Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1615/07-2
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
PROVA VINCULADA
MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/19/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Dispondo o artigo 327º, nº1 do CVMobiliários que as ordens podem ser dadas oralmente, a declaração negocial do emitente para subscrição ou regaste de títulos não está sujeita a qualquer formalidade ad substantiam, o que significa que a prova daquela poderá ser feita por qualquer meio, nomeadamente, através de testemunhas.
(A.P. B.)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

I A F intentou a presente acção com processo ordinário contra D(…) B(…) (PORTUGAL), S.A., pedindo a condenação do Réu a satisfazer-lhe a quantia de € 317 460, 35 acrescidos de juros vencidos e vincendos desde a data da propositura da acção até pagamento por via de um contrato de depósito bancário celebrado com esta instituição a qual procedeu a movimentos não autorizados, o que lhe ocasionou prejuízos pelo montante peticionado.

A final foi produzida sentença a julgar a acção improcedente, da qual inconformado recorreu o Autor, apresentando as seguintes conclusões:
- A decisão ora em recurso tem de ser alterada no que toca a pontos da matéria de facto e, como consequência, revogada a decisão, substituindo-se por outra que condene o Apelado;
- Na verdade, não poderiam dar-se como "provados" os factos constantes dos "quesitos" 3° e 4°, sendo que as respostas a ambas as questões estão interligadas entre si na medida em que para que se possa falar de "informação discriminada" através da qual o Apelante terá tido "conhecimento e controlo", ter-se-á de pressupor que a mesma é verdadeira, fiel e exacta, o que não sucedia;
- É que, analisados os documentos juntos aos autos, constata-se que os movimentos a crédito e a débito sobre a conta de depósitos à ordem do Apelante ("Extracto de conta DO") não coincidem com a posição da carteira de títulos do mesmo ("Extracto integrado de fundos");
- E é a própria testemunha L M, funcionária do Apelado, que o confirma:
"há uma lacuna “ - Cassete n° 476, da sessão de 23 de Maio de 2006, Lado A;
- Também a testemunha S V, no depoimento registado na Cassete n° 1 da sessão do dia 3 de Novembro de 2005, lado A, explica detalhadamente a razão da impossibilidade de se conhecer fielmente a informação que pelo Apelado era enviada ao Apelante;
- Aliás, após exibição e análise de "mapa" utilizado pela testemunha L M para prestar informações ao Apelante, o próprio Juiz acaba por reconhecer essa incongruência no despacho de fls. 307 dos autos: "Durante a inquirição da testemunha a mesma apresentou um documento que tinha em seu poder e que consubstancia o mapa da carteira de fundo de investimento apresentado ao cliente, datado de 16 de Junho de 2003. A informação constante desse mapa não coincide com a informação constante do extracto integrado de fundos de investimento datado de 4 de Junho de 2003 (já junto aos autos a fls. 124) nem com o extracto de depósito à ordem correspondente ao período de 30 de Maio a 30 de Junho de 2003";
- É verdade que a dita L M lançou em Tribunal uma explicação para essa incongruência, dizendo que os ditos "mapas" mais não eram que "projecções" que lavrava para os seus clientes, Apelante incluído;
- Porém, da análise do doc. de fls. 299 dos autos, constata-se que o mesmo é lavrado em 16 de Junho de 2003, mas as operações nele reflectidas tiveram lugar no passado, a mais recente das quais era de 20 de Maio de 2003;
- Além disso, o próprio "mapa" referia "mais/menos valias registadas" e "posição actual", tudo para o passado e presente, nunca para o futuro;
- Pelo que a explicação aventada pela testemunha L M – cfr. Cassete n° 476, Lado A, da sessão de 23 de Maio de 2006 – mais não é que uma efabulação para ocultar a informação falsa que prestou ao cliente e aqui Apelante;
- Por outro lado, a resposta ao quesito 1° é ilegal;
