Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1283/14.4T8CSC-D.L1-7
Relator: EDGAR TABORDA LOPES
Descritores: INVENTÁRIO
PARTILHA DE BENS DE EX-CASAL
DATA DO CASAMENTO
COMUNHÃO GERAL DE BENS
LEI APLICÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - O artigo 1790.º do Código Civil (sob a epígrafe “Partilha”) regula os efeitos do divórcio na vertente patrimonial e da partilha dos bens do (ex)casal.
II - A versão actual deste normativo foi introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, entrou em vigor a 01 de Dezembro de 2008 (artigo 10.º) e o diploma afirma no seu artigo 9.º que o regime previsto no diploma “não se aplica aos processos pendentes em tribunal”.
III – Por aplicação dos princípios consagrados no artigo 12.º do Código Civil (n.º 1 - A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular” ; n.º 2, 2.ª parte – “quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”), o regime introduzido pela Lei n.º 61/2008 no artigo 1790.º, aplica-se aos casamentos celebrados antes da data da sua entrada em vigor (01/12/2008) e que nessa data ainda subsistam (por se reportar aos efeitos do divórcio, alterando a sua regulamentação e consequências, dispondo, portanto, sobre o conteúdo da relação do casamento, abstraindo dos factos que lhe deram origem).
IV - Numa situação em que um casamento celebrado sob o regime de comunhão de bens, viu o divórcio decretado em Abril de 2005, e cujo inventário para separação de meações entrou em juízo em Julho de 2008, é aplicável a redacção do artigo 1790.º dada pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório
Nos presentes autos de processo de inventário para partilha de bens na sequência de divórcio de M com F, e em que a primeira é actualmente cabeça de casal, a 07 de Dezembro de 2022, em sede de Conferência de Interessados, foi celebrada Transacção nos seguintes termos:
“1 - Adjudicam ao interessado, V as verbas n.ºs 1, 2, 3 e 4.
2. Adjudicam ao interessado, V as verbas n.º 5 a 12, correspondentes ao recheio da verba n.º 42.
3. Adjudicam ao interessado, V as verbas n.ºs 13, 14 e 15.
4. Adjudicam ao interessado, V as verbas n.º 16 a 40, correspondentes ao recheio da verba n.º 43.
5. Adjudicam à cabeça de casal, M a verba n.º 41.
6. Quanto à verba n.º 42, a mesma será vendida, sendo a sua a promoção junto do mercado imobiliário (contrato sem exclusividade), a qual poderá ser feita a partir de hoje, com o valor de €2.000.000,00, (dois milhões), pelo prazo de 3 meses.
Findo tal prazo e caso o imóvel não esteja vendido nesse período de tempo, nem tenha sido objeto de contrato promessa de compra e venda, o preço da venda, será reduzido em €100.000,00 por cada três meses decorridos, até atingir o montante constante da avaliação efectuada nos autos e que se cifra em €1.560.000,00 (um milhão quinhentos e sessenta mil euros).
7. Desde já fica acordado, que quer os interessados, quer a cabeça de casal, estão autorizados a proceder à venda conjunta e que o produto da mesma será recebido da seguinte forma:
 a) Após descontado o valor da comissão da mediação imobiliária, metade do valor remanescente será para a cabeça de casal e a outra metade será dividida em parte iguais pelos dois interessados, V e MM.
8. Relativamente à verba n.º 42, o interessado, V que actualmente vive no imóvel, compromete-se a facilitar a ocorrência das visitas para efeitos de promoção imobiliária, bem como a entregar o imóvel livre, de qualquer ocupação, até à escritura de compra e venda do mesmo.
9. Adjudicam ao interessado, V a verba n.º 43.
10. Adjudicam à interessada, MM a verba n.º 44.
11. Adjudicam à cabeça de casal, M as verbas n.ºs 45 a 49.
12. A cabeça de casal e os interessados passam a poder, a partir da presente data, a tomar posse dos bens, que aqui por acordo adjudicaram entre eles.
13. O pagamento das tornas a que eventualmente haja lugar, será efectuado com o produto da venda da verba n.º 42”.
A Transacção foi objecto de Sentença Homologatória com o seguinte teor:
“Nestes autos de inventário, atenta a legitimidade das partes e o objecto do processo, estando as partes presentes e também devidamente representadas pelos respectivos Ilustres Mandatários, homologo pela presente sentença, a transacção efectuada e adjudico à cabeça-de-casal e aos interessados os respectivos bens, nos precisos termos da transacção efectuada, ocorrendo o eventual pagamento de tornas, aquando do recebimento do preço da venda da verba n.º 42.
Registe e Notifique”.
Na mesma Conferência de Interessados, foi proferido o seguinte Despacho:
“Sabendo-se que o mapa de partilha deverá ser efectuado de seguinte forma:
 a) A totalidade do valor das verbas a dividir por dois, sendo o valor que caberá a cabeça de casal, a metade absoluta deste valor (meação).
 b) A outra metade será dividida entre os interessados, V e MM, uma vez que substituem o seu pai para divisão da respectiva meação, devendo os quinhões de cada um, ser preenchidos com os bens, na respetiva proporção.
E uma vez que os bens já se encontram adjudicados de acordo com a transacção homologada pela sentença proferida supra, notifique-se as partes, para se pronunciarem sobre o referido mapa, apresentando-o assim com o preenchimento dos respectivos quinhões”.

