Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3407/2007-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: DOAÇÃO
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/28/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. O devedor não pode, com inteira liberdade, praticar diminuições do seu património de modo que este deixe de servir de garantia ao adequado cumprimento das obrigações a que se encontra vinculado. Daí que a lei conceda ao credor em caso de diminuição do património do devedor para além de limites razoáveis que aquele lance mão de determinados meios conservatórios da garantia patrimonial, tais como a declaração da nulidade, a impugnação pauliana, o arresto, etc.
II. Assim, o credor, desde que tenha interesse nesse desiderato, tem legitimidade para, designadamente, arguir a nulidade dos actos praticados pelo devedor, nulidade que pode decorrer de variadas causas: por inobservância da forma prescrita, por falta de vontade, por simulação do acto, por impossibilidade ou ilicitude do objecto, por ser contrário à lei, à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes, ou até por praticado com abuso de direito.

III. Deste modo, verificando-se que o devedor realizou um acto que deva ser considerado nulo, assistirá a qualquer dos credores o direito de pedir a respectiva declaração de nulidade, com a consequência de tudo se passar como se o acto não tivesse sido praticado, repondo-se a situação anterior, com proveito não só para o credor que invocou a nulidade, como para todos os outros credores.

IV. No caso dos autos, os executados eram conhecedores do crédito da exequente e de que a satisfação integral deste crédito através da execução não poderia ser obtida pelos restantes bens penhorados e, apesar disso, o executado marido decidiu doar a nua propriedade do imóvel à filha, reservando para si o usufruto.

V. A doação em causa obstativa à satisfação do crédito exequendo é de considerar nula, por contrária aos bons costumes, por simulada e por exercida com abuso de direito, porque feita pelo doador contra princípios jurídicos comummente aceites, sem espírito de liberalidade e com intenção de enganar e até de prejudicar terceiros.