- Desde logo, como é possível dar como "credível, isenta e objectiva" uma testemunha que mente quanto aos "mapas" e que, por outro lado, confessa a prática reiterada de crimes de falsificação;
- Atente-se no processo que a dita testemunha confessa ter utilizado para movimentar a conta do Apelante:
Pergunta do mandatário do Apelante: "em relação a todos os movimentos que estão aqui em causa a Sra. utilizou uma fotocópia da assinatura?" Resposta de L M: "Exactamente".
- Portanto, a gravação da prova impõe que em relação aos "quesitos" apontados (1°, 3° e 4°) seja dada resposta negativa;
- Mas mesmo que em relação ao "quesito" 1° essa resposta negativa não viesse a ser dada, o certo é que a positiva é em si mesma ilegal por violação do regime probatório legalmente consagrado;
- E que as ordens que se discutem nos autos tinham de ser reduzidas a escrito (art. 327° do Código dos Valores Mobiliários e Regulamento CMVM n° 12/2000);
- Além do mais, o próprio contrato de depósito dos autos (cláusula 5.2) impõe a redução a escrito ou a fixação em suporte fonográfico das ordens dadas telefonicamente;
- Se assim era, como efectivamente é, não era admissível prova testemunhal em relação a facto que só através de documento ou por meio de confissão se poderia demonstrar – arts. 364° e 393° do Código Civil;
- E não se pode admitir a congeminação de um princípio de celeridade – que, nesta matéria, não existe no nosso ordenamento jurídico – que se sobreponha aos princípios da certeza e segurança jurídicas – que efectivamente têm reflexo legal para superar as dificuldades probatórias que o Tribunal recorrido efectivamente veio a sentir para dar como provado tal "quesito";
- O Juiz é intérprete qualificado da Lei e é dela aplicador: não é legislador;
- Dando-se como não provada ou não escrita a resposta ao "quesito" 1°, ter-se-á de dar como assente que as ordens dos autos não foram autorizadas;
- Ora, neste contexto, o problema da alegada "caducidade" terá de ser reequacionado pois que a cláusula invocada pelo Banco Apelado apenas pode dizer respeito a ordens efectivamente dadas e movimentos efectivamente autorizados pelo ordenante: para essas existe um prazo para reclamação;
- É que a situação que foi trazida a estes autos, reportando-se a situações de movimentos não autorizados, cai fora do domínio do contrato dos autos, passando a localizar-se no domínio da responsabilidade civil extracontratual, por factos ilícitos e danosos, que estão a coberto do prazo prescricional previsto no art. 498° do Código Civil, especialmente agravado pelo prazo de cinco anos aplicável à prescrição do procedimento criminal do crime de falsificação;
- Mas mesmo que assim não se entendesse, a cláusula invocada é nula, por violação do art. 809° do Código Civil;
- Sendo também uma cláusula absolutamente proibida nos termos do disposto no art. 18°, al. c) do Decreto Lei n° 446/85, de 25 de Outubro e no art. 19°, al. d) do mesmo diploma;
- Além do mais, essa cláusula é nula se interpretada no sentido de se considerar aceite pelo Apelante as movimentações dos autos com base numa pura ficção resultante da recepção de documentos que espelham essas movimentações — cfr. art. 22°, n° 1, al. g) do mesmo diploma legal;
- A decisão recorrida terá de ser alterada no que respeita às respostas dadas aos quesitos 3° e 4º o que se conclui pela reapreciação da prova gravada, tal como acima ficou transcrito e também do deve ser no que toca à resposta dada ao "quesito 1º;
- De todo o modo essa resposta é ilegal porque não fundamentada em documento ou confissão o que deve conduzir a diversa decisão no que toca à alegada "caducidade";
- A decisão recorrida violou assim o disposto no art. 327° do Código dos Valores Mobiliários, arts. 364°, 393°, 498° e 809° do Código Civil e arts. 18°, al. c), 19°, al. d) e 22°, n° 1, al. g) do Decreto Lei n° 446/85, de 25 de Outubro.

Juntou o Apelante, em abono da sua tese, um parecer jurídico subscrito pela Exª Sra Professora Doutora Paula Costa e Silva.

Nas contra alegações o Réu pugnou pela manutenção da decisão recorrida.