É deste Despacho que vem interposto Recurso de Apelação por parte do interessado V, o qual apresentou as suas Alegações, onde lavrou as seguintes Conclusões:
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A interessada MM apresentou Contra-Alegações, culminando-as com as seguintes Conclusões:
“1) Em 01/12/2008, data da entrada em vigor da Lei 61/2008, de 31/10, o casamento celebrado entre a cabeça de casal e o de cujus, já não subsistia, na medida e o divórcio foi decretado em 15/04/2005;
2) Como tal não se aplica ao caso concreto a redação atual do artigo 1790º do Código Civil, mas sim a anterior;
3) É esse o entendimento jurisprudencial dominante citando-se, a título exemplificativo, o do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4/2/2014, com o seguinte resumo: “O artigo 1790º do C.C., na redação da lei 61/2008, de 31 de Outubro, é aplicável a todos os casamentos celebrados segundo o regime da comunhão geral de bens, ainda que em data anterior à entrada em vigor da referida lei (1/12/2008), mas que nesta data ainda subsistam” (sublinhado nosso).
4) Acresce referir que no âmbito do divórcio o de cujus F foi declarado o principal culpado da dissolução do casamento, o que releva em sede de partilha, face a redação aplicável do artigo 1790º do C.C.;
5) No caso dos autos e tendo em conta o regime de casamento na comunhão geral inexistem bens próprios do de cujus F;
6) Não se mostram violados os preceitos legais invocados.
7) O recurso deverá ser julgado improcedente”.
A interessada M apresentou Contra-Alegações, culminando-as com as seguintes Conclusões:
“1 - Devendo manter-se na integra a douta decisão.
2 - A cabeça de casal e aqui recorrida subscreve na integralmente as doutas alegações da interessada MM, mormente que a nova redação que a Lei 61/2008 veio dar ao artigo 1790º do CC não se aplica ao caso em apreço,
3.- E a corroborar a inaplicabilidade daquela redação do artigo 1790º introduzida pela Lei 61/2008, de 31/10, temos a norma transitória do artigo 9º da Lei 61/2008, de 31/10, que é perentória: O presente regime não se aplica aos processos pendentes em tribunal;
4.- A partilha em apreço já estava pendente em Tribunal quando entrou em vigor a Lei 61/2008, de 31/10, como resulta dos autos.
5.- Além disso, a questão suscitada no presente recurso pelo recorrente V já foi apreciada nos presentes autos e foi indeferida, por douta decisão de 2 de junho de 2017, com a referência citius 106938181, e já transitou em julgado.
6.- Por todo o doutamente alegado e demonstrado pela recorrida MM e pelo aqui alegado constata-se que o recurso do V carece de fundamento,
7.- Devendo manter-se na integra a douta decisão recorrida, já que não foi violado qualquer normativo legal, não merecendo qualquer reparo, pelo que deve ser negado provimento ao presente recurso”.
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Questões a Decidir
São as Conclusões da Recorrente que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de actuação do Tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, Abrantes Geraldes[1]), sendo certo que, tal limitação, já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
In casu, e na decorrência das Conclusões do Recorrente, importará verificar da aplicabilidade do artigo 1790.º do Código Civil, em que redacção (anterior ou posterior ao Decreto-Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro) e em que termos.
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Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.
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Fundamentação de Facto
1 - F e M casaram entre si a 12 de Dezembro de 1965, sob o regime de comunhão de bens.
2 – F e M divorciaram-se litigiosamente a 15 de Abril de 2005, por Sentença, na qual o primeiro foi considerado principal culpado.
3 - Os presentes autos de Inventário entraram em juízo a 04 de Julho de 2005.
4 – F faleceu a 31 de Maio de 2010.
5 – O inventário pela morte de F foi cumulado por decisão de 16 de Junho de 2015.
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Fundamentação de Direito
No âmbito de um processo de inventário surgido na sequência de um divórcio litigioso, cada “cônjuge – ou no caso de dissolução do casamento por morte, os seus herdeiros – receberá na partilha os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo previamente o que dever a esse património”[2], como decorre do artigo 1689.º, n.º 1, do Código Civil, sendo certo que a composição desse “património comum” sempre estará dependente do regime de bens que se aplique ao (dissolvido) casamento em questão.
Ora, o artigo 1790.º (sob a epígrafe “Partilha) regula precisamente os efeitos do divórcio[3] na vertente patrimonial e da partilha dos bens do casal.
 Trata-se este de um normativo que adopta neste momento a sua 4.ª versão[4], sendo certo que, para a abordagem da situação dos autos relevam apenas a actual[5] (“Em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos”) e a anterior (“O cônjuge declarado único ou principal culpado não pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos”).
Em face da cronologia detectável na factualidade acima descrita, a questão que acaba por se colocar (e que o Recorrente pura e simplesmente faz por ignorar) é, precisamente, a de qual das redacções se aplica nos presentes autos.
De facto, quando o divórcio foi decretado (Abril de 2005) e quando o inventário entrou em juízo, estava em vigor a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, sendo que a nova, dada pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, só entrou em vigor 30 dias após a sua publicação (cfr. o seu artigo 10.º)[6].
Neste último diploma, o legislador teve o cuidado de criar uma norma transitória (artigo 9.º), onde expressamente veio preceituar que o regime previsto no diploma “não se aplica aos processos pendentes em tribunal”[7].
