Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1187/2007-7
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
APREENSÃO DE VEÍCULO
MÚTUO
RESERVA DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/06/2007
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I- O artigo 18.º/1 do Decreto-Lei n.º 54/75 admite interpretação extensiva por forma a considerar que no conceito de “ contrato de alienação” se abrange o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda cujo cumprimento esteve na origem da reserva de propriedade
II- É admissível a constituição de reserva de propriedade tendo por finalidade garantir um direito de crédito de terceiro que é o mutuante do contrato de mútuo conexo com o contrato de compra e venda

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa,


I – Relatório

1. Nos autos de providência cautelar de Apreensão de Veículo Automóvel que S F C instaurou contra L M C S e L M R E S, a Requerente agravou da decisão (fls. 35/40) que indeferiu liminarmente a providência por o pedido se mostrar manifestamente inviável.

2. Após admissão do recurso foi proferido despacho de sustentação.

3. Conclui a Agravante nas suas alegações:
a O presente recurso vem interposto de decisão que indeferiu liminarmente a providência cautelar de apreensão de veículo automóvel, requerida nos termos do artigo 15° do Decreto-Lei n.°54/75 de 12 de Fevereiro;
b O Meritíssimo Juiz a quo julgou a mesma manifestamente improcedente e nos termos do disposto no artigo 234°, n.° 4 alínea b) e 234°-A n.º1, indeferiu liminarmente o Requerimento Inicial;
c A Requerente alegou sucintamente os seguintes factos:
- No dia .27/07/2005 celebrou com os Requeridos o contrato de financiamento para aquisição de uma viatura de marca HYUNDAI, modelo PLAZA, com a matrícula ;
- Como garantia do referido contrato foi inscrita a favor do mutuante reserva de propriedade sobre a mencionada viatura;
- Os requeridos incumpriram as obrigações que assumiram em virtude do referido contrato, nomeadamente, não pagaram as prestações convencionadas;
d Entendeu o Meritíssimo Juiz a quo que não se encontravam reunidos os pressupostos para o decretamento da providência, nomeadamente não se verificava um dos pressupostos que é "a resolução de um contrato de compra e venda”;
e Ou seja, para o Meritíssimo Juiz a quo não basta que se verifique a existência de reserva de propriedade inscrita a favor da Requerente, nem que se verifique o incumprimento das obrigações que originaram a mesma, é necessário, também, que a referida reserva de propriedade seja garantia do cumprimento de um contrato de compra e venda resolvido, e não de qualquer outro;
f Ora, salvo o devido respeito, discordamos deste entendimento que, em nossa opinião, não faz a correcta interpretação da Lei;
g A reserva de propriedade, tradicionalmente urna garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada nas modalidades de contratação, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo, sobretudo, daqueles cuja finalidade e objecto é financiar um determinado bem, ou seja, quando existe urna interdependência entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda;
h Nestas situações, tem-se verificado uma sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor, isto é, o mutuante ao permitir que o comprador pague o preço ao vendedor, sub-roga-se no risco que este correria caso tivesse celebrado um contrato de compra e venda a prestações, bem como, nas garantias de que este poderia dispor, no caso, a reserva de propriedade;
i Este entendimento encontra pleno acolhimento no artigo 591° do Código Civil, bem como, no princípio da liberdade contratual estabelecido no artigo 405° do Código Civil, uma vez que, não se vislumbram quaisquer objecções de natureza jurídica, moral ou de ordem pública relativamente ao facto de a reserva de propriedade ser constituída a favor do mutuante e não do vendedor;
j Ora, a própria lei que regula o crédito ao consumo o admite no n.° 3 do seu artigo 6° quando refere que "o contrato de crédito que tenha por objecto financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento erro prestações deve indicar ainda: (...) O acordo sobre a reserva de propriedade"
k Entendimento este, que também tem sido sufragado em diversos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, entre os quais destacamos o acórdão de 27-06-2002, consultado na base de dados do Ministério da Justiça em www.dgsi.pt, cujo n.° de documento é RL200206270053286, e o acórdão de 13-05-2003 consultado na mesma base de dados de que não se encontra disponível o n.° de documento e que teve como relator o Meritíssimo Juiz Desembargador Rosa Maria Coelho;
l Por outro lado, importa esclarecer que, ao contrário do que foi defendido pelo Meritíssimo Juiz a quo, o direito que a Requerente tem de reaver a viatura não decorre das Cláusulas do contrato de mútuo, mas sim da propriedade que tem sobre ela, condicionada é certo, mas ao não se verificar a condição que implicaria a transmissão da mesma para os Requeridos, então a propriedade permanece na sua esfera jurídica e é com base nesse direito de propriedade que lhe assiste o direito de reaver a viatura ao abrigo do artigo"15° do Decreto-Lei n.° 54/75;
m Posto isto, e encontrando-se inscrita a favor da Recorrente reserva de propriedade sobre a viatura que se requereu a apreensão, bem corno, estando indiciariamente provado que os Requerido não cumpriram as obrigações que originaram a constituição da reserva de propriedade, sem prejuízo de se. apresentarem outras provas, nomeadamente a prova testemunhal, julgamos que se encontram reunidos os pressupostos para o decretamento da requerida Providência cautelar de apreensão de veículos; nos termos do artigo 15° do Decreto-Lei n.° 54/75;
n Pelo que, a procedência do presente recurso é manifesta; em face da violação do preceito supra.

