Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
206/10.4TBCDV.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO DA SERVIDÃO
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A desnecessidade relevante para efeitos de extinção da servidão deve ser objectiva, actual e não equiparável a indispensabilidade para o prédio dominante, o que significa que não basta provar que a servidão deixou de ser indispensável para o prédio dominante, antes tendo de se provar que para ele deixou de ter qualquer utilidade.
2. Estando em causa uma servidão predial voluntária de passagem e não uma servidão legal de passagem em benefício de prédio encravado, não basta alegar e provar que para além da passagem objecto da servidão existe outra via de acesso ao prédio dominante, exige-se também a demonstração de que esse outro acesso oferece condições similares de utilidade e comodidade de acesso ao prédio dominante.
3. A extinção da servidão, por desnecessidade, pode ser invocada quando a mesma foi constituída por usucapião, impondo-se a alegação de factos objectivos que definam a desnecessidade e o inerente pedido, seja por via de acção, seja por reconvenção.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I. RELATÓRIO

“A” , residente na Rua ... nº ..., ..., C..., intentou contra “B” E “C”, residentes na Rua ..., nº … – …, em ..., L..., acção declarativa, sob a forma de processo comum sumário, através da qual pede:
a) o reconhecimento que a favor do prédio de que o A. é comproprietário e sobre o prédio propriedade exclusiva da Ré́ mulher que existe validamente constituída, por usucapião, uma servidão de passagem a pé́ e de carro;

b) a condenação dos RR a “reconhecer” ao A. o direito de ali passar;
c) a condenação dos RR a proceder à retirada do portão por eles lá colocado;
d) a condenação dos RR a absterem-se de criar dificuldades ou obstáculos ao exercício de direito por parte do A.;
e) a condenação dos RR a reparar todos os prejuízos causados e que venham causar, em consequência da sua conduta.

Fundamentou o autor, no essencial, esta sua pretensão na circunstância de autor e ré serem comproprietários, na proporção de 3/16 avos, do prédio denominado “Casal do Vale ...”, que confronta com o prédio propriedade exclusiva dos réus e ambos terem resultado da divisão de um só prédio, sendo que o autor na exploração da sua parcela sempre utilizou um caminho que atravessa o prédio dos réus, caminho que é utilizado pelo autor e demais comproprietários, e seus antecessores, há mais de 30 anos.

Mais alegou que, por volta do ano 2000, os réus construíram um portão na parte do referido acesso. E, em 17 de Setembro de 2004 os réus trancaram o portão com uma corrente e um cadeado, vedando desde então o acesso ao autor e a qualquer outro dos comproprietários.

Alega também, o autor, que devido à postura dos réus se vê obrigado a fazer a vindima através de caminhos de acesso difícil, e dependente de favores de vizinhos, o que lhe tem causado má disposição e problemas de saúde.

Tais manobras acrescidas implicaram ainda um aumento no custo de produção de cada kilo de fruta, num total de € 1.500,00 nos últimos cinco anos, valor que o autor exige aos réus. E, pelos danos morais sofridos peticiona a condenação dos réus no pagamento de uma indemnização de € 7.000,00.

Citados, os réus apresentaram contestação, invocando que, até 2009, o autor esteve convencido que o prédio dos réus e o prédio compropriedade do autor e da Ré́ mulher era um só, pelo que concluem que o autor não tinha o animus da posse de servidão.

Impugnam, por outro lado, os réus, que existam outros comproprietários que utilizem o prédio em causa. O caminho em causa era utilizado pelos antecessores de autor e ré quando os dois prédios eram apenas um. Quando os prédios foram autonomizados por partilha de 1939, os novos donos permitiram o seu atravessamento a alguns familiares e vizinhos e mais tarde ao autor.

Mais invocaram os réus que continuaram a tolerar que o autor ali atravessasse, sendo que tal tolerância só cessou quando o autor começou com exigências e imposições.

Alegaram ainda os réus que o autor se arrogava proprietário do prédio em causa, o que causava conflitos com os réus, convicção que o autor manteve até 2009, altura em que desistiu da instância no processo nº .../05.8TBTVD.

Concluíram os réus que o autor apenas utilizou o caminho em causa por mera tolerância, sem posse. Mais alegaram que o prédio de que o autor é consorte possui bons acessos, a Norte e Poente, à via pública, não sendo encravado, pelo que a utilização dos outros caminhos não implica nenhum custo extra para o autor.