Sobre esta norma, Rute Teixeira Pedro, escreve que a “aplicação imediata do regime reformado às relações matrimoniais constituídas antes da entrada em vigor da lei, tem merecido a reflexão crítica por parte da doutrina, nomeadamente no que respeita às soluções consagradas nos arts. 1790.º e ss quanto aos efeitos do divórcio. O STJ, chamado a pronunciar-se sobre a matéria, no ac. de 3-3-16 (1808/13.2TBMTS-A. P1.S1; Pires da Rosa), afirmou que “O casamento e o divórcio têm hoje (depois da Lei n.º 61/2008) uma nova luz e é essa nova luz que se deve derramar sobre todos os casados que ponham fim ao seu casamento pelo divórcio depois dela – sobre todos os casados e não apenas sobre os que casaram depois da entrada em vigor da mencionada Lei.” E, por consequência, “não há nesta solução qualquer violação do princípio constitucional da igualdade já que respeitá-lo é tratar por igual todos aqueles que hoje estejam casados e hoje ou amanhã vejam o seu casamento extinto pelo divórcio – o divórcio há de ter os efeitos patrimoniais que hoje a lei acha eticamente sustentáveis (e legalizou) e daí que os benefícios recebidos ou a receber em vista do casamento ou em consideração do estado de casado tenham de ser tratados como a lei os trata agora e não como eram pensados no tempo em que foram concedidos”[8].
Rita Lobo Xavier afirma que a “lei vem agora determinar que, no caso de divórcio, o património comum fica diminuído” e entende que “esta estatuição não poderá afectar os bens que entraram no património comum até à entrada em vigor da lei: só pode aplicar-se àqueles que casaram segundo este regime depois da sua entrada em vigor, e, quanto aos cônjuges que casaram anteriormente em tal regime, quando muito, só poderá excluir do património comum a partilhar os bens que nele ingressaram após a data de início de vigência da lei”[9].
Também Guilherme de Oliveira afirma que, segundo “o artigo 1790.º, no caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode receber mais do que receberia, na partilha, se o regime do casamento tivesse sido o da comunhão de adquiridos. Note-se que o art.º 1790.º não implica a substituição do regime da comunhão geral pelo da comunhão de adquiridos, que levaria a que cada cônjuge pudesse pedir a inscrição a seu favor dos bens que levou para o casamento ou depois lhe advierem por herança ou doação com base no regime típico da comunhão de adquiridos. Tendo sido estipulado o regime da comunhão geral, esses bens entraram na comunhão e nela permanecem até à partilhe: só depois desta poderá saber-se a quem ficarão a pertencer. Por outras palavras, a lei não impõe que, na partilha, cada cônjuge seja encabeçado nos bens que lhe pertenceriam se tivesse vigorado o regime da comunhão de adquiridos; só quer que cada cônjuge não receba, na partilha, mais do que receberia se tivesse sido convencionado esse regime. Não lhe importam os bens em espécie, mas só o seu valor”[10].
São ainda de deixar nota as sistematizadas críticas ao novo regime legal formuladas por Margarida Silva Pereira e Cristina Araújo Dias, para as quais remetemos[11].
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Dezembro de 2020 (Processo n.º 26542/16.8T8LSB.L1.S1-Henrique Araújo) escreveu-se o seguinte: “Cristina Dias (“A partilha dos bens do casal nos casos de divórcio – A solução do art. 1790º do Código Civil”, em Separata de Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 8, n.º 15, páginas 26 e seguintes) por exemplo, refere que o novo artigo 1790º “(…) afecta relações jurídicas já constituídas, regidas por um regime de bens diferente daquele pelo qual se realizará a partilha”. E adianta: “estando os cônjuges casados sob o regime da comunhão geral de bens, e sobretudo se o casamento durou muitos anos, a partilha segundo a comunhão de adquiridos pode gerar injustiças, pois nem sempre é fácil reconstituir todos os movimentos patrimoniais de forma a aferir se os bens são qualificados como próprios ou comuns à luz do regime da comunhão de adquiridos”. Aduz, ainda: “à luz da anterior redacção do art.º 1790º, qualquer um dos cônjuges podia confiar que o valor da sua meação no património comum seria apurado de acordo com o regime de bens vigente no casamento, desde que não fosse o culpado ou o principal culpado pelo divórcio. Confiança, aliás, assegurada no decurso do casamento pelo princípio da imutabilidade do regime de bens”.
Por isso, alguns autores defendem que o legislador deveria ter afastado da aplicação do novo artigo 1790º os casamentos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor ou, pelo menos, excluir do seu âmbito de aplicação os bens que ingressaram no património comum antes dessa entrada em vigor (Rita Lobo Xavier, “Recentes alterações ao regime jurídico do divórcio e das responsabilidades parentais – Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro”, página 35).
Há mesmo quem vá mais longe e preconize a inconstitucionalidade do artigo 1790º quando aplicado a casamentos vigentes ao tempo da entrada em vigor da Lei 61/2008´(Cristina Dias, ob. cit., nota de rodapé n.º 131, 2ª parte, na página 31, e Rute Teixeira Pedro, “A partilha do património comum do casal em caso de divórcio – Reflexões sobre a nova redacção do artigo 1790º”, em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Volume III, página 465.)”;
Por seu turno, no Acórdão do Supremo Tribunal Justiça de 07 de Junho de 2018 (Processo n.º 2159/10.0TBOAZ-A.P1.S1-Rosa Ribeiro Coelho) deu-se conta que:
 - vigorando “no casamento o regime de comunhão geral de bens, os bens recebidos por um dos cônjuges por sucessão depois do casamento fazem parte do património comum”, que no “inventário instaurado para partilha dos bens em caso de divórcio todos os bens comuns deverão constar do mapa de partilha”;
 - e que a “adjudicação dos bens será feita conforme as licitações ou outras indicações da lei e acautelando-se, se for caso disso e através do mecanismo das tornas, o objetivo garantido pelo art. 1790º, na redação dada pela Lei nº 61/2008, de 31.10”;
Ainda sobre esta matéria, temos o Acórdão do Supremo Tribunal Justiça de 26 de Março de 2019 (Processo n.º 199/10.8TMLSB-C.L1.S1 - Fernando Samões) como paradigmático na clareza e na sistematização. Assim, nele se refere expressamente (num caso de casamento sob o regime de comunhão de bens em que a acção de divórcio deu entrada em juízo em 2010), que
 -  o “art.º 1790.º do CC, na redacção da Lei n.º 61/2008, de 31-10, é aplicável a todos os casamentos celebrados segundo o regime da comunhão geral de bens, mesmo aos celebrados em data anterior à sua entrada em vigor (01-12-2008), desde que, neste caso, subsistam nessa data”;
 - o “mesmo artigo não altera o regime de bens a que se encontra sujeito o casamento celebrado, pelo que a partilha continua a fazer-se tratando como bens comuns aqueles que o são de acordo com esse regime”;
 - tendo “vigorado o regime da comunhão geral de bens no casamento, no inventário subsequente ao divórcio devem ser relacionados todos os bens comuns para, na fase da partilha, poder ser considerado o teor do citado art. 1790.º;
 - este “artigo não se preocupa com a determinação do acervo dos bens a partilhar, mas com o resultado a que se chega finda a partilha”.