II Põem-se como problemas a resolver no âmbito do presente recurso os de saber: 1) se o direito do Apelante a propor esta acção caducou; 2) e se, no caso negativo, a resposta aos pontos 1., 3. e 4. da base instrutória, deverá ser alterada, com a reapreciação da prova gravada quanto aos dois últimos e, no que tange ao ponto 1., por ilegalidade da resposta positiva obtida, por se tratar de facto cuja prova só poderá ser documental ou por confissão.

A sentença sob recurso deu como assentes os seguintes factos:
1 - A. e R. acordaram nos termos do doc. de fls. 140 a 146, no que denominaram contrato e depósito bancário.
2 - 0 A. transferiu para o R, numa conta bancária aí aberta sob o n.° 04001000735, várias quantias, cfr. docs. de fls. 21 a 25.
3 - Entre 26 de Novembro de 2001 e 27 de Setembro de 2002, o R. efectuou débitos na conta bancária n.º04001000735 no valor total de € 18 850 395, 54, cfr. docs. de fls. 21 e ss.
4 - O R. enviou ao A. os docs. de que se mostram juntas cópias de fls. 21 a 122 (borderaux), dando-lhe conta dos débitos e créditos efectuados e do nome do fundo a que se destinaram aplicações.
5 - Os débitos da conta bancária n.º04001000735 da titularidade do A. referidos em 3) foram efectuados com autorização do A., no cumprimento de ordens de subscrição e de resgate daquele.
6 – O A. é presidente de um grupo de empresas ligado à construção e promoção imobiliária fazendo aplicações financeiras, com regularidade, através de gestores de conta.
7 - O A. recebia, a envio do R., um extracto bancário contendo discriminadamente formação respeitante à conta n.º04001000735, cfr. doc. de fls. 148 a 154.
- O A. manteve controlo e conhecimento dos movimentos efectuados na conta n.º0001000735, tendo assinaladamente procedido a consultas através de meios telefónicos e da Internet, cfr. doc. de fls. 155 a 158.

1. Do contrato celebrado entre Apelante e Apelado e da caducidade do direito de acção daquele.

Estamos face a um acordo de abertura de conta entre Apelante e Apelado, formalizado através do documento de fls 140 a 146, com o seguinte objecto «(…)a) Abertura e movimentação de contas de depósito à ordem e/ou a prazo; b) Custódia de valores mobiliários; c) Subscrição de participações em instituições de investimento colectivo; d) Adesão e utilização do serviço DB-Line; e e) Utilização de cartões de crédito e de débito. (…)», nos termos da cláusula 2.1.

Esse acordo assumiu a natureza formulária, pois pressupôs a adesão do cliente (o Apelante) às suas cláusulas pré-elaboradas.

A causa de pedir na presente acção reside na violação pelo Apelado dos deveres emergentes da relação bancária estabelecida com o Apelante, pois na tese deste teriam sido efectuados movimentos por si não autorizados, tendo a sentença recorrida concluído pela caducidade do direito daquele, uma vez que entendeu estar verificada a excepção de caducidade decorrente da não reclamação das operações efectuadas nos 15 dias subsequentes à recepção dos documentos identificadores das aludidas operações, sendo que, tal prazo de caducidade consta da cláusula 5.13 do contrato celebrado entre ambos.

Vejamos.

É do seguinte teor a aludida cláusula «(…)Caso, após a data de envio de qualquer dos documentos referidos no número anterior, o Cliente não proceda a qualquer reclamação no prazo de 15 (quinze) dias, as operações neles identificadas serão, para todos os efeitos, tidas por automaticamente confirmadas, não podendo ser solicitada ao Banco qualquer reparação.(…)».

Ora, o pedido que o Apelante formula na acção tem por base a violação por banda do Apelado, dos seus deveres contratuais, já que, como se referiu, teria efectuado operações não autorizadas pelo Apelante, pelo que, se trata de uma acção de responsabilidade contratual (e não de mera responsabilidade civil como é defendido pelo Apelante), à qual se aplica o prazo geral de prescrição de vinte anos, nos termos do normativo inserto no artigo 309º do CCivil.