O autor respondeu ao alegado na contestação, tomando posição quanto à invocada tolerância de passagem dada pelos réus e concluiu como na petição inicial.

Elaborado o despacho saneador, e proferida a condensação com a fixação dos Factos Assentes e a organização da Base Instrutória, foi levada a efeito a audiência de discussão e julgamento, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, constando do Dispositivo da Sentença o seguinte:

Pelo exposto, o tribunal decide julgar a acção improcedente por não provada e absolver os Réus dos pedidos.

Inconformado com o assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.

São as seguintes as CONCLUSÕES do recorrente:
(…)

Os réus apresentaram contra-alegações, propugnando a manutenção in totum da sentença recorrida e formularam as seguintes CONCLUSÕES:
(…)

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

***
II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Novo Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:

i) DA NULIDADE DA SENTENÇA;

ii) DA SUBSUNÇÃO JURÍDICA FACE À MATÉRIA APURADA E À
PRETENSÃO FORMULADA PELO AUTOR

O que implica a análise:

a) DO RECONHECIMENTO DA INVOCADA SERVIDÃO DE PASSAGEM CONSTITUÍDA POR USUCAPIÃO;

b) DA ALEGAÇÃO E PROVA DA DESNECESSIDADE DA SERVIDÃO DE PASSAGEM.

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III . FUNDAMENTAÇÃO

A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foi dado como provado na sentença recorrida, o seguinte:

1. O Autor e a Ré́ mulher são donos e legítimos comproprietários, cada um deles na proporção de 3/16 avos, do prédio misto denominado “Casal do Vale ...”, localizado no lugar com o mesmo nome, freguesia do ..., concelho do C..., com a área de 2,4920 hectares, confrontado do Norte com a Estrada Publica, Sul com ..., Nascente com ... e ... e poente com caminho público, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo nº … secção I e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob os números ...2 e ...3 a fls. 81-verso e 82 do livro B-78.

2. Os RR. são ainda proprietários do prédio urbano sito na Rua da ..., nº 10, descrito na Conservatória do Registo Predial do C..., sob o nº ... da freguesia do ... e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ..., que anteriormente correspondia ao artigo ... da matriz urbana, prédio este que confina a sul, nascente e poente com o prédio rustico descrito em A).

3. O prédio identificado em 2., que é propriedade da R. mulher, adveio-lhe da herança por óbito de seus pais, “D” e “E” ou “E”....

4. Nos referidos prédios, existe um caminho que atravessa os mesmos no sentido Norte/Sul, caminho esse que tem início na propriedade da Ré mulher, atravessando o prédio referido em 2. no logradouro junto a construção ali existente.

5. Desde pelo menos 1939, que os dois prédios são autónomos entre si.

6. O caminho foi utilizado pelos antecessores da R. mulher e A., enquanto o prédio foi único.

7. Quando o prédio urbano dos RR. foi autonomizado por partilha de 1939, os novos donos permitiram o seu atravessamento a alguns familiares e vizinhos, incluindo, mais tarde, o A.

8. Por volta do ano de 2000 os RR. mandaram construir um portão na parte do referido acesso, junto à Rua da ..., que é sua propriedade.

9. Na data foi facultada uma chave do portão e da casa dos RR ao Autor.

10. Os RR comunicaram ao Autor que este estava impedido de passar no referido caminho com o tractor.

11. O A. intentou acção cível que correu termos sob o número de processo .../05.8TBCDV.

12. Da acima referida acção, intentada pelo A., veio o mesmo a desistir da instância.

13. Porquanto, no decurso daquela referida acção, se ter apercebido, de que teria partido do errado pressuposto de que, o caminho a cujo acesso e a utilização pretendia ver reconhecido, atravessava apenas um prédio, denominado e conhecido por “Casal Vale ...”, mas que na realidade são dois prédios distintos, o prédio 1. e 2..

14. Até 2009, data em que desistiu da instância no processo supra referido, esteve convencido que o prédio urbano, propriedade dos RR. e o prédio rustico do qual o A. e outros são donos, eram um só e único prédio.

15. Estando, até essa data, convencido que era também comproprietário do caminho em causa.

16. O ora A. tem vindo a ser impedido de usar o referido caminho, por não lhe ser permitido pelos RR. a passagem pela parte do caminho que atravessa a propriedade da Ré mulher.