II – Enquadramento fáctico

As ocorrências com relevância para a decisão do recurso são as seguintes:
1. No requerimento de providência a Requerente alegou fundamentalmente:
- ter concedido aos Requeridos, sob a forma de contrato de mútuo, um empréstimo no valor de € 24.784,27 destinado à aquisição, por aquele, da viatura Hyundai, modelo Plaza, com matrícula , devendo o capital mutuado e respectivos juros serem amortizados em 72 prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de € 337,28;
- terem os Requerido deixado de proceder ao pagamento pontual das 5ª, 7ª e seguintes prestações, sendo que, não obstante devidamente notificado para o efeito (por carta registada com aviso de recepção e com a cominação de que a obrigação se teria por definitivamente incumprida e o contrato resolvido), não só não procederam ao pagamento das quantias em falta, como não restituíram voluntariamente a viatura.
- Para garantia de cumprimento do contrato de mútuo foi constituída reserva de propriedade a seu favor.
2. De acordo com a certidão constante dos autos e relativamente ao veículo com marca Hyndai, modelo Plaza, com matrícula , encontra-se registada na respectiva Conservatória reserva de propriedade a favor de S F C.

III – Enquadramento jurídico

Entendeu-se na decisão recorrida que não tendo sido alegada a celebração pelas parte de qualquer contrato de compra e venda, mas de um contrato de financiamento de um aquisição sob a forma de mútuo, a Requerente evidenciava ser terceira relativamente ao contrato de compra e venda celebrado com outra sociedade e por isso não poderia propor acção de resolução ao abrigo do disposto no art.º 18, n.º1, do DL 54/75, sendo por isso manifesta a falta de requisitos da providência. Verifica-se do teor da referida decisão que subjacente à mesma se encontra o entendimento segundo o qual a providência cautelar em causa se restringe a tutelar a existência de um direito de crédito vencido decorrente do incumprimento das obrigações assumidas pelo comprador no âmbito de um contrato de compra e venda de veículo automóvel com convenção de reserva de propriedade.
Decorre pois da posição assumida pelo tribunal a quo que o presente procedimento pressupõe que coexista na entidade vendedora a qualidade de beneficiário da reserva de propriedade e a de titular dos créditos relativos às obrigações que originaram a reserva de propriedade, isto é, infere-se do referido posicionamento que as obrigações a que se reporta o n.º1 do art.º 15 do DL 54/75, de 24.02 – não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade -, seriam, tão só, as que decorressem do contrato de compra e venda em causa.
Embora a decisão recorrida se mostre em consonância com o que a esse respeito tem sido tradicionalmente defendido pela jurisprudência, somos de entender que tal posição, evidenciando uma interpretação claramente restritiva do n.º1 do art.º 15 do DL 54/75, de 24.02, omite o âmbito de aplicação do artigo 409º, do C. Civil (1), e não se compagina com as realidades da prática comercial actual, particularmente no âmbito do sector de venda de veículos que, ao invés, impõe que se proceda a uma interpretação actualista e, mesmo correctiva, das referidas normas com vista a dar resposta jurídica adequada às várias situações contratuais.
Na verdade, há que aplicar na interpretação das referidas normas o método histórico-evolutivo que busca o sentido da lei pondo ênfase, não já no pensamento do legislador face ao que se pode retirar do respectivo elemento literal, mas no sentido que melhor a habilita para realizar os fins da justiça e da utilidade social da norma.
Vejamos.