Por seu turno, os cinco Tribunais da Relação têm feito abordagens que relevam para a compreensão e alcance das questões envolvidas:
I – Relação do Porto
- os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 06 de Fevereiro de 2014 (Processo n.º 124/10.6TBOAZ.P1) e de 10 de Abril de 2021 (Processo n.º 1635/20.0T8VCT.G1) - ambos relatados pelo Juiz Desembargador Aristides Rodrigues Almeida – escreveu-se que o “artigo 1790.º do Código Civil, na redacção da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, é aplicável a todos os casamentos celebrados segundo o regime de comunhão geral de bens, ainda que em data anterior à entrada em vigor da referida Lei (01.12.2008) mas que nesta data ainda subsistam”, assinalando que “não altera o regime de bens a que se encontra sujeito o casamento celebrado, pelo que a partilha continua a fazer-se tratando como bens comuns aqueles que de acordo com esse regime o são” e que
III - Para efectuar a partilha aplicando essa disposição, uma vez apurado o valor que corresponde ao quinhão (meação) de cada um dos cônjuges nos bens comuns a partilhar, tem de se comparar esse valor com aquele que resultaria da sua partilha como se o regime de bens fosse a comunhão de adquiridos; para o efeito simula-se a partilha de acordo com este regime de bens, separando os bens que de acordo com esse regime seriam próprios e encontrando a hipotética quota (meação) de cada um dos cônjuges nos bens que mesmo nesse regime seriam comuns; finalmente, comparando os valores apurados na partilha segundo o regime efectivo e na partilha segundo o regime hipotético, caso aquele valor exceda este, deverá ser reduzido a este valor, aumentando correspondentemente a quota do outro cônjuge, procedendo-se então ao preenchimento dos quinhões;
- o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26 de Maio de 2015 (Processo n.º 5199/12.0TBMAI.P1 - Fernando Baptista de Oliveira) referiu que o “ regime da nova Lei nº 61/2008, de 31.10, designadamente o estatuído no artº 1791º/ do CC, aplica-se aos casamentos celebrados antes da data da sua entrada em vigor (01.12.2008), mas que nessa data ainda subsistam e já não àqueles que à data dessa vigência já tenham sido dissolvidos” e que o “critério escolhido para a aplicação da lei velha e da lei nova deve respeitar o princípio constitucional da segurança jurídica e da protecção da confiança, de modo a não violar direitos adquiridos ou frustrar expectativas legítimas, sem fundamento bastante”.
II – Relação de Guimarães
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24 de Março de 2022 (Processo n.º 604/20.5T8FAF-A.G1 - Alcides Rodrigues), onde se refere que à “luz do regime estatuído pelo art. 1790.º do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31/10, em caso de divórcio, ainda que o regime de bens adotado seja a comunhão geral, nenhum dos cônjuges pode receber na partilha mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos” e que esta “regra impõe se determine o valor que caberia a cada um dos cônjuges no regime da comunhão de adquiridos, o qual constituirá um limite quantitativo, a operar em termos de valor, impedindo que a meação de cada um dos cônjuges seja mais valiosa do que a que lhes caberia à luz daquele regime de bens”;
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03 de Março de 2022 (Processo n.º 2248/20.2T8BRG.G1 - Alexandra Viana Lopes), onde se refere que no “inventário para partilha por divórcio, entre cônjuges que foram casados sobre o regime da comunhão geral de bens: a decisão da reclamação à relação de bens que tenha ordenado a eliminação de verbas de direitos de crédito do cabeça de casal sobre o património comum, por ter entendido que os valores investidos no património comum eram bens comuns, ao abrigo do regime de comunhão geral bens, não deve prejudicar a discussão oportuna da relevância dos factos num regime da comunhão de adquiridos para achar os limites do art.1790º do C. Civil”;
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de Outubro de 2021 (Processo n.º 1635/20.0T8VCT.G1 - Cristina Cerdeira) onde se referiu que;
  - o “art.º 1790º do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº. 61/2008 de 31/10, é aplicável a todos os casamentos celebrados segundo o regime da comunhão geral de bens, mesmo aos celebrados em data anterior à sua entrada em vigor (1/12/2008), desde que, neste caso, subsistam nessa data”;
 - “Aquele preceito legal não altera o regime de bens a que se encontra sujeito o casamento celebrado, pelo que a partilha continua a fazer-se tratando como bens comuns aqueles que o são de acordo com esse regime”;
 - “A alteração legislativa que veio a ser introduzida no artº. 1790º do Código Civil apenas rege os termos da partilha, sem colidir com o regime de bens existente na permanência do vínculo matrimonial. Esta norma apenas define o que cada cônjuge pode receber na sequência da partilha, estabelecendo que cada um deles não pode haver mais do que receberia se o casamento tivesse sido realizado segundo o regime da comunhão de adquiridos, não alterando, contudo, o regime de bens existente, que se impõe ope legis”;