PR

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I. OBJECTO DO RECURSO.
No Tribunal Judicial da Horta, por apenso à execução ordinária para pagamento de livrança registada no tribunal judicial da Horta com o n° 102/89, intentada por Caixa, SA., em liquidação, contra V e sua mulher, veio S deduzir acção de embargos de terceiro contra Caixa e V e mulher, alegando, em síntese, que foi efectuada penhora do imóvel melhor identificado nos autos, o qual é sua propriedade por lhe ter sido doado por seu pai, o executado Victor, pelo que não pode tal bem responder por tais dívidas.
Conclui pedindo que seja levantada a penhora.
Notificada a embargada Caixa, apresentou a sua contestação em que alega, em síntese, que a indicada doação não foi efectuada com espírito de liberalidade pois, à data da doação, havia mais de seis meses que a execução tinha sido instaurada, para além de que a casa doada era-lhes necessária para viver e não tinham qualquer outro bem ou valor para pagamento da quantia exequenda.
Conclui que a doação do imóvel deve ser declarada nula, por simulação ou, se assim se não entender, por contrário à lei e sempre com o cancelamento do registo de aquisição pela embargante, com a consequente improcedência dos embargos.
A embargante replicou, alegando que existiu uma verdadeira liberalidade na doação que lhe foi efectuada por seus pais, a qual foi o cumprimento dos desejos da avó da embargante.
Foi proferido despacho saneador e organizaram-se a especificação e a base instrutória, que se fixaram sem reclamações.
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento e, aquando da prolação da decisão, foi proferido despacho a declarar a nulidade do processo, por falta de citação.
Foram repetidos os actos necessários e procedeu-se à realização de nova audiência de discussão e julgamento, após o que foi dada resposta à matéria de facto constante da base instrutória, o que foi objecto de reclamação, que não mereceu acolhimento.
Por fim foi proferida sentença, julgando os embargos improcedentes.
Inconformados com a decisão, vieram a Embargante Sara e também cada um dos executados interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:
(…)
A Embargada Caixa contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Admitidos os recursos na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento dos mesmos, cumpre decidir.
As questões a resolver são as de saber se a matéria de facto deve ser alterada no sentido pretendido pelos recorrentes e, em qualquer hipótese se a doação em apreço nos autos é, ou não, de haver por nula.
|
II. FUNDAMENTOS DE FACTO.
A 1.ª instância considerou como provados os seguintes factos:
1 - O direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Rua de São João, n° … e descrito na Conservatória do Registo Predial da Horta sobre o n° … da freguesia da Matriz, encontra-se inscrito a favor da embargante Sara;
2 - Encontra-se inscrito a favor do executado Victor o usufruto do referido prédio;
3 - Os registos acima mencionados datam de 04 de Julho de 1990;
4 - Por escritura publica datada de 06 de Abril de 1990, o executado Victor declarou doar à embargante Sara o prédio identificado em 1;
5 - Pela mesma escritura o executado declarou reservar para si o usufruto do mencionado prédio;
6 - O executado havia adquirido o direito de propriedade por óbito de Maria, encontrando-se aquele direito registado em seu nome por inscrição datada de 22 de Fevereiro de 1990;
7 - Maria faleceu no dia 30 de Maio de 1989;
8 - O prédio identificado em 1 foi penhorado nos autos de execução apensos no dia 02 de Dezembro de 1998, encontrando-se aquela penhora registada como provisória por dúvidas a favor da embargada;
9 - O autor da doação mencionada em 4 é executado nos autos apensos, juntamente com a sua mulher, desde 18 de Outubro de 1989, para pagamento da quantia exequenda de 5.546.731$00, acrescida de juros à taxa legal;
10 - Em 09 de Março de 1990, a embargada nomeou à penhora o recheio da residência dos executados, tendo aquela penhora sido efectuada a 04 de Abril do mesmo ano, ficando o executado como fiel depositário dos bens penhorados;
11 - Os bens mencionados em 10 foram vendidos em 14 de Julho de 1992, tendo a exequente recebido com aquela venda a quantia de 174.170$00;
12 - Na mesma execução foram penhorados três depósitos bancários no valor global de 21.137$00;
13 - Foi ainda penhorado 1/6 do ordenado auferido pelo executado, tendo a exequente recebido por força dessa penhora a quantia de 874.153$00, por cheque precatório emitido em Fevereiro de 1995;
14 - Os executados, pais da aqui embargante, desde a data da instauração da execução, acompanharam todo o seu processado, tendo constituído mandatário, e tendo conhecimento de todas as diligências efectuadas naquela acção por forma a poder ser obtido o pagamento da quantia exequenda;
15 - À data em que o executado adquiriu o direito de propriedade sobre o seu imóvel identificado em 1, nem ele nem a sua mulher tinham quaisquer outros bens ou rendimentos conhecidos e suficientes para o pagamento da quantia exequenda.
|