Estabelecendo a Lei tal prazo, como articular o mesmo com aquela cláusula que estabelece um prazo mais curto para exigir a responsabilidade, através da criação de uma regra especial de caducidade do direito à reparação?

A este propósito estipula o artigo 330º, nº1 do CCivil «São válidos os negócios pelos quais se criem casos especiais de caducidade, se modifique o regime legal desta ou se renuncie a ela, contanto que não se trate de matéria subtraída à disponibilidade das partes ou de fraude às regras legais da prescrição.», sendo certo que o artigo 300º do mesmo diploma estabelece o princípio da inderrogabilidade do regime da prescrição, de onde serem nulos os negócios jurídicos que modifiquem os prazos legais de prescrição, não podendo o beneficiário destes aceitar por qualquer forma prazos mais curtos, cfr Carvalho Fernandes, Teoria Geral, 1983, 2º volume, 565.

Daqui decorre, por um lado, que estando o pedido formulado pelo Apelante ao abrigo da responsabilidade contratual, para o qual a Lei estabelece um prazo de vinte anos para o exercício do direito, prazo este injuntivo, nunca poderiam as partes criar um prazo especial de caducidade do direito de acção, que encurtasse, como encurtou, aqueloutro.

Por outra banda, tratando-se, como se trata, de uma cláusula de renúncia a um pedido de eventuais responsabilidades por banda do Apelado, a mesma teria sempre de ser considerada nula, nos termos do artigo 809º do CCivil, cfr Calvão da Silva, in Cumprimento e Cláusula Pecuniária Compulsória, 177.

Por último, atento o teor padronizado do contrato, o artigo 21º, alínea d) do DL 446/85 de 25 de Outubro, estipula que tal cláusula é absolutamente proibida, o que a sentença deveria ter declarado.

Daqui se extrai que não se mostra caducado qualquer eventual direito do Apelante a exigir responsabilidades do Apelado, procedendo, neste particular, as conclusões de recurso.

2. Da alteração à matéria de facto.

Insurge-se o Apelante contra as respostas dadas aos pontos 1., 3. e 4. da base instrutória, os quais, no seu entendimento, deveriam ter merecido as respostas de não provado.

Naqueles pontos perguntava-se «Os débitos da conta bancária n.º04001000735 da titularidade do A. referidos em c) foram efectuados com autorização do A., no cumprimento de ordens de subscrição e de resgate daquele?» (1.); «O A. recebia, a envio do R., um extracto bancário contendo discriminadamente informação respeitante à conta n.º04001000735, cfr. doc. de fls. 148 a 154?» (3.); «O A. manteve controlo e conhecimento dos movimentos efectuados na conta n.º0001000735, tendo assinaladamente procedido a consultas através de meios telefónicos e da Internet, cfr. doc. de fls. 155 a 158?» (4.).

Analisemos em primeiro lugar as respostas afirmativas dadas aos pontos 3. e 4..

Tais respostas basearam-se não só nos documentos juntos aos autos, pelo próprio Apelante, com a sua Petição Inicial, como também nos documentos juntos pelo Apelado e que fazem fls 220 a 237, sendo que estes documentos, na oportunidade não foram impugnados, pelo que o Tribunal concluiu que o Apelante recebia do Apelado os extractos bancários contendo a informação discriminada dos movimentos da sua conta e assim tinha conhecimento da mesma. Por outra banda, o Tribunal deu como provado que além disso o Apelante teve acesso a tais movimentos através de telefone e da Internet com base no depoimento da testemunha S V.

O que decorre das aludidas respostas é que o Apelado deu ao Apelante informação sobre os movimentos efectuados, o que aliás, possibilitou a instauração desta acção, visto o Apelante não concordar com os mesmos.

Também decorre de tais respostas, que o Apelante podia, como pode, controlar tais movimentos, e tanto assim que, ao controla-los, teve para si que os mesmos não corresponderiam a ordens dadas.

Assaca-se ainda da aludida factualidade que o Apelante colhia informações telefónicas sobre a conta e a ela acedia através da Internet. E, tal resulta do conjunto da prova produzida, maxime, do depoimento da testemunha por si arrolada.