 - “Não obstante o citado artº. 1790º determinar uma diminuição do património comum, no caso de divórcio, isso não significa que a imposição legal vá afectar os bens que entraram nesse património comum. Assim, estando o A. casado com a gerente da Ré no regime da comunhão geral de bens, quando no património comum ingressou o imóvel adquirido por via sucessória, aquela, mesmo após o divórcio, continua a ser titular do direito à meação nesse mesmo património”;
 - “Para efectuar a partilha aplicando a norma do art.º 1790º do Código Civil, uma vez apurado o valor que corresponde ao quinhão (meação) de cada um dos cônjuges nos bens comuns a partilhar, tem de se comparar esse valor com aquele que resultaria da sua partilha como se o regime de bens fosse a comunhão de adquiridos; para o efeito simula-se a partilha de acordo com este regime de bens, separando os bens que de acordo com esse regime seriam próprios e encontrando a hipotética quota (meação) de cada um dos cônjuges nos bens que mesmo nesse regime seriam comuns; finalmente, comparando os valores apurados na partilha segundo o regime efectivo e na partilha segundo o regime hipotético, caso aquele valor exceda este, deverá ser reduzido a este valor, aumentando correspondentemente a quota do outro cônjuge, procedendo-se então ao preenchimento dos quinhões”;
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23 de Fevereiro de 2017 (Processo n.º 633/15.0T8VCT.G1 -Maria de Fátima Andrade), onde se refere que, dissolvido “por divórcio, casamento celebrado sobre o regime de comunhão geral de bens, no que às relações patrimoniais entre os cônjuges concerne os efeitos do mesmo decorrentes têm de ser aferidos como se o casamento tivesse sido celebrado sob o regime de comunhão de adquiridos [vide artigos 1788º a 1790º do CC];
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Janeiro de 2017 (Processo n.º 91/15.0 T8BRG.G1-Cristina Cerdeira), onde se refere que:
 - o “art.º 1790º do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº. 61/2008 de 31/10, não altera o regime de bens a que se encontra sujeito o casamento celebrado, pelo que a partilha continua a fazer-se tratando como bens comuns aqueles que de acordo com esse regime o são”;
  - a “norma do artº. 1790º do Código Civil, tal como sucedia anteriormente à redacção actual, não visa alterar o regime de bens do casamento. Este preceito, tal como sucedia antes da alteração, não modifica o regime de bens pré-existente; apenas rege os termos da partilha (define o que cada cônjuge pode receber na sequência da partilha), sem colidir com o regime de bens existente na permanência do vínculo matrimonial, que se impõe ope legis”;
 - não “obstante o citado artº. 1790º determinar uma diminuição do património comum, no caso de divórcio, isso não significa que a imposição legal vá afectar os bens que entraram nesse património comum. Se a Autora estava casada com o Réu no regime da comunhão geral de bens e no património comum já haviam ingressado os imóveis adquiridos por via sucessória, ela continua a ser titular do direito à meação nesse mesmo património”;
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17 de Dezembro de 2014 (Processo n.º 3698/11.0TBBCL.G1 - Filipe Caroço), onde, relativamente a um casamento sob o regime da comunhão geral de bens celebrado a 21/05/1998, e dissolvido por divórcio a 12/02/2009, se assinalou que:
- de “acordo com o art.º 1790º também do Código Civil, na redação introduzida pela Lei nº 61/2008, de 31 de outubro, em vigor naquela data, “em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos”;
- neste “regime que é o regime supletivo previsto naquele código (art.º 1717º), constituem bens próprios dos cônjuges, estando, por isso, excluídos da comunhão patrimonial conjugal, além do mais, “os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação;” (art.º 1722º, nº 1, al. b), também do Código Civil)”;
- na “exposição de motivos do Projeto-lei nº 509/X, expõem-se as razões que levaram o legislador a proceder à alteração do referido art.º 1790º, nos seguintes termos: “Segue-se neste ponto o direito alemão, que evita que o divórcio se torne um meio de adquirir bens, para além da justa partilha do que se adquiriu com o esforço comum na constância do matrimónio, e que resulta da partilha segundo a comunhão de adquiridos. Abandona-se o regime actual que aproveita o ensejo de premiar um inocente e castigar um culpado”;
- actualmente, “desde a reforma introduzida pela Lei nº 61/2008, de 31 de outubro, já nem releva a figura anteriormente prevista do “cônjuge único ou principal culpado”;
- o “casamento não deve consistir numa forma de enriquecimento de qualquer dos cônjuges, pelo que em caso da dissolução de casamento (por divórcio) celebrado segundo um regime de maior comunhão que o da comunhão de adquiridos, os cônjuges deverão ver revertidos a seu favor os bens que levaram para o casamento bem como aqueles que na sua constância adquiriram a título gratuito”;
- por “força daquela disposição legal, A. e R. hão de submeter-se a este regime de bens supletivo na divisão de bens subsequente ao seu divórcio”.
