico da competência dos juízos cíveis. Não será, pois, o tribunal de comércio o competente para preparar e julgar esta acção, mas sim o tribunal comum, no caso o 3.º Juízo Cível de Cascais, onde os autos foram intentados. Donde que seja forçosa a procedência da apelação, não podendo subsistir o juízo de incompetência material formulado pelo Tribunal a quo, nem o decorrente liminar indeferimento da petição inicial. IV – Sumariando (art.º 713.º, n.º 7, do CPC): (…) Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a Apelação e, em consequência: a) revogam a decisão recorrida, por o tribunal materialmente competente para preparar e julgar a acção ser, não o Tribunal de Comércio de Lisboa, mas o 3.º Juízo Cível de Cascais, a que os autos foram distribuídos; b) determinando que a acção aí prossiga os seus legais trâmites subsequentes. Custas do recurso pela parte vencida a final. (José Vítor dos Santos Amaral) (Fernanda Isabel Pereira) (Maria Manuela Gomes) ([1]) É pacífico o entendimento de que a fundamentação insuficiente ou deficiente da sentença não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, mas apenas a falta absoluta da respectiva fundamentação. Com efeito, a causa de nulidade referida na al. b) do n.º 1 do art.º 668.º do CPCiv. ocorre quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido, mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão, violando o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (cfr. art.º 208.º, n.º 1, CRPort., e art.º 158.º, n.º 1, do CPCiv.). Como refere, a este propósito, Teixeira de Sousa – cfr. “Estudos sobre o Processo Civil”, pág. 221 –, “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”. Também Lebre de Freitas – cfr. Código de Processo Civil, pág. 297 – esclarece que “há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação”. Por sua vez, Alberto dos Reis já ensinava – cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140 – que deve distinguir-se “a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”. ([4]) Assim o aludido Ac. do STJ, de 12/02/2004, em que foi Relator o Cons. Salvador da Costa, que, por sua vez, cita o Ac. do STJ, de 05/02/2002, CJ, Ano X, Tomo 1, pág. 68, e Paula Costa e Silva ("Sobre a Competência dos Tribunais de Comércio", ROA, Lisboa, Ano 62, 2002, págs. 210 e segs.). |