17. O prédio referido em 1. tem sido ocupado por alguns dos comproprietários do referido prédio, entre os quais o A., os quais cultivam parcelas definidas.

18. O Autor tem vindo a explorar a sua e outras parcelas do referido prédio, para fins agrícolas, aí cultivando vinha e outras culturas arvenses, o que tem vindo a fazer directamente nos últimos 10 anos, com permissão dos outros comproprietários.

19. Parcelas essas, que foram antes cultivadas por “F”, que o fez com autorização do A. e dos demais comproprietários, durante cerca de 20 anos.

20. E antes deles pelos pais e avós dos ora A. e Ré mulher.

21. No exercício da sua actividade agrícola, o A. e o supra identificado “F” utilizaram o caminho referido em 4..

22. Usando-o como acesso para entrar e sair do prédio referido em 1., o que fizeram quer a pé quer de carro.

23. Através daquele trajecto faziam o acesso de veículos, tais como inicialmente carros de bois, carroças e pelo menos há 30 anos por tractores e de outras máquinas agrícolas.

24. A utilização do referido caminho sempre foi feita pelo A. e antecessores, familiares quer do A. quer da Ré mulher, desde tempos imemoriais, à vista de toda a gente, com o conhecimento geral.

25. Sem que tenha havido qualquer oposição de quem quer que fosse.

26. Foi iniciada sem violência e com a consciência de ninguém lesar, fazendo-o a pé e com tractores com reboque e outras máquinas agrícolas, e sempre há mais de 30 anos.

27. Mesmo após a vedação e construção do portão o Autor continuou a passar no referido caminho de tractor.

28. Tal caminho sempre se mostrou por sinais traduzidos em piso endurecido e calcorreado ao longo dos anos, bem como pelas filas correspondentes à plantação das culturas aí existentes, as quais deixam livre exactamente o espaço do caminho que atravessa a propriedade, bem como pelo não aproveitamento da respectiva vegetação, nessa áreas.

29. O A. passou a efectuar o transporte de uvas através do prédio de “G” e através da estrada do Vale ... ou estrada dos ....

30. Existe uma mina de água junto ao caminho dos perus mas que não fica directamente por baixo do mesmo.

31. Em 2012 o Autor produziu pelo menos 8.672 quilogramas de uva e no ano de 2011, 2.929 quilogramas de pêra.

32. Apesar dos RR. vedarem o seu prédio o A. não foi impedido de o atravessar, sendo tal utilização tolerada pelos RR, devido à relação de parentesco que os une.

33. Nenhum outro comproprietário além do A. manifestou, nestes últimos 20 anos vontade de atravessar o prédio dos RR.

34. O prédio referido em 1. dispõe a norte e poente de dois acessos à via pública.

35. A norte o prédio tem acesso à estrada municipal alcatroada, denominada Rua da ..., que atravessa toda a povoação.

36. A poente, o prédio tem acesso a estrada de terra batida por onde frequentemente passam camiões pesados, tractores e alfaias agrícolas.

37. O A. também utiliza o percurso referido em 36.;

38. A parcela que o A. explora é atravessada por caminho, que parte da estrada de terra batida referida em 36. junto à casa de apoio à agricultura, construída por este.

39. A estrada a poente do prédio não oferece qualquer perigo.

40. A mesma denominada “Caminho da ...” é nos últimos anos também designada por “Estrada dos ...”, por servir uma exploração de criação de aves existente a sul do prédio do A.

41. É por essa estrada que circulam camiões carregados de aves, rações, estrume e alfaias agrícolas, inexistindo outro que sirva a referida exploração avícola.

42. Os prédios rústicos que com ela confinam escoam, por aí as suas produções.

***


B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

i. DA NULIDADE DA SENTENÇA

A sentença, como acto jurisdicional, pode ter atentado contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada e, então, torna-se passível de nulidade, nos termos do artigo 615º do NCPC (artigo 668º do anterior C.P.C.).

A este respeito, estipula-se no apontado artigo 615º, nº 1 do NCPC (artigo 668º do anterior C.P.C.), sob a epígrafe de “Causas de nulidade da sentença”, que:

“1 - É nula a sentença:
a) Quando não contenha a assinatura do juiz;
b) Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.....”

É apodíctico que o recorrente visa imputar à sentença a nulidade decorrente da alínea c) do citado normativo, a qual se reconduz a um vício de conteúdo, na enumeração de J. CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, III, 1980, 302 a 306, ou seja, vício que enferma a própria decisão judicial em si, nos fundamentos, na decisão, ou nos raciocínios lógicos que os ligam.