III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.
A) da alteração da matéria de facto.
(…)
|
B) da nulidade, ou não, da doação.
A resposta à questão acima enunciada, em face da matéria de facto considerada por assente, foi dada de forma acertada e categórica na sentença recorrida, que na análise da questão em apreço, como de resto das questões instrumentais consideradas, invocou com rigor a lei aplicável, interpretando-a de acordo com o melhor entendimento da doutrina e da jurisprudência, adrede chamadas à colação, e efectuou uma ponderação judiciosa da facticidade dada por assente, para concluir, convincentemente, pela nulidade da doação.
Mostrando-se a sentença sindicada correctamente estruturada e devidamente fundamentada, este Tribunal considera dever seguir a fundamentação doutamente deduzida pelo Mmo juiz recorrido, sem necessidade de reproduzir todos raciocínios ou explanar mais convincentes argumentos, pelo que, nos termos do art. 713º, n.º 5 do C. P. C., se remete, pois, para os fundamentos da decisão impugnada, que, no essencial, se acolhem.
A sentença recorrida vale por si, mas, de forma abreviada e por respeito pela alegação produzida pelos Apelantes, que em todo o caso representa notável esforço argumentativo, se anotam as seguintes considerações:
Antes de mais importa deixar consignado que apesar da decisão da matéria de facto sofrer a alteração que acima se deixou descrita no sentido de não se considerar provada a matéria que constava dos pontos 16º a 20º, continua a manter-se válida a solução acolhida na decisão recorrida.
Com efeito, está provado que os executados são devedores à exequente da quantia de 5.546.731$00 (€27.666,98), pela qual corre termos a presente execução, que teve início em 18.10.1989 e no decurso dela vieram a ser penhorados o recheio da casa, depósitos bancários e 1/6 do ordenado auferido pelo executado marido, com o que se apurou a quantia global de 1.069.460$00 (€ 5.334,44) e finalmente, em 2.12.98, o prédio urbano, que era propriedade de Maria, falecida a 30.05.89 e que, por óbito desta, passou a ser propriedade do executado marido, como resulta da inscrição respectiva datada de 22.02.90.
Sucede que em 06.04.90, o executado marido doou o prédio à filha, então com oito anos de idade, reservando para si o usufruto, sendo que à data em que o executado adquiriu o direito de propriedade sobre o seu imóvel em causa, nem ele nem sua mulher tinham quaisquer outros bens ou rendimentos conhecidos e suficientes para o pagamento da quantia exequenda.
Por outro lado, os executados, pais da aqui embargante, desde a data da instauração da execução, acompanharam todo o seu processado, tendo constituído mandatário, e tendo conhecimento de todas as diligências efectuadas naquela acção por forma a poder ser obtido o pagamento da quantia exequenda.
Quer dizer: os executados, ora apelantes, eram conhecedores do crédito da apelada e de que a satisfação integral deste crédito através da execução não poderia ser obtida pelos restantes bens penhorados e, apesar disso, o executado marido decidiu doar a nua propriedade do imóvel à filha, reservando para si o usufruto.
Ora, em frente deste quadro factual tem de se concluir que a doação realizada em tal contexto só pode ser contra o direito constituído.
Com efeito, o devedor antes de cumprir a obrigação a que se encontra vinculado não pode com inteira liberdade praticar diminuições do seu património de modo que este deixe de servir de garantia ao adequado cumprimento das responsabilidades assumidas. Daí que a lei conceda ao credor em caso de diminuição do património do devedor para além de limites razoáveis que aquele lance mão de determinados meios conservatórios da garantia patrimonial, tais como a declaração da nulidade, a impugnação pauliana, o arresto, etc.
Assim, a lei confere aos credores legitimidade para, designadamente, arguírem a nulidade dos actos praticados pelo devedor, desde que tenham interesse na declaração da nulidade em causa, mesmo que o acto não produza ou agrave a situação patrimonial deficitária do devedor (art. 605°/1 do CC).
E a nulidade do acto jurídico pode decorrer de variadas causas: por inobservância da forma prescrita, por falta de vontade, por simulação do acto, por impossibilidade ou ilicitude do objecto, por ser contrário à lei, à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes, ou até por praticado com abuso de direito.
Deste modo, verificando-se que o devedor realizou um acto que deva ser considerado nulo, assistirá a qualquer dos credores, que nisso manifeste interesse, o direito de pedir a respectiva declaração de nulidade, com a consequência de tudo se passar como se o acto não tivesse sido praticado, repondo-se a situação anterior, com proveito não só para o credor que invocou a nulidade, como para todos os outros credores (art. 605°/2).
No caso dos autos, a exequente, ora embargada e apelada, com respeito à doação dos autos invocou a sua nulidade por simulação e por contrária à lei, à ordem pública e aos bons costumes, sendo que na douta sentença recorrida se considerou verificada a nulidade por contrária aos bons costumes, expendendo-se uma douta argumentação, com citação de abundante doutrina e jurisprudência, que no essencial merece concordância e até aplauso.