1. De acordo com o preceituado no n.º1 do art.º 15 do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, Vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veiculo e dos seus documentos.
Estatui o art.º 16, nº1 do mesmo diploma que Provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo.
Atento ao teor dos referidos preceitos e ainda do que nesse sentido impõe o art.º. 5, do referenciado DL, no caso de incumprimento pelo Requerido das obrigações que originaram a reserva de propriedade, são duas as condições de exercício do presente procedimento cautelar:
1. encontrar-se a reserva de propriedade registada a favor do Requerente,
2. não ter o Requerido cumprido as obrigações que originaram a reserva de propriedade.
Por sua vez, o art.º 409, do CC, constituindo uma excepção à regra prevista no art.º 408 do mesmo Código, prevê a possibilidade de se suspender a transmissão do bem (o alienante reserva para si a propriedade da coisa até ao cumprimento das obrigações assumidas pelo comprador), que só se efectiva quando o comprador tiver cumprido as suas obrigações contratuais.
Perante este quadro normativo, atentas as exigências decorrentes da evolução social face às novas modalidades de contratação que, pela sua peculiar estrutura, impõem uma flexibilidade dos tradicionais modelos processuais de forma a poderem abarcar no seu seio as novas realidades contratuais,(2) tem vindo a desenvolver-se posicionamento jurisprudencial que considera admissível a constituição da reserva de propriedade tendo por finalidade garantir um direito de crédito de terceiro, fazendo incluir no âmbito da expressão contida no art.º 18, nº 1, do DL 54/75, “contrato de alienação” o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda que esteve na origem da reserva de propriedade (nestes casos está-se perante uma “relação tripartida” – vendedor-financiador – em que os contratos, de compra e venda e de financiamento se mostram como que interdependentes).
Neste sentido e entre outros(3) se pronunciou o acórdão desta Relação, de 20.10.05 (processo n.º 8454 a que se pode aceder através das bases jurídico-documentais do ITIJ) ao defender que Parece, pois, perfeitamente admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência da propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda, como decorre da parte final do art. 409º, 1, do CC.  
Refere ainda o citado aresto que o art. 409º, nº 1, do CC abrange, na sua letra e espírito, a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda do veículo automóvel por virtude de o objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo automóvel fosse fraccionado no tempo.(4)
Partilhando pois este entendimento, cabe interpretar extensivamente o artº 18, nº 1 do DL nº 54/75, considerando que no conceito de “contrato de alienação” se insere o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda cujo cumprimento esteve na origem da reserva de propriedade.
O não se entender assim, isto é, seguindo o entendimento de que apenas o incumprimento e a resolução do contrato de alienação determinariam a possibilidade de se proceder à apreensão e entrega do veículo alienado, acarretaria a própria inutilidade da estipulação da cláusula da reserva de propriedade nas situações em que a aquisição do veículo é feita através do financiamento de terceiro, pois que, nestes casos, recebendo o vendedor da entidade financiadora o pagamento integral do preço do veículo, havendo cumprimento integral do contrato de alienação pelo comprador, mostrar-se-ia destituída de cabimento legal a resolução do contrato por parte do alienante e, nessa medida, a possibilidade de fazer reverter a seu favor a cláusula de reserva de propriedade.
Por conseguinte e nestas situações, a estipulação da cláusula de reserva de propriedade só assume efectivo sentido quando estabelecida para garantir o cumprimento do contrato de financiamento(5).
Face ao exposto, uma vez que no caso concreto se encontra preenchido o requisito do registo da reserva de propriedade em favor da mutuante, entendemos que o direito à cautelar apreensão de veículo se mostra legalmente possível enquanto prévio procedimento de acção de resolução do contrato de financiamento, pelo que não é de indeferir liminarmente a presente providência.

IV – Decisão

Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao agravo e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido substituindo-se por outro que determine o prosseguimento da providência.
Sem custas.