No que concerne ao aludido vício, doutrina e jurisprudência têm entendido que essa nulidade ocorre quando os fundamentos invocados deveriam conduzir, num processo lógico, à solução oposta da que foi adoptada naquela.

Esta nulidade – oposição entre os fundamentos e a decisão – só se verifica quando os fundamentos, quer de facto quer de direito, invocados pelo juiz devam, logicamente, conduzir ao resultado oposto ao que é expresso na sentença.

A contradição entre os fundamentos e a decisão a que se refere o citado normativo é uma contradição de ordem formal, que se refere aos fundamentos estabelecidos e utilizados na sentença, e não aos que resultam do processo.

E, tal nulidade traduzida na desconformidade entre a decisão e o direito aplicável - substantivo ou adjectivo – não se confunde com o erro de julgamento, ou seja, a subsunção dos factos à norma jurídica e, muito menos, com o erro na interpretação desta.

É que, quando o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, poderemos, sim, estar perante um erro de julgamento. Nesse caso, o juiz fundamenta a decisão, mas decide mal. Resolve as questões colocadas num certo sentido porque interpretou e/ou aplicou mal o direito - LEBRE DE FREITAS, CPC Anotado, vol. 2.º, pág. 670.

Na sentença recorrida, o tribunal a quo, tendo em consideração os factos alegados e que resultaram provados, aplicou o direito que julgou adequado e pertinente ao caso em apreciação, considerando verificados os requisitos para o reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de servidão de passagem, conforme peticionado pelo autor mas, simultaneamente, concluiu pela extinção, por desnecessidade, de tal servidão.

Não se vislumbra qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, atenta a fundamentação aduzida, nem tão pouco ocorre qualquer ambiguidade ou obscuridade susceptível de tornar a decisão ininteligível.

Situação diversa é a de saber se houve erro de julgamento, pois como se refere no Ac. do STJ de 21.05.2009 (Pº 692-A/2001.S1), acessível na Internet, no sítio www.dgsi.pt: Se a questão é abordada mas existe uma divergência entre o afirmado e a verdade jurídica ou fáctica, há erro de julgamento, não “errore in procedendo”.

O alegado vício de conteúdo a que se refere o artigo 615º, nº 1, al. c) do NCPC (artigo 668º, n.º 1, alínea c) do anterior CPC), não se verifica na sentença recorrida, pelo que improcede o que a tal respeito consta das conclusões do apelante.

Importa, então, apurar se há erro de julgamento, o que implica a análise da subsunção jurídica efectuada pelo Tribunal a quo e que se reconduz, ao cabo e ao resto, ao fundamento de mérito do recurso.

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ii) DA SUBSUNÇÃO JURÍDICA FACE À MATÉRIA APURADA E À
PRETENSÃO FORMULADA PELO AUTOR


a) DO RECONHECIMENTO DA INVOCADA SERVIDÃO DE PASSAGEM CONSTITUÍDA POR USUCAPIÃO


De acordo com o preceituado no artigo 1543º do Código Civil, a servidão é um encargo que recai sobre um prédio e que aproveita a outro prédio, pertencendo ambos os prédios a donos diferentes. Trata-se de um direito real limitado, uma limitação ao direito de propriedade do prédio onerado ou serviente, designando-se por dominante o prédio que beneficia da servidão.

Segundo dispõe o artigo 1544º do Código Civil as utilidades das servidões podem ser as mais variadas, futuras ou eventuais, não sendo necessário que aumentem o valor do prédio dominante.

As servidões, que têm como características a inseparabilidade e a individualidade, podem ser voluntárias ou legais. As primeiras resultam unicamente da vontade das partes - contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família – as legais podem ser constituídas por negócios jurídicos, caso as partes acordem nos termos da sua constituição, por sentença judicial ou por decisão administrativa (v. artigo 1547º do Código Civil).

Prescreve o artigo 1548º do Código Civil que:
1. As servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião.
2. Consideram-se não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes.

Uma servidão aparente, susceptível de ser constituída ou adquirida por usucapião, terá de se revelar por sinais materiais visíveis, e, tanto quanto possível inequívocos dessa servidão, e que os mesmos sejam permanentes, reveladores do seu exercício.

A servidão, como acima ficou dito, pode constituir-se pela posse por lapso de tempo bastante para usucapir.