Mas, não deixa de ter contornos de perplexidade a impugnação pelo Apelante das respostas a tal matéria, pois não fora o conhecimento dos movimentos que lhe foi transmitido pelo Apelado e nunca aquele poderia ter junto com a Petição Inicial a exaustiva documentação que juntou.

Uma questão é a de saber se o Apelado lhe deu conhecimento dos movimentos e se o Apelante teve acesso e controle da sua conta, e a esta questão parece não se poder dar outra resposta senão a afirmativa.

Questão diversa é de saber se tais movimentos tiveram a autorização do Apelante, isto é, se afinal os mesmos têm correspondência com instruções que foram dadas por este ao Apelado, ou seja, se tais movimentos são fiéis, verdadeiros e exactos e se foram efectuados no estrito cumprimento do contrato havido entre ambos.

Mas este conspectu não é mais do que o cerne do problema de que se cura aqui.

Quid inde?

Como já acentuamos supra, o pedido que o Apelante formula na acção tem por base a violação por banda do Apelado, dos seus deveres contratuais, já que teria efectuado operações não autorizadas pelo Apelante.

Ora, tendo as provas por função a demonstração da realidade dos factos, nos termos do artigo 341º do CCivil, impendendo sobre aquele que alegar um direito o ónus da prova dos factos constitutivos do mesmo e sobre aquele que alegar factos extintivos de tal direito o ónus de os provar, por força do disposto no artigo 342º, nº1 e 2 do mesmo diploma legal, o aporema daqui é saber porque forma a Lei impõe que a respectiva prova seja feita, isto é, se estamos perante um facto para cuja apreciação a Lei impõe regras probatórias estritas, ou se se trata de um facto sujeito a prova livre.

Para a dilucidação daquele ponto controvertido – se as operações tinham ou não sido efectuadas com a autorização do Apelante - o Tribunal formulou o ponto 1. da base instrutória onde perguntava se «Os débitos da conta bancária n.º04001000735 da titularidade do A. referidos em c) foram efectuados com autorização do A., no cumprimento de ordens de subscrição e de resgate daquele?», ao qual foi dada resposta afirmativa, com base no depoimento da testemunha L M, funcionária do Réu, gestora de conta do Autor/Apelante, com quem este contactava pelo telefone dando-lhe as respectivas ordens de subscrição e/ou resgate de fundos.

Esta resposta afirmativa é impugnada pelo Apelante porque, na sua tese, existe uma ilegalidade por violação do regime probatório, pois as ordens que se discutem nos autos tinham de ser reduzidas a escrito (art. 327° do Código dos Valores Mobiliários e Regulamento CMVM n° 12/2000) e além do mais, o próprio contrato de depósito dos autos (cláusula 5.2) impõe a redução a escrito ou a fixação em suporte fonográfico das ordens dadas telefonicamente, não sendo assim admissível prova testemunhal em relação a facto que só através de documento ou por meio de confissão se poderia demonstrar – arts. 364° e 393° do Código Civil.

No mesmo sentido vai o parecer jurídico apresentado.

Mas, s.d.r.o.c., sem razão.

Se não.

Dispõe o normativo inserto no artigo 327º, nº1 do CVMobiliários «As ordens podem ser dadas oralmente ou por escrito, devendo no primeiro caso ser reduzidas a escrito pelo receptor ou fixadas por este em suporte fonográfico.».

Por seu turno, o artigo 364º, nº1 do CCivil predispõe que quando a Lei estabelecer para a forma negocial determinada formalidade, nomeadamente, escrita, não poderá esta ser substituída por outro meio de prova que não seja de força probatória igual ou superior, acrescentando o nº1 do artigo 393º do mesmo compêndio normativo que, nestes casos, não é admissível a prova testemunhal.

Todavia, o nº2 do artigo 364º esclarece o seguinte «Se, porém, resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extra judicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório.».

