Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6611/2006-7
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: CUSTAS
DISPENSA
PAGAMENTO
RECLAMAÇÃO DA CONTA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Para efeitos do disposto no artigo 66.º/1 da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro que concede, atento os termos dele constantes, dispensa do pagamento de custas “ que normalmente seriam devidas por autores, réus ou terceiros intervenientes”, as custas a considerar serão aquelas que, segundo a regra geral, devem ficar a cargo da parte que lhes deu causa, excluídas as custas dos incidentes os quais - sendo desvios ao normal desenvolvimento da lide - estão sujeitos a regras próprias de tributação. Idênticas razões valem para se excluir (do alcance da norma) as custas dos recursos interpostos até à decisão final por também, neste caso, se estar perante situações que fogem à regular tramitação da acção

(MRM)
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Em 25/5/2004, A.[…] Lda. propôs a presente acção declarativa de condenação contra Condomínio do Edifício […] Lisboa.  

2. Notificada da contestação, a autora veio apresentar a sua resposta, articulado que não foi admitido, pelo que foi mandado desentranhar. Nesse mesmo despacho, foi a autora condenada nas  custas do incidente a que deu causa (art. 16º, CCJ).

3.  A autora veio então arguir a nulidade daquele despacho, pretensão que viu indeferida, tendo sido condenada nas custas do respectivo incidente (art. 16º, CCJ).

4. Em 10/1/2006, foi realizada transacção, na qual as partes acordaram (além do mais) que as custas em dívida a juízo seriam suportadas pelo R., sem prejuízo do disposto no art. 66. °, n.º 1, da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro.

5. A transacção foi homologada, nos seus precisos termos, por sentença transitada em julgado.

6. Foi elaborada a conta relativamente às custas dos incidentes em que a autora havia sido condenada (cfr. supra, pontos 2 e 3).

7. A autora veio reclamar da conta, alegando que, nos termos da Lei do orçamento, estava dispensada do pagamento de custas.

8. Foi proferido despacho a indeferir a reclamação, com o fundamento de que a Lei do Orçamento não dispensa o pagamento das custas relativas a incidentes.

9. Inconformada, agrava a autora e, em síntese, diz:

O nº1, do art. 66°, da Lei nº 60-A/2005 prevê a dispensa do pagamento das custas das acções que terminem por transacção, até 31/12/2006, nelas se incluindo as custas dos incidentes em que qualquer das partes tenha sido condenada.

10. Não há contra alegações.

11. Os factos a ter em conta para a decisão do recurso são os que constam do relatório

12. Cumpre decidir:

Estabelece o artigo 66. °, n°1, da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, que "nas acções cíveis declarativas e executivas que tenham sido propostas até 30 de Setembro de 2005, ou que resultem da apresentação à distribuição de providências de injunção requeridas até à mesma data, e venham a terminar por extinção da instância em razão de desistência do pedido, de confissão, de transacção ou de compromisso arbitral apresentados até 31 de Dezembro de 2006, há dispensa do pagamento das custas judiciais que normalmente seriam devidas por autores, réus ou terceiros intervenientes, não havendo lugar à restituição do que já tiver sido pago nem, salvo motivo justificado, à elaboração da respectiva conta."

Nestes autos, as partes celebraram transacção tendo acordado que a responsabilidade pelas custas recaía sobre o réu, sem prejuízo do disposto na Lei nº 60-A/2005.

A transacção foi homologada, por sentença, transitada em julgado.

Ora bem.

A questão que aqui se coloca é a de saber se a dispensa do pagamento das custas judiciais a que alude o nº1, do art. 66º, da Lei do orçamento de 2005 abrange (apenas) as custas da acção ou também as custas dos incidentes.

Por outras palavras: o legislador com a expressão «custas judiciais normalmente devidas» pretende significar que os responsáveis pelas custas apenas estão dispensados de pagar as custas da acção? Ou, pelo contrário, pretendeu contemplar quaisquer custas, designadamente as relativas a incidentes, a que as partes tenham dado causa?

Estamos, assim, perante um problema de interpretação da lei, mais concretamente, do sintagma ""custas judiciais normalmente devidas, constante do nº1, do art. 66º, da lei do Orçamento de 2005.

Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9º, do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Atente-se que, conforme se determina naquele dispositivo legal, «na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».

Ora, interpretar uma lei mais não é do que fixar o sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos, já que o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei (cfr. Manuel de Andrade, "Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis", págs. 21 a 26; Pires de Lima e Antunes Varela, "Noções Fundamentais do Direito Civil", vol, 2º, 5ª edição pág. 130).