Lisboa, 6 de Março de 2006

 Graça Amaral

Orlando Nascimento (vencido com a declaração de voto que se segue:
Voto de vencido
I. A figura civilista da reserva de propriedade.
O art.º 408.º, n.º 1 do C. Civil estabelece a regra nos termos da qual, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre por mero efeito do contrato (sem necessidade de entrega da coisa).
Esta regra, que é aplicável ao contrato de compra e venda (cf. art.ºs 874.º e 879.º do C. Civil), conhece, desde logo, a excepção estabelecida pelo art.º 409.º do C. Civil o qual, sob a epígrafe reserva de propriedade, permite ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento das obrigações da outra parte.
Esta reserva de propriedade tem o seu campo de eleição no âmbito do contrato de compra e venda em que a obrigação de pagamento do preço é fraccionada em prestações (1).
No âmbito deste contrato de compra e venda com fraccionamento do preço em prestações, a reserva de propriedade configura-se, conceptualmente, como uma condição suspensiva que abrange apenas a transmissão da propriedade da coisa (2), a qual só ocorre depois de cumprida integralmente a obrigação de pagamento do preço.
A reserva de propriedade configura-se, neste caso, mais do que uma garantia do bom cumprimento da obrigação de pagamento do preço, numa autêntica retenção do direito de propriedade, favor negotii, destinada a assegurar o vendedor contra os efeitos da aplicação da regra geral estabelecida pelo art.º 408.º, n.º 1 do C. Civil, qual seja, ficar despido do seu direito de propriedade sem receber a contrapartida do preço.
Esta definição da figura da reserva de propriedade impede a sua aplicação ao contrato de mútuo, a favor do mutuante, pela própria natureza do contrato (empréstimo de dinheiro ou de outra coisa fungível - art.º 1142.º do C. Civil), uma vez que não está em causa a alienação de uma coisa.
No caso sub judice, como resulta dos factos articulados pela própria agravante, a apelidada reserva de propriedade foi estabelecida entre mutuante e mutuário para garantia de cumprimento dos deveres deste no âmbito desse contrato.
Como o mutuário não cumpriu as obrigações que deram origem à reserva de propriedade, incumprindo o contrato de mútuo, a agravante arroga-se o direito de propriedade sobre o veículo, que lhe adviria dessa acordada reserva de propriedade, e o consequente direito à sua restituição com a apreensão do veículo nos termos do art.º 15 do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro
A reserva de propriedade em causa supõe a realização, a par do contrato de mutuo, de um contrato de compra e venda entre o mutuário e um terceiro.
Se este contrato de compra e venda é celebrado nos termos da regra geral do art.º 408.º, n.º 1 do C. Civil (sem a aposição da reserva de propriedade a favor do vendedor), a propriedade da coisa transfere-se para o comprador por mero efeito do contrato.
Sendo este proprietário pleno, ab initio, como compreender então a reserva de propriedade a favor do mutuante que, em relação ao contrato de compra e venda é terceiro?
A reserva de propriedade, neste caso, só pode configura-se como uma garantia de cumprimento relativamente à obrigação de restituição da quantia mutuada que impende sobre o mutuário.
E não poderá dizer-se que esta garantia se traduz, afinal, na retenção do direito de propriedade a que acima nos referimos uma vez que não lhe assiste a natureza de condição suspensiva relativamente à transmissão da propriedade da coisa. 
Aliás, a transmissão da propriedade da coisa é pressuposto do estabelecimento dessa garantia, ou seja, o comprador só pode limitar a sua propriedade plena, dando ao mutuante a garantia da reserva de propriedade, depois de adquirir e porque adquiriu a propriedade plena sobre a coisa.
A admitirmos que a reserva de propriedade pode ser constituída nestas circunstâncias, temos de admitir que nos encontramos muito longe do escopo inicial da figura da reserva de propriedade, levando esta a desempenhar uma função para a qual não foi criada (3).
Não obstante, outra pode ser a abordagem da questão.
II. O princípio da liberdade contratual.
A reserva de propriedade em causa nos autos resultou do exercício da liberdade contratual das partes contratantes.
Como dispõe o art.º 405.º do C. Civil, dentro dos limites da lei, as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos, incluir as cláusulas que lhes aprouver e reunir regras de dois ou mais negócios.
Perante uma tal amplitude do princípio da liberdade contratual, a questão que nos vem ocupando revelar-se-ia uma discussão inútil.
Mas não é assim.
No exercício da sua liberdade contratual as partes devem conter-se nos limites da lei.
E não foi isso que aconteceu no caso sub Júdice em que a agravante, para beneficiar da eficácia do registo em relação a terceiros, nunca tendo sido proprietária, levou a acordada reserva de propriedade ao registo em termos que nestes autos são nebulosos (4), uma vez que neles consta a certidão do registo automóvel declarando a existência da reserva de propriedade mas não os documentos com base nos quais esta foi registada.
Trata-se, por isso, de um mero acto registral sem suporte no direito substantivo uma vez que a agravante nunca foi proprietária do veículo para poder reservar essa propriedade até lhe ser restituída a quantia mutuada.
A realidade assim criada não é merecedora de protecção legal, não podendo a requerente ser beneficiada, com a utilização de um meio processual mais favorável a que de outro modo não poderia aceder (o procedimento de apreensão de veículo a que se reporta o art.º 15 do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).  