In casu, deflui do artigo 327º, nº1 do CVMobiliários, que a ordem pode ser dada oralmente, de onde a declaração negocial do emitente não estar sujeita a qualquer formalidade ad substantiam, podendo-se daqui concluir que o Apelante podia emitir as suas instruções de subscrição e resgate verbalmente, como resultou ter feito.

Todavia, o pomo da discórdia nos presentes autos reside na interpretação da segunda parte daquele normativo, posto que nele se explicita que, sendo a ordem dada verbalmente, o receptor deverá reduzi-la a escrito ou registá-la em suporte fonográfico.

E é aqui que começam as perplexidades em matéria de direito probatório.

A regra que emana do normativo inserto no artigo 364º, nº1 do CCivil é de que os documentos autênticos autenticados ou particulares, são exigidos como fomalidades ad substantiam, para cuja prova não se poderá utilizar outro meio senão forma igual ou superior, de onde não ser admissível prova testemunhal sobre o negócio havido, sendo este nulo se não observar a forma legalmente imposta nos termos do artigo 220º do mesmo diploma.

Todavia o nº2 do artigo 364º estabelece uma diferença em relação ao nº1, já que admite a prova por confissão (ao contrário do nº1 onde este meio probatório está expressamente afastado) quando resulte «(…)claramente da lei que o documento é apenas exigido para prova da declaração(…)».

Trata-se, sem dúvida, e neste ponto estamos todos de acordo, de uma formalidade ad probationem.

O que nós questionamos aqui é o seguinte: resultará, claramente, da Lei, que o documento é exigido para prova da declaração?

Explicitando a pergunta: resultará, em termos inequívocos, do artigo 327º, nº1 do CVMobiliários, que a redução a escrito pelo receptor da ordem dada pelo emissor, é para prova de que este emitiu aquela declaração e assim sendo, só este mesmo emissor poderá confirmá-la em termos probatórios através do seu depoimento de parte, apesar da sua declaração ter sido reduzida a escrito por outrem?

Pergunta-se ainda, sendo admissível o registo fonográfico da ordem dada, registo esse que ficará como é óbvio em poder do receptor, só o emissor através de confissão poderá afirmar ou infirmar que aquela ordem proveio da sua pessoa (se é a sua voz), inviabilizando-se, desta sorte, quaisquer outros meios de prova, vg, periciais, deixando-se, assim, na total disponibilidade do declarante o rumo e a decisão do processo, caso haja litigio?

Vamos ainda mais além: se a Lei exige uma determinada forma para a declaração negocial de alguém, poderá essa declaração ser elaborada por outrem que não o declarante, no caso, o declaratário?

E, acrescentamos, será esta declaração negocial do declarante, elaborada pelo declaratário, a formalidade ad probationem a que a Lei se refere no normativo inserto no artigo 364º, nº2 do CCivil, a qual só poderá ser substituída, em termos de prova, por confissão daquele declarante que não interveio na elaboração da declaração?

Esta solução afigura-se-nos complexa quer em termos da teoria geral do negócio jurídico quer em termos de teoria geral da prova, para além de não resultar do artigo 327º, nº1 do CVMobiliários que a redução a escrito da ordem dada é exigida para prova da declaração.

Se não.

A Lei estipula, como princípio geral, a liberdade de forma no que tange à validade da declaração negocial, artigo 219º do CCivil, sendo certo que in casu, como supra se referiu, a ordem podia, como pode, ser dada oralmente.

Esta ordem consubstancia um negócio jurídico unilateral, gozando o seu autor, ao emiti-la de liberdade de celebração e de estipulação dentro de certos parâmetros, ordem essa que, independentemente da sua execução, produz desde logo os seus efeitos, cfr Menzes Cordeiro, in Banca, Bolsa e Crédito, I volume, 1990, 155 e Tratado de Direito Civil, 1988, 1º volume, 2ª edição, 500.

Contudo, a lei impõe uma obrigação ao receptor: a sua redução a escrito ou o seu registo fonográfico.