III – Relação de Coimbra
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16 de Abril de 2013 (Processo n.º 1453/03.0TBFND-C.C1 - Jacinto Remígio Meca), onde se refere que os “efeitos de divórcio retrotraem-se à data da propositura da acção de divórcio, pelo que o acervo patrimonial estabiliza-se na data da propositura da acção e é a partir desta data que se decide se os bens móveis e/ou imóveis foram ou não integralmente relacionados no inventário respectivo, tendo sempre por referência a data em que a acção de divórcio deu entrada em tribunal, a menos que a situação se enquadre no nº 2 do artigo 1789º do CC”;
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25 de Outubro de 2011 (Processo n.º 349/10.4TBGVA.C1 - Regina Rosa), onde se refere que:
- não “obstante o art.1790º determinar uma diminuição do património comum, no caso de divórcio, esta referência quer significar que a imposição legal se aplica também ao divórcio na modalidade de mútuo consentimento e não apenas no caso de divórcio sem consentimento, por ruptura do casamento (art.1781º), como tinha, na anterior versão, no divórcio litigioso”;
 - isso “não significa que a imposição legal vá afectar os bens que entraram no património comum. Se a recorrente estava casada no regime da comunhão de bens e no património comum já haviam ingressado os imóveis adquiridos por via sucessória, ela continua a ser titular do direito à meação nesse mesmo património”;
 - quando “a lei (art.1790º) diz que nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime de comunhão de adquiridos, não está a querer dizer que, se o regime de bens do casamento foi o da comunhão, há que considerar, para efeitos de partilha, que o regime que vigorou foi o da comunhão de adquiridos. O regime de bens não é de forma alguma alterado”;
 - o “uso do advérbio “mais” inculca nitidamente que o legislador teve em vista estabelecer o princípio de que os cônjuges não podem receber maior valor do que lhes caberia receber se o casamento tivesse sido contraído sob o regime de comunhão de adquiridos, e não subtrair da comunhão da massa de bens comuns os bens que cada um levou para o casamento ou adquiriu, na constância deste, a título gratuito”;
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03 de Março de 2008 (Processo n.º 33-A/1999.C1-Isabel Fonseca), onde se refere que o “sentido do disposto no artigo 1790º do Código Civil é o de que a aplicação deste preceito releva apenas na fase da partilha, em ordem à aplicação do regime que, em concreto, se mostrar mais favorável aos interesses do cônjuge não culpado, o que pressupõe, necessariamente, que sejam relacionados todos os bens, com expressa menção da sua proveniência, excepto, obviamente, aqueles que são incomunicáveis no regime da comunhão (art.º 1733º do Código Civil);
IV – Relação de Lisboa
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02 de Maio de 2019 (Processo n.º 712/08.0TMFUN-A.L1-6 - Gabriela de Fátima Marques) numa situação em que o casamento em regime de comunhão de bens datava de 1979, o divórcio foi intentado em Setembro de 2008, a respectiva Sentença (transitada) de Outubro de 2010 e o inventário entrado em juízo em Junho de 2011 - onde se refere que:
 - por “imposição da lei, terá de se declarar na sentença de divórcio o momento em que se produzem os efeitos da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, não podendo tal fixação ocorrer em momento posterior, mormente no inventário de partilha dos bens”;
- quando “no art.º 1790º do CC se diz que nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime de comunhão de adquiridos, não está a querer dizer que se o regime de bens do casamento foi o da comunhão, há que considerar, para efeitos de partilha, que o regime que vigorou foi o da comunhão de adquiridos, pois o regime de bens não é de forma alguma alterado”;
- o “legislador teve em vista estabelecer o princípio de que os cônjuges não podem receber maior valor do que lhes caberia receber se o casamento tivesse sido contraído sob o regime de comunhão de adquiridos, e não subtrair da comunhão da massa de bens comuns os bens que cada um levou para o casamento ou adquiriu, na constância deste, a título gratuito”;
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Janeiro de 2010 (Processo n.º 3658/09.1TBSXL.L1-1 - Anabela Calafate) numa situação em que o divórcio ocorrera em 1999, ao inventário subsequente haveria que aplicar a redacção do artigo 1790.º anterior à da Lei n.º 61/2008.
V – Relação de Évora
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10 de Abril de 2024 (Processo n.º 1635/20.0T8VCT.G1 - Isabel Peixoto Imaginário) referiu que “ em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos – artigo 1790.º do CC”, que “embora os bens comuns não se transmutem em bens próprios nem o regime de bens se altere por força do divórcio, há que proceder ao confronto do resultado que advém para cada um dos cônjuges da aplicação do regime convencionado ou legalmente fixado com o que se obteria mediante a aplicação do regime da comunhão de adquiridos”, e que “no caso de o primeiro ser mais favorável do que o segundo relativamente a qualquer um dos cônjuges, a quota do cônjuge beneficiado deverá ser reduzida ao valor da respetiva quota decorrente da aplicação do regime da comunhão de adquiridos, aumentando-se correspondentemente a quota do outro cônjuge.