Estatui o artigo 1287º do Código Civil que A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.

A constituição da servidão por usucapião fundamenta-se, portanto, na posse, e esta carece de ser caracterizada, pela boa ou má fé, que consiste na ignorância de lesar direito alheio, pela pacificidade e publicidade – artigos 1260º, nº1, 1261º e 1262º, todos do Código Civil.
Da matéria de facto provada resulta que o autor, por si e seus antecessores, vêm exercendo os actos de circulação pelo caminho que atravessa o prédio dos réus, visto que demonstrados ficaram sinais visíveis e permanentes dessa passagem, com o animus de titular do direito de servidão de passagem correspondente.

Tais actos materiais de posse vêm sendo exercidos pelo autor, na convicção de que está e sempre esteve a exercer sobre o prédio dos réus um direito de passagem, sendo a posse do autor pública, pois foi exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados e pacífica, uma vez que foi adquirida sem violência – v. Nº 4 a 9, 20 a 28 da Fundamentação de Facto.

Verificado se mostra igualmente o prazo necessário à aquisição do direito de servidão de passagem, por parte do autor, pois há, pelo menos, 30 anos que vêm exercendo tal passagem nos moldes enunciados.

Ora, a factualidade apurada, designadamente o exercício da posse com as referidas características de continuidade, pacificidade e publicidade, ao longo de 30 anos, satisfaz plenamente os pressupostos da usucapião, tendo o autor, desta forma, logrado demonstrar a constituição de uma servidão de passagem a seu favor, enquanto titular do prédio dominante, sobre o prédio dos réus (prédio serviente), nos termos das disposições combinadas dos artigos 1260.º, n.º1, 1261.º, n.º1, 1262.º, 1287.º e 1296.º, todos do Código Civil, o que a sentença recorrida igualmente – e bem – reconheceu.

Insurge-se, todavia, o autor, contra a decisão recorrida, na parte em que considerou extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem adquirida pelo autor, por usucapião, o que será analisado subsequentemente.

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b) A ALEGAÇÃO E PROVA DA DESNECESSIDADE DA SERVIDÃO DE PASSAGEM


É certo que os réus invocaram na sua contestação, para justificar que o prédio do autor não é, nem nunca foi encravado, que o autor tem acesso ao seu prédio por outras entradas – uma entrada alcatroada e uma estrada em terra batida.

Entendeu o Tribunal recorrido que tal factualidade, que veio a ser apurada, integraria uma causa de extinção da servidão de passagem reconhecida ao autor, por desnecessidade.


Vejamos se assim se terá de entender.

Dispõe o artigo 1569º, nº 2, do CC, que “as servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante”, acrescentando o respectivo nº 3 que “o disposto no número anterior é aplicável às servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição;…”.

A desnecessidade, que é uma causa de extinção privativa das servidões adquiridas por usucapião e das servidões legais, tem o seu fundamento na cessação das razões que justificaram a afectação de utilidades do prédio serviente ao prédio dominante – v. LUÍS CARVALHO FERNANDES, Lições de Direitos Reais, 3ª ed. 448.

Segundo OLIVEIRA ASCENSÃO, Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais, Separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1964, 10-12, a “desnecessidade” tem de ser objectiva, típica e exclusiva da servidão, caracterizada por uma mudança na situação objectiva do prédio dominante verificada em momento posterior à constituição da servidão, e em consequência da qual perdeu utilidade para o prédio dominante.

Dividida se encontra, efectivamente, a doutrina e a jurisprudência sobre a problemática da desnecessidade.

Segundo uma orientação, a desnecessidade terá de ser superveniente, i.e., pressupõe uma alteração das circunstâncias existentes à data da constituição da servidão - OLIVEIRA ASCENSÃO, Direitos Reais, 440, Acs. R.C. de 13.06.1995, CJ Ano XX, II, 41, de 16.04.2002 CJ Ano XXVII, II, 23, da Ac. R.P. de 26.11.2002, CJ, T5,182 e Ac. e da R.C. de 12.06.2007 (Pº 1059/05.0TRBLB.C1), este último acessível na Internet, no sítio www.dgsi.pt.