No entanto, afigura-se-nos que a doação em causa nos autos integra também uma doação simulada, porque feita pelo doador, sem espírito de liberalidade, que não provou, e com intenção de enganar e até de prejudicar terceiros. E porque a doação revestiu a modalidade de uma doação pura e a favor de pessoa sem capacidade de contratar não carecia de aceitação para produzir efeitos (art. 951º/2).
Por outro lado, porque a simulação pode ter lugar nos negócios jurídicos unilaterais não receptícios, como é entendimento pacífico, não se vê razão para se não considerar verificada no caso dos autos a simulação, ainda que a donatária em função da sua idade não tenha cooperado na verdadeira intenção do acto. É que não se exigindo a cooperação do donatário, devido à sua natural incapacidade para contratar, para o negócio decorrente da vontade real do doador, parece que por igualdade de razão se não deva exigir para o negócio simulado, negócio não correspondente à vontade real do doador.
De qualquer modo, mesmo que no caso se não verificasse uma doação caracterizável de simulada e, consequentemente, nula, sempre a mesma seria de haver por nula nos termos dos art.s 280º e 281º e por aplicação analógica do regime do art. 1286º, todos do CC, por atentória dos bons costumes, como bem se defendeu na sentença sindicada e para a qual se remete nesta parte, dada a desnecessidade de algo acrescentar.
É certo que os apelantes mostram o seu dissentimento da bem fundamentada decisão recorrida quanto à nulidade da doação com fundamento em a mesma ser contrária aos bons costumes, mas não parece que razão lhes assista.
Mas se razão tivessem, ainda assim a doação deveria ser caracterizada de nula, por, em nosso entender, integrar também uma situação de abuso de direito, nos termos do art. 334º CC (que, note-se, é de conhecimento oficioso).
O exercício do direito não deve exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, por a todos se impor uma conduta de acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis no comércio jurídico.
O mesmo se diga dos limites impostos pelos bons costumes, ou seja, pelo conjunto de regras éticas usadas pelas pessoas sérias, honestas e de boa conduta em determinada sociedade.
Por outro lado, os direitos devem ser exercidos de acordo com o fim social e económico para que a lei os concebeu. Se forem exercidos para fins diferentes daqueles para que a lei os consagrou, ainda que tal exercício seja útil ao seu autor, poderá haver abuso de direito, se tal exercício ofender claramente a consciência social dominante.
Para Manuel de Andrade «há abuso do direito quando o direito, legítimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual»(1).
De outro ponto de vista, o acto abusivo é, em regra, no pensamento de Vaz Serra, o acto de exercício de um direito que, intencionalmente, causa danos a outrem, por forma contrária à consciência jurídica dominante na colectividade social(2).
Daí que o exercício de um direito deverá haver-se por abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou seja, quando esse direito seja exercido em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante(3).
Ora, no caso vertente a doação feita pelo executado no condicionalismo em que se verificou representa um exercício irregular do direito, pois que o doador, detentor embora do direito de dispor de um bem que lhe pertencia por doação, válido em princípio, exercitou-o, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos claramente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, tanto mais que o fez com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem.
E, como salienta Antunes Varela, se o exercício abusivo do direito causou algum dano a outrem, haverá lugar à obrigação de indemnizar, e “se o vício se tiver reflectido na celebração de qualquer negócio jurídico, este será, em princípio, nulo”(4).
Enfim, por diferentes caminhos, se chaga à conclusão de que a doação dos autos tem de ser considerada um negócio jurídico nulo e de nenhum efeito, com a consequência da improcedência dos embargos e do demais ordenado na sentença recorrida.
Deste modo, procedendo embora parcialmente as conclusões do recurso quanto à alteração da matéria de facto, sempre é de manter a decisão recorrida.
|
IV. DECISÃO:
Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento às apelações e confirma-se a decisão recorrida.

Custas nas instâncias pelos apelantes

Lisboa, 28 de Junho de 2007.
FERNANDO PEREIRA RODRIGUES
FERNANDA ISABEL PEREIRA
MARIA MANUELA GOMES
_______________________________
1 Teoria Geral das Obrigações, 3.ª ed., pg. 63-64.
2 "Abuso de Direito", in BMJ nº 85, pág. 253, também citado por F. A. Cunha de Sá in Abuso de Direito, pg. 127.
3 Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, pág. 299.
4 Das Obrigações em Geral, vol. I, 3ª ed., pág. 438. No mesmo sentido veja-se AC. do STJ de de 28.11.1996, in CJ, 1996, 3.º, pg. 118.