Esta conduta configura-se como inábil na aplicação à realidade negocial dos instrumentos legais ao dispor, entre eles, as virtualidades do princípio da liberdade contratual.
III. A sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor.
 A realidade negocial em causa configura-se como um contrato de mútuo, entre agravante e agravado destinado a proporcionar a este a quantia necessária à aquisição a um terceiro de um veículo automóvel.
Atenta a proximidade de tais contratos, que lhes advém do interesse conjunto dos contraentes (5), nada obstava a que, entre estes, fosse acordado o estabelecimento da reserva de propriedade a favor do mutuante ou, utilizando o instituto legal da sub-rogação, para que a agravante pudesse beneficiar da figura da reserva de propriedade, bastava-lhes sub-rogá-la nos direitos do vendedor, entre os quais se incluía a faculdade de reserva de propriedade, quer por intervenção do vendedor (art.º 589.º do C. Civil), quer por intervenção do comprador (art.º 591.º, do C. Civil).
Tratando-se de contratos distintos (de mutuo e de compra e venda), entre contraentes distintos estão, todavia numa relação de proximidade e dependência que facilita o recurso à sub-rogação voluntária prevista em tais preceitos.
Não tendo recorrido a tal sub-rogação voluntária, não beneficiando da sub-rogação legal prevista no art.º 592.º do C. Civil e não tendo acordado a reserva de propriedade com o alienante, não pode, agora, a agravante invocar essa figura jurídica para garantia de cumprimento das obrigações do mutuário.
E no caso sub judice não se verificou qualquer sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor.
Podemos, pois, concluir que, não obstante a reserva de propriedade pode ser constituída a favor do mutuante, nas condições descritas, não foi isso que aconteceu no caso sub judice.
Neste, a reserva de propriedade foi constituída a favor do mutuante por acordo entre este e o mutuário, sendo que o primeiro nunca foi proprietário.
IV.O meio processual eleito e o registo da reserva de propriedade
A reserva de propriedade encontra-se registada a favor da agravante e é com base nela que esta invoca o direito de reaver o veículo.
A agravante requereu este procedimento cautelar de apreensão de veículo e respectivos documentos, ao abrigo do disposto no art.º 15.º do Dec. Lei, n.º 54/75 de 12 de Fevereiro, pedindo a apreensão do veículo.
Este meio processual, como se deduz do próprio texto do art.º 15.º, n.º 1 e dos art.ºs 18.º, n.º 3 e 19.º, n.º 1, al. a) do Dec. Lei, n.º 54/75 citado, respeita à acção declarativa de resolução do contrato de alienação com reserva de propriedade.
Não vislumbramos, pois, como pode a agravante pretender lançar mão do mesmo processo para uma realidade jurídica diferente, qual seja, a do não cumprimento, por parte do mutuário, das obrigações que lhe advieram da celebração do respectivo contrato, e em que o único ponto de ligação com a matriz do Dec-Lei n.º 54/75, é o facto prosaico de respeitarem ambas a veículos automóveis.
Trata-se de um equívoco (na eleição do meio processual adequado à realização do direito substantivo) que só é possível no seguimento do equívoco quanto ao registo da reserva de propriedade a favor da requerente e que, por isso mesmo, não é merecedor de qualquer tutela jurisdicional.
Não fora este equívoco registo, não teria a requerente a veleidade de se socorrer do procedimento cautelar de apreensão de veículo.
Não vislumbramos critério interpretativo que conduza à aplicação do procedimento cautelar de apreensão de veículo à situação indiciada nos autos (contrato de mutuo não cumprido) tanto mais que, por um lado, se trata de utilização de um instrumento processual e não de interpretação de lei substantiva e, por outro, não existe qualquer lacuna na lei processual a tal respeito (6).
Como dispõe o art.º 2.º, n.º 2 do C. P. Civil: “A todo o direito... corresponde a acção destinada a fazê-lo reconhecer em juízo... bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção”.
Dispõe a agravante dos meios processuais adequados a fazer valer o seu direito (procedimento cautelar e acção declarativa) mas entre eles não se compreende o procedimento cautelar do art.º 15.º citado.
A favor da tese da agravante poder-se-ia ainda objectar que, a partir do momento em que registou a reserva de propriedade goza da presunção registral estabelecida pelo art.º 7.º do C. R. Predial e, portanto, tudo se passa como se na realidade tivesse sido ela o vendedor (e não apenas o mutuante do capital), mas não é assim.
Esta presunção, a existir, encontra-se elidida nos autos, sabendo-se que a agravante não tem e nunca teve qualquer propriedade sobre o veículo e nem sequer, pretende que seja declarada (ou confirmada) a resolução judicial do contrato de compra e venda do veículo a que, aliás, é estranha.
O que a agravante pretende é ressarcir-se pelo incumprimento do mutuário, utilizando para o efeito o procedimento mais expedito da apreensão do veículo automóvel, servindo-se da reserva de propriedade como garantia imprópria do seu crédito, pois esta não lhe confere qualquer direito de propriedade nem a possibilidade de, com base nela, reaver o que nunca teve, a propriedade do veículo.
E esta pretensão (processual) como se decidiu, entre outros, no Ac. do S. T. J. de 12/05/2005 (7), não é admissível.