De acordo com outro entendimento, tanto a desnecessidade superveniente como a originária dão lugar à extinção, visto que, como salienta LUIS CARVALHO FERNANDES, ob cit., loc. cit., determinante é a cessação das razões que justificavam a afectação de utilidades do prédio serviente ao prédio dominante – v. também neste sentido, Ac. Rel. Coimbra de 28.09.04 CJ Ano XXIX, III, 18) e Ac. STJ de 27.05.1999, (Pº 99B394), acessível no citado sítio da Internet.

É certo que a lei não densifica em que se traduz a “desnecessidade”, nem se esta tem que ser originária ou superveniente à constituição da servidão.

Muito embora a situação normal seja a de ocorrerem alterações no quadro circunstancial existente ao tempo da constituição da servidão, admite-se que, no caso das servidões constituídas por usucapião, tal exigência de verificação de uma alteração ou modificação objectiva superveniente no prédio dominante será, em regra, dificilmente descortinável.

Assim, para se concluir pela desnecessidade da servidão de passagem importa que se observem as seguintes características:

(i) A extinção por desnecessidade de passagem não deve ser subjectiva - relacionada com o proprietário do prédio dominante - mas antes objectiva - atinente ao próprio prédio dominante.

(ii) A desnecessidade deverá ser actual, decorrendo, em princípio, de alterações ocorridas no prédio dominante.

(iii) A desnecessidade não pode ser equiparável a indispensabilidade, o que significa que não basta provar que a servidão deixou de ser indispensável para o prédio dominante, antes tendo de provar-se que para ele deixou de ter qualquer utilidade.

A desnecessidade da servidão tem apenas a ver com a conexão íntima entre o prédio dominante e os factos que a determinaram.


Como refere OLIVEIRA ASCENSÃO, Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais, loc. cit., 10, o artigo 2279º do C. Civil de Seabra (que constitui a fonte do nº 2 do artigo 1569º do Código Civil) tem em vista libertar os prédios de servidões desnecessárias ou impraticáveis, que desvalorizam os prédios servientes, sem que valorizem os prédios dominantes.

No Código Civil de Seabra, no § único do aludido artigo 2279º, admitia-se expressamente a extinção da servidão por desnecessidade desde que o proprietário do prédio dominante pudesse satisfazer as necessidades do seu prédio "por qualquer outro meio igualmente cómodo".

No entanto, esta afirmação não passou para o Código Civil actual, o que permite concluir que, nesta matéria, o legislador não quis sujeitar o tribunal a nenhum catálogo de situações concretas, não tendo, por isso, de julgar extinta a servidão só porque o prédio dominante pode estar em condições de poder ser servido, por outra forma que não através da servidão já constituída.

Não basta, portanto, demonstrar que o prédio dominante pode utilizar outro caminho a que entretanto teve acesso, sendo necessário, para se aferir da desnecessidade da servidão, demonstrar que esse caminho proporciona iguais ou semelhantes condições de utilidade e comodidade de acesso ao prédio dominante – v. neste sentido Acs. do STJ de 21.02.2006, (Pº 05B4254), de 01.03.2007, (Pº 07A091); de 25.10.2011, (Pº 277/07.0TCGMR.G1.S1), de 01.03.2012 (Pº 263/1999.P1.S2) e de 21.03.2012 (Pº 2173/07.2TBGRD.C1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

A desnecessidade de subsistência da servidão para o prédio dominante, como fundamento da extinção da servidão, deve aferir-se em relação ao momento da introdução da acção em juízo, à luz da realidade objectiva e actual, não sendo imperiosa a prova da superveniência absoluta dessa desnecessidade, após a constituição da servidão, tanto mais que não exige o texto legal que a servidão se torne desnecessária, mas antes que se mostre desnecessária, o que apela a esse juízo de actualidade – v. neste sentido Ac. STJ de 27.05.99 (Pº 99B394).

Sucede que, de acordo com o aludido artigo 1569º, nº 2 do C.C. a declaração de desnecessidade, não só tem de ser requerida, como também os elementos necessários à avaliação da desnecessidade têm de ser alegados e provados pelo dono do prédio serviente (os ora réus), já que sobre eles impende o ónus da prova da desnecessidade.

No caso vertente, a invocação da desnecessidade haveria de ter sido efectuada em sede de reconvenção, com formulação de pedido em conformidade, o que não ocorreu, pelo que a violação do princípio do pedido sempre implicaria o insucesso da defesa preconizada. – v. neste sentido Ac. R.G. de 15.10.2013 (Pº 461/11.2TBFAF.G1) e Ac. R.C. de 10.12.2013 (Pº 589/09.9TBCTB.C1), acessíveis em www.dgsi.pt.