A letra da lei é, naturalmente, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, como assinala Baptista Machado, "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", 2ª reimpressão, Coimbra, 1987, págs., 187 e segs., a função negativa de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.

Nesta tarefa interpretativa, (partindo embora da letra da lei) há que convocar outros elementos que ajudem a precisar o sentido (decisivo) da norma.

Como se sabe, o elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regula a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o "lugar sistemático" que compete à norma interpretada no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.

O elemento histórico compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.

O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar".

13. Aplicando agora os princípios ao caso concreto:

A razão de ser do normativo em análise é conhecida: visa-se estimular as partes a pôr termo a processos, em regra de diminuta gravidade, na expectativa de, por esta via, se conseguir uma significativa diminuição da pendência processual.

Pretende-se ainda aligeirar a «burocracia judiciária», já que, ao  dispensar as partes do pagamento das custas («normalmente devidas»), não há lugar à restituição do que já tiver sido pago, nem à elaboração da respectiva conta.

À primeira vista, pode parecer que o legislador quis dispensar os responsáveis do pagamento de todas as custas.

Mas não será assim, como procuraremos demonstrar.

O art. 446º, do CPC estipula que «a decisão que julgue a acção, ou algum dos seus incidentes ou recursos, condenará em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento na acção, quem do processo tirou proveito.

Deste preceito legal retiramos desde logo a regra geral da responsabilidade pelo pagamento das custas a qual assenta, a título principal, no princípio da causalidade e, subsidiariamente, no da vantagem ou proveito pessoal, sendo aquele indiciado pelo princípio da sucumbência pelo que deverá pagar as custas a parte vencida, na respectiva proporção.

Além disso, uma outra conclusão se impõe: a de que o legislador distingue claramente as custas da acção, das custas dos incidentes e das custas dos recursos.

Esta conclusão é reforçada pela norma contida no art. 448º, do CPC que estipula que a responsabilidade do vencido no tocante às custas não abrange os actos e incidentes supérfluos, reputando-se como tal os actos e incidentes desnecessários para a declaração do direito. As custas desses actos ficam a cargo de quem os requereu.

Também o Código das Custas Judiciais, em diversas disposições distingue as custas da acção, das custas dos incidentes e dos recursos: veja-se, por exemplo, o art. 53º, CCJ onde se preceitua que a conta é elaborada de harmonia com o julgado em última instância, abrangendo as custas da acção, dos incidentes e dos recursos, com excepção das custas de parte e da procuradoria.

Ora, no caso que apreciamos, a autora foi condenada nas custas dos incidentes a que deu causa, nos termos do art. 16º, do CCJ, que prevê precisamente a tributação como incidente das ocorrências «estranhas ao desenvolvimento normal da lide que devam ser tributadas segundo os princípios que regem a condenação em custas».

Concluindo:

Definir conceitos implica uma pré-compreensão ou um pré-conhecimento do quid extra-linguístico ou referente subentendido nas expressões que se analisam.
A este respeito, Baptista Machado, Introdução ao Discurso Legitimador, 205, afirma sugestivamente que além da apreensão da palavra que designa a coisa, temos sempre que fazer também uma apreensão da coisa designada pela palavra.  

Ou, como diz Castanheira Neves, in O Actual Problema Metodológico  da Interpretação, RLJ, Ano 117º, 193 e ss., o legislador não usa palavras e exprime enunciados que terão porventura um sentido línguistico-gramatical comum, apenas para comunicar esse sentido comum, quer antes prescrever uma intenção jurídica através dessa palavras; ou seja, o referente do seu texto é um  sentido jurídico.

Neste sentido, para efeitos da norma contida no art. 66º, nº1,  da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, diremos que as custas da acção serão, então, aquelas que, segundo a regra geral, devem ficar a cargo da parte que lhes deu causa, excluídas as custas dos incidentes, os quais – sendo desvios ao normal desenvolvimento da lide – estão sujeitos a regras próprias de tributação. Idênticas razões devem levar a excluir (do alcance da norma) as custas dos recursos, interpostos até à decisão final, por também neste caso se estar perante situações que fogem à regular tramitação da acção.

Improcede, pois, o recurso.

14. Nestes termos, negando provimento ao recurso, acorda-se em confirmar a decisão recorrida.

Custas pela agravante.

Lisboa, 14 de Novembro de 2006

(Maria do Rosário Morgado)
(Rosa Ribeiro Coelho)
(Arnaldo Silva)