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15 de Abril de 2021 (Processo n.º 2126/16.0T8STR.E3-Rui Machado e Moura) referiu que, face “ao estipulado no artigo 1790.º do Código Civil, o R., aqui apelante, não obstante ter sido casado com a A. no regime de comunhão geral de bens, não poderá receber na partilha mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime de comunhão de adquiridos”, que, atenta “a factualidade apurada nos autos, resulta claro que do património comum dos ex-cônjuges faz parte, indubitavelmente, o bem imóvel que constituiu a casa de morada de família de A. e R. durante a vigência do casamento, que, por isso, deve integrar os bens a partilhar, sendo certo que, por virtude de tal partilha, o aqui recorrente não poderá receber mais do que lhe caberia se o regime de bens entre eles fosse o de comunhão de adquiridos”, e que “o citado artigo 1790.º não se preocupa com a determinação do acervo dos bens a partilhar, mas com o resultado a que se chega finda a partilha”;
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27 de Junho de 2019 (Processo n.º 1280/10.9TBVNO-A.E1 - Ana Margarida Leite) referiu que face “ao regime estatuído pelo artigo 1790.º do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31-10, em caso de divórcio, ainda que o regime de bens adotado seja a comunhão geral, nenhum dos cônjuges pode receber na partilha mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos” e que esta “regra impõe se determine o valor que caberia a cada um dos cônjuges no regime da comunhão de adquiridos, o qual constituirá um limite quantitativo, isto é, constituirá o valor que caberá a cada um dos cônjuges receber na partilha, após o que se procederá ao preenchimento dos quinhões”, pelo que a “origem dos bens relacionados releva para efeitos da determinação do valor da quota-parte que caberá a cada um dos cônjuges na partilha”;
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23 de Fevereiro de 2017 (Processo n.º 306/03.7TBEVR-A.E1 - Tomé Ramião), a propósito de uma situação em que um ex-cônjuge divorciado (de um casamento no regime de comunhão de bens e em que foi julgado principal culpado no divórcio), falecido em 2003 e tendo havido inventário para separação de meações, terminado com a partilha, mas em que surgiram “novos” bens susceptíveis de partilha adicional, se defendeu a aplicação do regime das “disposições do Código Civil na sua redação anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º61/2008, de 31 de outubro” (uma vez que “o cônjuge considerado culpado ou principal culpado, sofria consequências a nível patrimonial, nomeadamente ao nível da partilha dos bens comuns, pois não podia na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos – anterior redação do art.º 1790.º do C. Civil”).
Mas mais do que a questão do conteúdo propriamente dito do preceito, portanto, situamo-nos no momento anterior, que é o da sua aplicabilidade.
E quanto a esta, cremos que o já referido Acórdão do Supremo Tribunal Justiça de 26 de Março de 2019 (Processo n.º 199/10.8TMLSB-C.L1.S1-Fernando Samões), deixa o regime clarificado, quando assinala que, perante os artigos 9.º e 10.º da Lei 61/2008, se impõe o “recurso ao disposto no art.º 12.º do Código Civil.
Segundo o princípio geral aqui consagrado, “A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular” (n.º 1).
Todavia, “…quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor” (n.º 2, 2.ª parte).
O divórcio dissolve o casamento, cessando as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges.
Os efeitos do divórcio quanto a estas relações retrotraem-se à data da propositura da acção de divórcio (art.ºs 1788.º, 1688.º e 1789.º, n.º 1, todos do Código Civi1).
O divórcio é, pois, uma forma de extinção da relação jurídica do casamento.
Ao alterar a regulamentação do divórcio e respectivas consequências, o legislador dispõe directamente sobre o conteúdo da relação do casamento, abstraindo dos factos que lhe deram origem, isto é, regulando a extinção da relação de forma genérica e não definindo uma regra específica para um determinado facto causal em particular.
Não é do casamento que a lei fala, mas do estado de casado e do divórcio, como fenómeno extintivo desse estado.
Assim, nos termos da 2.ª parte do n.º 2 do art.º 12.º do Código Civil, a Lei n.º 61/2008 (nova lei), dispondo directamente sobre a situação de casado, abstraindo do casamento que fez nascer o estado de casado, abrange as relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor (para melhor explicitação, ver Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Coimbra, 1982, pág. 231 e seguintes).
Deste modo, o regime por ela introduzido aplica-se aos casamentos celebrados antes da data da sua entrada em vigor (1/12/2008) e que nessa data ainda subsistam, isto é, não tenham sido dissolvidos,[12] como sucede no caso dos autos em que o divórcio apenas foi decretado em 18/4/2012, já em plena vigência daquela lei.
Ninguém, nomeadamente algum dos ex-cônjuges, pode sentir-se discriminado ou inseguro perante a solução preconizada pela nova lei sobre os efeitos do divórcio, porquanto está a ser tratado em situação de perfeita igualdade com todos os outros que se divorciem depois da lei e sabe, perfeitamente, em que condições vai partir para o divórcio”.

Decorre, assim, que a aplicação da versão do artigo 1790.º do Código Civil, na redacção da Lei n.º 61/2008, só ocorre quanto a todos os pedidos de divórcio apresentados depois da sua entrada em vigor[13].
No caso dos presentes autos, o casamento já não subsistia a 01 de Dezembro de 2008 (desde 15 de Abril de 2005) - pelo que o divórcio não ocorreu no período de vigência da nova redacção do artigo 1790.º[14] -, acrescendo que o inventário deu entrada em juízo mais de três anos antes da entrada em vigor da Lei n.º 61/2008.
Assim, não tendo aplicabilidade à situação deste processo o actual regime do artigo 1790.º do Código Civil, e aplicando-se a anterior (sendo certo que o ex-cônjuge F, fora considerado principal culpado no divórcio), nada há a colocar em causa ao despacho proferido, por nada mais haver a atender.
Pura e simplesmente o ora Recorrente não atentou nas regras de aplicação da lei no tempo, no que concerne à pretensão que deduziu.
O Despacho será, pois, confirmado e o Recurso julgado improcedente.
*
DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a Decisão recorrida.
Custas do Recurso a cargo do Recorrente.
Notifique e, oportunamente, remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º do Código de Processo Civil).
***
Lisboa, 05 de Março de 2024
Edgar Taborda Lopes
Cristina Maximiano
Ana Mónica Mendonça Pavão
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[1] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[2] Guilherme de Oliveira (com a colaboração de Rui Moura Ramos), Manual de Direito da Família, 2.ª Edição, 2021, Almedina, página 218.