Porquê esta exigência legal? Não temos quaisquer dúvidas que será para preservar a instituição bancária, pois tratando-se, como se trata, de uma ordem irrevogável dirigida ao banco para que encete este ou aquele procedimento, dentro de determinado circunstancialismo, não se admitiria que este ficasse ad eternum vinculado àquela ordem (correspondendo a ordem a um direito potestativo do titular de valores mobiliários negociáveis, dá corpo a uma sujeição por banda do receptor, pelo que, uma vez emitida, este ficará, inevitavelmente sujeito a executá-la, desde que reunidos os requisitos legais, cfr Menezes Cordeiro, in Banca, Bolsa e Crédito, 155).

Poderemos apelidar este procedimento imposto pela Lei, como uma medida de salvaguarda quer para a instituição bancária, quer para os seus clientes, pois a não ser assim, poder-se-iam efectuar todas e quaisquer operações, sem que as partes tivessem qualquer meio de as controlar («(…) O fundamento da vinculação nos negócios jurídicos unilaterais é o mesmo dos demais negócios jurídicos: é a Autonomia Privada. Em direito privado as pessoas têm o poder de se autovincularem, seja unilateral, seja contratualmente. Os limites à autonomia privada e ao conteúdo dos negócios jurídicos unilaterais são os mesmos que se põem, em geral, aos contratos: são os limites da Lei, da Moral e da natureza (enthia physica). Se num caso concreto se dever concluir que a autovinculação unilateral é desrazoável ou excessivamente limitativa da lberdade, ou que é contrária ao Direito, à Moral, à Ordem Pública ou à Natureza, então o negócio unilateral em questão será inválido por efeito da clausula geral dos artigos 280º e seguintes do Código Civil. (…)», Pedro Pais de Vasconcelos, O Problema da Tipicidade dos Valores Mobiliários, in Direito dos Valores Mobiliários, 2001, vol III, 63).

Todavia, o registo escrito bem como o fonográfico, apenas pode significar, em termos probatórios, um elemento, para além de outros que as partes têm ao seu dispor, para demonstrar que aquela ordem foi ou não foi dada, se proveio ou não da pessoa a quem a mesma é imputada e se foi executada dentro dos limites impostos.


Aliás, repare-se que o Apelante fez juntar com a sua Petição Inicial os documentos de fls 21 a 122 (borderaux), emitidos pelo Apelado, de onde constamos débitos e créditos efectuados e do nome do fundo a que se destinaram aplicações, sendo tais movimentos que originaram a propositura da presente acção, pois o Apelante alega que nunca emitiu as ordens que deles constam.

Ora, a entender-se como faz o Apelante, que as ordens por si dadas só poderiam ser provadas por escrito e como o normativo inserto no artigo 327º, nº1 do CVMobiliários apenas impõe que a instituição bancária reduza a escrito a ordem recepcionada (a sua emissão pode ser verbal nos termos do mesmo normativo como já se viu), cairíamos no absurdo de ter de concluir que a presente acção consubstanciaria um venire contra factum proprio, já que, aqueles documentos constituiriam prova plena das declarações emitidas pelo próprio Apelante.

E, se não podem ser esses os registos das ordens, perguntamos nós, então que documentos serão exigidos pela Lei com a finalidade de comprovar a declaração?

É o próprio Apelante, no parecer que fez juntar, que acaba por não explicar que tipo de prova documental, afinal, é que a Lei exige para a demonstração da ordem dada, note-se a fls 472 o que se escreve «(…) Os borderaux são comprovativos de movimentos, não são registos de ordens. Bastará o confronto com um e outro tipo de registo documental para ver que não são uma e a mesma coisa. Ora, a lei não permite que a ordem não reduzida a escrito possa ser provada por documento que confirme a realização de uma movimentação numa conta individualizada. Este registo serve para prova da realização da operação, destina-se a permitir que o investidor saiba que uma ordem por si regularmente emitida foi efectivamente executada. Quer porque o intermediário financeiro a introduziu no sistema, quer porque foi possível subscrever ou resgatar a unidades de participação nos termos indicados pelo investidor final.(…)».

Não se compreende ou mal se compreende: os borderaux são comprovativos de movimentos e apesar de nos mesmos se poder ler que tais movimentos correspondem a ordens verbais recebidas nos precisos dias em que foram efectuados, não correspondem a registos de ordens. Então, os registos de ordens têm de ser o quê? Têm de estar anotados onde? Que documento bancário, afinal, é o próprio para elaborar aquelas ordens?

Nem as conclusões, nem o parecer juntos, nos dilucidam estas questões, que nos parecem ser essenciais à bondade da tese defendida.

Mas, deparamo-nos com outra dúvida.

Não explicando o Apelante, nem o parecer, qual o documento exigido para prova da declaração e tendo em atenção que a ser necessária uma declaração escrita, esta não poderá ser apócrifa, nem poderá provir da entidade credora, neste caso do Banco Apelado, uma vez que ninguém poderá constituir um titulo a seu favor, tornando-se sponte sua credor de outrem, cobrando-se, sem mais, dos seus pretensos créditos, teríamos de concluir que a Lei apesar de dizer claramente que as ordens podem ser verbais e que a entidade receptora as terá de reduzir a escrito - como de nada valem os registos escritos comprovativos das operações efectuadas consoante instruções do cliente - só permitirá como meio de prova a declaração verbal que o cliente reduzir a escrito, uma vez que é esta declaração escrita que a Lei permite que seja substituída por confissão do próprio declarante, nos casos prevenidos pelo artigo 364º, nº2 do CCivil.

Aqui chegados, e a ser correcta a afirmação acabada de produzir, a ilação a retirar só poderá ser a de que, afinal, quando o artigo 327º, nº1 do CVMobiliários permite que a ordem seja dada verbalmente, o que o legislador quis dizer é que num primeiro momento a emissão da ordem poderá ser oral, mas posteriormente deverá ser reduzida a escrito pelo respectivo emissor, só que esta ilação não resulta nem da letra nem do espírito do preceito.

Nem de tal normativo resulta, claramente e em termos inequívocos, que a redução a escrito da ordem dada pelo cliente, pelo seu receptor, seja exigida para prova de que aquela declaração foi efectivamente emitida, «(…) Só quando a lei se refira, pois, claramente à prova do negócio, é que é aplicável o regime do n.º2 deste artigo.(…), Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol I, 3ª edição, 321..

Sempre se acrescenta, ex abundanti, que no caso de esses registos de ordens (que ficamos sem saber quais serão na tese do Apelante) serem apresentados pelo Apelado, constituindo os mesmos documentos particulares nunca os mesmos poderiam fazer prova plena da declaração do Apelante face ao disposto no artigo 376º do CCivil, uma vez que para além de não terem sido elaborados por este, as declarações dele constantes também não teriam sido por si subscritas de forma a poder-se extrair a sua veracidade, porque contrária aos interesses deste.

E é esta verdade, contrária aos interesses da parte, que a Lei busca com a prova por confissão quando a admite: «Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.», artigo 352º do CCivil.

A ser assim ficariam precludidas todas as regras de direito probatório material e de distribuição do respectivo ónus, levando a litígios sem qualquer solução, ou a uma solução de non liquet, decidida a favor da parte sobre quem impende o ónus da prova, em clara violação dos normativos insertos nos artigos 8º, 342º, nº3 do CCivil e 516º do CPCivil.

No caso sub judice, não estando a declaração negocial nem a forma para ela exigida sujeita a qualquer tipo de prova vinculada, caímos no regime da prova livre e o facto questionado em 1. podia ser provado por testemunhas, como o foi.

E, neste contexto, tendo ficado provado que as ordens para as operações efectuadas pelo Apelado emanaram do Apelante, caiem pela base os fundamentos da acção, já que os movimentos da conta não ocorreram devido a uma violação daquelas, mas ao cumprimento de instruções dadas por aquele a este, e no seu âmbito.

A acção teria de improceder, como improcedeu, tal como improcedem as conclusões de recurso.

III Destarte, julga-se improcedente a Apelação, e embora com fundamentação algo diversa, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelo Apelante.

Lisboa, 19 de Abril de 2007


(Ana Paula Boularot)


(Lúcia de Sousa)


(Luciano Farinha Alves)