(Orlando Nascimento)



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1.-Cfr. Os art.ºs 781.º e 934.º do C. Civil.

2.-Cfr. Pires Lima e A. Varela, C. Civil anotado, vol. I, 3.ª ed, pág. 357 e A. Varela, anotações na R.L. J. anos 3788 e 3789.

3.-E em substituição funcional de outros institutos jurídicos, como sejam a hipoteca, cfr. art.º 5., n.º 1, al. c) do Dec. Lei n.º 54/75.

4.-Nos casos conhecidos em que esta nebulosidade se dissipou ficou a saber-se que, para lograr obter o registo desta reserva de propriedade, a mutuante se declarou nos documentos apresentados para o registo que era “vendedora” quando na realidade o não era.

5.-O qual é, grosso modo, para o comprador a aquisição do veículo, para o vendedor o recebimento do preço respectivo e para o mutuante a restituição, com remuneração, do seu capital.

6.-Não fazendo, também, sentido falar-se em interpretação actualista da lei ou em interpretação extensiva.

7.-In www. dgsi. pt. Processo 05B538, contendo uma exaustiva resenha da jurisprudência na matéria.


Ana Maria Resende
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1 - Há que considerar que na letra e no espírito deste preceito podem ser abarcadas as hipóteses em que ocorra conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda, uma vez que o objecto mediato do primeiro constitui o preço do segundo.
2 - Constituiu uma realidade incontornável o facto de nos últimos anos se assistir a um desmesurado crescimento do crédito ao consumo tendo passado a ser regra na aquisição de bens, particularmente no que se reporta a veículos automóveis. Nessa medida, o recurso ao financiamento na aquisição de bens vem mostrando que o incumprimento por parte do consumidor não se reporta às obrigações emergentes do contrato de alienação, mas às do contrato de mútuo. Nestas circunstâncias está-se perante uma “relação tripartida” – vendedor-financiador – em que os contratos, de compra e venda e de financiamento se mostram como que interdependentes.
3 - Acórdão da Relação de Lisboa de 05-05-2005, acedido através das bases documentais do ITIJ.
4 - Tal como se encontra salientado no acórdão citado, a própria lei contempla a possibilidade do terceiro ficar sub-rogado nos direitos do credor sempre que o devedor cumpra com dinheiro ou outra coisa fungível emprestado por terceiro. Tal sub-rogação não carece do consentimento do credor e depende de declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor (art. 591º do Código Civil).
5 - Neste sentido e a tal respeito salienta o citado Acórdão da Relação de Lisboa de 05-05-2005, incumprido este sem que o financiador, ainda que conjuntamente com o vendedor titular da reserva, pudesse accionar tal clausulado, invocando a resolução do único contrato que, em última análise, não foi cumprido - o contrato de mútuo -,, chegaríamos à tão iníqua quanto absurda situação de o mutuário/comprador relapso não poder ser desapossado do veículo de que não é proprietário, exactamente porque a transferência da propriedade ficou salvaguardada pela cláusula da reserva de propriedade, esvaziando-se por completo a finalidade e utilidade desta”.