[3] Subsecção IV, da Secção I, do Capítulo XII, do Título II, do Livro IV (Direito da Família), do Código Civil.
[4] A primeira – original – decorrente do Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de Novembro e ainda sob a epígrafe “Casamentos indissolúveis por divórcio”: “Não podem dissolver-se por divórcio os casamentos católicos celebrados desde 1 de Agosto de 1940, nem tão-pouco os casamentos civis quando, a partir dessa data, tenha sido celebrado o casamento católico entre os mesmos cônjuges”.
A segunda, traduzida na sua revogação, através do Decreto-Lei n.º 261/75, de 27 de Maio.
A terceira, decorrente do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, criando a epígrafe “Partilha”: “O cônjuge declarado único ou principal culpado não pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos”.
[5] Que tem a redacção dada pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro (uma lei que “quer, face à extinção do vínculo, independentemente de persecutórias pesquisas de uma assim dita culpa, é restabelecer a situação jurídico-patrimonial dos ex-cônjuges coimo se não tivera havido casamento”, revelando que o “instituto que norteia o legislador é o do enriquecimento sem causa”Carlos Pamplona Corte-Real - José Silva Pereira, Direito da Família-Tópicos para uma Reflexão Crítica, 2.ª Edição Actualizada, AAFDL, 2011, página 19).
[6] “Esta lei, que veio estabelecer o actual regime jurídico do divórcio, entrou em vigor 30 dias após a sua publicação (cfr. seu art.º 10.º), ou seja, a 1/12/2008, sem aplicação aos processos pendentes em tribunal (cfr. seu art.º 9.º)” - Acórdão do Supremo Tribunal Justiça de 26 de Março de 2019 (Processo n.º 199/10.8TMLSB-C.L1.S1 - Fernando Samões).
[7] Norma que, todavia, já foi julgada inconstitucional, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 407/2010, de 09 de Novembro (Maria Lúcia Amaral), publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 241, de 15 de Dezembro de 2010, por “violação do disposto no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, (…) na parte em que impede a aplicação imediata do novo regime de exercício das responsabilidades parentais a situações em que não tenham sido casados, nem vivam ou tenham vivido em condições análogas às dos cônjuges, os progenitores do menor”, situação que nada tem que ver com a que nos deparamos nos presentes autos.
[8] Rute Teixeira Pedro, Código Civil Anotado (organizado por Ana Prata), Volume II, 2.ª edição, Almedina, 2019, página 675.
Vd., ainda:
- Marta Isabel Dias Oliveira, A confiança na escolha do regime bens abalada pela nova  redação do artigo 1790.º do Código Civil Perspetiva da liberdade contratual e da Autonomia Privada, [em linha], Dissertação apresentada à Faculdade de  Direito da Universidade de  Coimbra orientada por Sandra Passinhas, 2016, disponível em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/34911/1/A%20Confianca%20na%20Escolha%20do%20Regime%20Bens%20Abalada%20pela%20Nova%20Redacao%20do%20Artigo%201790.%20do%20Codigo%20Civil%20Perspetiva%20da%20liberdade%20contratual%20e%20da%20Autonomia%20Privada.pdf [consultado a 28/02/2024];
- Sara Liliana Pinto Rego, Inventário por divórcio: questões suscitadas no âmbito da relação de bens, [em linha], Dissertação de Mestrado em Direito apresentada à Escola de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa, sob a orientação de Rita Lobo Xavier, 2018, disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/27811/1/Disserta%c3%a7%c3%a3o%20%28texto%20integral%29.pdf [consultado a 28/02/2024];
- Cláudia Diana da Silva Matos, A Intervenção do Estado nas Relações Privadas Familiares e a Redação do  Artigo 1790.º do Código Civil dada pela Lei n.º61/2008, de 31 de Outubro, [em linha], Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade do Porto orientada por Helena Barbosa da Mota, 2015, disponível em https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/80904/2/36891.pdf [consultado a 28/02/2024].
[9] Rita Lobo Xavier, Recentes alterações do regime jurídico do divórcio e das responsabilidades parentais: Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, Coimbra, Almedina, 2009, página 35.
[10] Guilherme de Oliveira, Manual…, ob. cit., página 220.
Neste sentido, expressamente o Acórdão da Relação de Évora de 15 de Abril 2021 (Processo n.º 2126/16.0T8STR.E3-Rui Machado e Moura): “Com efeito, o citado artigo 1790.º não se preocupa com a determinação do acervo dos bens a partilhar, mas com o resultado a que se chega finda a partilha”, pelo que, tendo sido determinado que um bem do dissolvido casal era comum, “deverá proceder-se à sua partilha (adicional) entre eles, com recurso a licitações se necessário, e tendo sempre presente em tal partilha a regra constante do referido artigo 1790.º do Código Civil”.
[11] Maria Margarida da Silva Pereira, Direito da Família, 3.ª edição, AAFDL, 2020, páginas 597 a 603.
Cristina Araújo Dias, A partilha dos bens do casal nos casos de divórcio. A solução do art. 1790.º do Código Civil, in Lex Familiae – Revista Portuguesa de Direito da Família n.º 15, 2011, Coimbra Editora, páginas 19 a 31.
[12]  Carregado e sublinhado nossos.
[13] Situação, aliás, que se pode constatar em todos os Acórdãos citados e onde se aplica o regime da nova Lei.
[14] Sendo certo que sempre haveria que contar com a circunstância assinalada no Acórdão da Relação de Coimbra de 16 de Abril de 2013, acima citado, no sentido de os efeitos de divórcio retroagirem à data da propositura da acção de divórcio, sendo essa a data em que o acervo patrimonial estabiliza.