Mas, ainda que assim se não entenda, sempre se dirá que, contrariamente ao decidido na sentença recorrida, a factualidade dada como provada tão pouco permite dar procedência a tal pretensão.

É que, como é sabido, a desnecessidade da servidão a que se refere o nº 2 do artigo 1569º do C.C., tendo em vista libertar os prédios de servidões desnecessárias susceptíveis de desvalorizar o prédio serviente, sem valorizarem o prédio dominante, terá de ser apreciada em termos objectivos, no cotejo da acessibilidade não excessivamente incómoda ou onerosa do prédio dominante e o encargo do prédio serviente.

E, para tal não basta, como antes ficou dito, que para além da passagem objecto da servidão, exista outra via de acesso do prédio dominante para a via pública, porquanto é necessário que este outro
acesso ofereça condições de utilização similares, ou, pelo menos, não desproporcionalmente, agravadas – v. neste sentido Ac. STJ de 01.03.2012 (Pº 263/1999.P1.S2) que confirmou o Ac. R.P. de 22.09.2011 e ainda Ac. R.C, de 15.10.2013 (Pº 78/11.1TBSCD.C1), acessíveis em www.dgsi.pt.

A circunstância de o prédio dominante passar a ter outros acessos à via pública só por si não torna dispensável a servidão de passagem de que o prédio beneficie, visto que a passagem pelo prédio serviente pode continuar a representar uma mais-valia para o prédio dominante.

Ora, no caso em análise, apenas e tão-somente se provou que o prédio do autor dispõe, a norte e poente, de dois acessos à via pública, uma estrada municipal alcatroada e uma estrada de terra batida – v. Nºs 34 a 36 da Fundamentação de Facto - o que não é suficientemente revelador da desnecessidade da servidão aqui em causa.

Importa não confundir a servidão predial voluntária de passagem com a servidão legal de passagem em benefício de prédio encravado.

E, no caso vertente, não estamos perante uma servidão legal de passagem, por insuficiência de comunicação com a via pública, nada se tendo apurado quanto às condições de utilidade e comodidade dos caminhos em causa. Desconhece-se, por exemplo, quantos metros têm de ser percorridos pelo prédio dos réus e pelos outros caminhos para se chegar à via pública, qual a configuração desses caminhos, se o autor necessita de atravessar outros prédios pertencentes a distintos proprietários para chegar à via pública pelos outros enumerados caminhos, para além do referido no Nº 29 da Fundamentação de Facto.

À míngua de fundada e necessária factualidade - que incumbia aos réus alegar e provar - não se poderá concluir que aqueles outros acessos à via pública que tem o prédio do autor proporcionam condições de utilidade e comodidade iguais, ou mesmo semelhantes, aquelas que o prédio do autor (prédio dominante) retira da utilização da passagem pelo prédio dos réus.

Não se evidenciando da demonstrada factualidade a desnecessidade da servidão de passagem de que beneficia o prédio do autor e onera o prédio dos réus, não se acompanha, por conseguinte, a sentença recorrida quando, para justificar a extinção da servidão de passagem, se afirma que a passagem pelo prédio dos réus não é a única passagem possível (o que é irrelevante, já que não está em causa um prédio encravado), e nenhuma prova foi feita no sentido de se afirmar que “a passagem pelo prédio dos réus não é aquela que oferece melhores condições para o efeito”.

Procede, por conseguinte, a apelação, revogando-se a sentença recorrida, a qual se substitui por outra, reconhecendo-se constituída, por usucapião, uma servidão de passagem a pé e de carro, de que beneficia o prédio do autor e onera o prédio dos réus, condenando-se os réus a proceder à retirada do portão por estes ali mandado construir, mantendo-se, no mais, a sentença recorrida.

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Os apelados serão responsáveis pelas custas respectivas nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2 do Novo Código de Processo.

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IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, reconhecendo-se constituída, por usucapião, uma servidão de passagem a pé e de carro, de que beneficia o prédio do autor e onera o prédio dos réus, condenando-se os réus a proceder à retirada do portão por estes ali mandado construir, mantendo-se, no mais, a sentença recorrida.

Condenam-se os apelados no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 27 de Fevereiro de 2014

Ondina Carmo Alves - Relatora
Eduardo José Oliveira Azevedo
Olindo dos Santos Geraldes
Decisão Texto Integral: